1. Spirit Fanfics >
  2. Redentore >
  3. Mercenário

História Redentore - Mercenário


Escrita por: EvoGonzalez

Capítulo 3 - Mercenário


***

A penumbra de um canto da taberna escondia os olhos de Haanon, negros como a mais escura noite já caída sobre a terra. Aos ombros repousavam os cabelos também negros emoldurando a pele dourada. No pensamento, talvez as mortes que sua alma carregava. Havia rumores de que centenas já haviam tombado sob o fio de sua espada. Algumas delas pagas a peso de ouro por quem desejasse livrar-se de algum inimigo ou desfazer de simples desafeto. Outras, por alguns desavisados que ousavam opor a seu caminho.

Trazia uma espada de fino metal, longa e afiada, pesada de modo que poucos homens a pudesse sustentar. Porém Haanon, cuja altura beirava ao estrado de uma porta e músculos de aço capaz de suportar a investida de um touro, a manejava habilmente. Contam que certa vez ele enfrentou um centauro errante mais pesado que os cinco sinos de bronze das torres do mosteiro de Buroth e o venceu usando apenas os baços. Sequer sua espada necessitou para separar o tórax humano do corpo de animal. Lendas que ele não desmentia nem confirmava. Entretanto, ajudavam a afastar aqueles que porventura cogitassem transpor seu caminho. Esses poderiam facilmente aumentar o número de vidas ceifadas por sua espada, e as lendas eram um imperioso desestímulo a quem o desejasse desafiar.

Alheio a lendas ou verdades, o fato é que sua fé estava na força dos músculos e no fio de sua espada, que para ele, eram superiores a qualquer espécie de magia. Mas ainda que desdenhasse da magia, ele a possuía no olhar, capaz de gelar a alma do mais corajoso dos homens. Aqueles que encontravam seus olhos tinham os pecados desnudados e a visão dos castigos a eles atribuídos. Por isso todos desviavam o olhar de sua íris negra. Resistiam apenas aqueles que tinham a alma digna.

De vida solitária, poucos eram os contatos com os humanos, quase apenas para combinar o preço do uso de sua espada. Também as necessidades da carne o faziam sair de sua vida solitária para adentrar nos prostíbulos, onde prostitutos conheciam sua generosidade com a paga pelos serviços ofertados. Já o amor não pertencia àquele coração frio.

O encontro com a vítima era quase sempre rápido. Apenas dava tempo para que o oponente se armasse e tivesse em condições de defesa, dizia o motivo e o preço, fitava os olhos para conhecer sua alma e a morte acontecia. Raramente uma luta mais duradoura. Apenas algumas vezes permitia ao oponente a oportunidade de batalhar um pouco mais por o julgar digno. Geralmente poucos golpes, muitas vezes um único. Quando a vítima corria se acovardando, a um comando seu amigo voador destroçava o vivente com suas garras afiadas até encontrar o coração e dele se alimentar. Clemência não existia e o preço das vidas ceifadas eram pagas a peso de ouro.

Ele jamais recusara um trabalho por julgar a vítima inocente, afinal, lhe bastava o pecado original. Apenas não mataria alguém cuja alma fosse digna, mas ele ainda não a havia encontrado em algum oponente. No entanto, ninguém se livra da culpa. Mesmo nos corações frios ela se instaura. Quando olhava nos olhos das vítimas e desvelava-lhes os pecados e os tormentos que teriam que enfrentar no outro mundo, os seus próprios suplícios e pecados também eram revelados. Por isso possuía a alma atormentada, com pesadelos que o faziam passar noites em claro e acessos de raiva o levavam à beira da loucura.

Assim estava ele envolto a seus pensamentos, compenetrado em sua caneca de cerveja quando em meio a muitas vozes, um diálogo lhe chamou a atenção.

- Combinamos dez denares, é justo que me pague o total – disse aos gritos Alek, um jovem prostituto que ganhava a vida nas noites daquela taberna e em alguns outros becos obscuros de Hamatur.

