História Não me diga mentirinhas - Dói demais.

Mentir sempre foi minha maior qualidade, eu mentia sobre tudo, desde minha opinião sobre algum assunto importante até o sabor de alguma comida. Era reconfortante a proteção que essas mentiras me proporcionaram e eu estava muito bem levando minha vida dessa maneira.

Até o dia em eu me mudei para Daegu e Kim Taehyung apareceu.

Taehyung conseguia perceber facilmente quando eu dizia ou não a verdade, e o mais estranho sobre isso era que mal nos conhecíamos.

Ainda me lembro de como eu descobri que Kim Taehyung não me deixaria ficar na zona de conforto…

O Kim havia pintado o cabelo em um tom vermelho escarlate, dizendo ele que era pra ser levemente ruivo, mas a cor não pegou corretamente. Ele chegou com aquela menstruação no lugar dos seus típicos fios castanhos ele me cutucou e perguntou o que eu achava da sua mudança capilar.  Minha resposta obviamente foi a de que os fios vermelhos lhe caíam muito bem.  Era mentira, obviamente.

Lembro-me de Taehyung rindo e me dizendo para não mentir pra ele. Foi estranho, e eu fiquei realmente desconfortável quando tive que conversar com ele outra vez, já que eu teria que ser 100% verdadeiro, pois ele não caia nas minhas mentiras. Isso me deixava desarmado, já que eu mentia por qualquer coisa que fosse.

— Jimin, você fez a lição de literatura? — Pergunta o Kim me cutucando. Hoje ele vestia um casaco verde musgo que contrastava com seus fios vermelho escarlate, resumindo, parecia um morango ambulante.

— Eu não. — Sorrio em sua direção. Se fosse outra pessoa eu já estaria mentindo sobre isso, mas não havia motivo pra isso já que ele descobriria de qualquer forma.

— Sabe... Eu me sinto especial por você não mentir pra mim… — Mostro a língua e me viro de volta pra frente, não é como se eu tivesse outra opção.

Taehyung nunca foi do tipo popular, as pessoas o evitavam e o encaravam de maneira reprovadora quando ele andava pelos corredores, muitas vezes ele ficava sozinho no intervalo e não tinha com quem fazer grupo para trabalhos. Eu nunca entendi o que as pessoas tanto odiavam nele, tudo bem que Taehyung era intrometido e vez ou outra me deixava desconcertado, mas ele era bem alegre e extrovertido, o tipo de pessoa que poderia agradar a todos.

— Muito bem alunos, vamos ter um trabalho em grupo. — Diz o professor de literatura todo sorridente, talvez porque ele não tenha que sofrer esperando não acabar como um perdedor sem grupo. — E, antes que vocês comecem com essas patotinhas, eu é quem vou formar esses grupos. — É... Talvez o professor estivesse do meu lado, mas ainda assim o sorriso dele era muito afrontoso.

Diferente do que eu imaginei que pudesse acontecer, o professor não separou os círculos de amizade já formados na sala, o que resultou em mim tendo que fazer grupo com os dois gays da escola e, claro, com Kim Taehyung. O que era a prova concreta de que eu era visivelmente um excluído.

Fazer grupo com duas pessoas problemáticas e que dificilmente vão ter qualquer interesse que seja em um mentiroso já é ruim o suficiente, agora imagina fazer grupo com as mesmas duas pessoas e o único cara que sabe quando você está mentindo? Totalmente sufocante.

— Muito bem, o trabalho será escolher um assunto que seja do interesse do grupo e debater sobre ele. Vou querer um relatório sobre suas opiniões pra próxima aula. Podem juntar as mesas.

Observei Min Yoongi e Jung Hoseok caminharem na nossa direção, o Min com sua típica cara de bunda infinita e Hoseok todo animadinho e sorridente.

Na verdade antes de Hoseok se assumir ele era muito popular, mas ai Yoongi se transferiu para nossa sala e eles acabaram começando a namorar. Como o Min era parte do time de judô ninguém tentava agredi-los fisicamente, mas dizem que palavras machucam mais que uma bala...

Reunimo-nos todos em um círculo e Taehyung se prontificou a dar a primeira sugestão de tema.

— O que acham de falarmos sobre gênero?  É um assunto amplo e de fácil discussão.

