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História Pardebi - Not enough


Escrita por: Marurishi

Notas do Autor


Tags para o capítulo: viagem, tensão, suspense, reviravolta
Boa leitura! ;D

Capítulo 26 - Not enough


 

“So I gave up my life for love, 

But it still was not enough.” [ 21]

 

No Rolls Royce de Katherina, o silêncio se fazia absoluto e pesado, como se estivessem indo para um funeral. De certa forma, era a morte das esperanças de Kanth e ele não ousava se manifestar contrário, mesmo que aquela decisão lhe doesse imensamente.

 

— Meu querido! — Katherina quebrou o silêncio. — Você está ciente que isso que você sente por esse outro garoto é uma doença?

 

— Não é uma doença... — Kanth sussurrou, quase inaudível.

 

— Estou fazendo isso pelo seu bem. Você está doente e isso afetou sua capacidade de reconhecer o perigo — falava sem desviar a atenção da autoestrada. — Não consigo acreditar que tudo isso foi ignorado por tanto tempo! Por que não nos contou antes?

 

— Não é uma doença — repetiu mais alto. — Mãe, eu preciso de ajuda, mas, por favor, não diga que estou doente!

 

— Não estou falando somente disso! — Franziu as sobrancelhas com ira. — Me refiro ao que poderia ter te acontecido caso aquele motorista… — Deixou a frase incompleta, pois aquilo lhe era absurdo demais.

 

— Por que não pode aceitar que isso não é uma doença? — Fechou os punhos e tentou conter as lágrimas, não choraria, não mais. — Tudo o que sinto por ele e todas as coisas que construímos juntos…

 

— Construíram juntos? — Balançou a cabeça contrariada e completou: — Kanth, escute o que você está dizendo! Vocês não construíram nada, pelo contrário, esse romance é a ruína, tanto dos Lamazis como dos Natelis.

 

— Tudo é sempre culpa minha! — Tapou o rosto com as mãos, tentando abafar sua frustração. — Eu sei que tudo é culpa minha, mas vocês já estão se livrando de mim para sempre, então, por favor, pelo menos não diga que o que sinto por ele é uma doença!

 

— Você ainda é tão imaturo, não entende absolutamente nada… — suspirou alto. — Kanth, ninguém está se livrando de você para sempre e nada disso é culpa sua!

 

— Ter um herdeiro fraco é pior do que não ter! Eu sei o que acontece aos filhos que são tidos como doentes e vão estudar em outro país.

 

— São mortos? Lobotomizados? Usados como experiência científica? — bufou. — Pare de infantilidade, Kanth, você não tem mais idade para acreditar nos contos usados para assustar crianças malcriadas!

 

— Eu sei o peso que tem ser gay.

 

— Kanth! — gritou e o carro quase saiu da rodovia. — Isso é apenas o menor dos problemas e pode ser curado! O mais grave é o perigo que você está correndo, por isso precisa de proteção!

 

— Num colégio em outro país?

 

— Meu amor, eu te amo tanto! — falou sincera. — Quando você nasceu foi o melhor momento de toda minha vida. Finalmente, eu tinha uma criança em meus braços e não precisaria me separar! Eu preciso te proteger de tudo isso, mas preciso que confie em mim e lembre-se de que tudo o que estou fazendo é para te proteger e garantir o seu futuro.

 

Havia lágrimas nos olhos de Katherina e ela estava se contendo ao máximo para não cair aos prantos. Kanth não se lembrava do caminho para o aeroporto, apenas estranhou estarem em uma rodovia de pouco movimento, mas pensou ser apenas uma rota diferente.

 

— Kanth, você pode não compreender agora, pois é muito jovem, mas vai entender um dia — falou com a voz embargada. — Estou fazendo isso em segredo absoluto, até mesmo seu pai acredita que estou mandando você para estudar no exterior, mas eu não suportaria me separar de você como tive que me separar do meu primeiro bebê no passado.

 

Kanth olhou com certa desconfiança para a mãe, pois a separação no passado ocorreu pela morte do primogênito.

