━ TERRA À VISTA! - Uma voz grave e bem forte soava para todos naquele navio; já era dia novamente, o sol estava iluminando o convés e reluzindo sua luz nas garrafas de rum vazias espalhadas pelos cantos; alguns homens estavam totalmente desacordados pelo excesso de álcool, desmaiados no chão de madeira e pouco ligando se era desconfortável, dormiam como pedras; tinham alguns outros poucos que acordavam com o grito de seu companheiro que aparentemente estava sendo responsável pela navegação já que Viktor, o imediato e Garfield, o capitão, estavam indisponíveis no momento.
Garfield estava em sua cabine, num estado meio dormindo e meio acordado já que as consequências de ter bebido o máximo de bebida alcoólica que conseguiu na noite anterior, estavam lhe atacando como pequenos diabretes inconvenientes; não queria abrir os olhos por causa da claridade dos raios de luz que invadiam os seus aposentos, mas mantê-los fechados era como pedir para ser torturado, pois por algum motivo a sua cabeça não parava de girar, como se estivesse dentro de um redemoinho infinito que apenas lhe fazia rodar cada vez mais, manter os olhos fechados de alguma maneira piorava aquela situação; seu estômago parecia vazio e que tinha se dobrado o suficiente para que ficasse quase tão pequeno quanto uma mera isca de peixe; seu corpo estava pesado, tão pesado que até se chacoalhou, pensando que teria alguém deitado em cima de si, para a sua felicidade, não tinha; ele resmungou alguma coisa, como se tentasse argumentar contra si mesmo entre se levantar e voltar para o seu posto e obrigação como Capitão do navio ou apenas permanecer jogado no colchão como um vagabundo até que todo o seu mau estar fosse embora. Pelo seu suspiro exausto e com um tom de frustração, não foi a opção de vadiar que ganhou.
Apenas o ato de se sentar no colchão já tinha sido algo difícil, parecia que o navio estava tombando para o lado e não tinha onde se segurar, o que lhe deu um leve desespero por perceber que aquela tinha sido a vez da qual mais exagerou em sua bebedeira e agora a ressaca estava lhe atingindo como nunca, se não soubesse que isso tudo é efeito colateral da bebida, diria que Ravena tinha lhe colocado uma maldição enquanto dormia ou lhe envenenado; por pensar nela, olhou um pouco ao redor, não a vendo em lugar nenhum dentro da cabine; não estava na rede, nem na mesa ou arrumando alguma coisa, estava fora de seu alcance, fora de sua supervisão e, tinha certeza que Viktor não iria fazer questão de vigiá-la, provavelmente as algemas não a impedia de se jogar no mar para fugir com todos bêbados e pouco se importando com sua presença, além de ter o bote de emergência do navio, com certeza ela é inteligente o suficiente para subir naquilo e apenas fugir, mesmo que a bússola ainda lhe levasse até ela de novo e de novo, não tinha paciência para aquilo e ela podia ser ardilosa; Garfield respirou fundo, buscando forças para conseguir se levantar e mesmo quando conseguiu, ainda precisou se apoiar na sua mesa para que não despencasse no chão de algum jeito; sua cabeça ainda girava bastante e seu corpo estava tão pesado quanto rochas, ficar na cama parecia uma opção cada vez melhor.
No momento em que saiu da cabine, claro, teve a cegueira momentânea por causa do sol forte, mas quando se recuperou, imediatamente começou a passear os olhos pelo convés, a procurando, mas não encontrou nada mais do que os marujos dormindo ou desmaiados no chão, com copos ou garrafas vazias presos em suas mãos; ele torceu o nariz, com a raiva se tornando crescente, como uma fera que estava começando a despertar e lhe controlar com um único sentimento: raiva.
━ Acordem! - Brandiu ao sair da cabine e se aproximou de um deles o empurrando com o pé para que despertasse logo, funcionou, mas o tal homem estava obviamente assustado e mesmo que tenha tentado se levantar, caiu miseravelmente pela falta de equilíbrio e por seu corpo estar retardado pela ressaca. - Vamos homens! Acordem! - Brandiu de novo, alguns estavam o olhando com medo, como se fosse um lunático ou como se não fosse seu capitão, mas não disseram nada e passaram a se levantar e ir fazer qualquer coisa que os mantivesse longe de Logan. Ele bufou, passando os olhos pelo convés mais uma vez na esperança de vê-la, e ela continuava não estando lá, então onde estava? Isso estava o deixando cada vez mais tenso e irritado, como um cão doente. - Onde ela está?!
