História More than a Simple Conection - Trato

   Alguns dias já haviam se passado desde a captura de Ravena e nada estava muito fora do comum desde que o fizeram; a maior parte dos piratas imaginava que ela ficaria o tempo inteiro acorrentada ao mastro, sendo obrigada a suportar o calor do sol nos dias mais quentes e também os ventos frígidos de quando as piores tempestades chegassem para amedrontá-los, só podendo se alimentar de restos e ter que beber a água da chuva ou nem isso; também imaginavam que seu capitão a chicotearia uma dezena de vezes por dia, como uma maneira de mostrar que sua situação miserável era devida ao o quê ela era: uma bruxa. Mas nada disso aconteceu, em compensação, a maioria dos bucaneiros a ofendiam quando passavam muito perto, outros, mais maldosos, a empurravam para que tropeçasse e caísse no chão, ou então jogavam cascas de laranja ou outros restos de comida e bebida; apesar de não terem lhe disponibilizado uma rede ou uma cama para que pudesse dormir, ela ficou aconchegada no cantinho da escada que levava ao deque do leme, vez ou outra sendo incomodada com alguns "tropeços" propositais em seus pés, por mais encolhidos que ficassem, - por medo que fizessem algum mal com os seus preciosos livros, pediu que Kori os escondesse em algum lugar e se encarregasse de cuidar deles - não se comunicava com ninguém além de Koriand'r ou Victor, - pelo menos de forma "amigável" - com Dick, mal trocavam sequer um olhar, já com Garfield, ele sempre a insultava sem motivo ou procurava algum motivo para isso, ou apara discutir, só que ela sempre o ignorava ou acabava com a discussão em menos de quatro palavras, o que chegava a ser um belo de um entretenimento diário. Apesar de Ravena ter passado o primeiro dia em "paz", conseguiu meditar por mais de cinco horas e ler alguns livros durante a madrugada; no segundo começou o seu tormento.

   A primeira regra para se seguir quando se embarcava naquele Navio - do qual Victor chamava intimamente de "bebê", mesmo que o seu melhor amigo achava uma enorme perda de credibilidade - era que ninguém ficava de bobeira, todos tinham que fazer alguma coisa, incluindo o príncipe e sua noiva e, como não seria diferente, ela. O sol mal tinha nascido e ele a mandou limpar o convés inteiro; depois mandou lustrar as armas; arrumar sua cabine; e por fim ajustar as velas de acordo com o vento, apesar de fazer essa tarefa apenas de madrugada, quando os outros homens estavam descansando de fazer outras tarefas, para ela era um pouco mais difícil, já que estava exausta pelas noites não dormidas e a falta de força nos braços. Sua rotina era essa, todos os dias fazia essas mesmas coisas, com o bônus de empurrões, xingamentos, discussões sem propósito, coisas sendo atiradas na sua direção como se fosse um alvo e, claro, cada vez mais exaustão; um dia que estava livre de lustrar as armas já que não era necessário, fora encontrada desmaiada por Koriand'r dentro da despensa, e claro, isso fez a mesma ficar com mais raiva de absolutamente todos aqueles malditos homens que a tratavam como lixo e por isso nem os olhava mais no rosto, enquanto os mesmos não entendia nada e continuavam agindo dessa forma.

   Hoje, no quarto dia, estava fazendo um sol mais quente que o normal, obrigando Ravena à permanecer sem o seu capuz para não morrer de calor enquanto limpava o convés e dessa vez, o ilustre líder estava presente, tomando conta do leme com extrema concentração; limpava de uma forma mais lenta do que os outros dias já que não conseguia mais manter os olhos abertos direito, cambaleando para os lados, Koriand'r estava no deque debaixo almoçando com os outros, ali em cima só estava ela, Garfield e Victor, este que por sua vez estava vigiando-a, mas não de uma maneira ruim, porque já tinha notado desde o segundo dia que ela não dormia e nunca comia, nunca a viu fazendo nenhuma refeição e quando sua "amiga" vinha lhe trazer, falava que comeria depois e esperava um momento de distração para dar a comida para qualquer outro que passava e aceitava, - apenas para não desperdiçar comida - não tinha criado um apreço como a outra, mas gostava de conversar sobre o seu "Bebê" com ela já que se mostrava verdadeiramente interessada no assunto e querendo ou não, cuidava bem dele, não faria mal retribuir esse pouco de cuidado. E também queria evitar que os outros a humilhasse ainda mais, pois já estava o irritando ouvir "bruxa" e "demônio" a cada quinze minutos.

