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História Melancolia - Torpor


Escrita por: gmyclifford

Notas do Autor


Oi oi, antes de qualquer coisa, gostaria de dizer que esse capítulo tem o tamanho aproximo do anterior (mais de 4 mil palavras) e possui cenas tristes, então recomendo fazer a leitura com alguma música nessa vibe.

Em segundo, eu tô realmente preocupada com a forma como vocês vão compreender esse capítulo em especial. Lembram quando falei que daria foco para cada personagem? Bom, é isso que vão encontrar. Não esqueçam de dizer o que estão achando, isso é muito importante.

⚠️aviso de gatilho: uso de drogas e alucinações⚠️

Boa leitura✨

Capítulo 7 - Torpor


Fanfic / Fanfiction Melancolia - Torpor

— Leia um pouco mais devagar, Charlotte. —o professor Marks pede sem tirar os olhos do livro e meus dentes rangem. Estou lendo há mais de cinco minutos, o que não é muito tempo, mas quando te interrompem a cada frase se torna complicado manter o ritmo. Recomeço o parágrafo em voz alta e tento ignorar as risadas a nossa frente, porém já sinto a raiva se acumulando em cada canto do meu corpo como um vulcão voltando a ativa.

Finalizo a página com apenas duas interrupções de Anthony e deixo as mãos descansarem sobre a mesa. O homem agradece dando início à sua explicação em cima do texto e sinto Michael tocar meu braço.

— Acho que se você lançar esse olhar pra mais alguém, vai acabar matando a pessoa. —ele ri baixinho enquanto copia a matéria, e lanço um olhar rápido para minha folha pela metade.

— Bem que eu gostaria de fazer isso. —retruco e dou um sorriso contido. — Por que de todos os alunos, ele tinha que implicar logo comigo?

Clifford dá de ombros antes de devolver: — Eles precisam direcionar a raiva pra alguém, talvez depois que você e Luke apresentarem o trabalho, ele pare com isso.

Concordo e volto a escrever. A breve menção ao garoto faz algo revirar no meu estômago e lembro automaticamente da cena que ele fez no meio do temporal e de alguma forma me rendeu um resfriado. Durante esse tempo, trocamos mensagens normalmente e nenhum de nós mencionou o ocorrido. Talvez seja melhor assim, manter esse momento intocado na memória.

— Falando nisso, como tá indo a leitura? Vocês estão gostando? —questiono o mais baixo que consigo para não levar outro sermão. Dylan e Hemmings faltaram, então seria apenas Mike, Jass e eu durante o dia. Diferentemente de mim, meu primo não se recuperou tão rápido e achou melhor repousar até a febre passar.

Nos últimos dias as tardes haviam sido de chuvas fortes. Até o almoço, o céu estaria completamente nublado assim como ontem e o horário da saída seria um desfile de guarda-chuva. A mudança drástica vinha preocupando muitas pessoas, mas não podiam evitar. Qualquer coisa que sofresse um desvio da normalidade cotidiana já era motivo de alarde.

— Dylan me jurou que fica melhor no meio do livro, então tô confiando nele. —ele solta uma risada e balança a cabeça como se para espantar algum pensamento e sua franja acaba cobrindo quase metade do rosto. — Discutimos muito no início pra decidir o que iríamos ler, Wright é teimoso demais.

— Como se você também não fosse, Clifford. —por alguma razão, Dy decidiu usar O Grande Gatsby na tarefa e criou uma lista de motivos para afirmar sua escolha. Se fosse qualquer outra disciplina, eu acharia a atitude exagerada. Entretanto, língua inglesa é a favorita do meu primo e sei como é importante ir bem nessa área para ele. É impossível vencer uma discussão com Dylan Wright.

O garoto revira os olhos mas não para de sorrir. Michael e eu vínhamos interagindo mais a cada dia e pela primeira vez depois de tanto tempo, eu estava gostando de passar por todos os estágios de uma nova amizade. Amanhã, ele e Luke iriam jantar na minha casa porque meus tios achavam que deveriam conhecer nossos amigos.

— Pelo menos eu admito, ele não.

Apesar de tentar esconder, ainda consigo ver a sombra de um sorriso e isso melhora um pouco meu humor. Seguimos o restante da aula trocando anotações e quando o sinal toca, solto um suspiro cansado. A turma abandona a sala com rapidez, mas eu pareço guardar tudo em câmera lenta pois acordei mais indisposta que no dia anterior.