━ …. Ela quem, senhor? - Um homem teve a ousadia de se aproximar e perguntar.
━ Ora, como assim, “ela quem”?! O sol derreteu seu cérebro, marujo? - O tal homem recuou, fazendo um sinal de proteção com as mãos e internamente rezando para que os Deuses o protejam de ser atirado à prancha. - A bruxa! Quem mais eu estaria procurando?! Onde está a bruxa?! - Ele estava quase avançando na direção de seu bucaneiro quando a voz totalmente sem emoção e rouca lhe atingiu os ouvidos.
━ A “bruxa” está aqui. - Dava para notar o desgosto de dizer aquilo. - Se tivesse um pingo de bom senso e me procurasse direito ou me chamasse, não precisaria assustar todo mundo e maltratar seus homens.
━ O que está fazendo aí em cima?! - Ele a encarava incrédulo, sem querer admitir que fez o mínimo esforço para de fato encontrá-la. Ravena não só o observava de cima por estar no deque do leme, também o observava com superioridade e principalmente: desgosto.
━ Onde queria que eu estivesse?
━ Onde eu pudesse ver ou onde eu soubesse que está sendo vigiada.
━ Eu não sou uma criança que precisa de supervisão.
━ Realmente, você é um demônio que traz mau agouro, precisa ficar presa no mastro onde todos possam te assistir apodrecer e não poder fazer nada.
━ Uma pena que você não fica bêbado o tempo inteiro, é tão mais decente.
━ Humph, você é uma folgada mesmo!
━ Eu? Fui eu que comecei a gritar sem motivo, chutei um companheiro de equipe, fui rude com o outro e assustei todo mundo? - Logan a encarou semi cerrando os olhos, procurando uma resposta muito boa para rebater os seus argumentos, mas para a sua total infelicidade, ela estava mais do que certa. - É tão idiota e sem cérebro que nem mesmo pensou em usar as algemas para saber onde eu estava, nem precisava ter se levantado da cama.
━ Você fala como se eu soubesse usar essas merdas! - Ela revirou os olhos e começou a descer.
━ Sinceramente, não sei se Trigon foi muito inteligente de te escolher como o fantoche faz-tudo dele, ou se apenas foi pura sorte um imbecil retardado despencar nas mãos dele.
━ Meça suas palavras, bruxa.
━ O que vai fazer, Logan? Vai me deixar presa? - Claro, era muito mais baixa que ele, mas não tinha medo de chegar bem perto e o contestar. Ravena ergueu o próprio braço que estava preso com a algema e a olhou como se fosse um relógio; o objeto brilhou por alguns segundos e logo o brilho passou através de seus olhos, um brilho meio alaranjado, mas ela não fora a única, o seu carcereiro também teve esse brilho pelos seus olhos e então, era como se o mesmo tivesse rapidamente sobrevoado todo o navio até chegar nela. - Pronto, é assim que usa.
━ Humph, pra quem foge de suas origens, você sabe bastante.
━ Eu li nos meus livros, seu imbecil. E pra quem fala que eu sou responsabilidade da Kori e do príncipe, você ama tomar as rédeas dos meus cuidados. - Ela rebateu e o olhou com raiva antes de dar as costas e entrar na cabine, batendo a porta com força.
O esverdeado olhava na direção da porta da sua cabine com desdém, estava à pouco de realmente colocá-la amarrada no mastro do navio, sem comida ou água por três dias, apenas não iria fazer isso porque possuía um pouco de compaixão e não era alguém cruel, mas ainda estava profundamente estressado e incomodado, como se tivesse uma fera dentro do seu ser, pestres a acordar com ódio e pronta para mutilar qualquer um, não foi atoa que o som claro de um rosnado pareceu vir de si, como se fosse um lobo sendo afrontado, tanto que os homens que prestavam atenção até recuaram e olharam seu capitão com extremo terror, se questionavam se a maldição de Trigon iria o transformar em um lobisomem verde ou algo do tipo; ele suspirou, massageando o rosto na intenção de se acalmar, não tinha percebido até respirar fundo, porém, sua cabeça agora latejava com força, conseguia até mesmo sentir as veias de seu cérebro pulsando, estava até se perguntando se o mau humor era da ressaca, daquela sensação estranha de ter outra criatura dentro de sua cabeça ou se era a energia maligna da arroxeada que trazia tudo de ruim e de pior. Ele encarou o deque do leme, onde tinha um bucaneiro velejando, aparentemente prestando atenção na discussão de segundos atrás ao mesmo tempo que velejava.
