1. Spirit Fanfics >
  2. Lírio Oculto >
  3. Capítulo 4 - Kang Charlotte

História Lírio Oculto - Capítulo 4 - Kang Charlotte


Escrita por: bruneviev

Capítulo 5 - Capítulo 4 - Kang Charlotte


Plenitude/Sinopse

Londres, Inglaterra
04:37 AM

Londres é uma cidade mágica, onde o inevitável acontece e tudo é possível. Uma cidade histórica com cultura, personagens e pontos turísticos marcantes. É considerada uma das cidades mais seguras do mundo inteiro, mas não podemos nos esquecer das suas controvérsias que não chegam aos olhos dos turistas, as ações escondidas, e os problemas sem soluções.

O não descoberto e o temeroso, o sombrio e o impagável, a triste história rotineira que não deve ser jogada no ar.

Entre os leitores ansiosos, as mentes incansáveis, os possuidores da insônia temerosa, os sonhadores melancólicos e os sonâmbulos inquietáveis, duas almas se esgueiravam através da escuridão em busca do nada — e do tudo.

O vestido vermelho era puxado para cima.

O vestido verde sucumbiu.

 

Cinco horas da manhã é muito cedo para já estar de pé.

Malchin estava acostumado, é claro. O trabalho dele exigia isso. Mas algumas rotinas não se facilitam com o passar do tempo. Para o perito, na verdade, estava ficando cada dia mais complicado.

— Você vai morrer com suas veias entupidas. — disse Jayong ao franzir o nariz, com repulsa e nojo.

— E você vai morrer sem ter o prazer de comer uma boa rosquinha. — o mais alto refutou com a boca ainda cheia de farelos.

A Jung permitiu-se apenas comprimir os lábios e balançar a cabeça. Nunca fora de alimentar uma discussão, não seria hoje que isso mudaria.

Fez uma última curva com o carro, virando à esquerda e chegando ao seu destino tão familiar, mas que nunca a deixava suficientemente confortável.

Não admitiria tão cedo, graças ao seu pequeno, porém existente, poço de orgulho, que aceitou o pedido de Malchin de parar na loja de doces apenas para atrasar um pouco mais a ida ao necrotério.

Era, de longe, a parte que ela menos gostava do seu trabalho.

— Bom dia, Doutora Lee. — cordial e falsamente elegante, In cumprimentou, passando pelas portas de vidro blindado.

— Espero que seja. — ela suspirou.

— O que tem para nós? — Jayong entrou na sala com passos ágeis e buscando ir direto ao assunto.

A perita gostava de coisas rápidas, e, no momento, mais ainda. Estava extremamente receosa e temia pela vida dos alunos daquela escola. Tinha consciência de que precisava acabar com uma guerra antes mesmo de ela começar, metaforicamente.

A legista meneou a cabeça para o lado enquanto apontava para o corpo da garota que teve a vida injustamente tirada. Esperou os colegas se aproximarem e puxou o pano esbranquiçado até o colo, expondo palidez e ferimentos na garganta.

Doutora Lee Zoe era extremamente centrada.

E disso, ninguém poderia discordar.

— A causa da morte foi o garfo perto da jugular. — Lee apontou, com as mãos enluvadas, para os furos no pescoço da vítima. — Não penetrou muito fundo, mas foi o suficiente para tirar a vida da menina. Pobre coitada.

Zoe lamentou, levantando as sobrancelhas, antes de continuar.

— Ela também bateu a parte de trás da cabeça com força, creio que antes de morrer. E tem marcas de enforcamento. — tirou mechas do cabelo da frente da garganta feminina para deixar as lesões mais visíveis. — Contudo, não achei nenhuma digital.

— Tudo bem. — murmurou a Jung, com a expressão séria, andando ao redor da maca. — Sinais de estupro?

— Felizmente não. Se é que tem algo feliz nisso tudo.

Estranho. Era a palavra que não saía da cabeça de Malchin. E o rapaz sentia que seria uma palavra bem comum em seu vocabulário daqui para frente.

— O suspeito a sufocou, a jogou no chão e só então enfiou o garfo nela? — o questionamento chamou a atenção das mulheres no recinto. — Se ele tinha o elemento surpresa, por que não a matou de uma vez?

A testa de Jayong estava franzida quando ela se virou e encarou o parceiro, fazendo com que o rabo de cavalo firme se movimentasse repentinamente. Não tinha reparado nisso. Agora tudo fazia ainda menos sentido, e ficava nitidamente pior.

— Isso aí é com vocês. — a Doutora respirou fundo antes de prosseguir. — E, tem mais uma coisa. Pode não ser nada, mas acho válido dizer.

Puxou o braço direito do cadáver, mostrando a mão fina e sem vida.

— Estão vendo isso? — separou o dedo anelar dos outros, mostrando uma divergência de cor que rodeava todo seu contorno.

— Ela frequentava a praia. Muito interessante, mesmo. — Malchin fez questão de ironizar.

— Ela usava um anel. — Zoe ignorou a piada irritante do perito. — E constantemente, como pode se perceber. Mas não tinha nenhum anel nos pertences achados junto a ela. Procurei em todos os bolsos da mochila e das roupas. Absolutamente nada.

A informação fez Jayong levantar as sobrancelhas em surpresa, enquanto o In as franziu mais ainda. A pergunta óbvia acabou sendo feita por ele:

— O elemento levou o anel?

 

Lucy parou o skate antes mesmo de adentrar os portões da escola.

Comemorou, afinal, seu moletom vermelho não ajudava a protegê-la do vento forte provindo da velocidade do equipamento de esporte.

Guardou o skate na mochila e, de olhos semicerrados, buscou o melhor amigo.

A entrada da escola era simétrica. Dois caminhos circundavam o jardim central, este que possuía apenas grama, flores e pequenas pedras, deixando o lugar mais amplo e possibilitando uma visão clara do prédio escolar. Havia também jardins laterais, esses que abundavam de árvores diversas e arbustos cheios, sendo divididos das estradinhas por muretas largas, baixas e contínuas que serviam de assento para os estudantes. Tais jardins iam do portão principal até os fundos, encontrando a área do clube de jardinagem e a quadra esportiva. O ambiente era muito espaçoso e bem cuidado.

A Seo preferiu atravessar pelo meio, pisando na grama, para conseguir enxergar ambos os caminhos e encontrar Kyung o mais rápido possível.

E não é que funcionou?

Lucy avistou o Jeon sentado com as pernas dobradas na mureta direita.

Correu até ele desajeitadamente e gritou seu nome, tomando cuidado para não tropeçar na calça escolar que era um pouco maior que as próprias pernas.