Dando as costas ao menino, apoiado no balcão, um estrangeiro consumia uma caneca de cerveja sem dar atenção àquele que a pouco tinha sido seu serviçal na cama de um dos quartos do lugar.

O menino olhou de soslaio para se certificar de que o mercenário estava atento ao que se passava, conferiu o pequeno saco de moedas que o gladiador trazia preso à cintura e continuou: - Fiz o que me pediu, quero meu dinheiro – bradou o rapaz, quando pegou uma caneca de cerveja em uma mesa próxima e atirou às costas do estrangeiro.

O homem virou-se ao prostituto e deu-lhe um soco que o jogou por sobre algumas mesas. O estrangeiro era um homem forte, um gladiador do norte capaz de vencer muitos homens em uma batalha.

- Não lhe pagarei nem um denar, seus serviços foram piores que os cabritos que me sirvo pelo caminho. Se deseja ganhar dinheiro, aprenda com os cabritos primeiro - disse em meio a um sorriso sarcástico já virando-se novamente ao balcão para mais um trago de cerveja.

- Fiz o que me pediu, fiz tudo como quis e sei que você gostou, seu rato imundo – gritou o garoto se levantando do chão entre risos dos homens que ali estavam, divertindo-se com a situação.

- Ninguém chama Rarzun de rato imundo. Você sentirá agora a minha ira – disse já precipitando sobre o rapaz.

- Pague o menino, estrangeiro, eu sei que ele faz bem e que vale o preço que lhe pediu – proclamou uma voz grave que veio de um canto escuro da taberna. Os risos imediatamente pararam. Todos ali, exceto o estrangeiro, conheciam muito bem o homem que pronunciara aquelas palavras.

- Quem ousa dizer o que deve fazer Rarzun, o gladiador no norte? Que saia da sombra e venha me fazer pagar, se tiver coragem e não for covarde com este aprendiz de cabrito – falou o estrangeiro com a ira de um titã, orgulhoso das vitórias que tivera nas arenas das terras no norte e certo de que jamais encontraria alguém capaz de vencê-lo em um duelo.

O gigante dourado levantou de seu acento e em poucos passos estava à frente do estrangeiro, já de espada em punho. Rarzun alcançou seu tacape da batalha com as pontas cravejadas de longos pregos afiados e desferiu contra Haanon. O mercenário, ágil como um tigre, desviou-se do golpe ao mesmo tempo em que, com sua espada, arrancou fora o braço que manejava o tacape e, ao momento que se recompôs da esquiva, segurou o gladiador pelos cabelos pronto para arrancar-lhe o pescoço.

- Haanon! - soou uma voz na entra da taberna.

O mercenário parou seu movimento e olhou por sobre os ombros.

- O que quer aqui um emissário de meu pai? – perguntou em tom de ironia, com um leve sorriso nos lábios.

- O rei... pede sua presença -. Deveria dizer que o rei ordenara a presença, mas faltou coragem para dar uma ordem ao gigante de pele dourada.

Haanon voltou ao gladiador, que sem um dos braços e sangrando muito, faltava-lhe força para qualquer espécie de reação. O mercenário fitou o gladiador no fundo dos olhos, deixando que ele sentisse o medo assolar sua alma.

- Quem diz a você o que você deve fazer é Haanon, o mercenário do sul –. O nome soou como brasa na alma do estrangeiro, que mesmo sendo de terras distantes, já ouvira as histórias e os temores que aquele nome representava.

O homem do norte tentou desviar o olhar, mas os olhos já haviam cruzado. Era, portanto, tarde demais. O que Rarzun viu nos olhos do mercenário lhe causou um temor profundo que suplantou até mesmo a dor que estava sentindo. O gladiador viu como sua alma pobre, sem a grandeza necessária para viver dignamente entre os demônios, iria sofrer no mundo inferior. Do outro lado, feras terríveis o estavam esperando para castigar sua alma eternamente sem que ela se acabasse. Em momentos sentia fome e sede terríveis, enquanto criaturas superiores o ofereciam carniça e agua podre, sem que ele por mais que tentasse, conseguisse alcançar. Em outros, se via no deserto escaldante, com sua pele derretendo ao sol sem que sua vida se esvaísse. Caminhava rumo a um oásis que jamais conseguia alcançar, onde demônios se divertiam com comida, bebida e lindos meninos nus, que o olhavam com o canto dos olhos e sorrisos sarcásticos enquanto acariciavam com a língua, as partes sensíveis dos demônios.

