História Indesejada - Duas partes de mim

—Se eu acompanhar o dedilhado com o piano pode ser que a música fique mais suave.

—Você acha? Vamos tentar então. –concordei me sentando em uma mesa ao lado do piano e segurando o violão.

Há duas semanas Kaius e eu ficamos na sala de aula mesmo após as aulas terminarem, aos poucos tenho criado confiança para cantar sozinha e o preço cobrado são os pesadelos quase enlouquecedores todos os dias. Eu admito que pensei que com o tempo as coisas iriam melhorar, duas semanas já se passaram e parece que quanto mais me sinto confiante em relação a música mais minha cabeça me castiga.

—Não, mais devagar Elizabeth. –Kaius falou sem parar de tocar o piano.

Dedilhei ainda mais lentamente e aos poucos os sons se encaixaram em perfeita e única melodia.

—Tem razão, ficou muito bom mesmo. –falei quando paramos de tocar.

—Você não está tendo problemas por ter perdido todas aquelas músicas? –ele perguntou tirando o violão da minha mão e colocando em seu lugar.

—Na verdade sim, mas nada vai ser resolvido apenas pensando nas músicas que perdi.

—É verdade... Se precisar de alguma ajuda...

—Você já me ajuda muito Kaius, ajuda até mais do que eu mereço.

—Isso é verdade, até eu me pergunto qual o motivo de eu te ajudar.

—Não era para você concordar! –falei empurrando seu ombro de leve.

—Desculpa, desculpa. –ele sorriu para mim.

As coisas ainda estavam estranhas na minha cabeça, raramente me lembrava de algo realmente importante, mas um pedaço do meu passado estava ao meu lado e eu não me sentia mais incomodada, estava grata por ter encontrado Kaius novamente e estava grata por aos poucos voltarmos ao que éramos antes.

—Tinha esse garoto que todos os dias roubava o seu lanche, todos os dias mesmo, e todos os dias que ele roubava você chorava e chorava... –Kaius falou enquanto jantávamos.

—O que? Por que alguém roubaria meu lanche todo dia?

—Era o que eu me perguntava também. Ah, me falaram que ele passava a aula toda jogando bolinha de papel em você.

Revirei os olhos.

—Eu fiz alguma coisa para esse garoto fazer isso comigo?

Kaius sorriu e abaixou o copo de suco da sua boca.

—Aí que a história fica engraçada, eu fui saber o que estava acontecendo já que todo dia no final da aula você estava morrendo de tanto chorar.

—A gente não era da mesma turma?

—Não né, eu sou mais velho que você. Enfim, um dia eu fui te buscar na sua sala e o garoto não queria te deixar sair, você estava apavorada lá, aí eu entrei e perguntei o que ele queria com você e ele me ignorou e te entregou um cartão.

—Um cartão? Oh.

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—Isso... Eu gosto de você! –um garoto de cabelo claro esticou seu braço segurando um cartão com um desenho bastante infantil na capa.

—É o que? –o garoto de cabelos negros parado ao meu lado olhou perplexo para o cartão em minha frente.

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Comecei a rir me engasgando com meu suco.

—Se lembrou disso? –Kaius perguntou me entregando um guardanapo.

—Sim! A sua cara quando viu o cartão foi a melhor. –falei colocando o guardanapo sobre a boca para evitar que cuspisse todo meu suco.

—Eu não podia acreditar no que estava acontecendo! Eu fiquei realmente chocado com a situação. Mas você sempre foi popular desde bem nova.

—Eu só fui popular quando nova então, depois que eu cresci ninguém teve interesse em mim.

—É porque tecnicamente você não cresceu. –ele disse apontando para o próprio peitoral.

Cobri meus seios com os braços tentando protegê-los do olhar de Kaius.

—Não é só isso que importa!

—Provavelmente não já que aquele garoto vive correndo atrás de você, mas não acho que devo colocá-lo na mesma categoria de homens que eu, ele é bem esquisito.