Por mais alto que tenha berrado, Kyung não a ouviu. Ele parecia muito mais interessado em qualquer coisa que tinha em mãos, que Lucy não soube identificar o que era por estar muito longe.

Quando chegou ao encontro do rapaz, parou em sua frente e cruzou os braços, notando que o moreno sorria para o telefone — comprovando sua teoria de que ele estava animado com alguma coisa.

O ato de ter parado na frente dele não o fez se tocar da presença dela, mas sim, a sombra que sua silhueta fizera.

— Ei, olá, Lucy. — desvencilhou os olhos do aparelho apenas para cumprimenta-la, não notando sua expressão facial.

A loira se chateou instantaneamente, o que a fez respirar fundo e puxar o telefone das mãos do colega, sem dar a ele algum tempo de reação.

— Onde você tava ontem? — perguntou com as sobrancelhas franzidas.

— O quê? — confuso, ele questionou. — Em casa...?

Kyung, sinceramente, não entendia em que ponto ela queria chegar. Mas a Seo, não percebendo isso, fechou a cara mais ainda e encarou o celular do Jeon.

O moreno estava feliz porque conversava com uma garota por mensagem. As mais recentes eram de alguns minutos atrás, coisas como “tudo bem?”, e “bom dia”. Lucy arqueou ambas as sobrancelhas quando rolou a tela e descobriu alguns flertes trocados na madrugada.

Teve que parar de ler quando Kyung abruptamente se levantou e avançou no seu braço na tentativa de recuperar o telefone. Ela se curvou para trás e empurrou o corpo do garoto para longe, fazendo com que ele se sentasse novamente.

— Que isso, Lucy. — desconfortável, reclamou. — Isso é invasão de privacidade.

— Você me deu um bolo ontem pra se encontrar com uma garota? — indignada, ainda bisbilhotava as mensagens trocadas.

Ao perceber que já havia lido demais, a loira franziu a testa e encarou Kyung, ainda com a mão esquerda em seu ombro, esperando uma resposta.

— Eu posso te explicar, tá bem? — levantou os ombros e arregalou brevemente os olhos.

— Quem é Mia? — a Seo fez outra pergunta.

— O quê? — relaxou a postura e expressou confusão. — Por que essas perguntas? Nós não somos namorados ou algo assim.

— Somos melhores amigos. Eu te liguei um milhão de vezes ontem! E você não retornou nenhuma. Aposto que nem viu.

— Mas o que tinha de tão especial ontem? Seu aniversário nem é esse mês.

— Foi o aniversário do meu pai. — sua voz falhou ao responder. — E você sabe...

Lucy não chegou a terminar de explicar o porquê de ontem ser uma data importante. E Kyung, no fim das contas, não precisava de mais nenhuma informação. Ele havia entendido, e, sem reação, apenas assistiu ela perder a pose de durona e abaixar o olhar, prestes a chorar.

Negando com a cabeça, a garota jogou o celular no colo do moreno e saiu andando para dentro do prédio da escola.

Não fez o mínimo de contato visual com o Jeon. Sabia que, se o fizesse, desabaria em seus ombros e choraria até suas lágrimas secarem por dentro.

 

Sunhae esticou o tecido preto da meia-calça fina tomando cuidado para não puxar seus pelos da perna junto.

A peça de roupa quase transparente já era um tanto quanto usada, e, apesar de bem cuidada e guardada, algumas finas linhas teimavam e em breve desfiariam.

Comprar uma nova estava na lista de urgências da No, mas essa havia sido criada faz quase um ano.

As urgências não eram tão urgentes, afinal.

A morena desceu a parte rodada da saia azul marinho do colégio e se certificou de que estava bem alinhada com o restante da roupa do uniforme. Abriu a cabine do banheiro feminino e, engolindo a seco, saiu, deparando-se com quem estava prestes a ir procurar.

Hae Suhwa era uma figura.

Fazia caretas para o espelho enquanto murmurava em diferentes tons de voz, mudando de fino para grave e se adequando a cada expressão a qual se submetia. Prontamente, a morena não hesitou em se aproximar.

— Suhwa! Por que não veio ontem? — Sunhae vociferou indignada, assustando a outra. — Tive que passar o intervalo sentada na privada.

A Hae virou-se para a No e a encarou como se ela fosse um alienígena.

— Não tivemos aula ontem. Tá passando bem? — disse, sem desfazer o semblante desconfiado.

Quando percebeu o erro, Sunhae fechou os olhos com força e balançou a cabeça devagar.

— Tinha me esquecido disso. — argumentou baixo, apenas para a colega escutar. — Por que não veio segunda?

— Você ficou o recreio todo sentada aqui dentro? — zombou, se esforçando para não rir da amiga.

— Responde.

— Qual é, Sun. — voltou a observar o próprio reflexo. — Era o primeiro dia de aula. Ninguém vai ao primeiro dia.

— Você disse que iria! — franziu o cenho, claramente incomodada.

— Você ainda acredita no que eu digo? — Suhwa arqueou uma das sobrancelhas bem desenhadas sem perder o sorriso no rosto, encarando a outra pelo espelho. — Sou uma atriz, amiga.

— Não, você faz parte de um grupo de teatro. — defendeu-se. — Da escola!

— Dá no mesmo. — arrumou o cabelo curto e notoriamente liso, tirando algumas mechas do rosto e posicionando-as atrás das orelhas.

Sunhae negou com a cabeça e, abaixando os ombros em posição de desistência, caminhou para fora do banheiro.

A Hae assistiu, com a expressão nula e calada, a melhor amiga passar pela porta azul apressadamente. Observou novamente o reflexo no vidro, mas dessa vez com um ressentimento vago no olhar.

Respirou fundo e, comprimindo os lábios, jogou a mochila nas costas ao desencostar-se da pia de mármore escuro e seguiu a amiga mais velha. Nada muito difícil, já que os corredores não se encontravam cheios ou movimentados.

Alcançá-la foi consideravelmente fácil também, afinal, Sunhae não corria.

— Tá bem, você tá certa. — comentou, com as mãos erguidas rente ao peito, quando conseguiu parear o passo ao da No. — Eu vacilei.

Recebeu um olhar rancoroso como resposta, o que a fez insistir em se desculpar.

Aumentou as passadas e parou bem na frente da colega, segurando os braços cobertos por uma blusa de frio preta e a obrigando a descontinuar a caminhada até a sala de aula. 

— Sério, Sun. Me desculpa. — tentou soar convincente. — Eu fui egoísta e deveria ter te avisado. Não faço de novo, eu prometo.

Sunhae sabia que a promessa de Suhwa não valeria nada. Conhecia a amiga suficientemente bem, ao ponto de afirmar que ela faria de novo assim que tivesse a chance. Mas, exatamente por conhecê-la, deu o braço a torcer.