━ Terra à vista, senhor. - Ele reforçou quando viu o esverdeado subindo até ali e sem dizer nada passou o controle do timão para ele.
━ Certo, obrigado, Cálico. Acorde os outros e organize tudo para que possamos atracar em Alca.
━ Sim senhor, capitão. - Como um vassalo obediente, Cálico desceu para o convés, delegando as tarefas para atracar o navio, acordando alguns que ainda estavam desmaiados pela bebida e logo indo para o deque debaixo, fazer o mesmo com os outros.
Apesar da raiva inevitável pelo homem que lhe sequestrou, a arroxeada se concentrava em canalizar tal emoção para estudar o mapa estendido sobre a mesa; leu as anotações que ele tinha feito e até se surpreendendo por ser algo super organizado e que o mesmo realmente sabia o que estava fazendo. Claro, era totalmente leiga e com certeza precisaria estudar mais alguns mapas para ficar mais especializada no assunto, porém, o pouco que sabia lhe permitia saber onde estavam e por onde estiveram; verificou onde ficava mais ou menos a sua ilha, não tinha a ilusão da muralha de pedras desenhada, se perguntava se fora por isso que ele teve coragem de seguir em frente, se fosse, deveria ter sido mais inteligente em ampliar a ilusão; estavam indo até a ilha Alca, apenas conhecia por nome, só que também queria saber mais, sua curiosidade sempre se sobressai de um jeito ou de outro, por isso fora inevitável começar a procurar qualquer coisa que pudesse lhe dizer um pouco mais sobre aquele lugar, o tipo de pessoas, costumes, qualquer coisa que pudesse lhe ser útil; o problema era que por mais que procurasse livros, pergaminhos, anotações, qualquer coisa, nada era sobre aquela ilha. Suspirou, um pouco frustrada, mas poderia verificar no seu livro sobre arquipélagos, com certeza tinha alguma coisa lá, caso não tivesse, ficaria extremamente mal humorada. O som de uma batida na porta lhe chamou a atenção, por um momento jurou que seria o esverdeado, porém, a cabine era dele, além do mesmo ser um grosso, mal educado e arrogante, ele jamais bateria na porta antes de entrar; franziu as sobrancelhas, pensativa, porém, se aproximou da porta e abriu, independentemente que tenha migrado do seu cantinho da escada para dentro da cabine do capitão, - estranhamente por culpa dele - o lugar pertencia à ele, não podia agir como se fosse seu; revelou uma bela moça de cabelos rosa-avermelhados, a Kori, que como sempre tinha o seu sorriso amigável e radiante estampado no rosto.
━ Bom dia, amiga Ravena! - Ela falava com entusiasmo.
━ … Olá, Kori. - A citada estava como o habitual: voz monótona e sem expressão, mas sua “amiga” já estava começando a ficar acostumada com isso e sem muita cerimônia entrou na cabine, fechando a porta novamente e explorando um pouco o lugar com os olhos, parecia surpreendentemente maior vista do lado de dentro. - Quer alguma coisa?
━ Hm… Sim! Conversar! É bom para amigas passarem um tempo juntas!
━ Não somos amigas.
━ Mas iremos ser! Então quanto antes, melhor! - A menor suspirou, visivelmente em situação de derrota visto que não iria conseguir tirar aquela ideia da cabeça dela e que definitivamente não teria paz enquanto estivesse naquele navio. Kori flutuou um pouco, ficando especificamente em cima da cama, sentada no ar, encarando a arroxeada com expectativa. - Te vi ontem à noite.
━ Sim.
━ Pensei em ir falar com você, mas o amigo Garfield pareceu te aborrecer, então não quis te incomodar.
━ Fez certo.
━ Soube que conheceu o amigo Jeremy! Ele é tão legal! Gosto de conversar com ele, é tão fofo ver o quanto ele é apaixonado pelo Viktor, e é tão recíproco! Sabia que é raro encontrar almas gêmeas assim?
━ Eles são almas gêmeas? - Ela se sentou na cadeira, mas ainda permanecia monótona.
━ São, você e o amigo Garfield também.
━ Não, não somos, Kori.
━ Mas você disse que… - Ela a interrompeu.
