Tempos depois...
Sua consciência voltou de um profundo abismo, retrocendo imagens bagunçadas e embaçadas. Cores brilhantes apareciam em riscos, sons de carros, gritos, risadas e barulhos de tiros se misturavam numa melodia demoníaca. Sua visão clareou-se em branco e o barulho perturbador foi substituído pela voz melódica e suave, ainda distante, mas ao seu alcance. O rosto desconhecido estava próximo ao seu rosto. O hálito quente tocava a ponta de seu nariz. A luz redonda passou diante de seus olhos. Uma, duas, três vezes.
-Fale alguma coisa.
Ela ficou encarando-a. Tentando puxar a memória daquele rosto do fundo de seu cérebro. Mas só lhe deu mais dor de cabeça.
-Não faça caretas. Fale alguma coisa para que eu me certifique que não há danos...
Ela continuou calada, preferindo o silêncio. Virou a cabeça para o lado, encarando a janela enorme. A paisagem lá fora não era nada do que lembrava, aliás, ela não conseguia lembrar de absolutamente nada. O grande tronco, do outro lado da janela, era coberto por musgos e cogumelos. A grama parecia tão verde quanto a cor das folhas da copa da árvore. E naquele mesmo instante, uma borboleta azulada pousou na área esverdeada do tronco.
-Como posso chamá-la?
Suas asas se moviam delicadamente.
-Onde estou? - virou a cabeça de volta, encarando a mulher.
-Você fala.
-Onde eu estou? - repetiu, com a mesma firmeza.
-Na minha casa de campo. Você estava em coma há pouco tempo. Eu sou a Dra. Ailli.
-Quanto tempo? - franzindo a testa, a paciente se sentou. Com a mão na testa latejante, ela voltou a encarar a borboleta lá fora.
-Você dormiu bastante.
-E o que faço na sua casa de campo? Por que não estou em um hospital?
-Você não tem plano de saúde. Não tem familiares, ninguém procurou por você. O hospital não queria arcar com as suas despesas. Tive que trazê-la para cá, já que quaisquer hospital aceita um paciente em coma, porque ele pode ficar anos necessitando de cuidados médicos diários, e nenhuma administração hospitalar aceita, sem que alguém pague.
-Sinceridade.
A paciente voltou a fitar a médica. Raios mornos atravessavam a janela. O dia se pondo dava lhe uma segurança indefinida. Não lembrar quem era, era subitamente desolador e assustador. Não lembrar de absolutamente nada até aquele momento era inevitavelmente confuso.
-Qual é o meu nome?
A médica franziu a testa e deu um sorriso sarcástico.
-Eu que te pergunto. Qual é o seu nome? - ela se agitou no segundo seguinte, passou a luz da lanterna pelos seus olhos. Ela os fechou, colocando o braço sobre o rosto. - Você não se lembra?
-Não.
A médica suspirou.
-Eu espero que seja uma amnésia pós traumática temporária. - colocou as mãos nos bolsos. - Queria muito saber o que houve contigo. Você chegou aqui em um estado deplorável. Tenho que admitir que é muito forte. Apenas por ter sobrevivido à tantos traumas.
Ela continuou a encarando. Tentando forçar o próprio cérebro a se lembrar de suas memórias. Sem suas lembranças o presente não fazia sentido. Afastou o cobertor com as mãos.
Ailli virou o rosto e caminhou até a grande janela.
-Você ainda tem um dos projéteis em sua cabeça. Não conseguimos retirá-lo sem causar danos irreversíveis. Na verdade, foi muito difícil tirar os outros projéteis, parecia que quem atirou em você sabia onde atirar. Você deve ser bem odiada.
A médica se virou, com um sorriso maternal no rosto.
-Droga.
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