— Tá. — disse, soltando junto com um suspiro e desviando o olhar para o chão.

— Você é incrível, amiga! — com uma felicidade exagerada e um sorriso radiante, a Hae abraçou a outra.

Quase tão rápido quanto a mais nova tomou a No nos braços, ela a soltou, sem dar tempo de reação.

— Admito que eu adoraria acompanhar a senhora rabugenta até a classe, mas eu tenho uma reunião importantíssima agora. — uniu os braços na frente do corpo e se balançou, com um sorriso esperto.

— Reunião? — Sunhae repetiu, curiosa e de cenho franzido, esperando uma explicação.

— O TEAD. — disse, simplesmente, e esperou a melhor amiga assimilar.

TEAD é a sigla para o famigerado clube de teatro e dramaturgia da escola. Suhwa tinha muito orgulho de si mesma por ter entrado em um grupo tão famoso, e a No tinha consciência disso. Só não compreendia o motivo de uma reunião logo cedo, levando em conta que as atividades extracurriculares só começavam na segunda semana letiva — para dar tempo de alunos novos se organizarem e escolherem com calma de qual participariam.

As sobrancelhas de Sun não voltaram ao normal, pelo contrário, eram forçadas mais ainda a ficarem unidas, e, percebendo isso, a Hae fez questão de esclarecer.

— Uma reunião do clube de teatro, amiga.

— Eu sei o que TEAD significa, Suhwa. — a resposta foi ríspida.

— Então por que ainda tá fazendo essa cara de doida?

— Ainda é terça-feira... — começou a dizer, antes de ser interrompida.

— Quarta-feira. — atentou-se a corrigir.

— Ainda é quarta-feira. — recomeçou a fala, impaciente e com o tom de voz rude. — Por que o seu grupinho de mentirosos vai se reunir tão cedo?

A Hae abriu levemente a boca, claramente ofendida com o modo depreciativo que Sunhae usou ao se referir ao clube.

Contudo, sem ligar para a expressão — novamente exagerada — de Suhwa, a mais velha apenas esperou para ouvir a resposta da colega. Esta, que normalizou a face ao dizer:

— Não sei.

— O quê?

— Não sei por que. — repetiu. — A folgada da Charlotte só deu um jeito de avisar todo mundo e pediu pra nos encontrarmos na sala do clube no primeiro horário. Pediu, não. Ela mandou, seria mais apropriado.

Sunhae não fez questão de acompanhar o raciocínio da melhor amiga que, quando se sentia a vontade, tagarelava sem parar. Arrependeu-se de perguntar o motivo da reunião e, se dando por vencida, só encarou qualquer ponto no corredor.

— Eu espero que a Charlotte dê um jeito de recuperar a matéria que eu vou perder com essa reunião hoje. — sem se dar conta de que a No não prestava o mínimo de atenção no que dizia, Suhwa continuou com o monólogo. — Ou melhor, eu espero que ela tenha uma boa justificativa pra ter marcado algo assim de última hora. Não pude nem me preparar. Quero dizer, eu estou sempre preparada, confio no meu talento como atriz e tudo mais, só que é muito injusto não avisar com antecedência. Não acha, amiga?

O sinal agudo e barulhento da primeira aula tocou, despertando ambas de seus devaneios e salvando Sun de ser pega no flagra com sua distração.

Ao perceber o seu claro atraso para com o grupo de dramaturgia, a Hae não esperou pela resposta — que não viria, em todo caso — da colega e se apressou a dizer um “até mais tarde” desesperado, se prontificando a correr para o local marcado, deixando Sunhae visivelmente atordoada para trás.

— Até. — respondeu, mesmo sabendo que Suhwa não escutaria.

 

Charlotte estava um pouco tensa.

Não por causa de sua ideia, afinal, achava que deveria ser premiada por causa de sua genialidade. O que a assustava mesmo era o fato de nunca ter liderado um grupo de teatro antes. Grupo nenhum, na verdade.

Certo, ninguém a deu o cargo de líder do TEAD, mas fora ela quem tinha tomado a iniciativa e conversado com a diretora para uma reunião mais cedo, então já era algo a se presumir. Assim pensava.

Prendeu os olhos no livro de capa mole e alaranjada que acabara de tirar da sacola de pano. Percebeu o quão gasto ele estava: com as pontas das folhas levemente amassadas e manchas sutis ao longo de toda sua extensão. Baesam deve ter demorado a acha-lo em meio às estantes do quarto de Nari.

— Estou aqui! — ouviu alguém gritar.

Reconheceu a voz estridente mesmo de costas. Suhwa havia chegado, enfim.

Soltou o livro na bancada baixa rente à janela e, respirando fundo para se concentrar — e não deixar escapar que não sabia direito o que estava fazendo, se virou para os três colegas já acomodados nas cadeiras e para a Hae que, desajeitadamente, tentava deixar a mochila presa atrás do encosto.

— Já que todos estão aqui... — começou a falar, levantando as sobrancelhas, antes de ser interrompida.

— Não vamos esperar a Jina? — Suhwa perguntou, atenta, quando finalmente se sentou na roda feita pelas cadeiras.

Jung Bogum era muito paciente.

Por isso, não hesitou em responder, pela quarta ou quinta vez, a mesma pergunta feita a ele desde que pisou na escola.

— Ela não veio hoje.

Bogum e a Lee eram namorados desde que se entendem por gente. Inseparáveis, as pessoas diriam. Quase tão perfeitos quanto os casais de clichê adolescente, provavelmente se conheceram quando se esbarraram e deixaram os livros caírem. Os encontros seguintes teriam muito sorvete e passeios de bicicleta por parques, romantismo digno de Romeu e Julieta — mas na história deles, ninguém tomou veneno.

A Hae entristeceu o rosto, deixando o olhar pender e seus lábios formarem o bico de sempre.

Charlotte quase revirou os olhos com a falsidade na expressão da colega de clube, mas fez questão de apenas continuar — ou recomeçar — a explicação do motivo pelo qual estavam reunidos ali.

Apoiou ambas as mãos no encosto de uma das cadeiras vagas e, sentindo os fios do rabo de cavalo roçarem em seu pescoço, fez sua voz sobressair aos barulhos do lado de fora da ampla sala de treino.

— Ontem de tarde, tive uma ótima ideia para fazer a escola esquecer a... — hesitou, raspando a garganta enquanto pensava nas melhores palavras para descrever o que queria dizer. — Esquecer os acontecimentos recentes.

Pausou a fala para ter certeza de que todos estariam prestando atenção.

Jung Hoseok parecia perdido no próprio universo.