Quem passa por nós acaba sorrindo ou acenando para o Michael, e uma garota que não recordo o nome pergunta sobre Hemmings. Não digo nada porque obviamente ela não quer falar comigo, mas cruzo os braços quando ela questiona o motivo do loiro ter faltado.

— Não sei, você pode perguntar pra ele amanhã, Lyn. —Clifford sorri de forma amigável quando nossa colega cora diante do meu olhar e não posso deixar de revirar os olhos.

— Ah, valeu, Mike. —ela ajeita a franja e se afasta ainda com um sorriso envergonhado. Saímos da sala em silêncio e o garoto lança seu olhar curioso na minha direção algumas vezes antes de iniciar uma conversa.

— O que foi?

— Nada, só fico impressionada em como você e o Luke conseguiram fazer tantas amizades em pouco tempo... —quase mordo a língua para não falar mais nada. Ele segura o riso e dou um tapa em seu braço. — Não tem graça!

— É claro que tem, eu tento falar com todo mundo e o Luke...as pessoas sempre gostam dele. —dá de ombros e paramos para guardar e trocar os livros, teríamos a mesma disciplina em poucos minutos então não vamos imediatamente para a sala. — É meio que inevitável gostar dele.

Solto uma gargalhada e é a vez dele de revirar os olhos. Finjo secar os olhos de tanto rir ao proferir: — Isso é sério? Porque entre os dois, eu diria que o mais amigável é você. Tipo, fala sério, nos conhecemos há menos de um mês e você tá no meu top cinco de amigos!

— Não brinca com isso, Charlotte, levo minhas amizades muito a sério. —o garoto fica de frente para mim enquanto anda de costas com habilidade e sem esbarrar em ninguém. Ele arranca olhares de quem estava ao nosso redor e coloca um sorriso no meu rosto antes de voltar a caminhar normalmente. — É diferente porque vocês vivem soltando faísca, não sei como conseguem estudar pacificamente e no resto do tempo discutir.

Nem mesmo eu saberia explicar como conseguíamos ser tão contraditórios. Nossas conversas diárias sobre a leitura em dupla era algo que eu apreciava, eram um dos raros momentos em que eu relaxava. Como se fosse minha zona segura.

— Se ele não me tirasse do sério, poderíamos conviver em paz.

Mike entra na sala primeiro e vamos para os lugares de sempre: as últimas fileiras. Todos já estão sentados e olho em volta procurando meu irmão, poucas carteiras estavam vazias, porém a única que chamou minha atenção foi a de Jason. A senhora Mitchell dá início à matéria e, apesar de ter notado a cadeira vazia, Clifford não menciona nada.

— Com licença, professora. —Scarlett dá duas batidas na porta entreaberta e após o aceno da professora, vai para seu lugar com uma expressão sorridente. Está alegre apesar do bilhete de detenção preso entre os dedos, mesmo de longe sei reconhecer um desses pois já recebi mais do que gostaria nos anos anteriores por atraso.

Meadows é linda sem ao menos fazer esforço, usava um vestido vinho com mini dragões compondo a estamparia e um par de all star. A combinação de cores da roupa parecia realçar sua pele negra clara e as tranças box braids pretas balançavam a cada passo que dava.

Como habitual, ela se senta na carteira ao lado da que Jass estaria. Entretanto, quando se vira em nossa direção, seu sorriso se amplia quase como se estivesse feliz em nos ver e acena. Não consigo evitar de franzir a testa antes de devolver o gesto e lanço um olhar rápido para Mike. O que quer que tenha acontecido, tirou o ar animado do rosto dele.

Durante os próximos cinquenta minutos, quase caio de sono apesar de lutar para manter os olhos abertos. Pisco várias vezes para continuar desperta, porém minhas pálpebras ficam cada vez mais pesadas.

Quase não era possível ouvir as vozes sussurrando pelos cantos.

O som parece repercutir sob minha pele e a sensação é suficientemente arrepiante para me deixar imóvel na cadeira. Mesmo com os olhos abertos, não consigo distinguir as formas ao redor, tamanha a escuridão que dominou o cômodo.

Tento levantar mas meus músculos não respondem, sequer demonstram a sombra de um movimento. De forma gradativa os sussurros vão adquirindo força até o ponto em que se tornam frases desconexas gritadas em meus ouvidos. Cada sopro é uma corrente gélida que intensifica o torpor e o terror crescente no meu interior.

Uma mão invisível parece cravar as garras em um ponto escondido na minha mente e tenho a sensação de mergulhar num rio congelado. Não sinto nada além das incoerências ecoando em cada canto do meu cérebro.