 

— Mãe, do que está falando sobre se separar novamente… Eu iria mesmo ser morto nesse outro país?

 

— Claro que não! — Quase riu da ideia do garoto. — Ninguém precisa morrer. Sempre haverá esperanças enquanto eu estiver no controle. — Fez uma pausa dramática. — Você não irá para outro país.

 

— Para onde eu vou?

 

— Para onde possamos te salvar!

 

— Mesmo assim, continuarei amando o Ryth, isso não tem cura nem salvação.

 

— Não fale assim, para tudo há uma solução.

 

Kanth preferiu não falar mais nada, não adiantaria discutir com sua mãe, além de que estava cansado demais para um embate. Katherina não esclareceu o que se sucederia, nem para onde estava o levando. Seguiram por mais 4 horas de viagem até chegarem numa cidade bastante pequena.

 

— É aqui meu destino? — perguntou Kanth, achando aquele fim de mundo menos pior do que imaginava.

 

— Não, vamos apenas tomar um café e esticar as pernas — explicou. — Temos mais algumas horas de viagem pela frente.

 

— E qual o destino final?

 

— Não pense nisso, apenas saiba que não é tão ruim quanto imagina. — Sorriu e abraçou-o. — O importante é que poderemos nos ver sempre que você desejar!

 

Kanth não sabia se podia acreditar naquilo, estava parecendo mais uma daquelas mentiras que sua mãe gostava de acreditar para o próprio bem, mas que não condiziam com a realidade.

 

Katherina pagou com dinheiro os lanches para a viagem e acrescentou mais alguns chocolates. Evitaria usar qualquer tipo de cartão para não deixar rastros pelo caminho. Entregou o pacote para Kanth e voltaram para o carro.

 

— Essa clínica é muito renomada e me foi indicada por alguém de confiança.

 

— Mesmo eu não estando doente… — Suspirou, abrindo a embalagem do chocolate. — O que vão fazer comigo lá?

 

— Eles vão te tratar bem, Kanth, estou pagando caro para isso.

 

— E se não tratarem? — Seu tom era de desconfiança.

 

— Você me liga imediatamente!

 

— Se não permitirem?

 

— Kanth! — indignou-se. — Isso não é um filme de terror! Não é uma clínica mal assombrada com médicos loucos que vão te torturar! Você estará protegido enquanto estiver com eles!

 

— Protegido do quê?

 

— Desse mundo, Kanth! — falou ríspida, mas no mesmo momento pareceu se arrepender e concluiu mais branda. — Estou te protegendo dos escândalos que estamos envolvidos… E de você mesmo. O tratamento lá será adequado para a situação.

 

— Queria que outras coisas tivessem sido tratadas antes… — Pensou alto, lembrando-se dos abusos, do bullying, da telecinese… De Ryth.

 

Ele queria que essa conversa tivesse sido muitos anos atrás, que pudesse ter tido essa proteção contra o mundo ainda na infância. Certamente, tudo agora seria diferente. Porém, de nada valia se lamentar do passado agora tão distante diante de tantas mudanças.

 

— As outras coisas também serão tratadas, basta você confiar neles.

 

— Confiança… — Balançou a cabeça negativamente e riu de desgosto. — Mãe, eu só tive duas pessoas para confiar minha vida toda…

 

— Eu sei, querido. Sei que você confiou em mim e em seu pai e falhamos com você, mas estou disposta a consertar isso.

 

— Maros e Ryth — falou ignorando a mãe. — Um eu afastei, o outro me foi afastado.

 

— Interessante você mencionar esse rapaz, justo agora… — Franziu a testa. — Achei que nem se lembrava mais desse mordomo.

 

— Jamais esquecerei do Maros.

 

Katherina nada comentou, apenas franziu a testa e o resto do caminho foi feito em silêncio com Kanth dormindo a maior parte do tempo. Muitas horas se passaram até ela anunciar:

 

— Chegamos.