Gong Woojin bocejava em tédio.

Bogum admirava alguma coisa na parede bege de alguns metros de distância, e Suhwa apenas encarava a Kang com os olhos banhados em sarcasmo.

— Nós vamos apresentar uma peça de teatro exatamente daqui a um mês. — fingiu de sonsa, e, meneando a cabeça sem encarar nada em específico, continuou. — Ou seria um mês e meio?

Hoseok, que pendia a cadeira para trás, relaxado, ergueu a postura fazendo o baque do pé do assento ressoar na sala e quase se desequilibrou, arregalando os orbes pequenos na direção de Charlotte.

A reação dos outros não conteve tanta euforia, mas também estava repleta de surpresa. O Gong e a Hae se deixaram ser levados pelo espanto e suas expressões demonstravam isso. Bogum apenas franziu o cenho, em dúvida.

— Não temos condições de apresentar nada com um mês de trabalho. — foi Woojin quem disse, com a voz carregada de rispidez.

— Sim, temos sim. — a Kang afirmou, dando a volta na cadeira que havia usado de apoio e se sentando. — Vão querer me ouvir agora?

Ela não checou os rostos dos colegas para ter uma confirmação, sabia que eles prestariam atenção nela dali em diante, então apenas se ajeitou no assento e começou a aclarar a situação.

— Ontem de tarde, enquanto conversava com Nari, pensei em uma solução que apaziguasse os ânimos dos nossos colegas. — deu uma breve pausa, proposital e dramática, antes de prosseguir. — Nós vamos interpretar um conto que eu li uma vez quando era mais nova.

Charlotte começava a se empolgar. As memórias da infância e do início da adolescência sempre a alegravam. Quando fazia o mínimo de esforço para se lembrar dos momentos vividos, sentia como se a qualquer hora alguém fosse a chamar para pular corda ou para alimentar os gatinhos perdidos na vizinhança.

— O nome da história é Lago das Vaidades. Já ouviram falar?

Aparentava que a única feliz com aquela notícia era a própria Kang, afinal, enquanto a mesma estampava um sorriso largo para os outros da roda, os olhares que recebia de volta eram vagos e indecifráveis.

— Não. — Bogum respondeu.

Descontente com a única resposta seca, Charly respirou fundo e se levantou bruscamente, girando os calcanhares na direção das janelas e pegando o livro velho e relativamente fino da bancada.

— Lago das Vaidades foi um conto que deu origem a um livro. Eu não sabia da existência desse livro até Nari me dizer que tinha um exemplar dele em casa. — enquanto explicava, voltou a se sentar. — A história é de uma princesa que se apaixonou por um servente do castelo. Eles sempre observavam as estrelas juntos, mas aí o pai dela, o rei, arrumou um marido pra garota.

Parando um pouco a narração, a Kang tomou fôlego, percebendo que a atenção dos outros membros do clube continuava nela.

— Depois, a gente descobre que o cara por quem ela é apaixonada é um lobisomem. Mas o rei a quem ela foi prometida também descobre, então ele mata o servente. Fim.

Depois de analisar as informações, processando-as lentamente, Suhwa levantou as sobrancelhas, surpresa.

— Você quer interpretar um conto que envolve morte? — proferiu baixo.

— Realmente, um ótimo jeito de fazer com que as pessoas esqueçam uma morte, é mostrando a elas outra. — Woojin sorriu descaradamente, tentando fazer a Kang se intimidar.

Revirando os olhos devagar, Charlotte apontou com as palavras:

— Quando conectamos uma morte com o sobrenatural, acabamos nos afastando da realidade. Isso torna as coisas mais fáceis de lidar.

— Ah, sim, e você diz isso porque é formada em psicologia, não é? — o Gong não tirou o sorriso do rosto ao satirizar a fala da garota.

— Eu acho uma boa ideia. — quem se pronunciou foi Hoseok. — É uma boa forma de ocupar a mente.

Era muito difícil discordar do Jung e estar certo ao mesmo tempo. Talvez, por sua fama de “pessoa do bem”, ninguém estava disposto a passar pelo vilão da história. Mas, de toda forma, Hoseok apenas se pronunciava em assuntos que envolviam discussões quando sabia do que estava falando.

— Obrigada. — Charly o agradeceu, exibindo a sua felicidade ao saber que finalmente alguém concordava com ela.

A Hae, tentando mudar o rumo da conversa, fez uma nova pergunta:

— Vai ter personagem pra todo mundo?

A Kang sabia que quando ela dizia “todo mundo”, ela se referia não só aos cinco presentes, mas também aos alunos dos outros anos escolares — primeiro e segundo do ensino médio.

— Sim. — meneando a cabeça, esclareceu. — E não. Vai ser uma apresentação só do terceiro ano.

Hoseok já não sabia se estava contra ou a favor dessa ideia. Quando disse que seria uma boa forma de ocupar a mente, pensava que os colegas da garota assassinada teriam algum papel fundamental para exercer no teatro. Mas, analisando por outro lado, seria muito mais fácil trabalhar apenas com uma equipe de cinco ou seis. Por tal razão, preferiu não dizer nada.

Vendo que ninguém se posicionou contra a ideia, Charlotte prosseguiu, deixando claro que havia elaborado quase tudo.

— São três personagens femininas, sendo que uma delas só é citada, e quatro personagens masculinos.

— A Jina vai interpretar um homem, então? — Suhwa questionou.

— Não. Jina vai ser a narradora. — por mais que a intenção tenha sido esclarecer, tal fala apenas nublou o entendimento dos outros alunos.

— Algum de nós vai ter um duplo papel? — foi a vez de Bogum perguntar.

— Não, não, sim. — Charlotte balançou as mãos na frente do corpo, franzindo o cenho, incomodada. — Prestem atenção. A mãe da personagem principal não aparece, mas segundo o conto, ela e a filha são idênticas. Então, só uma garota vai interpretar as duas. Mas sobre os personagens masculinos, pensei em chamar algum novato que esteja interessado.

Realmente, era uma solução simples e — aparentemente — eficaz. Mais uma vez, ninguém contestou muito a atitude da garota.

— Baesam disse que poderia ficar responsável por essa parte. — Charly finalizou, com um sorriso no rosto e as mãos no joelho. — Alguma dúvida?

— Você disse que a Jina seria a narradora. — Suhwa fez uma pergunta indireta, fazendo a Kang confirmar com a cabeça. — Já escolheu nossos papeis também?

— Oh, sim. — respondeu, levantando as sobrancelhas e afirmando freneticamente. — Mas acho melhor vocês lerem o conto antes de saberem quem irão interpretar. Tudo bem?

