CAPÍTULO 6
A carta que chegou pelo correio era um convite para comparecer a um jantar na mansão do governador. Aparentemente, eu havia sido selecionada para o Círculo de Ouro do Governador, que condecorava os mais destacados acadêmicos do ensino médio do estado.
— Uau! — Neal exclamou durante o jantar, passando o convite para Mamãe. — Como você conseguiu isso?
— É exatamente a minha dúvida.
— Neal! — Mamãe o censurou. — Caso você não tenha notado, minha filha é brilhante.
— Fala sério, mãe. Eu não tenho sequer uma nota quatro.
— Nem tudo é baseado no seu histórico escolar — ela disse. — Você precisa prestar serviços à comunidade e demonstrar habilidades de liderança. Sua participação nos esportes é um bônus. Tudo isso sem mencionar que a Bonnie faz parte do comitê de nomeação.
— Mãe! Meu Deus. Você envolveu a sra. Lucas nisso?
— É claro que não. — Mamãe ficou ofendida. — Foi ideia dela.
Aposto que foi, pensei, trincando os dentes.
Mamãe depositou o convite de volta no impecável envelope, deslizando o dedo sobre o selo em alto relevo do governador.
— Vai precisar de algo novo para vestir — ela falou. — Um vestido. Nada de calças.
Mamãe esticou a carta na minha direção. Eu a peguei e joguei sobre o aparador atrás de mim.
— Ainda não decidi se vou. De qualquer forma, só vai ser em março.
— É claro que você vai.
Hannah se agitou e Mamãe enfiou uma colherada de pasta de peru na boca dela.
— Tenho uma ideia melhor. — Arrastei a cadeira para trás e me levantei. — Você vai. O governador vai gostar mais de você, tenho certeza.
— Piper… — A mágoa na voz de Mamãe me paralisou.
Sem me virar, eu disse:
— Mãe, me deixe tomar minhas próprias decisões, ok? Acho que tenho idade suficiente pra isso. — Virei para encarar os olhos dela. — Não acha?
Sem emoção, ela replicou:
— Do jeito que você fala, parece que eu sou uma mãe horrível, intrometida.
Neal bufou. Apelei para ele, mas ele ergueu as mãos no ar, dizendo:
— Ei, eu estou fora dessa.
Mamãe levou outra colherada de peru para a boca da Hannah.
— Confio em você para tomar suas próprias decisões, querida. Você vai fazer a coisa certa. Sempre me deixa orgulhosa.
Lágrimas inundaram meus olhos. Desabando na cadeira, gritei por dentro: Quando? Quando, mãe? Quando foi que a deixei orgulhosa? Nunca. Se me acabo de estudar para tirar A em tudo, então não estou assistindo aulas boas o bastante. Se quebro meu próprio recorde na natação, então deveria ter escolhido um esporte em que meu melhor seria suficiente para vencer. Eu deveria arrumar um trabalho melhor, um carro melhor, uma compreensão melhor da realidade.
Mamãe ficou chocada quando contei que fui eleita presidente do Conselho Estudantil, como se eu jamais fosse capaz de atingir algo tão impressionante por conta própria. A única escolha na minha vida que ela aprovava era o Lerry. Ela adorava o Lerry.
Droga. Eu tinha que ir a esse jantar estúpido. Mas o inferno congelaria antes que eu usasse um vestido.
Fiquei postada em frente ao meu armário, esperando por Alex e preocupada com o horário. Tinha encurtado minhas voltas na piscina para dar tempo de passar na secretaria e pegar um formulário para ela. Já estava ficando tarde. Eu não ousava me demorar além do sinal por medo da Arbuthnot. Da ira implacável da Arbuthnot. Naquela semana, ela havia massacrado verbalmente uma garota e a deixado às lágrimas por meros dois minutos de atraso. Ela discursou sem parar sobre o que é ser responsável, mostrar respeito por ela e pelos colegas, por todos que faziam o esforço de comparecer à aula pontualmente. Não é preciso dizer que a garota desistiu da disciplina. Muitas pessoas desistiram e eu também teria feito isso, se não precisasse de mais um crédito em Literatura para me formar.
O sinal soou. Nada de Alex.
Depois do almoço, subi as escadas para a aula de artes. Ela estava sentada à mesa, perto da janela, conversando com a Brandi. Alguma compulsão me fez ir em frente e interromper o pequeno tête-à-tête das duas.
— Alex?
Ela piscou para mim.
— Sim?
— Trouxe um formulário pra você. — Procurei por ele na minha pilha de cadernos.
Ignorando minha presença, Brandi continuou:
— Então, se você quiser vir hoje à noite, posso pegar você depois do trabalho.
