“Ao passar dos dias a gente se acostuma com a falta, o vazio, o tempo, a falta de tempo, com o que nos deixa vazios, e a gente se preenche. Com o tempo a gente segue, com o coração, sem o coração, sendo doce, amargo, sendo frio, bem quente. A gente só segue e com o tempo, não sente mais.”
Cruzar o deserto foi mais fácil do que sair do acampamento. O olhar de descrença e desprezo do Wilmer nunca será apagado de minha mente quando matei o Tyler. Durante a nossa "fuga" ele não olhou nenhuma vez em meus olhos e tampouco disse alguma coisa a respeito. Este, mesmo ferido, dirigiu um dos veículos do acampamento onde estávamos e resolvi não contestar, apesar de tudo, ele conhecia o caminho.
O percurso foi silencioso e, por diversas vezes, paramos em conveniências de postos de gasolina. Wilmer comprou uma nova peça de roupa para mim e para ele, sua blusa estava encharcada de sangue podre e mesmo que não disse nada, eu sentia sua dor.
Dormimos no veículo durante quatro dias seguidos, parando poucas vezes. Wilmer enfrentava o seu luto, pois, de certa forma, tudo aquilo era importante para ele. Saber o que de real Virgínia queria, quebrou sua confiança e provavelmente arruinou os momentos bons e os ensinamentos dela. Ao passo que eu tentava realmente me entender e, pela primeira, aceitar tudo o que aconteceu e não apenas amontoar em um baú de memórias, pois, como visto, algum dia, alguém irá o abrir e, consequentemente, ficarei vulnerável.
A melhor maneira de lidar com os temores é enfrenta-los e usá-los como armaduras, antes que os inimigos os usem, sem nenhuma piedade. Portanto, no final, estávamos na mesma e, provavelmente, por isso respeitamos o silêncio e o espaço do outro. O mutismo entre nós não era incomodo, mesmo que no fundo eu sentisse a necessidade de esclarecer algumas coisas com ele, ambos estávamos respeitando as dores do outro e a forma individual de lidar.
Nesta noite, em especial, não dormimos no veículo, mas em um motel de estrada. Wilmer alugou dois quartos, um ao lado do outro, e quando ele foi me entregar a chave, não se deu o trabalho de erguer seus olhos - estes sempre à espreita de mínimos detalhes e vibrantes da sua maneira -, ele se manteve cabisbaixo e caminhou até o quarto com uma sacola de utensílios para autocirurgia, quanto a isso resolvi não me intrometer, o seu olhar já dizia que não me queria por perto e tampouco queria me ajuda, caso contrario teria solicitado, mesmo sendo orgulhoso.
A insônia esteve presente naquela noite, o colchão sobre a cama de molas, sem dúvidas, era melhor que o estofado de couro e duro do carro. Além disso, diferente dos demais dias em que o cansaço estava impregnado em minha pele, dessa vez eu acabei pensando por demais. Acontece, contudo, que a agonia do Wilmer no quarto ao lado se foi percebida por mim. Ele grunhia de dor tentando retirar o projétil, o cheiro de sangue e o seu tecido apodrecendo foi sentido por mim - todos meus sentidos estavam apurados e, pela primeira vez, eu conseguia me controlar de fato -, o que me fez concluir que não era uma bala de prata e tampouco uma bala comum, levava o indivíduo à morte aos poucos, por mais que Wilmer havia me dito que aquilo não era nada demais.
Saio do quarto, batendo em demasia na porta ao lado, aos gritos.
— Wilmer, por favor, me deixe te ajudar — Nada veio em resposta. — Wilmer, por favor.
Eu repeti isso diversas vezes e o outro se manteve calado e o único som que eu conseguia ouvir era da sacola de plástico. Aquilo era agoniante.
— Por favor, Valderrama. — Comprimo meus lábios, estalando a língua ao perceber que ele não atenderia a porta. — Caralho, Wilmer isso é sério, não aja como...
Antes que eu pudesse completar a frase, a porta abriu revelando Wilmer, sem sua blusa e com uma gaze envolvendo a região do diafragma.
— Como o que? — perguntou ele arqueando o cenho, seu tom de voz era dilacerante.