A Hae não ficou nem um pouco contente com aquela resposta. Não gostava de saber que a personagem a qual fosse interpretar estava nas mãos desastrosas de Charlotte. E se a escolha da garota for uma árvore? Fechou a cara, imaginando as possibilidades, e se encostou à cadeira.

— Como não temos mais dúvidas a serem esclarecidas, reunião terminada! — empolgada, Charly deu seu maior sorriso e se levantou com as mãos juntas na frente do corpo, segurando o livro. — Por favor, não se esqueçam de ler o conto. Nos encontraremos ainda hoje, às duas da tarde, para começarmos os ensaios.

O horário e a data marcados irritaram profundamente a Woojin. Não esperava ter que começar tão cedo, quiçá no mesmo dia. Puxou a mochila pela alça do chão e se levantou. Comprimiu a boca e, com um olhar marcado de raiva, encarou Charlotte pela última vez antes de sair da sala — essa que não moveu sequer um músculo do rosto para desfazer o sorriso.

— Avisarei Jina. — Bogum respondeu, como se dissesse um “até logo”, e rumou até a saída.

Hoseok fez o mesmo, não antes de despedir-se cordialmente das duas garotas ainda presentes com um enorme sorriso — esse que fazia seus olhos diminuírem — e um aceno de mão.

Por fim, Suhwa tirou a mochila do encosto da cadeira e apenas saiu, sem nem olhar para a colega.

Finalmente, Charlotte desfez a expressão e abaixou os ombros, deixando a postura relaxada. Respirou fundo de olhos fechados e voltou a se sentar, se preparando mentalmente para o resto de um longo dia.

 

A movimentação dos alunos era apressada e tumultuosa.

A sala de aula poderia ser facilmente comparada com uma loja em promoção. Não aparentava que o ano letivo havia acabado de começar, e sim, que as férias já estavam próximas.

Pyo Baesam teve que se esforçar minimamente para achar o aluno com os olhos, torcendo para que não o houvesse perdido de vista. Quando o encontrou, sinalizou um aceno com a mão, chamando-o sem precisar de palavras.

Kim Seokjin logo percebeu que era com ele que a professora “falava”. Passou pelos outros estudantes eufóricos com o recreio e chegou à mesa da mulher sem muitos problemas.

— Me chamou? — perguntou, com as sobrancelhas levemente levantadas.

— Tenho uma proposta para você. — Baesam sorriu simpática, enquanto recolhia seus materiais da mesa larga. — Por acaso, já entrou em algum clube, Seokjin?

Como previsto, a professora havia descoberto o nome do rapaz quando fez a chamada no início da aula.

— Não, ainda não. — negou brevemente com a cabeça. — Pensei em fazer isso hoje.

— Que ótimo! — disse ao parar de arrumar os livros. — Seria de seu interesse entrar no TEAD? O clube de teatro e dramaturgia?

A Pyo aguardou pacientemente a resposta do Kim, que olhou para o nada enquanto pensava na ideia.

Havia analisado suas opções ontem à noite, e cogitou entrar no LIES — literatura e escrita — ou no ESPA — esporte e animação. Mas, o clube de dramaturgia não era má ideia. Provavelmente, a dinâmica de tal grupo seria parecida com a do clube de literatura, afinal, a linha que divide os assuntos é tênue. E, ao encenar, faria prováveis exercícios que poderiam suprimir os esportes do outro grupo pensado.

O TEAD era como um clube dois em um.

Portanto, sentia que não haveria problema em fazer parte dele.

— Sim, senhora. — encarou a professora. — Seria de meu interesse.

A expressão de Baesam fez-se mais alegre. Estava deveras receosa, porque não achava que o garoto aceitaria de cara a proposta.

— Avisarei Charlotte sobre sua entrada. — voltou a colocar os pertences dentro da bolsa. — Eles iniciarão um projeto hoje, às duas da tarde.

Finalmente, terminou de guardar tudo na mochila, e encarou o aluno.

— Precisarão de você. — a Pyo alertou. — Por favor, compareça.

Seokjin pensou em apenas acenar que sim com a cabeça, mas se lembrou de que não sabia onde era a... “sede” do clube.

— É no primeiro andar. — como se lesse seus pensamentos, Baesam completou. — Existe uma sala de treino utilizada pela maioria dos grupos. É uma das maiores da escola, e sua porta é dupla. Você não vai ter problemas em identifica-la. É bem óbvia, na verdade.

Analisando as informações, não encontrou outra dúvida. Deu-se por vencido.

— Duas da tarde? — o Kim perguntou, praticamente afirmando.

— Exato. — a morena respondeu simplista.

— Ok. — finalizou. — Estarei lá.

Como se encerrasse a conversa, Baesam sorriu fraco e descansou a alça da bolsa nos ombros. Caminhou até a porta e, sem olhar para trás, saiu.

— Duas da tarde... — Seokjin murmurou, para si mesmo, com a intenção de não esquecer o horário.

 

Mishil comprimiu os lábios, repassando o plano em sua cabeça mais uma vez.

Iria começar uma conversa inocente, sem segundas intenções. Depois, quando estivessem mais próximos, rindo das piadas uns dos outros, mudaria de assunto como quem não quer nada, e o convidaria para o clube novamente. Ele aceitaria, porque seus argumentos eram muito bons, e porque já estavam começando uma incrível amizade sincera que seria a base para um excelente time masculino de basquete. O plano perfeito.

Como já havia visualizado seu alvo, estava pronta para atacar. Movimentou os ombros em círculos para trás, estalou o pescoço e deu pequenos pulinhos, sem sair do lugar. Eram exercícios de preparação para um jogo muito importante. O jogo de manipulação e convencimento.

Respirou fundo e, estampando seu melhor sorriso, caminhou em direção ao futuro grande jogador da equipe masculina.

Ele estava sentado em um dos degraus das arquibancadas da cantina, que eram relativamente longe das mesas coletivas, comendo sabe-se lá o quê. Parecia alheio a tudo.

A Choi se aproximou sorrateiramente do garoto, mas não o suficiente para não ser notada. O olhar vago dele a atingiu momentos antes dela se sentar em cima da perna, virada para o moreno, no mesmo degrau da arquibancada.

— Acho que começamos com o pé esquerdo. — disse, soando simpática. — Não que eu considere ser canhoto de perna algo ruim. É só a expressão. Não me leve a mal.

Algo na mente de Mishil sinalizou que aquele não era o jeito mais natural de iniciar uma conversa inocente. Mas, como não podia voltar no tempo, apenas continuou.

— O que acha de recomeçarmos? — deitou a cabeça no próprio ombro. — O meu nome é Choi Mishil. E o seu?

O olhar julgador do rapaz até então calado se mostrou levemente surpreso. Porém, não a ignorou.