Ele viu nos olhos de Haanon todo o suplício que sua alma iria enfrentar; todos os pecados que teria que pagar; todas as lamúrias pela condenação eterna de sua alma pobre. Com a boca entreaberta e olhos arregalados tentando se afastar do olhar de Haanon, se esforçou para levantar o braço que lhe restava em uma necessidade imperiosa por clemência. Ele desejava a todo custo, adiar sua passagem ao submundo que ele agora conhecia.

Porém, não houve tempo para clemência. Haanon desferir o golpe final decepando-lhe o pescoço. A cabeça ficou à mão do mercenário enquanto o corpo se estendeu ao chão, esvaziando todo o sangue naquela taberna imunda. Jogou pela janela a cabeça ensanguentada enquanto ouvia o granido dos cachorros a disputarem o alimento. Então, arrancou o pequeno saco que o gladiador trazia amarrado à cintura e dirigiu-se ao jovem prostituto que acompanhava a cena com um sorriso imperceptível no canto dos lábios.

– Aqui tem mais do que ele lhe deve, mas ele não precisará do troco, fique com tudo – disse enquanto jogava o pequeno saco com moedas de ouro a Alek, o prostituto, que logo pegou sem fazer cerimônias, esquecendo-se, inclusive, da dor que trazia no peito pelo soco recebido do gladiador.

O prostituto foi até Haanon, envolveu com os braços seu pescoço, ficou nas pontas dos pés e colocou sua língua rosada na pele dourada do peito desnudo do mercenário. O lambeu deliciosamente, passando pelo pescoço e chegando até às orelhas. Sua língua penetrou profundamente contorcendo-se como uma serpente no sulco da orelha, dando pequenas mordidas no ouvido e sugando o ar que nele continha.

- Obrigado Haanon, quando precisar de mim, estarei sempre à disposição – disse o jovem em um sussurro.

O mercenário já com os pelos arrepiados, envolveu suas mãos nas nádegas do prostituto trazendo-o para próximo de si. Alek, em um pequeno salto, cruzou as pernas à cintura de Haanon enquanto recebia mordidas em seu juvenil e liso peito. A boca do mercenário deslizou pelo pescoço do jovem chegando ao queixo envolvendo-o em uma pequena mordida. Haanon sustentou o corpo do jovem com um só braço, enquanto a outra mão entrelaçou os cabelos do menor pouco acima da nuca o trazendo para si. A boca do mercenário encontrou os lábios carnudos do prostituto e as línguas se entrelaçaram com pequenas mordidas em um lábio e outro.

Os que estavam ali presente, ainda que os observassem com a visão periférica, não ousavam olhar diretamente nem tecer qualquer comentário, pois apreciavam por demais suas vidas. O menino, porém, não se incomodava por encontrar os olhos do mercenário, pois o que via era ele em meio a majestosos demônios, dos quais ele se alimentava das almas através de seus músculos rígidos. Depois do ato, serviam deliciosas uvas em sua boca de lábios carnudos.

Esquivando como uma serpente, o menor desceu do colo do mercenário.

- Por certo precisarei de ti, mas pagarei pelos serviços – disse Haanon quase com um sorriso aos lábios, mesmo o sorrido não sendo muito amigo da face do mercenário a menos que fosse para ilustrar uma de suas ironias.

- Nunca disse que não ia cobrar - falou o menino com um sorriso no canto da boca, dando a última lambida no peito de Haanon e uma leve mordida em seus mamilos, enquanto tinha uma das mãos por entre as pernas do gigante de pele dourada a lhe apertar o músculo crescido. Desvencilhou-se do mercenário e seguiu seu caminho apalpando o pequeno saco de dinheiro. Tentava imaginar a quantia que nele continha até estar afastado para conferir o pecúlio. Mesmo com certa dor no peito pelo soco que recebera do gladiador, estava feliz, tudo havia saído conforme planejara.