 

Kanth se deu conta de que estavam entrando em uma cidade bastante movimentada. Endireitou-se no banco e prestou atenção nas ruas, procurando indícios de que era um péssimo lugar, mas não encontrou nada, parecia uma cidade normal, bonita e limpa.

 

Logo avistou um prédio de vidros foscos, imaginou que ali seria a tal clínica. Katherina manobrou e estacionou o carro. Kanth desceu sem vontade e sem escolha.

 

Foram recepcionados cordialmente e tudo pareceu ocorrer bem.

 

— Sra. Katherina? — chamou um homem de jaleco branco que Kanth julgou ser um dos médicos. — Sejam bem-vindos! — Sorriu e cumprimentou-os.

 

Kanth instintivamente encolheu os ombros, não simpatizou com o homem, que parecia feliz demais por receber mais um paciente. Aquilo não era um momento feliz, sorrisos não combinavam, pois estava prestes a ser internado numa clínica à mercê de pessoas estranhas sem nem ao menos ter qualquer doença.

 

Estava tão confuso, pois admitia que precisava de ajuda para vários problemas, querendo crer que ali fosse um lugar seguro para contar seus segredos, ao mesmo tempo em que procurava vestígios de um lugar horrível, como uma prisão, com pessoas sendo torturadas e armários para guardar corpos. No fim, não havia nada de anormal ali e desistiu de procurar defeitos, pensando que, na realidade em que se encontrava, qualquer coisa lhe servia. 

 

Sentiu uma dor aguda na cabeça, algo diferente e muito forte que o fez fechar os olhos e contrair o maxilar para tentar conter aquela dor. Poderia ser o estresse, uma crise de pânico querendo tomar conta de si, ou algo pior e mais conhecido. Se deu conta que era o mesmo tipo de sensação que sentia quando Ryth usava seus poderes, porém, dessa vez era incontavelmente mais forte.

 

Teria algum paranormal exercendo seu poder por perto? Seria aquele médico um paranormal? Mas ninguém sabia sobre seus poderes, o motivo de estar ali era por ser um garoto que amava outro garoto, apenas isso.

 

Ficou tão absorvido naquela dor e tentando contê-la que não prestou atenção no que conversavam, apenas se ateve quando a mãe se despediu. Ela chorou, ele também, mas prometeu que aquela seria a última vez que choraria.

 

— Pode chorar sempre que se sentir triste, ninguém vai repreendê-lo por isso. — Katherina confortava o filho, com um abraço apertado.

 

— Eu decidi que não quero mais chorar, não vou ser fraco.

 

— Você nunca foi fraco, meu amor. Nunca se esqueça disso!

 

Kanth limpou as lágrimas e, assim que sua mãe partiu, a dor também foi diminuindo até desaparecer completamente. Uma recepcionista o acompanhou até o quarto destinado para si. A jovem conversava simpática, mas Kanth não prestava atenção, pensava no que aconteceria ali e em como seria sua vida longe da família e de Ryth.

 

Havia coisas boas, como não ter Wis, nem o uso de poderes paranormais, bullying no colégio, medo de ter seus segredos revelados e ser exposto. Ainda tinha medo de ser abandonado, como parecia estar acontecendo, mas queria se apegar à ideia de que sua mãe realmente o amava e acreditava estar fazendo aquilo pelo seu bem. 

 

Se olhasse por esse ângulo, estar ali não era tão ruim, pois poderia ligar para Ryth todos os dias, assim como também para sua mãe, também poderia continuar sua busca por Maros sem medo das chantagens de Wis. Quando o contatasse poderia pedir que ele fosse vê-lo na clínica e, até quem sabe, resgatá-lo.

 

Nos primeiros dias deveria se adaptar ao ambiente sem interferências externas, por isso não foi permitido fazer ligações nem usar qualquer aplicativo para troca de mensagens. Isso o deixou desconfortável, pois queria falar com Ryth ou com sua mãe.

 

Esperou pacientemente, já que pelo cronograma eram apenas alguns dias de privação. Até tentou enviar um email, mas descobriu que quase tudo na internet era bloqueado. Ocupou-se com outras coisas na internet que eram liberadas, como assistir a filmes e jogos online.

