História Projeto Ackerman - Capítulo quatro

Atônito. Essa é a palavra que melhor poderia descrever o estado de espírito de Eren após apresentação da proposta que posteriormente viria a ser aprovada e batizada de “Projeto Ackerman”. Ter sua mente colocada mais uma vez em conflito de certo e errado acerca do dilema sobre priorizar o sentimento de amizade ou seus deveres como soldado o havia deixado completamente desconcertado.

No fundo Eren sabia que deveria conversar diretamente com Mikasa, mas não se sentia preparado para encara-la, tampouco se sentiria à vontade em falar com qualquer outro que não fosse a única pessoa capaz de entender o seu ponto de vista em relação um assunto tão delicado quanto aquele, e por isso se manteve especialmente quieto e afastado dos demais companheiros do exército até o anoitecer, quando sabia que Armin estaria seguindo sozinho para o alojamento.

-Armin, espera! –Chamou pelo amigo tocando-lhe em um dos ombros, o que o fez deter os passos –Sabe onde está a Mikasa? –Perguntou apenas para se certificar de que a garota não os surpreenderia durante a conversa que estaria prestes a iniciar.

-Já foi para o alojamento feminino, ela estava bastante preocupada com você. –Respondeu lhe dirigindo um olhar confuso. –Você não apareceu no refeitório para jantar.

Eren vacilou por alguns instantes, mas ao encarar o olhar de Armin e perceber que o loiro já fazia ideia do que o atormentava, decidiu ir direto ao assunto.

–Na reunião de hoje à tarde, quando disse que entendia o porquê da proposta da Hanji, você falava sério? Você realmente concordaria com aquilo?

Armin o encarou por alguns instantes ponderando se deveria ou não dizer tudo o que realmente pensava. Optou pela verdade:

-Sim. –Desviou o olhar antes de prosseguir. –Eu sei que você vai me odiar por pensar dessa forma, mas...

-Não. –Eren interrompeu, não era necessário que Armin lhe dissesse tudo o que já havia discutido mentalmente consigo mesmo ao longo do dia. –Eu entendo, entendo perfeitamente.

Primeiramente Armin o encarou com uma expressão igualmente confusa e surpresa, mas logo foi capaz de compreender o dilema de Eren.

-Então, você acha que ela deveria ter aceito?

-Eu não sei. –Confirmou. –Essa maldita pergunta não sai da minha cabeça desde aquela maldita reunião. –Colocou uma das mãos sobre a cabeça, num gesto que representava toda sua dubiedade.

-Comandante Hanji já disso tudo o que deveria ser dito, então eu não seria ninguém capaz de complementar o assunto. –Fez uma pequena pausa analisando os efeitos que suas palavras surtiam no outro, sabia que aquilo por si só não traria conforto ao amigo, mas sua intenção era apenas ajudá-lo a se confrontar. –Afinal a proposta já foi renegada, não precisamos mais nos ocupar com isso.

-Eu sei, ela deixou bem claro que a decisão final dependeria da Mikasa e do capitão. Eu não deveria me preocupar com isso, mas... –Vacilou em continuar.

-Mas...?

Os olhos de Eren correram de Armin para o chão, onde passou a fitar os próprios sapatos enquanto organizava as ideias em sua cabeça em busca de uma resposta coerente o bastante para satisfazer a si próprio.

-Se eu precisasse oferecer o meu corpo... quer dizer, você sabe! É pelo bem do nosso povo, se eu precisasse, eu o faria sem questionar. Mas não é de mim que estamos falando, é a Mikasa! Não seria justo pedir isso a ela... –Fitou novamente o amigo nos olhos antes de perguntar. -Não seria justo, não é?

Armin apenas o encarou com uma expressão que era fora incapaz de decifrar, e assim permaneceu por alguns instantes antes de decidir que realmente deveria levantar aquela questão.

-Ela jamais aceitaria essa missão. Existe uma coisa que a Mikasa põe à frente de seus deveres como soldado, para ser mais exato, que ela põe à frente de qualquer coisa. –As palavras eram claras, porém foram suficientes apenas para que Eren o encarasse com um semblante ainda mais confuso.