Das vozes, uma se sobressai e o desespero no seu tom é lancinante. Forço ao máximo minha audição, entretanto era como se pronunciasse uma língua a qual eu desconhecia. Meus batimentos ressoam nas têmporas num martelar frenético, e por um momento acho que não vou aguentar mais um segundo daquilo sem perder a consciência por completo.

Lágrimas deixam minha visão turva, e solto um soluço trêmulo quando agarro a coisa mais próxima de mim. Não levanto a cabeça da mesa porque um movimento mínimo seria o suficiente para esgotar minhas energias.

A sala está iluminada novamente e o frio cortante se foi, mas demoro para perceber que Michael está afastando o cabelo do meu rosto enquanto toca minha pele febril. Está mais sério do que nunca e vejo Scarlett preocupada logo atrás dele.

Quando vejo que estou apertando seu braço com força, deixo meus dedos caírem sobre a madeira e respiro fundo. — Eu...dormi? —sussurro ainda sem coragem de levantar e encarar outras pessoas além dos dois. A garota assente, porém permaneço focada em Clifford, na forma que ele franze os lábios e reflete antes de responder.

— Você apagou, ficou parada e de repente começou a tremer. —ele continua fazendo carinho no meu rosto enquanto o segura, como se esperando que aquilo fosse se repetir. Fecho os olhos por um instante.

— Achei que você estava convulsionando... —consigo erguer a cabeça devagar e encaro a sala vazia. Scar me oferece um copo descartável com água e bebo tudo em dois goles. — Melhor?

— Sim, obrigada.

Eles se afastam um pouco para me deixar respirar e passo as mãos pela testa, o mal-estar ainda mantinha minha pele fria de suor. Um pesadelo, foi apenas um pesadelo extremamente realista.

Quando me levanto, agarro a beirada da mesa e da cadeira até ter certeza que estou bem para sair daqui. Mesmo com a chuva batendo contra as janelas e o ar abafado, eu ainda podia sentir parte daquele frio por baixo da pele.

— Talvez seja melhor você não assistir a próxima aula. —a garota sugere enquanto me recomponho e guardo tudo na mochila. A ideia é tentadora, não sei se conseguiria acompanhar praticamente uma hora resolvendo equações e gravando fórmulas.

— Acho que vou ficar na biblioteca até a saída. —eles assentem e ao sair Mike engancha o braço no meu, como se eu fosse cair a qualquer momento. Talvez Dylan não tenha sido o único que não se curou totalmente do resfriado e eu tenha forçado demais estudando o dia inteiro.

— Vou te fazer companhia. —com os corredores vazios e silenciosos, tomamos cuidado para nenhum inspetor nos pegar fora da sala. Scarlett segue ao meu lado sem dizer nada, nos últimos dias trocamos poucas palavras mas acho que a aproximação dela com Jass acabou por unir mais o grupo.

Por falar nele...

— Meadows, você viu meu irmão hoje?

— Na entrada, ele não apareceu nas aulas que fazemos juntos. —dá de ombros e eu finco os pés no chão de modo que Clifford tenha que parar de andar.

— O quê?

Não sei qual o nível de intimidade que os dois têm e se ele sequer contou algo para ela, então me limito a dizer: — Ele vai arrumar um jeito de levar uma advertência ou coisa pior.

— Como sabe? —Scar franze os lábios.

— Conheço o Jass melhor que qualquer um.

— Vai procurar ele? —Mike questiona em tom sério, como não digo mais nada e começo a marchar na direção oposta, ambos me seguem. — Charlotte!

— Acho que sei onde ele pode estar. —murmuro ao vestir a capa de chuva transparente. Se eu estiver certa, não quero Michael e Scarlett naquela parte da cidade. Não sei se a garota já andou por aquela área, mas tenho certeza que o rosado nunca esteve lá.

Quando estamos quase na porta de saída, vozes se aproximam da esquina e por pouco não nos escondemos. Dois professores passam conversando e sequer olham na nossa direção. Espero até que eles estejam longe para correr até as portas e saímos.

— Vou com você. —Clifford segura a bolsa de lona sobre a cabeça para se proteger da água e olha para trás, Scarlett está parada debaixo da marquise da entrada. — Algum problema, Meadows?

Não sei se o leve tom de ironia foi proposital ou apenas coisa da minha cabeça, porém ela não demora a devolver.

— Não, quer dizer, sim. —ela suspira e alisa nervosamente o cabelo por cima do ombro. — Preciso resolver algumas coisas, pode me avisar se achar seu irmão, Lottie?