━ Eu disse que nossas almas estão acorrentadas por causa das algemas, você que interpretou como almas gêmeas.
━ É quase a mesma coisa.
━ Não, não é. Que nojo, sinto vontade de explodir minha própria cabeça só de imaginar.
━ Que mórbido…
━ Humph, não possuo alma gêmea, Kori. Sou um demônio.
━ Meio-Demônio.
━ Tanto faz. Demônios não possuem almas gêmeas.
━ … Sério?
━ Demônios não possuem almas, Kori.
━ Mas você não é um, então você tem alma, e pode possuir alma gêmea.
━ Garanto que não. - Se mostrava convencida, claro, impossível não se convencer disso quando seu único propósito é ser a chave para que Trigon seja liberto do inferno e transforme todo o mundo num caos de morte e lava.
━ Bom, sei que não vai querer insistir nesse assunto, então vamos falar de outra coisa.
━ Por favor.
━ O que você achou do Jeremy?
━ Não tenho uma opinião, ele estava bem bêbado.
━ Oh, entendo… Mas e o amigo Viktor? Vocês até que conversam bastante.
━ Viktor…? Hm… Não sei explicar. Muitas vezes é atrapalhado, mas gosto de sua maneira de pensar, e bem, ele ama falar sobre esse navio, navios são coisas novas para mim, então gosto de ouvir e conhecer mais sobre.
━ Entendo, bom, eu acho admirável a forma como ele fala das coisas que ama, ele sabe mesmo como valorizar o que tem.
━ Acho que depois de perder um olho, uma perna e uma mão, difícil não aprender a valorizar as coisas. - Kori olhou para ela com os olhos arregalados e segurou o riso com uma das mãos, usando a outra para lhe dar um empurrãozinho amigável.
━ Ravena! Que horror! - A meio-demônio não esboçou nada, mas a sombra de um sorriso dançou em seus lábios. Sua vida inteira fora muito solitária e por isso ficava desconfortável com as pessoas, mas falar com uma ou outra num canto, era até que agradável, não se sentia sozinha e era bom saber opiniões alheias, além de conseguir mais conhecimento com coisas novas. - Não diga essas coisas!
━ O quê? Eu só fui sincera.
━ Eu não vou dizer nada. Mas enfim… Já foi para outros lugares além da sua ilha?
━ Apenas um, mas eu era criança.
━ Que lugar?
━ Já foi destruído, não tem importância. - Tem, tem muita importância, principalmente para ela, contudo, era óbvio que não seria tão vulnerável assim com a rosada e por isso se esforça em dar poucos detalhes em alguns assuntos.
━ Entendo… Então nunca saiu daquela ilhazinha minúscula?
━ Não. Tudo o que sei e conheço vêm dos meus livros.
━ Então não sabe nada sobre a ilha Alca?
━ Não, preciso ler meu livro, eu ia pegar ele, inclusive, mas você apareceu.
━ Bom, se te serve de alguma coisa, também não conheço nada daqui. Apenas conheço Siracusa, que é a casa do Dick e consequentemente, a minha casa; a sua ilhazinha, que por sinal, me desculpa pela cabana…
━ Tanto faz, Kori, já passou. E você conhece o Olimpo também.
━ Ah, sim, o Olimpo…. Não é muito divertido, se quer saber.
━ Nunca esperei que fosse. - Respondeu dando de ombros.
━ Ao menos fique feliz, ou… Não se sinta sozinha, sei tão pouco quanto você sobre essa ilha de agora, então conheceremos tudo juntas!
━ …. - Ela pensou em algo para dizer; a maior parecia tão mais animada e empolgada, principalmente demonstrava querer compartilhar de sua felicidade para amenizar todos os contras daquela jornada. Tentando retribuir um pouco do esforço dela, forçou um sorriso, o que obviamente não deu muito certo, mais parecia que estava com dor de barriga. - … Vai ser legal.
━ … É a primeira vez que me diz algo legal! - Ela sorriu mais radiante, causando um pouco de tontura na meio-demônio por causa da emoção forte.
━ … O que posso fazer? Você não vai me deixar em paz e não serei rude.
━ Sabe, sorrir e parar de ser uma goblin ranzinza não faz mal à ninguém.
━ Não sou uma goblin.