   Se aproximou da arroxeada e colocou a sua mão sobre seu ombro, fazendo-a tomar um susto e limpar mais rápido, aparentemente começara a dormir em pé. Suspirou, tomando o esfregão de suas mãos e tomando aquela tarefa para si.

 

      ━ Ahn…? O quê? - Demorou um pouco para processar e, quando o fez, tentou pegar de volta, falhando já que fora esquivada e estava quase caindo. Já se sentia mal o suficiente pela exaustão e principalmente por ser o brinquedinho que todos gostavam de maltratar, não precisava de mais um ato de humilhação. - Victor me devolve, não quero ouvir gritos hoje… - Sua voz estava mais rouca que o normal e estava claramente num tom exausto.

 

      ━ Você vai acabar morrendo se continuar assim, vai dormir e depois que acordar coma alguma coisa. - Ravena franziu as sobrancelhas, estava se questionando porque aquele pirata estava sendo tão… decente. Demorou alguns segundos para se recordar que Viktor não era um malfeitor como os outros.

 

      ━ Não estou cansada e não tenho fome…

 

      ━ Até uma velha cega e surda saberia que está mentindo.

 

      ━ Tanto faz… Agora devolve o meu esfregão e me deixa terminar de limpar logo, ainda preciso… Eu… - Se encostou no parapeito da proa, quase caindo para trás, seu rosto estava muito vermelho.

 

      ━ Olha pra você! Se continuar mais dez minutos nesse sol vai ter uma insolação, anda, hora de dormir. - Deixou o esfregão de lado e se aproximou dela.

 

      ━ Eu… Hm… - Começou a cochilar em pé de novo. Ele a pegou no colo, o que acabou chamando a atenção do esverdeado, que franziu as sobrancelhas.

 

      ━ O que está acontecendo, Victor? - Indagou voltando a prestar atenção na rota.

 

      ━ Ravena está exausta, ela precisa descansar um pouco.

 

      ━ Humph, exausta? Até parece… Isso é só encenação pra ficar vagabundeando o dia inteiro, coloca ela no chão e a mande trabalhar.

 

      ━ Senhor, ela não está em condições de sequer conseguir raciocinar direito, ela precisa dormir.

 

      ━ O que aconteceu? Ela dominou a sua mente fraca? Ande! Coloque-a no chão!

 

      ━ Capitão, ela não dorme e não come há dias! Ela precisa descansar!

 

      ━ Claro que ela dorme e come, Kori sempre dá comida pra ela! 

 

      ━ Alguma vez o senhor já a viu dormindo ou comendo?

 

      ━ Bem é… Eu… Não, mas… - Seu subordinado o interrompeu.

 

      ━ O senhor quer que ela seja vigiada o tempo inteiro e eu o faço quando Kori não está por perto. Ravena se recusa a dormir ou comer, pergunte para qualquer um, ela sempre entrega o prato de comida que a Kori faz para ela! - O esverdeado arqueou uma sobrancelha e suspirou, chamando um outro bucaneiro para tomar conta do leme e poder se juntar sem preocupações ao seu imediato.

 

      ━ Você tem certeza de que ela não dorme e nem come? - Questionou a olhando conforme se aproximava, seu rosto estava realmente vermelho e a testa completamente suada. "Será que coisas que afetam humanos também afetam ela? Ela é meio-demônio, então, talvez… Merda! E se Trigon me matar por eu deixar ela doente ou pior?! Não acredito que vou precisar cuidar dela! Mas se eu não fizer… Melhor não arriscar, não quero nem saber o que ele faria comigo se eu fosse o responsável por algo de muito ruim acontecendo com ela." Garfield quase ficava com dor de cabeça de tanto pensar.