— Deixe-me te ajudar, conseguiu retirar?
— Desde quando se preocupa comigo?
Bato meu pé no chão, ao dar um passo para trás, diante o seu bloqueio comigo.
— Não faça isso...
— Sabe o que é engraçado, eu estou fazendo exatamente como você faz comigo! — Engulo em seco, comprimindo meus lábios.
Depois de tudo, eu nunca o tratei bem de verdade.
— Se não quer minha ajuda, tudo bem — Ergo minhas mãos para cima, resolvendo não insistir. —, porém acho que devermos falar sobre o Tyler. Não adianta fugir desse assunto.
Ele deu um largo passo para frente, eliminando o espaço que existia entre nós e seus olhos ficaram negros e opacos, sem nenhum sinal de vibrantes luzes que sempre estiveram presentes no seu olhar.
— Não é bom quando o jogo vira, não é mesmo? Você sempre foge de seus problemas, desde quando passou a querer enfrenta-los? — seu tom era cortante e desafiador.
— Você está sendo injusto comigo — indaguei em tom baixo. — Eu o matei, eu compreendo que esteja chateado e...
— Você acha que estou chateado? — questionou rosnando as palavras — Eu não estou, Demetria. Estou furioso. Você tinha opções, se eu não o matei, por que você então tinha que fazê-lo? — alterou-se.
Desvio meu olhar por alguns instantes, mordendo minha língua e logo volto a encaro. Toda aquela situação me deixava tensa.
— Eu tinha opções, sim, eu tinha. Mesmo assim, eu optei por matá-lo. Sabe por quê? Ele passaria o resto da vida enlouquecido, ligado a mim, revivendo minhas emoções e memórias. Acha isso digno? — Encaro-o, porém sua feição continuava fechada e ameaçadora. — Eu não tive intenção de fazer aquilo, foi uma autoproteção que não tive ideia de que aconteceria.
Umedeço meus lábios, hesitante e estalo a língua diante o silêncio do Wilmer.
— Você está assim por causa do Tyler ou por que eu o matei e isso pode significar minha perda de controle? Que isso venha a me tornar em algo como você um dia já foi. É isso que teme?
Ele me fitou e, no final, apenas fechou a porta do quarto na minha cara.
— Obrigada pela resposta — Dou um chute na porta diante a sua ignorância. — Quer que eu vá embora e nunca mais tenha o prazer de me ver, de novo?
Encarei a porta por alguns segundos e então ele abriu a porta com um sorriso amargo no rosto, aquilo, com certeza, fez meu coração apertar.
— Faça o que quiser — Deu de ombros. —, mas se continuar comigo, será sobre as minhas regras.
Antes que eu pudesse retrucar, ele fechou a porta novamente em minha cara.
Eu nem pensei em ir sem ele, na verdade, eu o esperei frente ao carro, na manhã seguinte, e ele pareceu surpreso em me ver.
— Tem certeza disso? — seu sotaque estava carregado e ele arqueou uma das sobrancelhas com descrença.
— Aonde vamos? — perguntei ignorando a maneira como estava me tratando.
Wilmer retirou a chave do bolso e pelo movimento percebi uma pequena careta formar em seu rosto devido à dor. Este destravou o carro e respondeu:
— Vamos cruzar a fronteira do México — disse como se fosse a coisa mais obvia.
— Eu não tenho nenhum documento, Valderrama. Estou só com a roupa do meu corpo, literalmente.
— Não será preciso documento — afirmou entrando no carro, sem mais detalhes.
Mais algumas horas de carro se passaram e eu percebi que Wilmer continuava a sangrar, eu sabia que se fizesse algum comentário ele ficaria ainda mais ignorante, por isso me contive. E de fato, ao cruzarmos a fronteira, não foi necessária nenhuma documentação, apenas o famoso clientelismo fora colocado em pratica, mais alguns maços de dinheiro, do qual Wilmer sacou antes de sairmos do país.
E novamente, foram horas e mais horas de estrada. Tudo era longo demais e a velocidade do carro não permitia que a vista fosse apreciada, pareciam borrões marrons e fazia com que o percurso fosse ainda mais entediante.