Após observar o prostituto se afastar, voltou-se para o emissário do rei que estava à porta esperando, estagnado com a sequência de cenas que presenciara. - Diga ao rei que recuso a audiência – proferiu em tom sóbrio e sarcástico.

- Hakin disse ter um trabalho, seu preço será pago – disse um tanto trêmulo o emissário real.

- Hakin! Então é ele. Irei ver o que quer o lacaio de meu pai - Disse mais para si que para o mensageiro.

Haanon mesmo não apreciando a coroa, já havia feito vários serviços ao rei e a Hakin, pois eles reconheciam seu valor e pagavam bons preços. Deixou então a taberna e se dirigiu ao cavalo negro que o esperava a poucos passos dali.

- Desocupe o assento, Carjan, temos um trabalho a fazer, vamos ver o que deseja vossa majestade, o rei – falou com um leve sorriso para si mesmo ao canto da boca.

Um enorme falcão negro levantou voo da sela do Shire negro e Haanon em um só golpe se pôs sobre o cavalo.

- Vamos Uhon, aproveitemos a luz do luar para contar as moedas do rei – O cavalo levantou as patas dianteiras ao ar, deu um belo e majestoso relincho e partiu veloz rumo ao castelo, distanciando daquela taberna cravada no meio da floresta. O falcão os acompanhava voando a poucos braços acima da copa das árvores.

Por um tempo cavalgaram pela trilha na floresta que ligava aquela taberna ao vilarejo nos arredores do castelo. A lua já em mediana altura no céu trazia as sombras obliquas das arvores por sobre a montaria e seu cavaleiro. As corujas, lobos e demais criaturas noturnas entoavam a música da noite, tão apreciadas pelos ouvidos do mercenário. Fazendo coro às inúmeras vozes, vez ou outra Carjan, o falcão, soltava seu granido por sobre as copas das árvores, destoando as demais cantigas que se silenciavam ante a voz imponente de tão majestosa criatura.

Ao caminho alguns elfos escondidos por entre as árvores e arbustos no interior da floresta, observavam atentos o cavaleiro que deslocava rápido pela trilha na mata. Seus olhos brilhantes confundiam-se com os vagalumes que serpenteavam no interior da floresta densa, onde os raios do luar eram impenetráveis. Seguindo o determínio dos mistérios noturnos nas florestas, ratos e outras pequenas criaturas jaziam presos nas garras de gigantes morcegos que saiam das cavernas à busca de alimentos.

Alheio à movimentação da noite, o mercenário apenas se atentava para a brisa que lhe batia ao rosto. Porém, antes que metade da ampulheta passasse de um âmbula a outra, Haanon deixara a floresta. Em pouco tempo começou a percorrer o vilarejo, já avistando o castelo à frente, com suas torres bem definidas pela luz do luar. Logo as sombras do castelo escondeu a lua e a imensa ponte levadiça começou a baixar. O magnífico Shire e sua montaria pararam frente a ela. O imenso falcão, após um granido estridente para delatar sua presença e demonstrar poder, pousou aos ombros de seu senhor, acariciando as orelhas do mercenário com as pontas do bico.

À ponte levadiça, apareceu um homem de altura mediana envolto por uma túnica negra que se estendia até os pés. Um capuz pontiagudo lhe cobrir a cabeça. A seu lado, dois soldados prontos para desembaiarem as espadas. Poucos passos atrás, outros dois com arcos às mãos. O homem segurava um pacote.

- Aguardado às portas do castelo por aquele que manipula meu amado pai. Quanta honra – disse Haanon balançando as mãos e curvando-se sobre o cavalo em sinal de reverência.

- Não me deixarei aborrecer por suas ironias, mercenário, não tenho tempo para isso - comentou mantendo o olhar baixo para fugir da íris negra de Haanon - vamos logo ao que interessa – sua fala denunciava a irritação com o sarcasmo do mercenário de pele dourada.