 

      ━ Absoluta, senhor. - O menor suspirou e assentiu com a cabeça.

 

      ━ Me dê, mande alguém terminar de limpar o convés e vá preparar um prato de comida. - O rapaz de pele escura assentiu com a cabeça e transferiu a moça para os braços de seu superior.

 

   Ao sustentá-la com seus braços, viu uma mísera faísca sair de ambos e sentiu um choque dominar seu corpo, como se tivesse recebido uma picada de abelha; depois disso, um calafrio que arrepiou até mesmo os pelos de sua nuca, o que fora estranho, completamente estranho; talvez fossem os seus novos instintos dizendo que ela era má, ou apenas um choque aleatório que as pessoas começavam a dar às vezes, as duas opções eram muito válidas. Porém, segundos após aquele choque, começou a ter uma sensação diferente, e era especificamente ligada à ela, era como se… Tivesse a capacidade de sentir suas emoções, suas dores, e sentia uma tremenda de uma dor nas costas; arqueou uma sobrancelha, confuso, a estudou, conseguindo enxergar a silhueta astral das algemas presas em ambos seus pulsos, talvez fosse isso, talvez não. Suspirou, mais tarde perguntaria à ela, agora por causa das novas sensações, conseguia ver realmente o nível de exaustão que vinha de sua pessoa, era quase contagiante.

   A levou para sua cabine e olhou ao redor, não tinha notado, porém desde que ela começara sua limpeza diária, era tremendamente mais organizada e até parecia mais espaçosa; balançou a cabeça e se aproximou da cama - a única coisa tremendamente desarrumada ali dentro - e a deitou ali, vendo-a se recolher quase instantâneamente quando entrou em contato com o colchão mais ou menos macio, parecia indefesa, diria tranquila se não estivesse com uma expressão levemente amedrontada em sua face; começou a analisar mais o seu rosto e seu corpo. Era realmente uma mulher muito bonita, se surpreendia que demônios poderiam ser assim… Uma meio-demônio; seu traje fazia jus à suas curvas, lhe dava um ar misterioso e sensual ao mesmo tempo, como se fosse propositalmente feito para deixá-la mais atraente, não entendia o porquê do capuz, não tinha porquê esconder aquele rosto, um rosto que era muito bonito, só não admitiria isso na cara dela e negaria até sua morte. Analisou melhor a capa, parecia um pouco quente, especificamente para aquele dia que estava mais quente que os anteriores, talvez fosse por isso que suava tanto, aquela maldita capa; aproximou suas mãos com cuidado e tentou retirar aquela peça sem acordá-la, sendo um êxito não muito difícil, provavelmente porque estava tão exausta que seu cérebro nem conseguia processar que tinha alguma coisa ao seu redor, quase era cômico. Logan achou melhor deixá-la dormir em paz e foi até a rede que ficava do lado de uma das janelas, se deitando de maneira folgada na mesma enquanto encarava a paisagem de fora: nada mais que o mar no horizonte.

 

   Já era final de tarde quando a arroxeada começou a despertar de seu sono pelo qual fora tão clamado pelo seu corpo exausto; bem lentamente foi abrindo os olhos, enxergando borrões que não conseguia distinguir direito, apenas um tecido meio bege, coisas de coloração amarronzada em volta e algo verde. Pensava que estava de volta em sua ilha e tudo apenas não passou de um pesadelo bizarro como já estava acostumada a ter, era por isso que não dormia, pesadelos idiotas que atormentavam sua mente e deixava suas emoções uma verdadeira bagunça. "Provavelmente acabei desmaiando de exaustão de novo", pensou, como se fosse algo saudável deixar de dormir até que seu corpo a obrigasse; por mais que odiasse preguiça e precisasse se levantar para fazer suas poucas obrigações, aquele colchão estava tão gostoso que estava abraçando sua vontade de ficar deitada nele e até se aconchegou, se cobrindo com o lençol enquanto se preparava para voltar a dormir, porém, enquanto se aconchegava mais e mais naquela armadilha sonífera, percebeu que tinha algo de muito errado com a situação; não tinha um colchão, sequer tinha uma cama, sua rede ou a areia da ilha não era tão confortável daquela maneira e principalmente não tinha um lençol gostoso, definitivamente sua captura não foi um pesadelo e acabou desmaiando de exaustão e uma possível insolação nesse maldito barco; bufou, abrindo os seus olhos e se sentando de uma maneira brusca, ficando meio tonta ao fazer isso já que estava com uma tremenda dor de cabeça, coçou os olhos, conseguindo enxergar com mais nitidez e reparando que estava dentro da cabine de Logan, especificamente com ele dentro, deitado na rede, surpreendentemente lendo - nem imaginava que ele teria a capacidade cognitiva de ler.