Percebo a velocidade do carro além do limite determinado e as mãos tencionadas do Wilmer no volante, sua face evidenciava sua dor, mesmo que saiba esconde-la bem. Pelo que parece, dentre esses dias que se passaram, ele estava pior, mais pálido, comendo menos. O veiculo era velho e o modo como Wilmer dirigia fez com que este apressasse o que já era iminente e, assim, o cheiro de óleo queimado invadiu minhas narinas.
Ele bufou batendo sua mão contra o volante. O carro não andaria mais, o mecânico do posto de gasolina havia dito que o carro aguentaria poucos quilômetros e foi exatamente o que aconteceu. Na verdade, o veiculo já era velho, pois Wilmer resolveu deixar na estrada o carro do exercito e alugar uma lataria, uma forma de prevenção caso estejam atrás de nós.
— Vamos achar um lugar para passarmos a noite — disse ele, retirando a chave da ignição, pegando a mochila no banco de trás e logo saindo do veiculo.
Estava anoitecendo e sem dizer nenhuma palavra sigo seus passos arrastados. Sua mão posicionou no local dos tiros e sua face estava tensionada.
— Pensei que tivesse retirado o projetil.
Wilmer demorou a responder e não ousou olhar em meus olhos, tampouco sorrir.
— O processo de cicatrização é morado — mentiu. Mesmo não o conhecendo muito, eu sabia que estava mentindo. Caso contrário não pensaria em uma resposta. Além disso, de todo o que ele falou sobre esse mundo, nada foi mencionado de algum projetil que dificultasse o processo de cura, ou isso acontecia, ou você acabava morrendo. E creio que a última opção era pertinente.
— Você não faz a menor ideia de onde está indo, não é mesmo?
— Eu não conheço muito essa região, passei aqui apenas por causa da droga do posto.
Suspiro, colocando minhas mãos no bolso traseiro da calça e logo um sorriso simplório desenha meus lábios.
— Em algumas quadras tem uma pensão, não é muito longe.
Visto que não tinha muitas opções, ele apenas fez um sinal para que passasse na frente e seguisse caminho.
Após sair do Internato, Charles e eu passamos alguns meses apenas viajando pelo estado. Não tínhamos dinheiro e ficamos apenas pedindo carona e inventando mentiras aleatórias que tínhamos sido assaltados, ou que acabamos de nos casar. Essas lembranças são uma das melhores que tenho, pois não tínhamos preocupações e nos adaptávamos ao que estava diante de nós.
E ao estar em frente ao prédio simplório, com as paredes amarronzadas desgastadas e as janelas de vidro refletindo alguns raios, foi inevitável não permitir que um sorriso desenhasse meus lábios. Quando entramos, o cheiro de incenso foi reconhecido, o mesmo de anos atrás, cítricos com laranja e logo o rosto angelical da dona apareceu a partir da batida de sinos presos a porta.
— Miranda — cantarolo seu nome.
Seus olhos castanhos me olham desconfiada, tentando relembrar quem sou e Wilmer, que estava ao meu lado.
— Claro, Demi irmã do Charles — disse ela com nítida alegria na voz rouca.
Suas mãos buscam as minhas por cima do balcão e ela as acaricia.
— Como ele está? — perguntou ela com olhos vibrantes.
Miranda nutriu um sentimento materno por Charles, visto que ela perdeu o seu filho quando tinha a idade dele, na época. Então, durante os meses que ficamos revezando na pensão, ele se aproximou bastante dela.
— Está bem — Sinto a voz rasgar a minha garganta. — Na verdade, eu acabei de me casar.
Delicadamente, eu desvencilho de sua caricia e entrelaço meus dedos com o do Wilmer. Este me olhou estranho e eu apenas sorri.
— Estávamos de lua de mel no México nesses dias e infelizmente...
— Soube do que aconteceu. Vocês estavam perto da explosão do convés? — supôs ela com uma cara piedosa, levando sua mão na boca.
Olho rapidamente para Wilmer e pela sua reação, mesmo que mínima, eu sabia o que aquilo representava. Ele tinha ido atrás de informações da sua irmã em um convés onde ela comumente ia. Eu liguei os pontos mais rápido do que eu queria.