-“Algo que ela põe à frente de seus deveres como soldado”? –Repetiu como que tentasse processar o significado daquela frase.

-Sim. –Confirmou. -Eu não sei como você nunca notou, ou talvez você apenas se recuse a perceber... não é preciso muita sagacidade para isso, até mesmo eu já percebi faz tempo...

-Armin, do que você está falando? –Sua expressão confusão ganhava um teor preocupado. –Pare de enrolar e diga logo de uma vez!

-A forma como a Mikasa te trata, o jeito que ela te olha. A forma como sempre foi... você nunca percebeu... algo a mais nisso?

“Algo a mais.”

Subitamente tudo passou a fazer sentindo. Mikasa sempre estava por perto, sempre o protegendo de forma incondicional, sempre se dispondo a ele com uma lealdade obstinada e quase compulsiva. Sempre fora daquela forma, desde que eram apenas crianças... Como ele nunca percebeu que sempre houve “algo a mais”?

-Algo a mais...

Pronunciou as palavras sentindo cada efeito daquela revelação enquanto milhares de lembranças invadiam sucessivamente a sua mente. Pensar que a menina que crescera junto a ele quase como uma irmã o via de uma outra maneira o deixara em meio a um turbilhão de emoções e sentimentos. –Como ele pôde ter sido tão ingênuo durante todos aqueles anos?

-Eren. –A voz de Armin o despertara de seu transe. -Você também sente algo por ela?

Aquela pergunta o pegara completamente de surpresa. A verdade era que Eren sequer tivera tempo de confrontar seus próprios sentimentos acerca disso, mas aquela curta palavra saíra de sua boca de forma quase automática:

-Não. –Respondeu de imediato, mas sentiu-se na obrigação de complementar. -Mesmo que eu  a quisesse dessa maneira, eu jamais seria capaz de oferecer o que ela precisa. Eu não tenho pela frente uma vida longa. –Afirmou.

Ao ouvir aquela resposta, Armin involuntariamente articulou um meio sorriso tênue, que logo desapareceu quando novas palavras começaram a se formar em seus lábios:

-Eu fico aliviado por você compreender isso, não seria bom que sofresse dessa forma. –Justificou.

- Você acha que se não fosse por mim, ela aceitaria essa missão? –Recobrou o assunto inicial, que de certa forma não lhe pareceu mais tão importuno se comparado a todo o rumo que aquela conversa havia seguido.

-Sinceramente, eu não saberia te dizer. Eu nunca sei como seriam as ações da Mikasa se ela não fosse tão ligada a você, em relação a isso ela sempre foi tão...

-Dependente. –Eren interrompeu completando. Não era exatamente aquilo que Armin iria dizer, mas ainda assim pareceu se encaixar na frase ainda mais perfeitamente.

-Sim. –Armin reforçou, e a forma aquilo soara atingiu Eren como uma súbita pontada no peito.

Mikasa era alguém tão forte, tão capacitada e uma pessoa extremamente valiosa para a humanidade. Ela nascera assim, ela tinha todo um legado para passar à frente enquanto tudo que Eren tivera fora o azar de ter sido escolhido por seu pai para cumprir um objetivo maior do que ele mesmo. Estava tudo errado. Ele não deveria ser sua prioridade, Mikasa não deveria se ater a ele nem como soldado e nem como mulher, ele não merecia, ELA não merecia.

-Não existe esperança para um futuro a longo prazo para nenhum de nós dois, mas ela não precisa passar por isso. Mikasa pode fazer parte de algo muito maior. –Concluiu em voz alta. -Eu não quero que a minha mera existência defina alguém, ainda mais alguém como ela.  –Completou, tendo como resposta de Armin somente um gesto positivo com a cabeça.

Fora assim que Eren se decidiu a procurar Mikasa na manhã seguinte a aquela conversa, e exatamente três semanas haviam se passado desde então. Graças a ele Mikasa havia aceitado participar daquela missão tão peculiar em conjunto com o capitão Levi, e talvez devido a isso um abismo acabou se formando na relação dos dois durante os dias que se sucederam.