Balanço a cabeça em concordância e ela retorna para o interior do colégio no instante que tiro o cadeado da bicicleta. Pego o guarda-chuva da mochila e entrego para Mike, que pendura a bolsa lateral no ombro antes de se proteger e sentar na garupa.

Faço o caminho até minha casa, mas ao invés de parar, seguimos mais alguns quarteirões. As calçadas vão ficando cada vez mais esburacadas, e as janelas com grades de ferro vão aumentando conforme passamos. Apesar de não ser nem meio-dia, poucas pessoas estão na rua. Quando avisto a construção de tijolos vermelhos aos pedaços, não preciso inspirar para saber que mais algumas pedaladas seriam suficiente para encontrar o mar.

— Acha que ele tá aqui? —Michael observa alguns garotos que aparentavam ser mais novos que nós, fumando na porta do casarão. Apenas maneio a cabeça e prendo a bicicleta antes de me aproximar, abaixo o capuz e passo por eles sem dizer nada. Não havia luzes funcionando ali dentro, ou se havia, preferiam não usar.

Cada cômodo é um amontoado de pessoas em sofás puídos e cadeiras velhas, e evito fazer contato visual com qualquer um. Sigo em silêncio pelo corredor e poucos desviam o olhar na minha direção. Diferente de mim, a presença de Michael parece despertar a atenção dos presentes.

— Não fala nada, tá? —sussurro quando um cara lança um olhar nada amigável para nós. Tento parecer tranquila com o rosto impassível e as mãos nos bolsos, e Clifford não parece muito diferente. Ignorando o homem irritadinho, chegamos até a cozinha e quase perco o controle quando vejo Jason sentado na bancada com um baseado nos lábios. — Que porra você tá fazendo aqui?!

— Espairecendo? —meu irmão franze a testa e tira aquilo da boca, ele alterna o olhar entre mim e nosso amigo, que parece mais tranquilo que eu por estar ali. — Clifford. —eles se cumprimentam com um aceno de cabeça e tenho que apertar a ponte do nariz e respirar fundo diversas vezes, a névoa de fumaça só contribuía para aumentar minha tontura.

— Vamos pra casa, Jass.

— Você não faz ideia do que tá acontecendo. —ele se levanta e ficamos cara a cara, sei que nenhum de nós vai ceder tão cedo então tento falar o mais baixo que consigo.

— Saberia se você se desse ao trabalho de me contar. —pego o cigarro dele e esmago com o coturno. — Que inferno, cara, passamos nove meses lado a lado e agora você acha que eu não percebo quando alguma coisa tá errada?

— Eu preciso de espaço, Charlotte.

— Eu te dei espaço! —praticamente grito as palavras no seu rosto e encaro o teto na tentativa de conter as lágrimas. Seus olhos escuros não estão muito diferentes, porém se mantém firme e não desmorona na primeira oportunidade como eu. Apertando as unhas nas palmas das mãos, tento me concentrar na dor ao invés de qualquer outra coisa. — Não vou aguentar passar por tudo isso de novo, maninho. —meu lábio treme no final e sinto como se minhas pernas fossem fraquejar a qualquer instante.

Inspiro na tentativa de me acalmar e permito que o choro molhe mais ainda meu rosto. Ele se aproxima com relutância e me envolve em seus braços enquanto soluço.

— Acha que eu deixaria toda aquela merda voltar pra nossa vida? —murmura ao alisar meu cabelo, mantenho os olhos fechados e ignoro o odor incômodo no ar e em seu casaco. Apenas quando me afasto é que vejo que Michael continua a poucos passos de nós, e a ideia de ter caído em prantos na frente dele em um momento tão doloroso é o suficiente para me deixar nervosa. — Vamos sair daqui.

Quando saímos, a chuva já duplicou de intensidade.

— Melhor irmos de ônibus. —Clifford sugere e noto que está atento em cada movimento do meu irmão, que brincava com a corda do agasalho.

— Beleza. —engulo em seco e pego o dinheiro de emergência na mochila, tinha o necessário para duas passagens e ainda sobraria um pouco. Para nossa sorte, o transporte não demora a chegar e não nos molhamos tanto. Entro na porta traseira com a bicicleta e sentamos nos últimos assentos.

Dou uma olhada nos lugares ocupados antes de pegar o celular e envio uma mensagem para Dylan questionando se ele se sente melhor e se a mãe dele está em casa. Uma foto chega em resposta e observo seu sorriso ostentando um pote de sorvete ao lado do rosto, então ele diz que está sozinho.