Eu mentiria se dissesse que não me surpreendi como de uma hora pra outra o Kim ficou tão formal e inteligente.

— Por mim tá okay. — Falou Yoongi abrindo o caderno e se preparando pra começar as anotações sobre o trabalho.

Observei Hoseok concordar com a cabeça e eu fiz o mesmo. Taehyung pareceu satisfeito com o consentimento de todos e eu não pude deixar de notar um sorriso fofo já se formando em seu rosto.

— Que tal irmos naquela lanchonete depois da aula? — Sugeri.

Eu não queria ir à lanchonete com eles, mas se eu não dissesse nada poderiam achar que eu montaria nas costas deles e não faria minha parte do trabalho.

Taehyung me olhou sério de repente e depois sorriu, ele era muito mais bonito sorrindo, não que já não fosse, mas ficava ainda mais com seu típico sorriso retangular.

— Foi mal, hoje eu já vou sair com o Yoon. — Se desculpou Hoseok meio sem jeito.

O Jung me parecia do tipo que odiava negar qualquer coisinha para as pessoas e isso me deixou indignado com a forma como as pessoas o tratavam. A sexualidade dele não mudava quem ele era as pessoas não tinham o direito de tratá-lo com tanto descaso só por ele gostar de meninos.

— Uma pena... Então parece que vamos ser só eu e você, Jiminie! — Dei um sorrisinho falso apenas por educação, mas eu sabia que o Kim tinha total consciência do meu descontentamento e estava usufruindo da situação pra sair na vantagem.

◆◆◆

Quando o sinal finalmente tocou e eu pude finalmente ficar livre da professora chata de química, comecei a juntar minhas coisas rapidamente. Meu objetivo era terminar antes do Taehyung e me fazer de desentendido no dia seguinte, mas a vida é uma diarreia infinita e por mágica ou esperteza o Kim já me esperava na porta da sala todo sorridente, arruinando totalmente meu plano infalível de escapar dele e passar à tarde na casa da minha vó entupindo o cu de bolo e refrigerante.

O caminho até a lanchonete foi resumido em um enorme descontentamento da minha parte e uma explosão e ansiedade por parte de Taehyung. Como era verão o sol estava absurdamente forte, se eu prestasse atenção conseguiria ouvir o som da minha pele fritando. Dei graças a Deus quando finalmente chegamos à loja e eu senti aquela lufada refrescante do ar condicionado, nos sentamos em uma mesa mais afastada, afinal iríamos discutir sobre o trabalho de literatura e precisávamos de silêncio para manter um debate concreto.

Não demorou muito pra uma garçonete vir nos atender e logo depois sair para preparar os pedidos.

— Então Jiminie, o que você sabe sobre gênero? — Perguntou o Kim sorrindo em minha direção.

— Nunca tive vontade de procurar sobre o assunto... Só conheço o básico, sabe? — Eu estava meio constrangido por ser tão leigo em um assunto tão banal como aquele.

Taehyung não me pareceu decepcionado com minha burrice, pelo contrário, ele ficou ainda mais empolgado em poder me explicar tudo o que sabia.

— Mas eu estava pensando em focar mais na parte dos transexuais e não nos cis. — Comenta o mesmo com um semblante pensativo, olhando ele daquele jeito até parecia que o Kim era um garoto centrado.

Devo ter ficado com a maior cara de ué, porque era exatamente assim que eu estava me sentindo, um completo tapado. Observei o Kim sorrir de maneira fofa antes de começar a me explicar.

— Okay, me deixa ver como posso fazer pra você entender… Quando se é cis é basicamente se identificar com o corpo em que você nasceu se sentir confortável nele, entende?

— Com licença... — Interrompeu a garçonete colocando nossos milkshakes na mesa. Taehyung espera ela sair pra continuar sua miniaula sobre gênero.

— Por exemplo, você!  Você se sente um menino certo? — Me questionou o mesmo e eu faço um sinal positivo com a cabeça. — Então você é uma pessoa cis. — Concluiu o garoto tomando um longo gole de milkshake.

— Tá, mas se eu sou trans eu também sou gay né?  — Talvez fosse uma pergunta burra? Talvez. Mas não custava perguntar.