━ Eu sei, mas é um modo de dizer. - A rosada continuou puxando assunto, especificamente querendo saber mais sobre a meio-demônio, por isso questionava seus gostos, seus desgostos, claro, não conseguiu muitas informações, apenas que ela gostava de tomar chá e tinha bastante noção de medicina, de qualquer forma, era um começo.
Em poucos minutos, o navio fora atracado ao lado do pier pertencente à tal ilha Alca; ambas as garotas dentro da cabine ficaram curiosas para sair, porém cada uma com seu jeito; a avermelhada saiu quase que imediatamente daquele aposento, enquanto a Bruxa ainda ficou lá dentro, reunindo coragem para conhecer um lugar completamente novo e desconhecido com muitíssimas pessoas também desconhecidas e que poderiam ter um potencial enorme para lhe fazer mal, seja fisicamente ou psicologicamente, como os homens daquele quem a sequestrou; pegou a sua capa de coloração arroxeada e a colocou, se encarando no espelho por alguns miseráveis segundos antes de colocar o capuz e cobrir quase totalmente o seu rosto, apenas sendo possível ver a sua boca. Ao se retirar de dentro da cabine, se deparou com vários piratas tirando muitos barris do deque debaixo, provavelmente barris vazios de água ou comida para que fossem reabastecidos, contudo, além dessa movimentação inesperada, viu outros navios no píer, o que lhe deixou curiosa e lhe fez esgueirar como uma criança tímida para perto da semideusa que estava tão radiante como sempre ao lado de seu noivo; Dick encarou a que se juntou a eles, não gostava mas também não desgostava dela, só que ainda era bem cauteloso.
Os outros navios não pareciam ser iguais aquele em que estava, alguns tinham pouquíssimas pessoas, no máximo apenas três ou quatro, e nesses navios específicos vendiam ou distribuíam muitas coisas variadas, alguns apenas comida e ervas, outros materiais e até mesmo armas, o que lhe parecia muito estranho e ao mesmo tempo novo e criativo; teve vontade de perguntar à semideusa ao seu lado, mas quando se deu por conta, ela estava desembarcando do navio e indo para a ilha, aparentemente explorar; se sentiu intimidada para sair, olhou um pouco ao seu redor e a grande parte dos homens estavam ocupados e pedir ajuda, auxílio, respostas ou qualquer coisa ao capitão do navio estava fora de questão. Pelo menos não estava sendo maltratada novamente, apenas totalmente ignorada, como um fantasma.
━ Pensei que a primeira coisa que tentaria fazer seria fugir. - A voz familiar de Viktor soou atrás de sua figura pequena, olhou em sua direção, estava com dois barris, um em cada braço.
━ … Fugir é inútil. - Respondeu talvez um pouco seca, contudo, seu tom era carregado de monotonicidade como sempre.
━ Sim, você tem razão… Mas você pode sair do navio e ir explorar a ilha, ainda.
━ … Tenho que ser vigiada, vocês estão ocupados e sinceramente, ouvir os gritos de um homem insuportavelmente perturbado não está na minha lista de afazeres. Melhor eu ficar aqui e apenas ver de longe. - Ela deu de ombros e ajeitou o seu capuz, começando a dar meia volta para retornar à cabine e possivelmente ficar o dia inteiro enfurnada lendo livros e se contentando com o pouco que tinha.
━ Por que não pede pra ele?
━ Pedir? Sério isso, Viktor? Ele não é meu pai, dono ou sei lá o quê, a última coisa que eu faria na vida seria pedir algo para aquele imbecil sem cérebro.
━ …. Eu disse algo errado?
━ Viktor, ele me trata como se eu fosse a assassina dos pais dele, ou sei lá o quê, pedir qualquer coisa não vai funcionar.
━ Não custa tentar. A Kori me convenceu a te enxergar de outra maneira e aqui estamos. Com o tempo ele vai parar com isso, o convença a não ter medo que tudo muda, o medo cega os olhos de um homem. - Ela revirou os olhos, ainda que não desse para ver por causa do capuz e virou uma última vez para analisar a ilha e as pessoas. Contudo, algo lhe chamou a atenção; as pessoas possuíam bicos no lugar de suas bocas, seus pés eram claramente não humanos e tinham muitas penas pelo corpo, se as penas não fossem tão grudadas e lisas, poderia jurar que tinham asas no lugar de braços, como harpias.
━ Essa é uma ilha de harpias?
━ Hm? - O maior analisou um pouco as pessoas e riu um pouco da pergunta dela, negando com a cabeça. - Não. A ilha Alca também é conhecida como a ilha pinguim, acho que você deve imaginar o porquê.