 

Kanth tinha uma rotina a qual não incluía nada do que ele imaginava, como sessões de tortura, tratamento de choque, lobotomia ou orgias. Parecia uma clínica normal e boa, fazendo-o se sentir idiota por pensar tantas coisas absurdas sobre o lugar. Tinha aulas particulares para que os estudos não fossem prejudicados e pudesse se formar no tempo correto, também havia algumas atividades físicas, como natação, dança e yoga.

 

As sessões de terapia com o psiquiatra eram diárias, assim como o momento obrigatório para leitura, reflexão e meditação. Fora o fato de não poder sair da clínica nem usar celular, no resto não parecia uma prisão ou algo extremamente horrível como imaginara a princípio. Com o passar dos dias, nada de mal acontecia e todos o tratavam muito bem. Chegou até estranhar tanta atenção e carinho.

 

Em uma entrevista de apresentação à nova equipe que cuidaria da sua suposta doença, Kanth percebeu algo peculiar: havia três pessoas usando um uniforme diferente, cujo tom preto e branco, com brasões que lembravam algumas patentes militares, o deixaram desconfortável.

 

Não era um uniforme militar, mas o estilo e os símbolos eram bastante semelhantes, o que fez Kanth pensar que poderiam ser militares de algum departamento especial, fazendo maior sentido quando eles falaram e ficou claro que eram estrangeiros pelo sotaque.

 

Um dos médicos explicou:

 

— Estes são Dr. Raphel, Dra. Zária e seu assistente, Niavi. Eles são uma equipe de estudos específicos e vão acompanhar pessoalmente o seu caso. Para isso, você ficará em um local separado, é uma clínica afiliada, onde terá maior privacidade e poderá ser mais livre, com acesso à internet e ligações para seus familiares e amigos.

 

Aquela informação deixou Kanth esperançoso, mas ainda que lhe prometessem privacidade e liberdade, não poderia esquecer o motivo pelo qual estava ali. Todavia, se pudesse encurtar sua estadia e voltar para Nelovânia o mais rápido possível para ficar com Ryth, deveria colaborar.

 

Assim, pegou novamente sua mala, sua bolsa de mão e entrou no carro de luxo que o aguardava no estacionamento. Sentou-se no banco de trás ao lado do rapaz assistente, enquanto o doutor dirigia e a doutora  ditava o caminho.

 

A outra clínica era longe, pois anoiteceu, entrou madrugada e eles ainda estavam na estrada. Apesar de manterem uma conversa amena e até divertida, como se quisessem distraí-lo, a atmosfera estava ficando estranha e seu estômago começava a roncar.

 

Não houve parada para o jantar. Começou a se preocupar, pois se deu conta que sua mãe não havia comentado nada sobre ir para outro lugar, percebeu que poderia ter cometido um erro em ter aceitado sem falar com ela. Seu celular havia sido devolvido minutos antes de partir, sem nenhuma carga na bateria, o que tornava o aparelho inútil.

 

Olhando para o aparelho desligado, decidiu arriscar um pedido:

 

— Será que posso usar seu celular? — perguntou para o rapaz.

 

— Não, Kanth! Não podemos usar esse aparelho aqui, as ondas vão prejudicar e tornar o caminho perigoso!

 

Kanth não entendeu nada e achou aquilo uma idiotice. Tudo parecia uma grande piada sem graça. Estava exausto, estressado, no limite. Gritou contestando as intenções deles sobre cura, proteção e transferência para outra clínica, uma discussão inteligível começou, pois ele não se importou em ser mal educado e xingá-los enquanto eles tentavam acalmá-lo.

 

— Kanth! Acalme-se! Estamos te levando para um lugar seguro… — Dra. Zária falava com voz terna, como de uma mãe preocupada.

 

— Danem-se vocês e sua segurança! — Kanth estava furioso e completamente fora do controle. — Quem disse que quero ir! Vão pro inferno todos vocês com toda essa idiotice de cura e de perigo!