Mesmo que ambos tenham evitado ao extremo mencionar qualquer assunto referente ao Projeto Ackerman ou aos sentimentos de Mikasa, até mesmo as conversas casuais que não envolvessem assuntos sérios ou oficiais da Tropa de Exploração tornaram-se cada vez mais raras e eles acabavam por se ocupar apenas em seus próprios afazeres. Eren passou a sentir um frio na barriga toda vez que se aproximava da garota. Era doloroso demais para ele saber que ela poderia estar sofrendo por sua causa, e se amaldiçoava por não conseguir encontrar forças para passar por cima da própria culpa e tentar oferecer a ela algum apoio mesmo sabendo que ela estaria prestes a enfrentar algo difícil para qualquer mulher em sua situação.

Eren frequentemente ele se lembrava da época de treinamento de seu esquadrão quando durante as noites no alojamento os outros recrutas iniciavam conversas com teor sexual. Foi assim que ele descobriu a maioria das coisas que sabia sobre o assunto, e isso incluía o fato de que uma primeira noite poderia ser bastante desagradável e dolorosa para uma mulher, e mesmo sabendo que era o certo a se fazer como soldado, imaginar que graças a ele Mikasa logo estaria na companhia de alguém como o capitão Levi passou a lhe tirar o sono.

Graças ao fato de Armin estar envolvido indiretamente com o planejamento da missão ao auxiliar Hanji em alguns aspectos, Eren soube por meio extraoficial que a primeira etapa da missão havia ocorrido na noite anterior. Apreensivo acerca de como a garota poderia estar se sentido sem alguém com quem pudesse contar, decidiu que procuraria Mikasa na manhã bem cedo, porém ao não encontrá-la no refeitório durante o horário do café da manhã, se dirigiu a Armin que logo se dispôs a ajudar a encontra-la, e após rondarem em volta das instalações da Tropa de Exploração, finalmente a localizaram realizando uma série de exercícios na área de treinamento físico.

-Mikasa?! - Disparou assim que a viu. Em resposta ela apenas lhe lançou um olhar abúlico, sem ao menos interromper a séria de flexões que havia acabava de iniciar. -Você não estava suspensa dos treinamentos?

-Fui dispensada de minhas funções no exército durante a execução da minha missão particular. –Respondeu citando quase as mesmas palavras que Hanji havia utilizado.

-Então você não deveria estar treinando! –Repreendeu. –Além de estar violando uma ordem superior, você pode acabar prejudicando sua saúde!

Mikasa interrompeu finalmente interrompeu a execução dos exercícios apenas para fita-lo com uma face impassível, no fundo ela sabia que estava errada ao desacatar uma determinação da comandante, mas aquela fora a única maneira que encontra para aliviar o estresse causado na noite anterior.

-Eu não estou grávida. –Disse retomando a repetição de onde havia parado.

Eren a encarou confuso, corando levemente ao se ver obrigado a iniciar o assunto de forma tão repentina.

-Então, você e o capitão Levi... vocês não...

Mikasa imediatamente estremeceu ao ouvir o nome de Levi, mas Eren estava tão concentrado em seu próprio rubor que sequer se dera conta.

-Sim. –Respondeu de forma direta, fazendo Eren ruborizar ainda mais devido a imagem que aquela resposta lhe causara, mas logo seu embaraço deu lugar ao verdadeiro semblante de preocupação. Ela não deveria estar sendo tão teimosa se tratando de algo tão sério.

-Então você não tem como ter essa certeza! E se você já estiver grávida? Você não apareceu para o café da manhã, você está se alimentando direito? –Disparava cada palavra continuamente enquanto Mikasa apenas o encarava ainda executando seus exercícios. -Vamos pare já com isso!  -Disse interrompendo os movimentos que ela insistia em fazer ao puxá-la em direção a si.

-Eren... –Mikasa corou levemente devido à proximidade do garoto, mas logo recuperou a postura ao lembrar-se de certas palavras ditas por ele durante a conversa de três semanas atrás. –Por que?