— Aqui. — Empurrei a ficha para Alex.
— Certo, obrigada. — Ela sorriu e deixou a folha de lado, em cima dos livros. Em seguida, respondeu para Brandi: — Eu ligo pra você.
Mackel voou pela porta.
— Então, pessoal. — Ele gorjeou. — Já estão com seus materiais?
Fui cambaleando à minha mesa. Winslow já estava lá, rabiscando em uma prancheta.
— Yo — ele falou.
— Yo pra você!
Respirei fundo e tentei esvaziar a mente. O que havia de errado comigo? Um tipo de raiva borbulhante andara me assolando ao longo de toda a manhã, antes mesmo de chegar à escola. Começou com Mamãe me encurralando na cozinha para me lembrar de que Faith viria passar o fim de semana, e será que eu me importaria de não ficar tão ausente? Sim, eu me importaria. Esse era o plano. No final da aula da manhã, a Arbuthnot acrescentou Grendel à nossa lista de leituras obrigatórias, como se eu tivesse tempo livre. Na aula de cálculo, eu ainda não tinha sequer conseguido decifrar por que precisávamos aprender sobre movimento retilíneo uniforme e, se o Mackel nos desse lição de casa, eu atearia fogo nos cabelos dele.
Ele deve ter sentido o calor do meu maçarico.
— Vamos fazer um exercício em sala hoje. — Ele falou. — Vocês devem terminá-lo ao fim da aula. Quero que criem um objeto completamente diferente a partir de outro que seja familiar para vocês. Ressintonizem suas mentes. Ampliem sua visão.
Eu não fazia a menor ideia do que ele estava falando. Objeto familiar. Procurei pelo recinto. Tudo ali era estranho, incômodo. Ela, cochichando com a Brandi. Pare de olhar para ela.
Obriguei meus olhos a olhar para a mesa, para a prancheta. Minha mão esquerda estava espalmada sobre o papel. Certo. Algo familiar. Tracei uma linha em torno dos dedos. Estudei o contorno.
Um peru foi tudo o que vi. Winslow esticou a mão e terminou de traçar a barriga debaixo do meu polegar. Nós dois rimos. Precisamos enfiar a cara na mesa para sufocar a risada.
Winslow realmente entregou o peru. Eu risquei uma folha por cima da chave do meu jipe e coloquei a legenda: “Isto não é uma chave. Amplie sua visão”.
A caminho do meu armário, depois da aula, meu celular tocou. Era o Larry me lembrando sobre a patinação no gelo amanhã, como se eu tivesse esquecido.
Como, de fato, esqueci, ele disse que me buscaria às dez e acrescentou:
— Boa sorte com a competição. Queria que você me deixasse ir torcer pra você.
— Nem agora. Nem nunca. — Já tínhamos passado por isso. Ele sabia como eu detestava as pessoas na arquibancada, como ficava apavorada de saber que alguém estava ali me observando, esperando por um bom desempenho. Natação não tinha a ver com competir. Tinha a ver com… sei lá. A equipe. Eu. As garotas.
Enquanto colocava a chave na porta do meu jipe, notei algo preso nas varetas do limpador de para-brisa. Era duro, quadrado e embrulhado em papel vermelho. Jogando minhas coisas no banco traseiro, subi no banco e fechei a porta. Arrancando a fita adesiva, afastei o papel e retirei o objeto de dentro.
Era um CD das Dixie Chicks. Uma onda de calor transbordou de dentro de mim.
O cheiro me acertou antes que eu chegasse ao porão.
— Faith, eu não tinha pedido pra você não queimar incenso aqui?
Uma vareta estava ardendo em cima da cômoda dela. Do altar, quero dizer. Estava atulhado de criaturas aladas medonhas, símbolos religiosos esquisitos e crucifixos. O fedor do incenso impregnava tudo.
Faith mergulhou o incenso em um copo de água, franzindo o cenho para mim através do espelho. Ela tinha tomado cuidado extra com as camadas de maquiagem branca. Ah, isso não me irritava mais do que as mãos que já estavam em sua boca. Ela roía as unhas até que sangrassem. Ao que parecia, o movimento gótico preconizava a automutilação.
— Aonde você vai? — Ela cuspiu uma cutícula e me seguiu até o limite da divisória entre nossos espaços.
— Uma competição da equipe de natação — murmurei.
— Posso ir junto?
Abrindo o zíper da minha mochila, respondi:
— Você não ia querer. — Substituí meu maiô molhado por um seco e verifiquei se estava com o estojo das lentes e os óculos de natação. — Já se perguntou por que somos chamadas de Estrelas-do-mar de Southglenn? Porque as estrelas-do-mar não nadam. — Olhei de soslaio para Faith.