— Kim Taehyung. — proferiu seu nome, voltando a atenção à comida logo depois.

A ruiva balançou a cabeça em concordância, deixando sua expressão nula. Não esperava uma resposta tão seca.

Ficou alguns segundos apenas observando Taehyung comer. Observou melhor a expressão facial do novo amigo e, arriscando constatar erroneamente, fez uma pergunta simples:

— O que te incomoda?

— Hm? — virando-se rapidamente para a Choi, murmurou.

— Você parece preocupado. Com o quê? — tentou, novamente.

O Kim ponderou um pouco antes de abrir sua mente para a garota. Havia acabado de “estabelecer uma amizade” com ela, não sabia se deveria dizer o que pensava ainda. Ela era praticamente uma estranha.

Mishil arqueou ambas as sobrancelhas, curiosa com o que se passava na cabeça do seu futuro melhor jogador de basquete.

Por fim, encarando o rosto feminino, Taehyung decidiu que não havia mal algum dizer o que o perturbava nesse momento. Afinal, ela — meio que — também estava envolvida.

— Você não acha que está tudo normal demais? — perguntou, mantendo a voz grossa em um tom baixo.

— Hm? — foi a vez de a ruiva murmurar, sem compreender.

— Uma garota morreu há dois dias. — explicou. — E estão agindo como se nada houvesse acontecido. Isso não é estranho pra você?

Mishil finalmente assimilou o que o moreno quis dizer. Meneou a cabeça para cima e para baixo, como se afirmasse alguma coisa, e moveu o olhar para os outros alunos presentes no refeitório espaçoso. Taehyung acompanhou o movimento.

A Choi reconheceu que também estava incluída no raciocínio. Afinal, seu plano que arquitetava desde a tarde de segunda-feira nunca saiu de sua cabeça, mesmo com a notícia do assassinato.

Era estranho o jeito que pareciam não ligar para algo que deveria ser tão relevante. Poderia ser até mesmo perigoso continuar ali. E se, quem a matou, voltasse? E atacasse de novo? E de novo? E mais uma vez? As pessoas continuariam fechando os olhos para tais atrocidades?

Sim. Continuariam. E Mishil sabia por que.

— É como um porto seguro. — disse, depois de momentos em silêncio.

O Kim apenas voltou o olhar para ela, como se sinalizasse para continuar a linha de raciocínio. E foi o que ela fez.

— A escola é como um porto seguro pra muita gente. — proferiu devagar. — Parte dos alunos matriculados aqui sofreu ou ainda sofre em casa. Maus tratos, pais rígidos, órfãos. Coisas assim. Que você provavelmente não entende, né, Senhor Perfeito.

Mishil brincou no final, soltando um riso fraco pelo nariz. Quando percebeu que o moreno não riu junto, fechou a cara e continuou a explicar.

— Mas aqui é tipo a zona de conforto. Onde todo mundo é igual a todo mundo, e ninguém sabe... — pausou, procurando as palavras. — O que realmente se passa por trás dos uniformes bem arrumados e tudo mais. E ninguém quer que a bolha confortável estoure. Ninguém quer que o local seguro seja mais um problema. Entende?

A Choi encarou os olhos de Taehyung, percebendo-o atento a tudo que ela falava.

O garoto, por sua vez, não esperava que a doida do basquete fosse capaz de desenvolver um raciocínio assim. Ao mesmo tempo em que se surpreendeu, conseguiu entender cada palavra que ela disse.

— Acho que é tipo o primeiro estágio do luto... — a ruiva começou, tentando fechar o discurso.

— Negação. — o Kim incrementou.

A explicação da garota o fez abrir a mente um pouco mais. As pessoas perfeitas não queriam que sua realidade perfeita fosse atingida. Porque isso iria destruir a falsa perfeição criada por elas, sobre elas mesmas.

— Isso. — Mishil sorriu, por fim, concordando.

Apesar de não ter saído como havia imaginado, a conversa inocente e sem segundas intenções — que envolviam converter o Senhor Perfeito para o clube de esportes — realmente funcionou.

E, inconscientemente, deixou a Choi eufórica.

 

Jimin procurou uma posição mais confortável, incomodado com o mau jeito de seus ombros curvados.

Bocejou fraco, observando a hipocrisia do ambiente. O Sol brilhava intensamente em um céu quase totalmente livre de nuvens, mas o ar frio não permitia que os raios solares queimassem de calor. Era contraditório, mas estranhamente agradável.

— Você tá ficando previsível. — uma voz sonsa e reconhecível soou.

Park Jinsoul estava radiantemente fofa.

A loira se sentou ao lado do irmão de modo que a saia da escola não se levantasse e a expusesse. Tomou cuidado também com o suéter cor creme que usava para se proteger da ventania — quase — congelante, evitando suja-lo.

— Por que diz isso? — Jimin perguntou meramente alheio.

— Porque o primeiro lugar que eu pensei em te procurar foi esse.

Jinsoul pousou o olhar no garoto sem se demorar, voltando-se para frente e apreciando a paisagem vasta do jardim dos fundos e da pequena estufa ao longe utilizada pelo JAR — clube de jardinagem e arranjos.

Ela sabia que aquele era o lugar preferido do irmão. Era calmo, pouco visitado durante o intervalo, e tinha uma vista pacificamente bonita. Jimin ia lá apenas para não pensar em nada — ou para pensar em tudo ao mesmo tempo.

Mas a mais nova não saberia identificar qual dos dois ele fazia. Talvez, nem o próprio. Afinal, mesmo quando se pensa em várias coisas, o tumulto de ideias resulta em nada.

— Mamãe sente sua falta. — ela deixou sair juntamente a um suspiro.

— Foi por isso que veio até aqui?

— Foi. — a fala, tremida e receosa, assemelhava-se a uma pergunta indireta.

— Jinsoul... — o loiro começou em tom de reprovação, antes de ser interrompido bruscamente.

— Daqui a pouco já vai fazer dois anos desde que você saiu de casa. — ela acrescentou, virando o corpo totalmente para a direção do irmão. — Durante esse tempo, você não fez nenhuma visita a ela.

Quando viu que Jimin abriria a boca para contestar, continuou argumentando.

— Não a visitou no aniversário dela, nem no Natal, nem no ano novo. — o tom de voz da garota já começava a se alterar. — Quando ela arrumou tempo pra ir ao seu apartamento, você não estava. Como você consegue ficar longe da sua mãe por dois anos inteiros, Jimin?!

O Park nada disse. Acontece que a situação era muito mais profunda do que Jinsoul pensava. Ver sequer a silhueta de sua mãe fazia memórias trasbordarem pelo olhar acanhado e terrivelmente perturbado do loiro. Memórias que ele não fazia questão de trazer para perto, que deveriam ficar enterradas no mais profundo lugar em seu cérebro.