— Na verdade o trans pode ser hétero, gênero e sexualidade são coisas diferentes, você pode querer ser tornar uma mulher trans e gostar de garotas ou de garotos. Quanto o assunto é transexualidade a orientação sexual, ou seja, o fato de você ser gay, bi, pan ou hétero não tem ligação. Ser trans está mais ligado ao corpo em que você nasceu e como você lida com ele. — Encarei o Kim que já estava terminando seu milkshake. Eu não imaginava que ele soubesse tanto sobre o assunto, agora eu entendia o motivo de ele ter sugerido esse tema.

◆◆◆

— Vamos pra minha casa hoje, aí terminamos o trabalho. — Se pronunciou Taehyung assim que o professor saiu da sala.

Depois de termos esclarecido minhas dúvidas fomos para a biblioteca e pesquisamos algumas coisas sobre pessoas trans, o Kim parecia dominar bastante do assunto e eu estava disposto a aprender tudo que ele tinha pra ensinar. Quando a bibliotecária disse que teria que fechar o lugar combinamos de marcar outro dia pra terminar o trabalho, pois tínhamos só uma semana pra preparar tudo.

Ainda era desconfortável por eu não poder mentir pro Taehyung, isso me deixava na defensiva mesmo eu achando que ele respeitava meu espaço.

— Tudo bem, já avisou os namoradinhos ali? — Perguntei apontando para Yoongi e Hoseok que conversavam sobre alguma coisa duas carteiras à frente.

— Já, eles falaram que vão almoçar e nos encontram na minha casa.

Era estranho ir à casa de alguém que eu mal conhecia. Por eu ter fama de mentiroso dificilmente se aproximavam de mim, muito menos criavam uma ligação forte o suficiente pra eu poder frequentar a casa da pessoa.

O resto da aula se passou ainda mais lentamente, talvez porque eu estava ansioso ou porque filosofia era a última aula do dia.

Quando a aula finalmente terminou, eu já comecei a guardar tudo pra poder ir à casa do Taehyung, era animador saber que eu poderia ter uma conexão de verdade com alguém, mas ao mesmo tempo eu me sentia totalmente desprotegido. Saber que não adiantaria mentir pra ele era realmente intimidante, mas ao mesmo tempo me animava, como se pela primeira vez eu pudesse só ser eu mesmo sem mentirinhas ou falsidades.

O silêncio não fez parte da nossa caminhada até a casa do Kim. Taehyung parecia ainda mais feliz naquele dia em particular e acabamos conversando sobre como a cor dos meus cadarços combinava com o detalhe verde água dos tênis dele.

Paramos em uma casa duas quadras depois da escola, tinha um banquinho amarelo bem no meio do jardim e um carro vermelho estacionado na frente do portão. Assim que Taehyung notou o carro seu sorriso sumiu e a atmosfera antes tão leve e divertida começou a ficar pesada e assustadora.

— Jimin, eu acho melhor você ir pra sua casa. — Eu via o medo nos olhos dele, Taehyung sempre me pareceu tão forte e empoderado que vê-lo naquele estado me deixou totalmente desnorteado.

— Tae, você tá bem? Tem alguma coisa que você precise me dizer? Se quiser nós vamos à minha casa até a pessoa do carro ir embora.

— Não, Jimin! Você não entende? Eu preciso que você vá embora!

E eu realmente não entendia o que estava acontecendo, mas eu também não queria deixar Taehyung sozinho naquela casa com seja lá quem, e eu sabia que ele não queria ficar sozinho. Como o bom mentiroso que sou eu também sabia que ele mentia quando me pedia pra ir embora.

— Aí está! — Me virei na direção da voz e vi um homem de terno parado na entrada com um sorriso sarcástico nos lábios. Era clara sua semelhança com Taehyung, se ele não fosse o pai seria o irmão com toda certeza.

— Não vai entrar, querida? — Disse o homem dando ênfase na palavra querida.

— O que você tá fazendo na minha casa? — Taehyung estava visivelmente irritado com a colocação de palavras do homem e eu só me sentia um intruso em tudo aquilo.

— Ora, ora!  Você finalmente trouxe um garoto pra casa! Vai, para com essas suas idiotices, eu sabia que era só uma fase!

— Que!? O Jimin não tem nada a ver com as minhas escolhas e eu não mudei de ideia, pai. Só quero que você assine a porra do formulário! Não se mete na minha vida.