— Infelizmente... — Esboço um sorriso torto — E Wilmer acabou se machucando tentando me proteger, não é meu amor?
Ele claramente não estava gostando muito do que estava acontecendo e, quanto a mim, não poderia negar que estava adorando o provocar. Miranda assimilou a face fechada e rígida do Wilmer à dor e não propriamente a mentira descarada que estava colocando.
— Então, será que você poderia me emprestar algumas toalhas e roupas limpas... Acertamos tudo no final.
— Claro — afirmou rapidamente sentindo-se feliz por nos ajudar.
— Esperamos aqui.
Miranda, então, desapareceu pela porta lateral e eu permiti que meus olhos vagassem solenemente pelo ambiente que me trazia inúmeras lembranças. Logo ela estava de volta com uma sacola em mãos e apanhando a chave no nosso quarto.
— Se precisarem de qualquer coisa, não hesitem em me chamar — disse ela com um sorriso dócil entregando-me a sacola e a chave.
Devido a condição do Wilmer, ficamos no segundo andar, porém isso não dispensou o esforço dele para subir os dois lances de escadas. Ele permaneceu em silêncio pressionando a ferida e caminhando praticamente arrastando seus pés. Quando finalmente destranquei o quarto, um leve sorriso sorrateiro desenha meus lábios a partir das memórias que surgiam.
Toda a mobília consistia numa poltrona, num criado largo de madeira surrada, numa cama de casal. Ao lado esquerdo, uma porta separava o banheiro do quarto. Imediatamente jogo a mochila que carregava no ombro no chão e corro até a cama, permitindo sentir o impacto do meu corpo contra o colchão macio e logo bato com a mão no espaço ao meu lado, para que o Charles se aproximasse.
— Pensei que o processo de cicatrização fosse mais demorado — indaguei me referindo a tatuagem em meus pulsos — Quando fiz nas costelas, com a mamãe, demorou mais tempo.
— Seu corpo deve ter mudado — comentou ele, depois de algum tempo deitando-se ao meu lado. — Nos dois vamos queimar no inferno, por ter mentido para aquela mulher.
— Está arrependido? Posso ir até ela e falar que estamos em uma relação incesta — disse tirando sarro da situação, apoiando meu queixo em seu peitoral e olhando em seus grandes olhos esverdeados. — Estamos bem?
— Por que não estaríamos? — questionou ele, colocando suas mãos atrás da nuca e erguendo a cabeça.
— Não pegue minhas frases prontas, seu acéfalo.
— Estamos, Devonne. Não é normal pessoas ficarem e depois continuarem sendo melhores amigos, mas somos uma exceção a regra.
— Eu inventei aquela mentira, porque a Miranda não iria aceitar se ficássemos no mesmo quarto, ela é religiosa por demais. Talvez as coisas tenham mudado, mas quando eu vim aqui era assim, por isso disse que era irmã do Charles. Eu não queria arriscar — explico, colocando a sacola em cima do criado e retirando as peças. — Eu vou tomar banho.
Antes observo Wilmer deixar deslizar a mochila de seu ombro com dificuldade e a forma como seus músculos estavam rígidos. Mesmo ele estando de costas para mim, eu podia imaginar sua face tensionada pela dor. Bufo diante o seu orgulho e caminho até o banheiro, encostando a porta, em seguida.
Este era pequeno, mas eu não poderia reclamar, pois os banheiros públicos, com certeza, eram os piores. Começo a desabotoar a blusa que usava e logo a coloco sobre a pia. O reflexo do espelho dizia muitas coisas sobre mim. Apesar de o meu sistema imunológico ser eficiente, vários hematomas estavam presentes em meu corpo, alguns chegavam a ser tão grandes como a palma da mão. Entretanto, estavam desaparecendo aos poucos, comparando com os outros dias.