   Ele percebeu sua movimentação e a encarou de relance, percebendo que agora estava acordada e com uma expressão nada feliz, ao menos estava menos vermelha e não suava mais. Se levantou e colocou o livro com a página marcada sobre sua mesa, por fim se aproximando da cama.

 

      ━ Pensei que iria dormir mais. - Comentou cruzando os braços.

 

      ━ Não devo dormir, principalmente aqui. - Retorceu o nariz ao lembrar-se que ainda estava sentada na cama dele, que apesar de até cheirar bem, sabia que muitas mulheres já tinham se deitado ali, e isso, achava nojento; se levantou o mais rápido que conseguiu e novamente uma tontura lhe atormentou por causa da dor de cabeça. Conseguiu se equilibrar sem se apoiar em nada.

 

      ━ Se você não deve dormir então por que desmaiou?

 

      ━ Foi o sol. - Resmungou com as sobrancelhas franzidas, olhou ao redor e se viu num pequeno espelho, estava sem sua capa e com o cabelo meio bagunçado; suspirou, foi até uma gaveta da qual tinha guardando uma escova de cabelo que encontrou jogada num canto aleatório daquela cabine quando fora a limpar pela primeira vez e desembaraçou alguns nós antes de deixar no penteado habitual.

 

      ━ Sei que me acha um imbecil, mas não se esqueça que sou um pirata, já tive insolação e já vi outras pessoas tendo também, não funciona assim.

 

      ━ Ah acredite, eu jamais vou esquecer. - Cuspiu mau humorada, ainda se xingava por ter sido muito burra. - E eu sou um demônio, esqueceu? Uma bruxa. Funciona diferente. - Procurou a capa e a encontrou nas costas da cadeira; a pegou e quando iria colocar, ele a interrompeu, segurando o seu pulso com certa força.

 

      ━ Ainda está quente, espera a noite cair e depois você coloca isso, ou sua dor de cabeça vai aumentar.

 

      ━ Como sabe que estou com dor de cabeça?

 

      ━ Porque você ficou dias sem dormir, tomou sol demais e está sem comer, isso afeta o corpo e não de uma maneira boa. - Preferiu omitir que estava sentindo uma boa parte do que ela sentia. - E você está com essa cara de quem cortou a mão e colocou ela dentro do mar logo em seguida.

 

      ━ E por que se importa? Poderia ter me colocado lá embaixo, imagino que não queira um monstro dormindo na sua cama. - Ele arqueou uma sobrancelha e se conteve para não fazer uma piada de mal gosto. Estava se perguntando se seria morto caso ainda a tratasse como a aberração que ela é.

 

      ━ Eu não me importo com você, me importo comigo mesmo! Quem dirá o que seu pai vai fazer comigo se souber que você ficou doente por culpa minha e dos meus homens, não quero ficar amaldiçoado pra sempre e nem morrer. - Ravena revirou os olhos, balançando negativamente a cabeça e falava consigo mesma sobre ser muito óbvio que ele não se importava com nenhuma outra coisa. 