—Quem você está chamando de esquisito? Você é o mais esquisito aqui! –falei empurrando minha comida de lado.

—Você acha isso porque você é esquisita. –resmungou de boca cheia.

—Por que você é chato assim comigo? Que eu me lembre você não era assim quando eu era pequena.

—Porque antes eu gostava de você.

Abri a boca para respondê-lo mas a fechei imediatamente. Sempre me sinto frustrada em relação ao Kaius, quando acho que estamos nos aproximando novamente ele coloca um abismo enorme entre nós. Mesmo que eu acabe me lembrando de tudo nós nunca vamos voltar ao que éramos, não é?

Kaius ergueu sua cabeça quando percebeu o meu silêncio.

—Verdade... –concordei com um pequeno sorriso e me coloquei de pé

—Aonde você vai?

—Andar um pouco. –disse saindo da cafeteria.

As luzes fracas dos postes iluminavam meu caminho pela calçada. Minha única certeza é que a minha “eu” que ainda estava presa ao passado não aceitava essa minha relação com Kaius, ela não aceitava não ser mais a amiga preciosa dele de antes, mas a “eu” do presente sabe que nossa relação do passado não é nada mais do que uma relação do passado. Esse bloqueio criou dois pedaços de mim, no fundo as duas sou eu, mas a eu de agora vive somente com as memórias que quer ter, enquanto a outra está presa com todas essas memórias que esqueci. A Elizabeth de agora está apaixonada por Henry, mas a Elizabeth do passado mantém sentimentos pelo Kaius e não deixa que eu me afaste dele. Se eu me lembro de tudo... O que acontece? Se eu me lembro de tudo... Eu vou continuar sendo a mesma pessoa? Por acaso o que eu esqueci pode fazer com que eu mude de alguma maneira? Parei no lugar, um arrepio percorreu meu corpo, eu estava com medo do que me esperava.

—Ei, Elizabeth. –uma voz familiar me chamou.

Me virei alarmada na direção da voz.

—Kaius o que você está fazendo aqui?

—Você pareceu incomodada com o que te falei então achei melhor te seguir.

—O que achou que ia fazer? Achou que eu ia me matar porque você não gosta mais de mim? –perguntei brincando.

Kaius olhou para mim sério, a cor de seu rosto sumiu.

—Kaius? Que merda aconteceu? –perguntei puxando o braço do garoto.

Ele desviou seu olhar do meu rosto.

—Por acaso algo assim aconteceu antes? Eu me lembro que gostava de você, então o que diabos aconteceu Kaius?

—Não aconteceu nada. –ele disse tirando minha mão do seu braço – Você apenas sempre teve mania de fazer as coisas sem pensar nas consequências.

Seu olhar parecia coberto por sombras do passado quando ele olhou para mim.

—Elizabeth, você não pode me ver como o Kaius de anos atrás, as coisas mudaram, entendeu? –ele perguntou segurando meus ombros com força.

—Do que você...

—Me escuta! –bradou sacudindo meu ombro – Você gosta do Henry, você nunca gostou de mim e nem vai gostar, entendeu?

Pisquei meus olhos, confusa.

—Nossa amizade terminou há anos, você não me conhece, a única relação que tenho com você é te ajudando com a música. Você não tem obrigação de se lembrar de mim, não faz diferença. Entendeu? –insistiu me dando um olhar penetrante.

—Entendi. –as palavras saíram como um sussurro.

—Não se preocupe em lembrar-se do seu passado, não force isso. Se você tem alguma confiança em mim, me escute pelo menos dessa vez.

Fiz um breve aceno de concordância. O fato de Kaius querer me afastar dele a qualquer custo me deixava ainda mais curiosa.

—Depois de te ajudar vou me afastar para que você siga sua vida com Henry. –ele falou tirando as mãos dos meus ombros.