Com um simples sinal, sem que os outros homens percebessem, Carjan levantou voo suavemente dos ombros do mercenário, passou por sobre os muros do castelo e pousou em uma das manivelas que sustentavam a ponte levadiça, estando posicionado atrás dos soldados, sem ser notado.

- Para que meu amado pai enviasse seu primeiro ministro há de ser um trabalho importante. Um bom preço será pago, eu presumo -. Sua fala acompanhava de um sorriso que irritara o conselheiro do rei. Por certo mataria aquele mercenário se pudesse, mas lhe faltava coragem para a investida.

- Será pago o preço que vale o trabalho, supondo que será feito a contento, falhas não serão toleradas, você sabe.

- Quem pesa a falha sou eu. E não aceito ameaças, lacaio do rei. Se não tiver satisfeito da forma como faço, que procure outro para fazer o serviço -. Falou com a fronte franzida, dando pequenas estocadas nas rédeas de Uhon que bailava mostrando inquietação. Os soldados também se agitavam sem saber que decisão tomar: correr ou ficar para defender Hakin.

- O trabalho é especial, é uma tarefa perigosa e por isso você foi escolhido. Ainda que o rei não aprecie você por perto, temos poucas opções, você sabe. Mas sabemos perfeitamente que você executará o trabalho a contento, não foi minha intenção ofendê-lo – proferiu calmamente na tentativa de acalmar o gigante. Realmente ninguém executava um trabalho melhor que Haanon, principalmente os que envolviam sangue e perigo.

- Fiz vários trabalhos para ti e para o rei, nunca vieste me esperar à porta e nunca tratei deles contigo pessoalmente. Estou curioso para saber do que se trata o trabalho. Fale Hakin, adoce meus ouvidos – disse com sorriso nos lábios voltando ao seu estado de tranquilidade irônica.

- Este embrulho deverá ser lançado no Vale da Morte. Deverá ser arremessado do pico de Asmodeus, o mais alto que se possa atingir – falou levantando o pacote que trazia às mãos.

- É um local perigoso, poucos se aventuraram por aquelas terras. Há rumores de que criaturas estranhas residem naquela parte da floresta -. Enquanto falava, suas mãos acariciavam a face e seus olhos negros fitavam o conselheiro. No canto da boca um leve sorriso. Quanto mais perigoso o trabalho, maior a paga.

- Sim, eu sei. É um local que emana magia amaldiçoada, naquele local vive o urso de Balaam...

- Criaturas de carne e osso, todas podem ser mortas pelo fio de uma espada – retorquiu Haanon interrompendo a fala de Hakin.

- Você menospreza a magia, mas ela é muito fortes por aqueles lados da floresta, você vai ver, vai provar dela se aceitar o trabalho -. Agora quem tinha um sorriso nos lábios era o conselheiro.

- Dizem que naquelas águas vive Leviathan, um demônio devorador de almas. Falam que devora o corpo e a alma dos homens, não deixando sobrar nada, nem um resquício sequer de que o vivente passou pelo mundo dos vivos ou mortos, consome a carne e o espírito. É para ele que quer que eu leve esse embrulho, Hakin? – proferiu esticando o corpo por sobre o pescoço do cavalo para ficar mais próximo ao conselheiro, deixando sua voz soar como um sussurro em meio ao seu leve sorriso sarcástico.

- Você não reconhece o poder da magia e blasfema contra ela. Haverá o dia em que perecerá por ela – Falou como uma profecia.

- A mim são apenas tubarões! Tubarões é o que vive naquelas águas e tubarões é que irão consumir seja o que tiver neste pacote – comentou enquanto ajeitava novamente o corpo sobre o cavalo se mantendo ereto.

- O que você acredita não importa, contando que leve o pacote e o jogue onde é preciso, conforme lhe estou... dizendo -. Hakin quase disse que estava ordenando, mas sabia que se dissesse isso, receberia em troca a recusa do trabalho e talvez uma espada ao pescoço. Sabia que o orgulho do gigante de pele dourada estava acima de qualquer coisa, até mesmo do dinheiro, e ordem ele não aceitava de ninguém.