 

      ━ Certo… Bom, se a sua maior fonte de felicidade é me xingar e deixar que os seus homens me xinguem, além de claro, me empurrar quase o tempo inteiro e jogar coisas em mim, vá em frente. - Ela iria dizer que Trigon se divertiria com isso, até perceber que ele jurava que seu progenitor se importava consigo. Talvez enganar o enganador não seja tão difícil, principalmente quando ele é um completo idiota. - Meu… pai… - Era difícil chamá-lo dessa maneira, mas aguentaria, se fosse para conseguir dar um passo sem receber algum corpo batendo no seu. - Quer que você me leve viva, não é? Imagina se ele descobre que vocês me deixaram doente ou fizeram qualquer outra coisa que prejudique a minha saúde?

 

      ━ O que ele faria? - O rapaz perguntou levemente preocupado, não levava as ameaças dela à sério, principalmente porque ainda estava confuso sobre o porquê precisar levá-la à força e sem poderes de volta para ele; porém, imaginar que poderia acontecer muito mais do que só tossir bolas de sangue e que ainda prejudicaria seus bucaneiros, lhe dava calafrios. "Não creio que terei que a tratar como se fosse… Gente." Resmungou sem dizer nada.

 

      ━ Curioso? Ele pode não fazer nada… Se vocês pararem de me tratar como se eu fosse algum bicho.

 

      ━ E você não é?

 

      ━ Engraçado, você é verde, é uma planta ou um inseto? - Garfield rosnou, um rosnado alto, mas não falou ou fez nada. - Bom. Façamos assim: você para de me escravizar e manda os seus homens pararem de trombar em mim e principalmente, de jogar coisas em mim. E eu não conto ao meu pai que eu não estou sendo devidamente tratada como a princesa do inferno.

 

      ━ Gosta de ser xingada? Não quer que eu pare também? - Ele sorriu malicioso. Ela deu de ombros.

 

      ━ Eu não me importo com o que vocês dizem. Acha que as palavras de meros e insignificantes mortais irão me afetar em alguma coisa?

 

      ━ Por que fala como se tivesse tanto poder aqui dentro?

 

      ━ Porque esse poder eu tenho. Quer arriscar sua vida apenas para me maltratar?

 

      ━ … Maldita! - O rapaz passou a mão no cabelo, notoriamente muito incomodado, mas não disse mais nada, apenas estendeu a mão. - Certo, façamos assim então.

 

      ━ Me dê sua palavra.

 

      ━ Quer me revistar ou que eu diga mais alguma coisa? Esse vai ser nosso trato, você vai ser tratada como gente a partir de agora. - Ele manteve a mão estendida e ainda hesitante, Ravena levou a sua para perto da dele, fazendo um aperto firme, mas nada forte.

 

      ━ Não gosto de promessas vazias.

 

      ━ Nem eu.

 

      ━ Ótimo. - Ele pegou o prato com o ensopado que estava sobre a sua mesa, ainda estava quente e então entregou para ela, que fez uma careta, como se questionasse o porquê daquilo. - Pra quê isso?

 

      ━ Pra quê serve comida? Pra comer?

 

      ━ Não vou comer.

 

      ━ Você vai sim, não quero você desmaiando pelos cantos do meu navio, ou morrendo de fome.

 

      ━ Primeiro quer que eu durma, agora que eu coma, pra quê isso?

 

      ━ Escuta, não sei se é greve, se você quer me foder com o seu pai ou sei lá mais qual alternativa, mas você vai comer direito e dormir quando precisar. Fizemos um trato, se eu vou te tratar como se fosse uma pessoa, você vai agir como uma. Então faça o básico para viver que é comer, beber água e descansar. - Ao terminar de falar, as algemas saíram de sua forma astral e mostraram as correntes conectadas, brilhando num laranja forte, apertando o pulso da menor e então, desaparecendo de novo.

 

      ━ Porra… - Resmungou.

 

      ━ Que porra foi essa?

 

      ━ Você realmente não sabe de nada sobre elas, não é?

 

      ━ Não, se você puder me explicar seria mais fácil e menos confuso. - A arroxeada suspirou, parecendo irritada e principalmente, cansada, definitivamente não dormiu o suficiente e ainda precisava comer. - As algemas infernais servem para prender e principalmente tirar os poderes ou habilidades específicas de alguém, só que existe uma enorme diferença quando elas prendem apenas uma única pessoa e quando prendem duas de uma vez.

