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História Motivos e consequências do suicídio de Ryusei Matsumoto - Capítulo único


Escrita por: netojpv

Capítulo 1 - Capítulo único


Com as mãos trêmulas, Hina abriu a carta que estava ao lado do corpo do marido.

Lá fora, o uivo do vento abrindo caminho entre os bambuzais era abafado pela agitação vinda da praça. O cheiro de madeira e de corpos queimados entrou no aposento, trazido pela mesma brisa que carregou o envelope ensanguentado para longe do corpo do homem.

Ajoelhada sobre o tapete manchado, Hina enxugou as lágrimas que borravam os delicados ideogramas desenhados sobre o washi.

Hauriu forças e pôs-se a ler a última mensagem de seu esposo.

 

"Reconheço que meu suicídio possa vir como surpresa para alguns, ou como sinal de fraqueza para outros. Quanto à segunda acusação, nada posso dizer para desmenti-la, portanto espero nesse relato desfazer apenas o primeiro mal entendido: minha morte não apenas era anunciada, como chega com um atraso de quatro anos. Atraso que custou mais de uma vida inocente, e que ainda mais sangue cobrará em meu nome.

Chamo-me Ryusei Matsumoto e sou filho de camponeses. Nasci e arei meu primeiro metro de terra na comunidade rural de Kamakuga — há oitocentos quilômetros de Osaka —, quando a região ainda estava sob regência do Xogum Haruto Ito.

Aos treze anos, me alistei para defender o clã Ito da revolução iniciada por Kaito Noguchi em Osaka, e que começava a se alastrar pelo interior. Assim como a guerra, minha participação no conflito foi breve. Tive a oportunidade de contribuir no perigoso trabalho de manter as linhas de defesa abastecidas, e nelas fui iniciado no caminho do guerreiro.

Fui capturado após derrocada do clã Ito. Passei os dois anos seguintes preso, enquanto Kaito Noguchi esmagava as milícias contrarrevolucionárias e consolidava seu poder.

Com o estabelecimento do xogunato Noguchi, passei a servir ao seu clã e a integrar seus rankings. Minha habilidade despertou o interesse dos majores, e meu respeito à hierarquia garantiu que eu avançasse nas patentes militares. Após ajudar a sufocar duas rebeliões campesinas, fui promovido a capitão. Depois de seis anos, onze vitórias em combate e um juramento de dar a minha vida pelo imperador, fui alçado a tenente coronel e passei a ser amigo pessoal do honrado Xogum Kaito Noguchi.

Foi nessa época que conheci Yamato Shimizu.

O líder da tradicional casa Shimizu era aliado do clã Noguchi há pelo menos meio século. No convívio social, Yamato era um senhor circunspecto e comedido. No campo de batalha, foi o maior estrategista que já conheci. Teve dois filhos: Hina Shimizu — a mais velha, reservada como o pai — e o jovem Hayato Shimizu, que herdou o gosto pela guerra.

A simpatia e o bom senso de Yamato talvez tenham sido os grandes responsáveis pela unificação dos feudos sob a bandeira de Noguchi. De origem humilde, Yamato podia ouvir calado por horas as demandas de fazendeiros e de lordes, se preciso fosse. Quando falava, sua voz baixa e pausada fazia até os pássaros interromperem a orquestra para escutá-lo. Ele carregava uma sabedoria campesina afiada pelo senso prático de um general e pelo juízo do sacerdote que vive a escritura que prega. Era carismático e literato. Yamato defendia que a guerra já causara destruição suficiente, e que era hora de direcionar os recursos e esforços para a reconstrução da província e o fortalecimento da agricultura e da economia internas. Dizia que sua única preocupação era que seus netos tivessem "uma terra para cultivar e um peixe para comer". Yamato era rocha.

Kaito era trovão. Considerava que a paz entre os clãs vizinhos, conquistada a duras penas, só se manteria com a expansão do poder e da influência de sua casa. A estabilidade havia lhe custado homens e dinheiro. Em breve não teria o suficiente de nenhum dos dois recursos: a unificação deveria vir logo, ou não viria. Conhecia a guerra como poucos, e — respeitada a previsibilidade dos códigos de honra e da tradição — era capaz de prever com estupenda precisão os movimentos dos inimigos. Quem não conhece o venerável senhor Kaito pode achar que o pinto com as tintas da paranoia ou da megalomania, mas não é disso que se trata: havia certa razão em suas preocupações. O tempo provaria que seus inimigos aliavam-se a povos estrangeiros, comprando deles armas e métodos de guerra. Como lobos em noite de inverno, aguardavam o primeiro sinal de fraqueza do cordeiro para atacar.

Passei meia década dividindo a mesa do conselho com Yamato Shimizu e Kaito Noguchi, tentando mediar a tensão que se criava sempre que havia um desentendimento entre os dois. Kaito via em mim uma alma ambiciosa em um corpo disciplinado, eu era o tipo de aliado que ele precisava. Já Shimizu admirava minha serenidade e lealdade à pátria. Compartilhávamos uma origem simples, ele via a mim como um filho, um genro.

Talvez por isso que ele tenha me oferecido Hina em casamento quando ela completou 18 anos.

Hina. Passamos de desconhecidos a marido e mulher naquela primavera. No primeiro ano fomos amantes intensos e incansáveis, nos anos que se seguiram tornamo-nos cúmplices e melhores amigos. Hayato vinha sempre visitar Hina e passou a frequentar a minha casa, tornou-se um irmão para mim. Nós três discutíamos literatura, assistíamos a peças nos teatros de sombras e, em ocasiões especiais, nossas famílias se reuniam para a cerimônia do chá e para ouvir Hina tocar a biwa. Nessas reuniões, eu via no sorriso de Hina o espelho da alma de Deus. Fazer Hina feliz passou a ser o motivo da minha existência.

