POV Sooyeon.
Minhas pernas fizeram o caminho sozinhas, firmes. O meu corpo estava automaticamente indo em fervor para a construção decaída sem sequer precisar da minha ajuda.
Pude ouvir a grama molhada estalar logo atrás.
— Yah, Sooyeon! Ficou maluca de vez?!
— Sai fora, Taehyung.
O outro conseguiu me alcançar e puxou meu pulso para si, fazendo com que eu encarasse o seu rosto confuso e ofegante. Como já era de se esperar, os olhos intensos e escuros não me deixavam ler sua mente.
— Me solta.
— Não.
Bufei, revirando os olhos. Tentei me desvencilhar de seu toque, mas estava impossível.
— Ora, ora. — reconheci a voz de longe. Virei o rosto para trás dando de cara com o irmão de Jimin. O riso soprado que dera me subiu os nervos - mais ainda. Ele sorriu de canto, debochado, e sumiu dentre a entrada da igreja surrada.
O ódio que senti foi tão grande que me arranquei em passos pesados, quase derrubando Taehyung que tomou meu braço de volta sem aviso algum.
Como se fosse uma atração de circo, olhares silenciosos cravaram em mim. O ar daquele lugar me sufocou. Na mesma hora a sensação asquerosa de estar ali implorou para que eu saísse e me poupasse. Os burburinhos não foram tão repugnantes quanto o olhar do homem grisalho, que sorriu, sobre um pequeno palco revestido num carpete aveludado em vermelho.
Diferente do lado de fora, o salão limitado transbordava requinte. Paredes brancas igual neve, teto de gesso acartonato com luzes claras e embutidas. Era frio, na medida certa. Tocava ao fundo uma música em violino quase inaudível.
Era como encontrar um oasis no deserto.
Não tinha muitas pessoas, talvez menos de dez. Todas muito bem vestidas, senhoras empacotadas dos pés à cabeça com roupas tão modernas quanto meados dos anos 1920.
Alguns homens usavam ternos, todos pretos. Apenas um estava diferente; o terno branco o destacando no meio de todos.
Sem deixar de olhá-lo nos olhos com certo sarcasmo, sentei em um dos vários bancos compridos e estreitos de madeira envernizada calculadamente enfileirados. Ofegante, Taehyung surgiu, o olhar apreensivo deduzindo que me xingava mentalmente. Junto dele, Hoseok e Yoongi.
— Você realmente ficou maluca. — murmurou, sentando ao meu lado. Todos nos encaravam como alienígenas.
— Agora que percebeu? — sussurrei.
— Boa noite, irmãos. — o tom
sereno e polido, com resquícios de sátira, fez todos se calarem. Ele ainda me fitava, parecia instigado. — Ao que me parece, temos visita hoje. Por favor, mostrem que são bem-vindos.
Todos bateram palmas e ressoaram um amém coletivo que arrepiou dos pés à cabeça.
— Hoje, como de costume, iremos orar antes de qualquer coisa.
Sistematicamente, tal qual computadores programados, fecharam os olhos e abaixaram as cabeças. O silêncio tomou conta, sendo apenas interrompido pela voz calma.
Tão calma que chegava a ser irritante, rangendo em meus ouvidos.
— Senhor, estamos aqui mais uma vez. Reunidos em Teu nome, para aprender e estar em comunhão. Peço que me use, como em todas as vezes, para trazer a salvação para todas essas pessoas. Peço que não as abandone e que me dê a permissão de conduzí-las até Ti, Senhor. Amém.
— Amém!
Em uníssono as vozes ecoaram altas, fortes. Outra vez olhos nos olhos com o pastor, proferi um amém sem voz, apenas com os lábios, observando seu sorriso doce.
— Irmãos. O Senhor tem me dito para partilhar convosco Sua nova palavra quanto aos Céus. — mais améns — Na última madrugada Ele me encontrou e me contou sobre novas bençãos, sobre o que ainda estamos fazendo de errado. Sabemos, após tanto tempo de estudos juntos, que logo seremos levados para o Paraíso. O Grande Dia está mais perto quanto imaginamos. E precisamos estar preparados. Entregues de corpo e alma. Precisamos dar tudo que há em nós para obter a Soberana Salvação. Precisamos expurgar todo o mal de nossas vidas. Limpar nossas almas impuras enquanto temos tempo!
— Amém!
— Glória!
— Glórias!
— Suas palavras tocaram meu coração e Ele me ordenou que as compartilhasse.
Os olhos enrugados nos cantos ainda permaneciam grudados como chiclete velho nos meus. Cada palavra sua me causava ânsia.
— Glórias!
— Esse lugar tá me dando calafrios. Podemos ir embora? — escutei o sussurro quase insonoro de Hoseok.
— Ele nos instruiu à expurgar todas as Almas Sujas antes da próxima Lua de sangue. O fim está próximo, meus irmãos. Devemos nos apressar se quisermos ter a Grande Salvação. — mais améns. — Por favor, querida Sooyeon-ssi, poderia vir até aqui?