Era totalmente constrangedor presenciar uma briga entre pai e filho, eu não sabia o que fazer ou como agir. Fora que eu não estava entendendo nada daquilo.

— Não começa, Tae! Você é uma mentira! Não importa o quanto tente nunca será uma coisa que você não nasceu sendo! É errado e você vai querer voltar atrás!

— Só sai daqui, pai! — O Kim tinha lágrimas nos olhos e seu lábio inferior tremia, ele parecia sentir tanta dor que cheguei a me perguntar se não teria se machucado.

O homem que agora eu sabia ser pai de Taehyung passou por nós e entrou no carro, não sem antes me mandar uma piscadela esquisita e sem nexo algum. Ficamos ali parados na entrada até o som do carro desaparecer.

— Jimin...

— Você não precisa me dizer nada, eu não deveria ter ficado. Você me pediu pra ir e eu não te escutei, eu prometo que não vou contar sobre seus problemas com o seu pai, mesmo eu não tendo entendido direito tudo isso, mas...

— Só... Vamos entrar, tá? — Entramos na casa do Kim, o clima ainda estava pesado, mesmo quando o cachorrinho da das veio nos dar as boas vindas. Tae começou a subir as escadas e eu apenas o segui até o que imaginava se seu quarto.

— Sabe por que ninguém quer falar comigo? — Pergunta Taehyung quebrando o silêncio quase ensurdecedor que havia se instalado no local. Encarei o Kim, ele estava com a mão na maçaneta da porta e um sorriso forçado no rosto.

— Por quê? — Ele não respondeu, tudo que fez foi abrir a porta de seu quarto. Ele não precisou explicar mais nada, de repente tudo o que o pai dele havia falado fez sentido.

— Você pode até achar que é o maior mentiroso da escola, Jimin, mas sou eu quem enganou você por todo o tempo em que nos falamos. — Deixei que ele continuasse a me explicar tudo enquanto eu entrava no quarto todo decorado do Kim. — Sabe... Quando se estuda na mesma escola por tanto tempo, as pessoas quase não percebem quando você faz alguma mudança na aparência. Cortar o cabelo, fazer as sobrancelhas ou usar um tênis novo, mas quando você se torna um garoto fica meio difícil de não perceber... — Taehyung se sentou na cama e eu apenas o acompanhei. — A palavra "tornar" não é tão apropriada, já que eu sempre fui um por dentro, mas... É. Eu era uma menina antes de você me conhecer. E eu sei que provavelmente você não vai mais querer falar comigo, só que eu não sou como você, Jimin. Eu não sei contar mentiras e ficar bem com isso. — Arrumei minha postura na cama e o encarei nos olhos. Taehyung era como uma caixinha de surpresas, ele estava lá dando todas as pistas e eu nunca notei.

— Mas você nunca mentiu, Tae.

— Claro que eu menti!  Eu sou uma mentira ambulante! Você não ouviu meu pai, Jimin?  Não importa o quanto eu tente, sempre vou ser uma farsa. Sempre vou ser uma garota...

— É... Parece que você me enganou direitinho. Kim Taehyung, você é um verdadeiro mentiroso! — Dei uma gargalhada antes de continuar fazendo o Kim me encarar transtornado. — Você me fez acreditar que quando se sente dentro do coração que se é uma coisa, você pode realmente ser isso. E aí está você dizendo que se sente um menino, mas afirmando veemente que não é um! — Concluo negando com a cabeça e de olhos fechados. Ouço o som gostoso da risada do Kim. — Você é um menino, Taehyung. E não importa se você foi menina antes! Isso não te torna menos menino do que qualquer outro!

Sou pego se surpresa por um abraço apertado e logo o quarto fica preenchido pelo som das nossas risadas se misturando.

— Jimin, eu tenho mais uma coisa pra te dizer… — Taehyung é interrompido pela campainha e me dá um sorriso antes de sair do quarto.

Eu sei exatamente o que ele ia me contar, e talvez não estejamos preparados para toda a responsabilidade que suas meras palavras podem proporcionar, mas pela primeira vez em toda minha vida eu não quero mentir.

Pela primeira vez eu quero ser totalmente sincero e contar a verdade.