 

      ━ Que é o que houve conosco, certo?

 

      ━ Sim. Uma dessas duas pessoas deve prender alguém primeiro, seja ela mesma ou a outra pessoa, independentemente, quem for preso primeiro é o que vai sofrer a perda dos poderes, só que não é apenas isso.

 

      ━ Elas podem saber exatamente onde estão uma a outra.

 

      ━ Também, só que você sabe o porquê que elas sempre vão saber exatamente onde estão?

 

      ━ Trigon me disse que criam uma ligação e nada mais. - Se encostou na mesa, levemente intrigado.

 

      ━ Não é uma ligação qualquer, as algemas vão permanecer aqui de forma astral, mas as correntes aprisionam especificamente as almas de ambas as pessoas.

 

      ━ Como assim… "Aprisionar"?

 

      ━ De uma forma mais simples, nossas almas estão diretamente ligadas uma na outra, por isso sempre vamos conseguir saber a localização um do outro, as emoções um do outros, ler os pensamentos um do outro e até sentir a dor física um do outro.

 

      ━ Isso… É muito esclarecedor. - Falou percebendo que muitas coisas estavam se encaixando naquele quebra-cabeça, contudo estava meio preocupado, queria saber se era permanente e se era o tempo inteiro, se fosse, com certeza seria um tremendo de um pesadelo, mais do que já estava sendo. - Então eu também não consigo te atacar?

 

      ━ Sim, você consegue. O segundo a ser preso é tipo uma exceção, pode-se dizer que é o mandante, carcereiro, tanto faz o nome. - Fez aspas com as mãos.

 

      ━ … Então eu sou seu… Mandante? - Estava notoriamente confuso.

 

      ━ Se você quer se nomear assim, fique à vontade. - Desviou o olhar, mostrando um completo desinteresse.

 

      ━ Então tudo que eu te mandar fazer você faz?

 

      ━ Sim, só que você tem que ter uma vontade verdadeira, como você quer que eu durma e coma, vou fazer isso. Agora se me mandar fazer qualquer outra coisa apenas por brincadeira ou porque deseja uma escrava particular, não vai acontecer. - Ele assentiu,  sorriu meio maldoso, pois se soubesse o que ela estava pensando, provavelmente saberia como ficar sempre algum passo à frente. - Acabaram suas dúvidas?

 

      ━ Por enquanto sim. - Se desencostou da mesa e foi até a porta da cabine. - Volte a dormir quando terminar de comer. - Ela suspirou, existia uma possibilidade de tudo ficar mais tranquilo daqui pra frente, como também de piorar.

 

   Tinha a tigela de madeira em suas mãos e podia ver que era arroz misturado com alguma coisa que não conhecia e peixe, não parecia ruim, só que ainda exitava; pegou a tigela e realmente não iria comer, contudo as algemas reapareceram num mísero brilho antes de sumirem e quando menos percebeu: estava comendo. Estava gostoso, muito gostoso, seu estômago até fez um barulho estranho em agradecimento por estar sendo alimentado, engoliu a última colherada com um breve pesar, pois não queria que acabasse; deixou a tigela sobre a mesa e se esticou um pouco, sentindo vários estalos no seu corpo ao fazer isso; não iria voltar à dormir, realmente não iria, todavia, as algemas brilharam mais uma vez antes de sumirem e quando reparou, estava deitando na rede e se aconchegando o máximo que conseguiu, tentando dormir. "Que inferno" resmungou, claramente descontente que fazia tudo sem exatamente querer.

   Quando dormiu, o capitão levou alguns outros minutos para voltar à cabine e a olhou com extremo desdém, só que o medo de morrer falou mais alto e a pegou no colo, deitou-a na cama novamente, vendo-a se aconchegar com mais vontade e se cobrindo com o lençol, continuando a dormir profundamente; balançou negativamente a cabeça e saiu da cabine, precisava cuidar da rota e anunciar aos marujos que as condições mudaram.