 

— Por favor, nos escute… É importante você saber… Nós vamos te explicar!

 

— Não quero saber! — Kanth interrompeu. —  Estou cheio de tudo isso! Cheio dessa conversa idiota de melhor pra mim, de cura de doença que não tenho, de merda de proteção! Grande coisa se eu gosto de outro garoto!

 

Era sempre aquela mesma conversa. Ele não precisava de cura, não queria ser protegido daquela maneira, não queria se separar das pessoas que amava, não queria estar ali ou ir para qualquer outro lugar.

 

— Conhecemos o seu histórico! Você não precisa enfrentar tudo isso sozinho! — Dr. Raphel falava como um pai zeloso. — Vamos explicar o que está acontecendo assim que...

 

— Cala a boca! — gritou interrompendo. — Vocês não sabem nada da minha vida, nada de mim, o que eu sou ou o que eu sinto!

 

Os xingamentos continuavam. Kanth sabia que estava indo longe demais e que aquelas pessoas não eram culpadas por seus problemas, mas ele não se importava mais. Se estava sendo tratado como um louco doente, ele seria o louco doente que eles queriam tratar.

 

— Niv! Faça ele dormir! — ordenou Dra. Zária, autoritária. — Explicaremos quando ele acordar e estiver mais calmo! Assim ele vai acabar se machucando!

 

Kanth tentou acertar um soco no rapaz, mas teve seu pulso segurado.  Seus braços perderam as forças e uma sensação de fraqueza e sonolência tomou conta de si. O Dr. Raphel pareceu se irritar e repreendê-los dizendo algo sobre não usar da força. Uma discussão começou entre eles e Kanth silenciou, estranhamente cansado, desmaiou nos braços de Niavi e não viu nem ouviu mais nada.

 

“My heart shattered apart with your sanity, 

but I won't leave.” [21]

 

A clínica não era um local comum, se é que poderia chamar-se de clínica, mas na falta de outro termo, Kanth preferiu nomeá-la assim mesmo. Um prédio mais que antigo, claramente abandonado, exatamente como aqueles que ele via em vídeos na internet sobre cidades fantasmas. Ali contavam vários andares que Kanth não conseguiu identificar quantos ao total, pois quando despertou estava em um quarto  no que parecia ser um 4º ou 5º andar.

 

A primeira observação foi as paredes de azulejos azul-claros do chão até o teto, um aspecto estranho e antiquado, ultrapassado. O piso deixava à mostra várias falhas causadas pelo tempo, que por negligência nunca fora consertado. Os móveis, a maioria de metal mostrando graves sinais de ferrugem, não tinham diferença nenhuma com os dos filmes de terror. No entanto, tudo parecia bem limpo e grandes janelas abertas iluminavam o ambiente.

 

Kanth estava sozinho e esperou o médico, enfermeiros ou qualquer pessoa que fosse lhe atender quando acordasse do desmaio, mas ninguém foi e isso lhe pareceu o cúmulo do descaso. Levantou-se, atônito, faminto, indignado, com a sensação de que nada daquilo era real. Pegou sua bolsa que estava largada em cima de uma mesa e caminhou até a porta.

 

Observou muitas pessoas no corredor, andando livremente pra lá e pra cá como se estivessem apenas a passeio. Algumas com uniformes hospitalares na cor branca, mas evidentemente não eram médicos ou enfermeiros, pois agiam de forma estranha, alguns furiosos, outros rindo demasiado ou apenas indo de uma janela a outra sem nenhum propósito.

 

Saiu caminhando sem rumo e entrou em um quarto qualquer, com cinco camas bem arrumadas. Não sentiu medo, desespero ou qualquer coisa, parecia que estava num sonho e todas as suas emoções amortecidas de uma maneira bizarra.

 

Viu que a cama perto da sacada não estava ocupada. Kanth foi até lá e soltou sua bolsa. Imediatamente um senhor idoso no leito ao lado se levantou e tirou o lençol branco da própria cama, foi até ele com o lençol aberto e o enrolou em seus ombros.