-Porque eu me preocupo com você, sua idiota! –Disse com falsa raiva. – Além de poder comprometer o andamento da missão, você não pode arriscar sua saúde desse jeito! Veja só, já está toda suada e... –Interrompeu a fala ao se dar conta de que Mikasa mantinha o cachecol vermelho. –Por que está usando algo assim para treinar?

-Senti frio quando acordei. –Improvisou evitando a resposta constrangedora, mas aquela justificativa era infundada, o sol brilhava intenso no céu e provavelmente a temperatura estava próxima dos 30ºC naquela manhã.

-Vamos tirando logo isso ou vai acabar tento uma hipertermia!

Em um movimento único, Eren desenrolou o tecido vermelho que cobria o pescoço de Mikasa, que de em sequência corou violentamente ao mesmo tempo que levou uma das mãos ao pescoço o mais rápido que pôde numa tentativa falha de cobrir o que o cachecol anteriormente cobria.

-Mikasa... o que aconteceu com o seu pescoço? – A expressão de Eren tornou-se completamente assombrada ao colocar os olhos em quatro marcas arroxeadas e inchadas que contrastavam com a pele alva da garota. –Foi o capitão fez isso com você? Ele te machucou? –Disparou elevando o tom de voz e assumindo uma postura quase agressiva. -Mikasa somente o encava com rispidez enquanto ele ainda aguardava pela resposta que ela se recusava a lhe fornecer. -Se ele te machucou por favor apenas me diga! –Disse pegando-lhe uma das mãos como forma de demonstrar proteção.

Eren agora possuía o semblante de um adulto marcado pelos fios de cabelos que cresciam chegando a altura de seu ombro junto a alguns fiapos de barba que começavam a crescer-lhe ao longo do rosto. O jovem rapaz certamente havia amadurecido muito durante aqueles dois anos que haviam se passado desde a retomada da muralha Maria, mas sua determinação ainda se manteve tão implacável como quando criança.

Mikasa corou ainda mais ao encarar os olhos verdes que a fitavam tão impetuosamente, ela não conseguia deixar de notar o quanto Eren se tornava um homem cada dia mais bonito, e graças a isso o rubor em seu rosto se tornou quase tão intenso quanto a cor do seu cachecol que ele agora tinha em mãos. Sacudiu a cabeça procurando afastar esses pensamentos, o filho de Grisha já havia deixado claro que sentia somente um amor fraternal por ela, era completamente sem propósito insistir em desejos que jamais viriam a se realizar principalmente considerando a situação em que eles se encontravam.

-Eren, eu não acho que ele isso signifique que ele tenha machucado ela... – Armin, que até então só observava o diálogo, corou levemente ao precisar tomar parte daquele assunto embaraçoso.

Mikasa quase achou graça da expressão que tomou conta do rosto de Eren quando ele finalmente deu conta do que realmente se tratavam aquelas marcas explicitas em seu pescoço, mas aquela era sua deixa para finalmente encerrar aquele assunto desagradável.

-Você tem razão, eu não deveria estar fazendo exercícios. –Desconversou desviando novamente o olhar ao livrar o rosto da mão de Eren e recuperando o cachecol vermelho que tratou de logo recolocar de volta em seu pescoço de forma que cobrisse cada marca. –Desculpe por ser tão tola. Jurei que não deixaria mais minhas emoções interferirem em meus deveres como soldado, e além disso eu prometi para você. –Disse em seguida dando as costas aos outros dois e caminhando em direção ao seu alojamento.

-Mikasa, espera! –Eren apelou intentando a segui-la, mas logo foi interrompido e amparando por Armin.

-Eren, deixa ela ir... –Utilizou um tom de voz baixo de forma que somente o moreno pudesse escutá-lo. –Talvez não seja agora a melhor hora para conversar com ela sobre isso.

Eren suavizou o semblante inquieto e desistiu de ir atrás de Mikasa, que seguiu em passos apressados para seu alojamento onde poderia derramar as lágrimas que corriam involuntariamente de seus olhos.