Mas ele nunca diria isso. Não na frente da irmã.

A Park não tinha ideia desse lado da história. Não conhecia as letrinhas miúdas do caso da emancipação de Jimin. E era melhor assim. Ao menos um de seus familiares precisava aparentar uma pessoa comum, caso contrário, em quem a sua irmãzinha se apoiaria?

Quando Jinsoul percebeu que o rapaz não a responderia de jeito nenhum — seja concordando, seja discordando —, ela apenas aceitou. Não era a primeira vez, ao longo dos dois anos, que ela tentava reaproximar a família. Falhou em todas as tentativas, mas, não custava nada tentar, não é?

Ela queria, mais que tudo, que sua realidade perfeita voltasse. Mas como algo que nunca existiu poderia voltar?

Sabia disso, não era tão ingênua assim. O sofrimento de Jimin era a única coisa real naqueles tempos, mesmo que fosse um sofrimento calado. Esteve lá, durante quase toda a vida da menina, e ela não havia notado.

Mas não se culparia por isso. Não depois de saber que algumas coisas agem silenciosa e radicalmente, esperando o momento certo de se exibirem; e é sempre no momento que ninguém espera. O que aconteceu — e que está para acontecer — com ela, nunca foi planejado por ninguém.

Jinsoul tossiu fraco, recostando-se no ombro de Jimin e relaxando. Decidiu experimentar o que o irmão fazia, e parou de pensar em alguma coisa em específico.

Ficaram ali, juntos e, ao mesmo tempo, separados por segredos que não queriam que o outro descobrisse.

 

— Você vai levar o plano adiante? — Charly perguntou.

— E por que eu não levaria? — Nari respondeu indiretamente.

As garotas estavam papeando no tempo vago de troca dos professores do penúltimo para o, finalmente, último horário.

A Pyo passava a cola bastão em alguns recortes de revistas para decorar seu “diário” de artes. Decidiu que deixaria o livro continuar branco, e enfeitaria só o meio da capa. Tirou de fotografias de paisagens naturais algumas folhas de árvores, ramos e flores para juntar tudo e formar uma planta única e nova, ilustrando sua paixão de modo minimalista e deveras original.

Havia recolhido tais recortes ontem, com a ajuda da melhor amiga, enquanto ocupavam a mente com coisas que não fossem desastrosas. Já organizava o diário desde o início do dia, afinal, que lugar melhor para fazer um trabalho escolar, senão na escola?

A Kang optou apenas por observar. Sabia que atrapalharia mais se tentasse colar alguma coisa também. Estava sentada de lado, encostando as costas na parede da sala de aula, enquanto apoiava a mão na própria cadeira.

Ela sentava uma carteira a frente de Nari.

— Tem razão. — Charly concordou.

Conversavam sobre o plano que envolvia Taehyung e Jina. Charlotte estava receosa com a amiga desde ontem, no carro. Não tinha tocado no assunto de novo, o medo da Pyo começar a chorar mais uma vez a impedia.

Um dos pilares da amizade delas era esse. Enquanto Nari ignorava a existência de algumas situações, a Kang não fazia questão de insistir, e vice-versa.

Mas a pergunta acerca da continuação da ideia não foi apenas por causa do bem-estar da mais baixa. Ambas presenciaram o momento em que Mishil se aproximou do Kim no intervalo. Não sabiam o que acontecia entre os dois, mas já era motivo o suficiente para ponderar sobre o plano.

Coisa que Nari não fez, aliás. Ela seguiu intacta com a ideia que só poderia colocar em prática no dia seguinte, porque as aulas de ciências não ocorriam nas quartas.

Terminando de colar um girassol, relaxou as costas na cadeira e suspirou.

— Charly... Você acha que eles têm um caso? — balbuciou, surpreendendo a outra.

Desde ontem, a Pyo a surpreendia cada vez mais. Assim como não esperava pelo curto desabafo, não esperava pela pergunta insegura.

Nari nunca foi insegura.

— Não. — negou ao levantar as sobrancelhas. — A Mishil ainda não superou o último relacionamento.

A voracidade na voz da amiga ao responder a convenceu, fazendo-a concordar e ajeitar a postura enquanto pegava outra gravura.

Recompôs-se rapidamente, sem deixar rastros de falta de confiança na expressão. Afinal, Charlotte estava certa. A Choi ainda estava ressentida demais com o término repentino no início do ano para se jogar em cima de qualquer novato que aparecesse em seu caminho.

— Aceitou o pedido do Jimin? — Nari questionou ocasionalmente.

— Não. — a Kang olhou para as próprias pernas ao responder. — Hoje não posso, tenho ensaio com o TEAD.

— Uh... — mordendo o lábio inferior, a Pyo cantarolou irônica, sem tirar os olhos da capa do livro. — Ele não vai ficar chateado?

— Não. E nem tem esse direito. — Charlotte revirou os olhos. — Ano passado era eu quem ficava deixada de lado. Vai ser só um jeitinho de ele provar o próprio veneno.

— Por que vocês ainda não terminaram mesmo? — disse, encarando a amiga de canto de olho, arrumando cuidadosamente a rosa em meio às outras folhagens.

— Porque... — pensou um pouco antes de concluir, dando de ombros. — Nosso amor é mais forte.

— Blergh. Corta essa, Shakespeare. — Nari colocou o dedo na frente da boca, sinalizando que estava prestes a vomitar. — Depois eu que sou a boba apaixonada.

— Eu também ser não anula o seu caso.

— Uhum. — murmurou, por fim, sem argumentos.

Passaram não mais que um minuto caladas, quando Charlotte chamou:

— Amiga.

— Hm?

— Você acha que o DESP ajudaria com os cenários?

DESP é a sigla para o clube de desenho e pintura. Não estava no top três de maior quantidade de integrantes, mas a escola era cheia de artistas, assim como qualquer outra.

— Pergunta pra eles. — a resposta curta de Nari não ajudou muito com a dúvida recorrente na cabeça da menina.

Vendo que a Kang pendeu um olhar de tacho em sua direção, se explicou:

— Eu não sou do DESP, Charlotte. — balançou a cabeça como se dissesse algo óbvio, em um tom de voz rude. — Como poderia saber? Não tenho bola de cristal.

— Tá, tá bom. — murmurou.

Parece que a Pyo voltava a ser ela mesma aos poucos. Isso tranquilizava imensamente a mais alta, que não gostaria de ver a amiga mal.

Foi quando o professor adentrou a sala, encerrando a conversa das garotas de vez.