 

— Está com frio? — o homem perguntou ajeitando o lençol em volta de Kanth.

 

Kanth limitou-se a balançar a cabeça negativamente, mas aceitou o lençol e naquele momento sentiu medo, como se levemente despertando para a realidade. O idoso de olhos esbugalhados o olhava admirado, mas por algum motivo desconhecido parecia feliz em vê-lo.

 

O velho voltou a sentar-se na cama, como se nada tivesse acontecido, pegou lápis e papel, voltando a escrever loucamente. Nenhum dos outros colegas de quarto disseram ou fizeram qualquer coisa. Eles sequer pareciam ter notado a presença do garoto.

 

Não viu mais os três que o levaram para aquele lugar e parecia que isso já não tinha importância. Tirou de sua bolsa o Sr. Kurdgheli, a pelúcia que ganhara de Ryth e da qual não pretendia se separar. Olhou para a grande porta e caminhou até a sacada com grade de metal carregando o coelho em um braço e segurando o lençol sobre os ombros com o outro; parecia uma criança que acordava de um pesadelo e tentava ir para o quarto dos pais.

 

Entretanto, ali não havia pai ou mãe, tampouco estava sonhando. Olhou para o pátio abaixo notando que havia uma grande rampa que descia quatro andares abaixo. Se alguém quisesse fugir, bastava se jogar naquela rampa e deslizar até o chão.

 

“Será que alguém já tentou fugir assim?”, pensava. Não fazia muito sentido ter algo daquele tipo que facilitaria tanto o processo, a menos que ninguém percebesse aquela rampa como uma rota de fuga.

 

Ou porque não fosse necessário fugir.

 

Sentou-se no chão, no canto da porta, abraçou o coelho e se enrolou no lençol que o velho lhe ofereceu. Os efeitos da fome, do desmaio e de toda a situação começavam a pesar, porém faltava algo, uma lembrança de que alguma coisa havia acontecido antes, mas ele não conseguia se lembrar.

 

Por que mesmo eu estou aqui?”, pensou, mas não fazia muito sentido questionar-se sobre isso. Estava ali e isso parecia o suficiente.

 

As horas passaram, mas Kanth não percebeu. Ouviu um movimento de mesas sendo arrastadas dentro do quarto e olhou para ver o que acontecia: era hora do café da tarde.

 

Quatro rapazes com uniformes militares entraram, um trazia uma mesa, o outro, cadeiras, o terceiro trazia uma caixa com garrafas e xícaras e o quarto apenas supervisionava com um sorriso simpático e alegre.

 

— Venham, vamos tomar café! — convidou animadamente o rapaz que parecia ser o supervisor.

 

No entanto, quem sentou-se à mesa foram os próprios militares, que serviram suas xícaras e começaram a trocar entre si pães e guloseimas. Kanth achou aquilo absurdamente estranho enquanto os colegas de quarto pareciam alheios a tudo o que acontecia.

 

Kanth olhou para cada um deles, percebendo que eles ignoravam sua presença. Com exceção do supervisor, que mostrou a ele uma xícara vazia no canto da mesa. Kanth entendeu que era para ele e, apesar de estar faminto, não se aproximou.

 

O supervisor serviu a xícara e se levantou, indo até Kanth:

 

— Você precisa comer ou vai ficar com fome. Meu nome é Bergs, Capitão Bergs.

 

Kanth pegou a xícara, o café estava quente e cheirava muito bem, sentiu sua barriga roncar e olhou para um dos pães que eles estavam dividindo. Capitão Bergs seguiu o olhar do garoto e voltou até a mesa, pegando um dos pães e o estendendo para Kanth, que se aproximou receoso, usando o lençol como um tipo de proteção.

 

— Sente-se garoto. Me diga se meu café está bom? Sou Bergs, Capitão do Café! — falou com um sorriso orgulhoso e feliz.

 

Kanth percebeu. Eles não eram militares, eram loucos.

 

Todos loucos, doentes mentais, esquizofrênicos...