Encaro-me no espelho, apoiando as mãos na pia e logo meus olhos mudam de cor. Eu estava no controle. Suspiro fundo, tentando relaxar meus músculos, porém algo desperta minha atenção e faz com que o meu coração erre algumas batidas. O som estrondoso contra o assoalho de madeira fez com que eu abrisse a porta desesperada e me deparasse com Wilmer grunhindo de dor no chão, sua blusa jogada no chão junto a gaze que, provavelmente, ele iria refazer o curativo. As mãos do rapaz pressionavam a região e entre seus dedos o sangue escapava. Corro em sua direção, ajoelhando-me e tentando entender o que causava isso. Pouso minhas mãos sobre as suas, tentando retira-las, porém ele as manteve firme.
— Pare com isso Wilmer, me deixe te ajudar — indaguei exaltada.
Então, suas mãos desprenderam do local. A região era uma grande macha negra arroxeada e com uma fissura larga no centro. O seu tecido estava apodrecendo, ou já estava apodrecido, e alastrando em outas regiões de seu corpo.
— Você não retirou o projetil? — questiono tentando manter a calma.
O rosto do Wilmer estava avermelhado diante a dor, seus dentes estavam trincados e as veias de seu pescoço exaltadas.
— Só consegui retirar uma, a outra... — Então, ele gritou grave de dor, contorcendo o seu corpo e inclinado seus ombros.
Meus olhos percorrem o quarto e encontro a mochila, provavelmente, ele deve ter guardado as coisas. Alcanço-a e abro-a, sentindo minhas mãos estremecerem. Ajoelho-me novamente perto do Wilmer e jogo todas as coisas da mochila no chão ao lado.
— Tudo bem. Como faz isso? — questiono com os olhos arregalados, observando assustada a vodca já pela metade, o canivete, alguns medicamentos, toalhas de rosto, gaze e outros.
— Precisa procurar ela e depois retirar — murmurou ele com a respiração falha.
— Parece ser simples — indago, piscando algumas vezes e passo minhas mãos pelo rosto.
Pego a garrafa de vodca, molhando minhas mãos e, em seguida, a região próxima do diafragma e consequentemente o grito rouco do Wilmer devido a ardência.
— Vai ficar tudo bem — murmuro não acreditando nenhum pouco nas minhas próprias palavras. — Eu irei te ajudar.
A todo o momento minha respiração falhava e as batidas do meu coração chegavam a ser extremamente abusivas a ponto de sentir os músculos ao redor do órgão seguirem o movimento com estranha rapidez.
Eu não sou boa lidando com sangue, na verdade, eu não sabia como ainda permanecia ali ao seu lado, encarando a região. Balanço minha cabeça, pegando o meu indicador e adentrando vagarosamente na fissura de sua pele, foi inevitável não desviar o meu olhar e fazer uma careta. Em resposta, Wilmer grunhiu novamente e suas veias extrapolaram sua pele.
— Seja rápida — ordenou ele em um rosnado.
Apoio minha outra mão contra a região, criando um apoio e tento sentir, com a ponta do dedo, o projetil. Eu estava enfiando meu dedo na carne viva e morta do Wilmer e o sangue presente não facilitava em nada o processo. A dor não era apenas por causa de mim, mas, também, com o alastramento dos efeitos da bala.
— Eu acho que estou sentindo — disse atropelando as palavras e sentindo a ponta do metal contra o meu dedo.
Retiro o meu indicador e percebo minha visão ficar turva, por isso pisco diversas vezes até ela retornar ao normal.
— Está pronta? — perguntou ele com o sotaque em evidencia.
Um grande nó formou-se em minha garganta e apenas afirmo com a cabeça. Wilmer então olhou para o lado e eu pude ver as gotas generosas de suor em sua testa e pescoço. Ele pegou a garrafa de vodca enquanto eu apanhei o canivete, após derramar o liquido na região e conter sua dor, ele colocou a toalha na boca. Respiro fundo, colocando minha mão ao lado da fissura servindo como apoio e logo tento retirar o projetil. Sorte, ou não, este estava inteiro e não demorou muito para que eu o livrasse do corpo do Wilmer e o jogasse no chão como se fosse um bicho asqueroso.
No entanto, algo estava errado. O corpo do Wilmer não reagiu com alivio diante a retirada, na realidade, ele permaneceu do mesmo jeito: tensionado. Por antes eu estar concentrada com a remoção do projetil, eu não percebi que Wilmer não respondia. Seus olhos estavam fechados e sua expressão serena e rapidamente ondas e ondas de desespero vieram me aterrorizar.