Aviso que estamos indo para casa e meu primo pergunta se deve se preocupar. Lanço um olhar rápido para Jass e digo que não, seria melhor manter isso apenas entre nós três por enquanto. Guardo o aparelho e observo o caminho com o pensamento longe.

Ninguém além da nossa família e a psicóloga sabe o que aconteceu ano passado. Jass e eu começamos a andar com uma galera problemática no colégio, e fizemos diversas coisas até que nossos tios decidiram que seria melhor voltar com as consultas quinzenais.

Uma simples lembrança daquela época é capaz de trazer todos os sentimentos ruins que me consumiram durante anos. Sei que apenas nos deixamos abalar com aquilo que permitimos, porém é algo mais forte que eu. A mera possibilidade de voltar para aquela vida me causa calafrios.

Após uma virada brusca, descemos do ônibus na nossa rua. O aguaceiro não dá trégua e praguejo a cada passo que meu tênis fica mais encharcado. Vou na frente empurrando a bike enquanto Michael conversa com Jason logo atrás de mim, tento apurar os ouvidos mas qualquer frase é abafada pela combinação do trânsito e da chuva.

Desfaço da capa assim que coloco os pés na varanda, meu corpo parece quase duas vezes mais pesado e sento para descansar. Jass passa por mim e entra depressa, e mordo o lábio quando percebo que Clifford está a poucos passos de distância. Deixando o guarda-chuva de lado, ele se senta ao meu lado e encara o que deveria ser nosso jardim.

Há anos a grama parou de crescer e a terra secou. No momento, as poças de lama aumentavam conforme o temporal.

— Não sei se a discussão de vocês terminou mas...tenta escutar o lado dele. —sussurra, e percebo que é uma precaução para o caso de Dy aparecer na porta. — E me desculpe por opinar sobre isso, é assunto de família.

— Na verdade, eu não sei o que falaria pra ele. —confesso. — É uma situação tão complicada e não posso pedir conselhos pra ninguém, Mike.

Não dizemos nada por um momento, e tenho a sensação de que mais alguém está por perto. Vasculho as calçadas com o olhar nervoso e não vejo ninguém.

— As pessoas são complicadas, por isso que tentar entender a mente de alguém é quase impossível. —os cantos de seus lábios se erguem levemente ao observar um carro passar. — Já tentei fazer isso várias vezes, a convivência não facilita tanto assim.

— Você não entende, existe alguma ligação entre gêmeos que não pode ser comprovada. É algo presente em mim desde criança, como se eu fosse capaz de sentir o mesmo que ele só que de forma reduzida. —quando finalizo, cubro o rosto envergonhada. Não sei se o que acabei de dizer teve sentido, pois parecia totalmente coerente em pensamento.

— Já ouvi muitas histórias sobre isso, Lottie. —ele ri e cutuca meu ombro, e isso me encoraja a mostrar o rosto novamente. — É um sentimento real e no fundo é só isso que importa.

Pensativa, lanço um olhar rápido para a porta e janelas, e torno a encarar Mike. — Acho melhor eu entrar antes que meu primo estranhe a demora. —levanto-me devagar e quase escorrego no degrau ao ajudá-lo a ficar de pé. Apesar do céu permanecer nublado, a chuva reduziu de leve. — Obrigada por hoje, por...você sabe, me acompanhar até lá e pela conversa, deve ter sido muito pra você.

Ele afasta o cabelo rosa do rosto e sorri afetuoso ao proferir: — Eu entendo essa situação mais do que você pode imaginar. —não tenho a oportunidade de questionar o que aquilo significava pois quando percebo, estou apertando Clifford em um abraço.

Primeiro, ele fica sem reação, mas em questão de segundos seus braços me envolvem com carinho. Não sou uma pessoa que gosta de distribuir abraços, entretanto depois de tudo que aconteceu pela manhã eu só precisava disso. Quando me afasto, noto como o rubor habitual em seu rosto aumentou. Apesar disso, ele não se deixa abalar com o gesto repentino.

— Foi mal pelo abraço, eu não...só precisava...

— Não precisa se desculpar, eu não tava preparado mas abraços são sempre bem-vindos. —a forma como seu sorriso se abre me incentiva a sorrir mesmo que minimamente. Era como se já nos conhecêssemos há anos. — Tenho que ir, vocês vão ficar bem?