 

Por que eu estou aqui? Ah, sim, eles descobriram meu segredo. Eu movo objetos com a mente, sou um paranormal com habilidades telecinéticas”.

 

Mas algo estava errado, por que parecia não ser essa a verdade?

 

Comeu o pão e tomou o café.

 

— Está ótimo o seu café, Capitão Bergs!

 

— Que ótimo! Vou te trazer café todos os dias! — Riu satisfeito.

 

Imediatamente, os quatro se levantaram e começaram a guardar as coisas de forma organizada e metódica. Em menos de dois minutos, eles haviam saído e sumido no corredor, quase como se nunca estivessem estado ali.

 

Kanth foi saindo também, andando lentamente entre todas aquelas pessoas que pareciam viver perdidas dentro de seu próprio mundo. Ninguém prestava atenção em ninguém, parecia que o único consciente ali era ele. Talvez não tão consciente também.

 

Foi andando pelo mesmo caminho pelo qual tinha entrado, lembrava-se do trajeto, mesmo que tivesse chegado ali desmaiado. Não fazia sentido, mas ele não se questionou sobre isso.

 

Viu alguns militares, mas já não tinha medo deles e eles pareciam ignorá-lo igualmente. Cruzou por Bergs, que o cumprimentou alegremente.

 

— Bom dia, garoto! Já tomou café?

 

— Bom dia, Capitão Bergs, já tomei sim, estava ótimo!

 

— Que bom! Depois eu levo mais café para você. — Saiu apressado.

 

As janelas eram todas abertas e sem grades. As portas não estavam trancadas e não havia nenhum tipo de segurança, médicos, enfermeiros ou qualquer pessoa que pudesse resolver algum problema sério que viesse a ocorrer ali. Pensou em tentar fugir para ver se alguém viria impedi-lo.

 

Se preparou para correr e soltou o lençol no chão, imediatamente todos pararam o que estavam fazendo e olharam para ele.

 

Aquilo o assustou, ficou paralisado enquanto era encarado por todas as pessoas no corredor. Algumas começaram a se aproximar, num misto de interesse e medo, como se ele fosse algo estranho ou exótico. Outras apontavam-lhe o dedo e cochichavam entre si, uma reação muito diferente do que Kanth poderia ter previsto.

 

Do quarto que ele tomou para si, uma cabeça surgiu na porta.

 

— Ei, garoto! Junta o lençol! — disse seu colega de quarto, o idoso que havia o enrolado no lençol. — Está frio no corredor, você vai pegar uma gripe!

 

Kanth se abaixou e se enrolou novamente no lençol. Quando olhou, todos haviam voltado para seus afazeres e era como se ele fosse invisível novamente. O colega de quarto também tinha voltado para a cama.

 

Olhou para o lençol ao redor de seu corpo frágil e amedrontado. Teria aquele lençol algum poder? Seria aquele colega de quarto alguém que estava ali para protegê-lo? E quem era Bergs, que lhe oferecia café?

 

Por que estava ali? Que lugar era aquele? Onde estavam os responsáveis? Por que tudo era destrancado? Quem eram aquelas pessoas?

 

Eram tantas perguntas que vinham como uma metralhadora sendo descarregada. Sentiu uma dor aguda na fonte e uma vontade enorme de chorar. Quem o levou até ali? Eram mesmo médicos? Eles foram buscá-lo ou ele havia sonhado aquilo? Onde estavam seus pais? Por que não se lembrava da última vez que os viu? Onde estavam seus amigos? Ele tinha algum amigo?

 

Ryth…

 

Ouviu uma voz no fundo de sua mente, era sua própria voz sussurrando um nome:

 

Ryth.

 

Afinal, quem era Ryth?

 

“Are you gonna let it burn out, 

are you gonna let it fade away?”[21]

 

 

 


Notas Finais


[21] Música tema: Diminuendo - Lawless feat. Britt Warner


Amoras! Obrigada por não desistirem e continuarem comigo nesse 2021!
Obrigada, Ana, amada, por todo carinho e dedicação nas betagens! ♥


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