Suas orbes exalavam asquerosidade. Meu estômago embrulhou numa breve hesitação, mas nunca fui tão firme em meus passos. Assim que levantei, de queixo erguido e semblante intrêmulo, um braço se estendeu à minha frente encostando em minha barriga. De soslaio, pude ver Taehyung me olhar apreensivo e balançar a cabeça em negação.
Ignorei o seu "ei" e caminhei obstinada. Não sentia medo, com certeza, mas, ao mesmo tempo, meu corpo dizia para recuar.
Foram alguns passos para chegar ao púlpito. O pastor esboçava um sorriso ladino nos lábios finos que mal conseguia saber se tinha uma boca ali ou não. Ele exalava empáfia, não deixou de me encarar olhos nos olhos nem por um segundo.
À sua frente, retribui com o rascunho de um sorriso de canto.
Sua mão, sem aviso algum, tocou minha cintura por trás fazendo com que eu me virasse para as pessoas. Um tremor me pegou desprevenida e me fez engolir em seco.
— Essa garota. Veem algo nela, irmãos? Pois eu digo. — senti seu olhar me fitar de soslaio num mirar falcatruo. — Ela não é uma Alma Suja, não, não. Temos aqui, igreja, uma Alma Imunda.
Um burburinho tomou conta do lugar, ri soprado. Sua mão, que ainda se encontrava tocando minhas costas, apertaram minha cintura de maneira que um calafrio me percorreu da cabeça aos pés. Todos os meus músculos retesaram, meus pensamentos ficaram vazios por alguns segundos.
Estava tão extasiada que meus olhos se perderam pelo cômodo branco sem saber para onde irem até se encontrarem com os de Taehyung. Ele quis levantar, mas a mão de Yoongi o parou. Vi seus punhos cerrarem assim como seus dentes também os fizeram com força.
Taehyung tentou outra vez, entretanto dessa vez eu o impedi negando com a cabeça.
Queria ver até onde o pastor iria com aquele teatrinho.
— Ergam as mãos!
Todos ali o obedeceram como um rei manda em seu reino. Todos, menos Taehyung, Yoongi e Hoseok. Mesmo Jimin o fez.
— Santo Pai! Peço aqui em Teu nome! Livra essa alma da sordidez do pecado! Limpa este ser sujo e o traz de volta para Os Teus braços misericordiosos!
— Você é patético.
Sussurrei como um sopro. Sua oração teve um fim abrupto. Mais uma vez seus dedos apertaram meu corpo.
— Irmãos. - o pastor - de lobos - enfim abriu os olhos afiados, deu para sentir seu deboche se desmanchar em raiva. Confesso, foi bem prazeroso tirar aquela fajuta atuação de homem benevolente. — Hoje é mais um dia da provação divina.
Ele usou a força na mão para me virar outra vez, como um boneco, ficando ao seu lado. Inspirei fundo e bufei.
Apertando bem o microfone, o de cabelos grisalhos riu soprado se afastando em passos vagarosos.
— Mais uma sentença foi dada. Mais um limite de pecados foi ultrapassado e destruiu outra vida. Uma vida que tentamos salvar. — deu alguns passos pelo púlpito. — Não conseguimos. Sua alma não resistiu à perversidade, à mordacidade, ao fadado Inimigo. Fizemos de tudo para trazê-lo na direção da Soberana Salvação, porém foi em vão. Lamentemos.
Ele fechou os olhos e curvou a cabeça. Assustadoramente ao mesmo tempo todos repetiram o gesto. Virei o rosto para o lado e vi o maldito velho sorrir de escanteio.
— Amém, irmãos. Diácono Park, traga-o.
Um homem, que aparentava ter por volta de seus 54 anos, assentiu. Ajeitou a gravata em seu pescoço e foi até uma porta de madeira escura no fim do púlpito. Observei a maçaneta girar e uma roupa surgir tão branca que meus olhos arderam.
Era um senhor. Seus cabelos respingando castanho em meio aos fios brancos; estava curvado como um corcunda, completamente magro, com o olhar vazio e andando devagar apoiado no Diácono Park.
Tão sem vida que parecia estar sendo arrastado.
— O sr. Kim não resistiu às tentações do inimigo. Infelizmente, a sua Sentença da Alma foi estabelecida.
E então o senhor foi jogado ao chão, me fazendo arregalar os olhos e tremer a respiração.
Logo, pessoas se puseram à sua volta com varas de madeira nas mãos.
No primeiro açoite virei o rosto, comprimindo os olhos com força. O estalo foi estarecedor. Meus punhos se fecharam; as unhas afundando nas palmas.
Não consegui abrir os olhos, me recusei. O barulho alto soava como se mastigassem a carne alheia. Estremeci, a respiração se tornando tão trêmula que mal dava para conter seu som. Foi ai que algo segurou meu pulso e me puxou, me obrigando à abrir as pálpebras.