━ Mas pinguins não ficam em lugares muito frios?
━ Quando são apenas e unicamente pinguins, sim. As pessoas daqui são híbridas de pinguins porque antigamente seus povos mais primitivos os cultuavam como Deuses. Um dia, foi dito que uma estrela polar estava voando por cima de Alca enquanto os povos festejavam alguma coisa em homenagem às suas divindades e ela resolveu os presentear com essa forma.
━ Curioso. - Comentou analisando a história que tinha acabado de escutar, era interessante.
━ Bom, a ilha é cheia de lugares pra ir, peça ao capitão para que saia por aí se quiser explorar. - Viktor lhe deu um sorriso e voltou ao seu trabalho de carregar o navio.
A bruxa olhou rapidamente para Logan, estava colocando o último barril vazio do deque debaixo e delegando algumas outras tarefas para os seus homens antes de ir checar algumas outras coisas que precisaria fazer em seu navio; ela o olhou por bastante tempo, tendo uma luta interna entre perguntar para ele por sua permissão para explorar a ilha, contudo, não era muito difícil imaginar a resposta. No final apenas suspirou e se manteve debruçada no parapeito do convés, assistindo as diferentes pessoas que passavam por aí e o quanto era curioso esses outros navios que estavam atracados.
Passado alguns minutos, como o sol começava a esquentar cada vez mais por estar chegando ao seu auge, não era difícil notar que perto do seu cabelo, estava suando e alguns fios se grudaram na sua pele por causa disso, por mais que o capuz protegesse o seu rosto, fazia o calor ser mais intenso, além daquela sensação pegajosa voltar a lhe atormentar como na noite anterior, definitivamente queria um banho. Pensou em pedir de novo para sair do navio, quem sabe não encontrasse algum lugar com água doce para se banhar, contudo, novamente a certeza de que ele negaria sua saída lhe assolou e com isso um novo suspiro escapou de sua boca; retirou o capuz para que fosse um pouco ventilada pela mísera brisa que vinha do mar e se desencostou do parapeito para que fosse para dentro da despensa onde tinha sorrateiramente colocado seus livros dentro, estava pensando em pegar seu livro sobre arquipélagos e um sobre ervas - com certeza se tivesse algum que lhe ensinasse sobre como conviver com pessoas, o leria também. O problema fora que enquanto estava saindo da despensa, pronta para ir agora para a cabine, viu Garfield se aproximando com uma toalha no antebraço, ao mesmo tempo que estava com um livro na mão, um livro que reconhecia muito facilmente com a ajuda do título e o fato do mesmo estar totalmente acorrentado e trancado com um cadeado. Estranhou aquilo, principalmente estranhou ele estar com um livro seu. Estranhou mais ainda o fato dele ter encontrado o livro.
━ O que está fazendo? - Perguntou o Capitão do navio, arqueando uma sobrancelha. Não parecia irritado, milagrosamente, mas ainda não parecia ser amigável.
━ … Não é da sua conta. - Respondeu seca e sem expressão.
━ Ah, é sim. Agora me fala o que está fazendo.
━ Como eu disse: não é da sua conta. Agora com licença. - A menor desviou do seu corpo alto e se aprontou em ir até a cabine. Entretanto, ele não permitiu, a segurando pelo pulso e puxando de volta para trás, seus livros quase caíram e precisou dar alguns pulinhos para que não tropeçasse e caísse também. - Ai!
━ Você não me dá as costas e sai andando, bruxa! - Repreendeu como se falasse com uma criança mal-educada, mesmo que também pudesse parecer um patrão falando com a sua empregada.
━ Eu faço o que eu quiser!
━ Não, você não faz, não no meu navio! - Ela revirou os olhos e tentou se soltar num movimento brusco. Estava cansada daquela frase.
━ Bom, então o que você faz com o meu livro? Pensei que tinha medo de trazer mau agouro ou sei lá em quais superstições que você mesmo criou acredita que eles possam fazer.
━ … Pensei que pudesse ajudar. - Ela arqueou uma sobrancelha.
━ Ajudar com o quê, Logan?
━ Com as algemas! Quero saber mais o que elas fazem e você disse que viu tudo nos livros, então… Talvez ler, sei lá.
━ Me surpreenda que você saiba ler.
━ Você… Não abusa da minha paciência!
━ Tanto faz. E está me trazendo o livro por quê?