— Wilmer, por favor, acorde. Wilmer. — Toco em seu rosto esperando por alguma resposta, mas nada veio. — Não. Não. Isso está errado. Tudo errado — As lágrimas desesperadas escorregavam por minhas bochechas. — Não me deixe, Will, não me deixe. Por favor, você também não.
Mas nada vinha em resposta e eu não compreendia o motivo. A respiração do rapaz era rala e cada vez mais ineficiente. Ele não podia me deixar, não assim, não agora, não ele. O meu coração se apertou tanto que logo eu me encontrava em prantos com o seu sangue em minhas mãos.
Então, as palavras de Virginia reviveram em minha mente: O seu coração, mais uma vez, em pedaços e sua mão coberta de sangue daquele que ama.
— Não. Ela está errada — indago com amargura, balançando negativamente a cabeça.
A visão estava turva e com as lágrimas foi difícil discernir, porém algo maior fez com que eu tomasse alguma atitude, por isso agarro fortemente na mão do Wilmer, como se fosse a minha última esperança, independente se as chances são mínimas.
Então, eu estava quebrada em infinitos pedaços. Agora parecia que esses infinitos foram multiplicados por outros infinitos impregnados de dor e angustia. Misturados com os meus pareciam ser os elementos necessários para uma combustão interna.
Não sei se ele sentia tanta dor ou se a sua dor misturava-se com a minha. Era praticamente insuportável e sem fim. Pelo menos, eu sabia que estava aliviando a dele e poderia significar em sua volta. O rosto do Wilmer começou a suavizar, seus músculos começaram a relaxar e rapidamente o folego apressado foi tomado por ele, trazendo-o de volta. Seus olhos se arregalaram quando recuperou o ar e logo os sinto cheios de preocupação. Desvio o olhar notando minhas veias pulsando rapidamente sobre o meu braço e sou obrigada a fechar os olhos e trincar meus dentes.
Por fim, parecia que sua dor começava a suavizar e minhas veias paravam com as oscilações internas. Vagarosamente abro meus olhos, com receio.
— Como você está? — Pergunto com a voz rouca.
Meu olhar percorre o seu ferimento percebendo que ele não estava mais aberto e tampouco com a mesma coloração arroxeada, parecia que eu o dei forças para se recompor, para se revigorar. Os meus dedos começaram a tremer e comprimo meus lábios tentando conter o choro.
— Como você está? — Ele replicou, levando sua mão ao meu queixo e fazendo-me olha-lo.
Eu não conseguia responder. Nem sabia o que aconteceu, na verdade, eu sabia. Só não acreditava.
—Você tem noção do que isso significa?
O ritmo do meu coração estava acelerado e eu conseguia perceber meu sangue fluindo rapidamente pelas veias e artérias e, também, como meu corpo se comportava diante o fornecimento de oxigênio. Ele tentava recuperar o seu ritmo natural, já que foi exigido por demais agora.
— Vá tomar banho, Wilmer — indago desviando meus olhos. — Vá se limpar — ordenei.
Os meus olhos estavam marejados e ardiam. Wilmer olhou-me com raiva e bufou se levantando.
“Qualquer um pode retirar a dor de um humano. Todavia, Lobos só conseguem retirar de outros de sua alcateia ou com um enorme vínculo.”
— Quer saber — iniciou ele enquanto eu me levantava. —, eu cansei. Cansei de dar o tempo que você precisa, cansei de respeitar o seu espaço e te ver se matando a cada momento.
Inconscientemente, prendo minha respiração. Seus olhos estavam dilatados e ele cuspia as palavras como se há muito tempo estivessem presas em sua garganta.
— Eu simplesmente cansei. Você continua sendo a mesma, ignorando o que está bem na sua cara, achando que assim irá resolver os seus problemas, sem, de fato, enfrenta-los. Eu sempre estou disposto a te ajudar e você sempre se fecha a qualquer tentativa minha. Eu cansei disso!
Ele, então, bateu a porta do banheiro, me deixando com o sangue nas mãos.
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