 

Jungkook parou o carro à margem de uma estrada rodeada por campos vastos e abertos, antes de uma curva.

Saiu do automóvel com a cara fechada, arrumando a jaqueta por cima do uniforme escolar. Tirou de um dos bolsos um isqueiro e uma caixinha, antes de bater a porta do carro com certa força.

Puxou um cigarro da caixinha e a guardou. Acendeu-o prontamente, retornando o isqueiro para o bolso também.

Tragou a fumaça devagar, respirando fundo de olhos fechados, tentando manter a calma. Sabia que iria precisar de muita paciência para lidar com a francesa hoje, mas seu dia foi cheio de preocupações que o estressaram e o tiraram do prumo. Sentia que não era a melhor hora para conversarem, mas adiar o assunto também não seria adequado. Não dava tempo de voltar, de toda forma. Já estava muito perto para desistir.

Deu a volta no automóvel, preparado — ou quase — para confrontar a amiga.

Caminhava com passadas rápidas em um chão de terra misturada com pedras e, talvez, areia. Não crescia grama alguma nesse lado da rua. Havia trilhos de trem enferrujados, onde sequer uma locomotiva não passou durante um longo tempo. Seria um lugar quase abandonado se não houvesse uma construção, meio cabana, meio armazém, um pouco ao longe da estrada, em meio à terra seca.

Jungkook subiu as pequenas escadas de madeira mal cuidadas, que rangiam a cada passo. Parou na entrada da casa e bateu na porta. Essa, que foi aberta rapidamente.

Moon Jikwan exalava despreocupação.

Até ver o tabaco na boca do colega. Fechou a expressão e segurou o cigarro, ameaçando puxar. O Jeon sorriu com o ato, vendo que ela não conseguia tira-lo de sua boca.

— Ou você solta, ou você não entra. — ela disse, levantando as sobrancelhas, ainda segurando o fumo.

O sorriso de Jungkook murchou. Deixou o cigarro livre do aperto de seus lábios, fazendo com que Jikwan finalmente o puxasse e, jogando a guimba no chão, pisasse em cima.

— Eu acabei de acender. — o moreno reclamou descontente.

Ela apenas o ignorou, virando-se para entrar, sendo acompanhada pelo rapaz.

A cabana de madeira era bem ampla. Duas janelas na parede oposta à porta faziam com que a iluminação estivesse presente em todo o local. Materiais de desenho estavam jogados ao lado de um cavalete com uma tela esboçada, e uma estante baixa servia de apoio para potes com tinta e lápis de cor — além de armazenar livros de todas as grossuras. Alguns cadernos e discos de vinil em caixas poderiam ser encontrados na bagunça organizada de Jikwan. Por fim, um sofá grande e macio se encontrava escorado em uma das paredes. Foi onde Jungkook se sentou.

— Yoongi não veio com você? — ela perguntou desatenta, se posicionando na frente da tela, de costas para o garoto.

— Não. — suspirou. — Eu vim direto da escola, e ele não foi hoje.

A morena concordou com um murmuro e não disse mais nada.

O Jeon, não querendo prolongar o silêncio, perguntou:

— Por que não foi hoje?

A Moon se virou e deu de ombros.

— A notícia de ontem me desanimou.

— Por isso não saiu com a gente ontem? — questionou, se levantando.

Jikwan meneou a cabeça para a esquerda, piscando os olhos devagar.

— É.

A resposta simples irritou Jungkook, que se aproximou alguns passos da amiga.

— E é por isso que parou de sair com a gente? — estreitou os olhos, franzindo as sobrancelhas.

Sabendo onde o Jeon queria chegar, a Moon relaxou a postura ao argumentar:

— Eu gosto de ficar sozinha nas férias. — levantou as sobrancelhas com o semblante calmo. — Você sabe disso.

— Essa vai ser sua desculpa? — o moreno constatou indignado e sem paciência. — Qual é, Kwannie, você nem se esforçou.

O apelido foi proferido com ironia, o que magoou a Moon. Ela abaixou as sobrancelhas, confusa com a mudança de humor do amigo, e tratou de se explicar.

— Não é uma desculpa, Jungkook. É... — moveu os orbes para o chão, procurando a palavra certa. — É a realidade.

— Ah, claro. — o Jeon se aproximou mais ainda. — A realidade é que você tem tempo para o seu namoradinho, mas não tem tempo pra gente.

A constatação do mais alto chamou a atenção da garota, que arregalou os olhos ao encarar o amigo. O olhar de Jungkook era rude, e isso nublou sua mente por completo. Tudo o que conseguiu responder foi:

— Ele não é meu namorado.

— Ele é o quê, então? — riu com escárnio. — Pau amigo?

Deveras surpresa com o modo de agir do moreno, Jikwan resolveu acabar com aquele espetáculo. Não entendia por que ele estava sendo tão ignorante, mas não gostava de se sentir contra a parede daquele jeito.

Empurrou o Jeon pelos ombros, aumentando consideravelmente a distância entre eles, e fechou a expressão.

— Por que tá tão incomodado com isso? — reclamou com a voz firme, ainda que atordoada.

— Por que será? — Jungkook zombou de um jeito retórico.

— Não é só porque a gente tem saído pouco. — pensativa, foi sua vez de se aproximar. — Aconteceu alguma coisa ontem, não é?

O moreno normalizou a expressão, percebendo que havia se exaltado demais. Tinha esquecido que Jikwan o conhecia suficientemente bem, e somando isso ao dom de dedução da garota, era quase que óbvio que ela perceberia o real motivo por trás de sua raiva.

Preferiu ficar calado.

— Não vai me contar? — ela o encarou.

Não, ele não iria. Mas o impulso de fazer com que ela se sentisse culpada por tê-los abandonado falou mais alto. Deixando todo remorso sair, disse, por fim:

— Aconteceu de novo. Com Yoongi.

A informação desarmou a Moon. Ela abaixou os ombros e engoliu a seco.

— Por que não me ligou? — vacilou ao murmurar.

— Você atenderia? — o Jeon respondeu com outra pergunta, encerrando o assunto.

A morena perdeu a fala, mas não tirou os olhos do amigo. Jungkook pôde ver o arrependimento no semblante feminino antes de rumar até a porta e sair, se preparando para sentar nos trilhos oxidados e acender mais um cigarro.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Elenco:
Lee Kan-hee como Doutora Lee Zoe;
Shin Ryujin como Hae Suhwa;
Park Bogum como Jung Bogum;
Jung Hoseok como Jung Hoseok;
Noh Yoonho (Ayno) como Gong Woojin;
Jung Jinsoul como Park Jinsoul;
Sasha Kichigina como Moon Jikwan.



Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...