━ Na verdade eu estava te trazendo a toalha. - O mais alto ergueu o antebraço e estendeu a toalha para ela, que pegou, achando aquilo estranho e a examinou com cuidado. - … E também te pedir a chave do cadeado. - Ele balançou o objeto, fazendo o dito cadeado e as correntes balançarem um pouco.
━ … Esse cadeado não tem chave. - Respondeu colocando a toalha sobre um dos ombros. - E pra quê está me dando a toalha?
━ Disse que queria tomar banho e já que supostamente não fica doente… Então é uma oportunidade. - A bruxa arqueou ambas as sobrancelhas, parecendo surpresa com suas palavras e até encarou a toalha novamente por alguns segundos, procurando algum outro truque. - Como assim o cadeado não tem uma chave? É um cadeado.
━ Nem todo cadeado tem chave. - Pegou o livro da mão dele, mexendo um pouco no cadeado e mostrando que apesar da fechadura, não cabia nenhuma espécime de chave ali dentro. - Esse cadeado apenas se abre com magia.
━ Ah… Então abre ele pra mim. - Ela o olhou com desprezo e ergueu a mão com a algema. - Esquece.
━ É. Esquece.
━ Não tem outra forma de abrir?
━ … - Ela suspirou e leu o verso do livro, estava em escrita infernal. - Mesmo que tenha, você não vai conseguir ler.
━ Por quê?
━ Está em língua infernal.
━ Não está não. - Ela franziu ambas as sobrancelhas, como se ele fosse algum animal bizarro e totalmente desconhecido (não que fosse muito diferente) e mostrou o verso do objeto para ele.
━ Leia aqui, claro que está.
━ … Não está, Ravena. - Ele pegou o livro mais uma vez e começou a ler. - “O cadeado do sacrifício, sangue inocente deve ser derramado na fechadura enquanto se recita o encantamento para que o mesmo seja aberto.” - Ambos tiveram expressões surpresas. O capitão pelo fato de que teria que encontrar alguém inocente para abrir aquele cadeado e recitar realmente algum encantamento que não conhecia. Enquanto a mestiça obviamente surpresa que ele tinha conseguido ler e entender, pegando o livro imediatamente e o lendo mais uma vez, se certificando de que estava com a escritura infernal.
━ Como… Como conseguiu ler?!
━ Mas… Eu acabei de falar! Está em grego, oras! - Ela pensou um pouco, o analisando e então arregalou os olhos, conseguindo compreender.
━ Então é isso…
━ Eu em, mulher, isso o quê?!
━ Trigon. Sua maldição não é apenas composta por uma doença incurável e essa coloração estranha, tem alguns míseros benefícios também.
━ … Benefícios?! Benefícios?! Francamente… Eu mereço uma bruxa maluca falando comigo… - Ele esfregava a testa com a palma de uma das mãos, resmungando incrédulo.
━ Bom, considero a tradução de língua infernal um benefício, apenas demônios conseguem compreender…
━ Mas está em grego!
━ Logan, está em língua infernal, mas de alguma forma você consegue ler as palavras traduzidas no idioma que você compreende.
━ Nossa, que belo benefício em.
━ Podem haver outros, apenas desconheço.
━ Não tinha dito que conseguia tirar essa maldição e sabia o que ele tinha feito?
━ Sim. Mas não sei de tudo o que ele te fez. Apenas sei que a doença que te assola se chama Sakutia e que ela vai te corroendo de pouco em pouco.
━ Hm… Enfim. Eu vou te levar até o rio e pensar em como te fazer abrir essa tranca.
━ E-Eu?! - Ela ficou um pouco preocupada, claro, não era uma criança para que seu sangue fosse derramado, entretanto, ele estar tão disposto a lhe levar até um lugar para tomar banho tão repentinamente era muito estranho.
━ É. Você disse que as algemas falham por você ser filha de quem as criou, então em algum momento você pode abrir essa coisa. Não vou machucar ninguém, não sou violento.
━ …. Realmente… - Murmurou irônica, mas não disse mais nada e rapidamente deixou seus livros dentro da cabine do capitão, aguardando que ele lhe guiasse até o rio. De certa forma, estava aliviada que sairia do navio e poderia conhecer um pouco mais aquela ilha, mesmo que ainda estivesse desconfiada… além de que provavelmente ele jamais lhe permitiria ficar sozinha no navio, visto que apenas os dois estavam ali.
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