As mãos enrugadas agarraram meu rosto, travando o queixo. Forcei para virar a cabeça e pude sentir meu maxilar estalar com a força que o seguravam.
Sangue escorria tingindo o chão de escarlate; gemidos de dor eram contidos a ponto de rasgarem os lábios do senhor. Sua carne latejava, pulsante, os olhos alheios se reviravam enquanto ele repetia amém compulsivamente.
— VOCÊS SÃO LOUCOS! — tentei me soltar aos gritos, me desvencilhando e cambaleando.
E, como se a luz furtasse a escuridão, antes que eu caísse, braços me reteram e uma mão afundou meu rosto no peito alheio.
Senti as pernas fraquejarem de maneira que quase cedi, a voz simplesmente sumindo como se ficasse muda. Sequer notei quando já estava do lado de fora.
— Ei. Ei!
O tom grave adentrou o vago em minha mente. Atônita, ergui o rosto e um alívio tomou conta fazendo meus ombros caírem assim que minhas orbes alcançaram as de Taehyung. Ele tinha a respiração trêmula; as íris castanhas vasculharam cada canto meu. Com uma de suas mãos, ele passou o dígito em minha bochecha úmida.
Quis, novamente, esconder meu rosto em seu peito, ao invés disso, recuei.
Retesei as palmas das mãos em seu peito e dei mais um passo para trás. Estava tonta, mas consciente o bastante para ter noção de todo o absurdo que havia acabado de ver. Balancei o corpo para trás e para frente.
Era surreal. As cenas não paravam de se repetir em minha cabeça por mais que eu tentasse. Subitamente, Jeongguk adentrou em meus pensamentos como uma avalanche.
— O que... O que fizeram.. O que fizeram com ele... — balbuciei — O QUE VOCÊS FIZERAM?! — esganicei, olhando para trás e sendo, mais uma outra vez, impedida por Taehyung ao tentar entrar na maldita igreja de novo. — Me solta. Kim Taehyung, me solta. Eu disse pra me soltar!
Yoongi surgiu na porta, seu peito subia e descia frenético enquanto ele sacudia a mão como se estivesse machucada.
— Vamos sair daqui. — o moreno ditou sério. Hoseok não estava em lugar algum em que eu o procurasse.
— Sooyeon... — Taehyung segurou minha mãos, os dedos esguios a apertando de jeito ameno. Ele também chorava.
Abaixei o rosto e separei nossas mãos, passando direto por ele em direção ao hotel. Os degraus rangeram com cada passo firme, meus pés quase afundavam a madeira velha evitando apenas a que estava quebrada.
Minha cabeça estava uma bagunça. Nem me importei quando os coturnos mergulharam na lagoa de sangue que ainda estava no corredor. Dei de cara com Hoseok.
Ele estava pálido, as mãos tremiam encolhidas perto de seu queixo. Hoseok teve um breve espasmo quando me percebeu ali, estava completamente alarmado.
— So-Soo...
— Sai da porta do meu quarto.
Ditei de cara fechada e o vi engolir em seco, os pés hesitando.
— Eu quero ir embora.
— E quem quer ficar, uh? — o mirei com a respiração pesada, a voz se agravando enquanto cerrava os dentes. — Acha que alguém quer ficar?!
— Ei, não desconta nele! — foi a vez da voz de Yoongi se agravar, saindo do outro quarto.
Nos encaramos, brasa com brasa.
— Sooyeon-ah!
Taehyung surgiu ofegante no corredor, não parou para olhar mais nada e apenas veio até mim.
— O que vamos fazer agora? — Hoseok divagou, o tom rouco falhando ainda na garganta.
— O que espera que a gente faça? — Taehyung enfim levou os olhos a Hoseok. — Não temos como sair daqui. Não sem o carro. É como uma rua sem saída.
— Uma rua sem saída tem saída, é só voltar por onde entrou. — Yoongi retrucou.
— Não podemos ir. Não depois disso.
— O quê? Você é maluca? — bufou, passando a mão nos cabelos.
— Ela tá certa.
— A maluquice é contagiosa? — Yoongi encarou Taehyung incrédulo.
— Quantas pessoas mais eles vão fazer aquilo? Eles não são deuses, não têm o direito de fazer isso. Isso é massacre. Eles estão matando pessoas! Vai mesmo ir embora e deixar isso continuar?
— É só ir chamar a polícia.
— A polícia não vem. E, mesmo se vier, não vão fazer nada. — ditei já em frente à porta de meu quarto. — Esse lugar é como se estivesse inalcançável, um lugar no meio do nada, uma miragem de deserto. Ninguém vai vir. Ninguém vai sequer acreditar.
O silêncio perdurou.
— Onde vai dormir? — Yoongi falou baixo fitando Taehyung. — Afinal, seu quarto já era.
— Comigo. — disparei, colocando a chave na fechadura enferrujada.
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