— Sim, e pode usar o guarda-chuva pra voltar pra casa. —solto assim que ele ameaça me devolver o objeto. — Até amanhã, Michael.

— Até, Charlotte. —acenando, desce os três degraus da varanda e desvia das poças pelo caminho. Apenas quando ele está praticamente na calçada que me lembro e por pouco não derrubo a bicicleta.

— Clifford! —o garoto se vira sem entender e jogo a capa por cima dos ombros antes de correr até ele. — Não comenta nada com o Luke, por favor?

— Nem precisava pedir, mas não se preocupa, não vou falar nada. —concordo aliviada e retorno para a entrada de casa. Vejo Mike se afastar até sumir na esquina, então olho em volta mais uma vez quando a sensação de estar sendo observada regressa com tudo.

Entro na sala e tranco a porta, a respiração acelerada. Encontro Dylan bebendo suco de laranja no balcão da cozinha e nos cumprimentamos com um toque de mãos. Largo a mochila na mesa e dou uma conferida no conteúdo das panelas. O cheiro de ensopado preenche minhas narinas antes de sequer levantar as tampas e meu estômago ronca em resposta.

— Foi você que fez? O cheiro tá bom. —ele concorda e pela forma como suas sobrancelhas estão praticamente unidas já posso sentir o que dirá.

— Aconteceu alguma coisa com o Jass? Ele tá estranho, mais que nos últimos dias. —meu primo soa descontraído, porém é o necessário para me deixar em alerta. Nego com falsa calma e finjo bocejar.

— Ele anda cansado com os treinos do time. —dou de ombros e me reviro internamente com a mentira. Se ele falta com frequência, seus treinos de futebol também estão sendo deixados de lado. Odeio mentiras e só manteria isso até ter certeza que meu irmão aproveitou a chance que recebeu. — Não se preocupa, Dy. Vou tomar banho e terminar o almoço, vai lá descansar na sala.

Após beijar sua bochecha, vou para o quarto de Jason. Mesmo com as luzes apagadas, vejo ele sentado já de roupa trocada. Na TV um programa aleatório preenche o silêncio, e não preciso espiar a cabeceira para saber que o colírio está ali. Sento relutante na beirada da cama e nos encaramos.

— Como você tá?

— Com sono. —murmura com a voz suave e chega mais perto até deitar a cabeça no meu colo. Sem dizer uma palavra, começo a fazer carinho no seu cabelo como ele fazia comigo quando acordava de um dos vários pesadelos que me atormentavam. — Eu fui lá algumas vezes esse mês.

O cabelo recém raspado faz minha mão formigar e fico quieta esperando que continue.

— Tenho a sensação de que as coisas vão mudar e eu não estarei aqui pra ver. Parece que tem uma...coisa me puxando pra longe de tudo. —a voz dele falha na última sílaba e sinto as lágrimas molharem minha calça. Não lembro a última vez que meu irmão chorou na minha frente e vê-lo desse jeito parte meu coração.

— Ei, olha pra mim. —seguro o rosto dele entre as mãos e o puxo para um abraço. Jass é maior que eu, porém ainda assim sustento sua cabeça no meu ombro e o aperto como se fosse capaz de transferir suas dores para mim. Seu peito treme enquanto ele soluça e um nó se forma na minha garganta.

Minha visão se torna turva pela segunda vez no dia e fecho os olhos com força. Tento tranquilizá-lo alisando suas costas por cima da camisa e aguardo vários minutos até que a respiração dele se acalme. — Não vai acontecer nada com você, Jass, eu não vou deixar.

— Você não pode prometer algo sem ter certeza. —sussurrando, ele desfaz o abraço e seca o rosto. De relance, olhá-lo era como me ver num espelho, mesmo que não tivéssemos todos os traços em comum.

— Eu tenho certeza e não vou deixar nada de ruim acontecer.

Ele não parece muito convencido, porém acaba cedendo e repousa no travesseiro antes de fechar os olhos. Espero até que tenha caído no sono e saio do quarto sem fazer barulho. Confiro no espelho do corredor se é perceptível que quase chorei há pouco e vou preparar o almoço.

Enquanto mexo e adiciono os ingredientes finais da comida, repasso mentalmente minha promessa de proteger meu irmão a todo custo. Eu não estava tentando enganá-lo, Jason é o único que está comigo desde o início. Há anos tem sido assim, nossa família havia aumentado, entretanto só tínhamos um ao outro. Nossos laços são maiores que tudo.

Eu só não contei que também sentia o presságio de que tudo mudaria para pior.



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