Ela não sorriu. Nunca sorria. Ela zumbiu:
— É melhor do que ficar aqui com a June e o Ward Cleaver.1
Eu ri. Ah, meu Deus. Será que Faith tinha senso de humor?
— Achei que você gostasse de torturas e sacrifícios.
Ela deu meia-volta e saiu. Ops. Não foi engraçado, de verdade. Espiei por cima da divisória para avisar que havia sido uma piada, mas ela já tinha enfiado os fones de ouvido e começado a mexer no CD player. As porcarias que ela escutava. The Flesh Eaters. Tapping the Vein.
Escavei em busca do meu CD player debaixo da cama. Fazia um tempo que eu não o usava. Estava empoeirado. Verifiquei as pilhas. Do outro lado da divisória, escutei o riscar de um fósforo.
Maldita.
Meu melhor tempo foi nos cinquenta metros nado livre e ainda cheguei por último.
Bem. Não é como se eu fosse piorar a equipe… éramos todas ruins. Nosso objetivo, segundo o técnico Chiang, era conseguir terminar uma única vez que não fosse entrando pelo cano.
Era um sonho inalcançável.
Infelizmente, a disputa de nado medley estava marcada para logo depois do meu treino, e eu estava tão cansada que mal tinha conseguido começar a volta quando a disputa já havia terminado. Conforme arrastei meu cadáver para fora d’água, ofegante e tonta, meus olhos desviaram para a plateia.
Alex estava lá, de pé ao lado das arquibancadas com um grupo de garotas. Nenhuma que eu conhecesse. Ela usava calças de aviador cáqui e uma camiseta com um sinal de visto. A camiseta dizia “SIMPLESMENTE FAÇA” e abaixo da legenda abriam-se parênteses: “COM GAROTAS”. Ela me viu e levantou o queixo em um sinal de reconhecimento.
Se os músculos do meu rosto estivessem funcionando, eu teria sorrido. O que ela estava fazendo ali?, me perguntei. Bem, dã. Ela veio ver alguém nadar. Quem? Brandi não estava no time. Alguma outra garota?
Arranquei minha touca e chacoalhei os cabelos. Encharcada e insegura, era assim que me sentia. O técnico me passou uma toalha.
— Bom trabalho! — Ele mentiu.
— Não marcaram meu tempo, não é?
Ele sorriu, tímido.
— Temo que sim. Obrigado por comparecer, Piper É bom ter alguém com quem contar.
— Para quebrar o recorde do pior tempo individual. — Murmurei, cobrindo minha cabeça com a toalha. Os tênis dele chapinharam no piso molhado enquanto ele se afastava para falar abobrinha com o outro técnico.
— Eu já estava me preparando pra chamar a guarda costeira.
Arranquei a toalha do meu rosto.
Alex sorriu.
— Cala a boca! — Falei e a chicoteei com a toalha.
Ela agarrou a ponta e segurou.
— A gente vai sair pra dançar na Rainbow Alley, se você quiser vir também.
— O que é a Rainbow Alley? — Olhei para as garotas por cima dos ombros dela.
— É um centro para jovens gays — ela disse.
Uma pontada de medo se alojou na minha espinha. Por quê? Eu queria passar um tempo com ela, conhecê-la. Mas em um centro para jovens gays? E se ela pensasse…? E se isso significasse…? Um ruído de estática estalou na minha cabeça.
— Ah, obrigada, eu não vou poder. Tenho que voltar de ônibus com a equipe. — Meus olhos foram atraídos para o piso molhado sob os pés de Alex. Tênis de canos altos desamarrados. Que bacana.
— Eu poderia seguir o ônibus e pegar você na escola — ela disse.
— Tenho que ir pra casa.
Ela olhou para mim. Enxergou dentro de mim. Sabia que eu estava mentindo e deu meia-volta.
— Alex — segurei o braço dela. Depois, soltei quando minha mão pegou fogo. — Obrigada pelo CD. Eu ouvi ele inteiro no caminho pra cá. É incrível.
Ela sorriu de novo, um sorriso lento, sugestivo. Então, piscou e saiu correndo para alcançar as amigas.
Ela era tão galanteadora. Eu costumava ficar nauseada ao ver garotas agirem dessa forma. Polly, por exemplo. O jeito como ela abordava os garotos, tão óbvia. Com a Alex, no entanto, era diferente. Com ela, era… sexy.
June e Ward Cleaver são personagens do sitcom dos anos 1950 e 1960 chamado Leave it to Beaver.
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