Mas logo estourou a guerra civil.

Ao longo de quase duas décadas de guerra incessante desde a revolução de Osaka, ninguém conseguiu dissuadir Noguchi a propor um armistício e a voltar-se para as questões internas — poucos se perguntaram se isso de fato seria possível. Os Sato, Takahashi, Nakamura e outros clãs inimigos ao norte passaram a se aliar aos americanos e portugueses e, se não avançavam sobre Noguchi, também não mostravam sinais de cansaço. Enquanto a guerra estagnava, a fome crescia. Camponeses eram alistados e a produção agrícola formada por inválidos e crianças logo mostrou-se insuficiente para alimentar todo um povo. Miseráveis não pagam tributos, e a insatisfação plantou suas sementes nos líderes dos clãs aliados.

Apesar de eu estar ciente da tensão política que se formava, foi com surpresa que fui acordado na madrugada de 11 de Outubro de 1454, com a notícia de que Yamato Shimizu liderava uma insurgência contra o clã Noguchi.

Talvez Yamato não quis me envolver por saber que, ainda vivendo a minha lua de mel, eu não teria interesse em participar de maquinações políticas. Talvez ele admirava tanto a minha lealdade que sabia que eu não seria capaz de trair Noguchi. O fato é que qualquer que fosse a sua hipótese, ele estava certo.

Mas Noguchi havia antecipado a possibilidade de ter que lutar contra seus pares. Tinha tropas fieis preparadas quando o motim começou. Não fui chamado para compor essas tropas, naturalmente Noguchi não sabia onde residia minha lealdade. Não o culpo, mas não demorei a recuperar sua confiança. Passei os dias que se seguiram organizando meus soldados para a defesa de Osaka. As semanas seguintes foram de planejamento do contra-ataque, os próximos meses foram de cerco ao forte do clã Shimizu.

Ao longo de toda a campanha, meus samurais se destacaram por sua honra, coragem e estratégia militar. Na batalha derradeira, fiquei responsável por invadir o flanco leste, a principal linha de defesa de Shimizu. Com o suporte dos arqueiros na retaguarda, conseguimos escalar a muralha e acuamos os insurgentes até o arsenal.

Preparávamos os explosivos que seriam lançados contra o último foco de resistência quando recebemos a notícia da morte de Yamato Shimizu. Meus soldados celebraram, cantando troças e amaldiçoando seu nome. A provocação surtiu um efeito inesperado: os adversários que estavam reclusos no arsenal saíram para um ataque suicida. Com espadas e lanças nas mãos, investiram contra nós — éramos um grupo oito vezes maior. Liderando os últimos homens de Yamato Shimizu, estava meu cunhado: Hayato.

Gritei. Gritei para meus homens preservarem Hayato. Minha esposa já havia perdido o pai, perder o amado irmão seria uma dor que eu não sabia se ela poderia suportar. Hayato matou dois de meus homens e feriu gravemente outros três até ser imobilizado.

Capturado, eu sabia que seu destino seria a execução — Noguchi não deixaria um herdeiro de Shimizu viver, especialmente um tão talentoso para a guerra. Eu tive que pensar rápido. Fiz meus homens jurarem que jamais contariam o que tinham visto ali. Desamarrei Hayato e deixei-o partir. Devolvemos os corpos para o arsenal e o incendiamos. Para todos os efeitos, Hayato era um cadáver carbonizado. Seu real destino só seria conhecido por sua irmã.

Isso foi há quatro anos.

Eu havia comandado a frente que retirou a vida de Yamato Shimizu — meu sogro, pai de minha esposa. No mesmo dia, traí a confiança de meu mestre e senhor ao deixar meu cunhado escapar. Naquele dia, eu deveria pedido uma audiência com Kaito Noguchi e, em sua frente, deveria ter penetrado minhas vísceras com a lâmina da minha espada. Não o fiz. Posterguei minha responsabilidade e escondi os frutos podres das minhas ações por quatro anos.

Até que, hoje, recebi a notícia.

Após quatro anos dado como morto, o nome de Hayato voltou a ser ouvido em Osaka. Na madrugada de ontem, um assassino escalou as muralhas da fortaleza e cortou a garganta de Kaito Noguchi em seu sono. Deixou apenas uma nota: “Que sua morte traga justiça para o nome de minha família e paz ao Japão — Hayato Shimizu”.

Horas depois, os clãs do norte começaram sua campanha militar em nosso território. Informantes garantem que Hayato lidera a vanguarda do ataque. Amanhã eu partiria para encontrá-lo em combate, mas não posso.

Mesmo que eu esteja amargurado pela morte de Kaito, eu não conseguiria levantar a minha espada contra Hayato. Não o matei antes, não conseguiria matá-lo agora. Meu juramento ao clã exige que eu o mate, meu juramento a Hina me impede.

Fazê-lo, me jogaria nos braços da loucura. Não fazê-lo prolongaria uma guerra sem fim.

Resta-me, apenas, corrigir os erros do passado, pois, para mim, não há futuro.

Maldito é o nome Ryusei Matsumoto."

 

Hina dobrou a carta.

Os gritos lá fora tornaram-se ecos distantes.

Pegou a espada cerimonial que seu esposo havia utilizado para cortar seu próprio estômago. Olhou-a, sem curiosidade, sem medo, sem emoção. Limpou no tecido de seda do vestido o sangue que escorria de sua lâmina.

Virou o metal contra seu abdome.

Lembrou-se de seu irmão, de seu pai, de seu casamento… de uma vida inteira marcada pela guerra.

Golpeou seu ventre nove vezes antes de cair ao lado do marido.

Hayato morreria em batalha poucos dias depois.

Hina não deixou carta nem descendentes.



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