- Aconselho que faça as oferendas que forem solicitadas, ou terá problemas para chegar ao pico de Asmodeus – acrescentou o conselheiro.

- Isso não é contigo. A você e ao meu amado pai basta que eu leve o embrulho e jogue ao mar para que os tubarões comam, como farei isso e os meios que usarei é comigo. Vamos ao preço -. O tom de segurança trazia a certeza de execução do trabalho, certo de que apenas sua espada seria o suficiente para protegê-lo no caminho. Sabia da magia, mas acreditava na supremacia da espada.

- Cem moedas de ouro é o que ofereço.

- Não faço por menos de duzentas. O dízimo que a igreja cobra é alto, além disso, tem os cobradores de impostos de meu pai que vai o fazer reaver parte do meu soldo -. Após terminar a fala, uma gargalhada saiu de sua boca.

- Não vou me ater em suas ironias, mas tudo bem, seu preço será pago. Não temos tempo mesmo para negociações, o pacote terá que ser lançado antes do raiar do dia – disse com clara conotação de irritação. Sem fitar os olhos de Haanon, Hakin estendeu o embrulho até o mercenário. Ele o pegou e o balançou tentando adivinhar o que havia dentro, sentindo o cheiro de sangue e ópio.

- O que tem aqui feiticeiro? O que você e meu pai querem que eu jogue aos tubarões? - perguntou por uma leve curiosidade que lhe passou pela alma, observando atento o pacote que trazia à altura dos olhos.

- É fruto de um sortilégio, um feitiço que deu errado e por isso deve ser eliminado -. O conselheiro sabia que o mercenário não tinha boas relações com sortilégios, então pesou as palavras para naufragar logo sua curiosidade.

- Espero que esteja dizendo a verdade, lacaio de meu pai, porque eu não aprecio a enganação nem ser tomado como idiota - disse com as sobrancelhas amiudando os olhos e expressão ameaçadora, capaz de fazer tremer os maiores guerreiros do reino.

- Digo a verdade. Se não acredita, olhe e veja por você mesmo - falou em tom decidido.

Foi uma cartada perigosa. Se Haanon abrisse o saco e encontrasse os olhos do menino, poderia ver nele uma alma digna e recusar o trabalho. Por certo a cabeça de Hakin deixaria de estar unida ao corpo e sequer os soldados que o acompanhavam poderiam livrá-lo deste destino. Porém, sabia da recusa que o gigante tinha acerca de magia e tentou impregnar o máximo de verdade na fala para que o convencesse a não verificar o invólucro.

Por em momento o mercenário sustentou o pacote o observando, deixando transparecer indecisão quanto a abri-lo ou não, enquanto fitava o conselheiro para observar sua excitação. A alma de Hakin gelava e mal sentia o chão sob seus pés. Em seus poros, pequenas gotas de suor começaram a formar. O coração adquiriu um ritmo um pouco mais acelerado e a respiração tendeu a ficar levemente ofegante. Os soldados nada sabiam sobre o que estava acontecendo, mas sentiam a tensão que se formara entre os dois. Afligiam-se ante a possibilidade de terem que defender Hakin, sabendo que nada poderiam fazer contra o gigante de pele dourada. Porém o conselheiro sabia que qualquer deslize valeria sua vida, e manteve-se como estandarte sóbrio da verdade.

- Muito bem feiticeiro, levarei o embrulho aos tubarões - disse amenizando sua expressão e já atando o saco em sua sela.

A fala e a expressão de Hakin não o convencera, ficou claro que havia algo oculto, mas as duzentas moedas de ouro falaram mais alto. Preferiu crer que fosse uma omissão de segunda monta. O conselheiro voltou ao seu estado normal e o suor amenizou em seu corpo. Seu coração voltou a bater no ritmo normal e a respiração abrandou. Também o espírito dos soldados atenuou e eles afrouxaram os músculos, já que a possibilidade de morte iminente havia se afastado um pouco.

- Vamos então ao pagamento - disse novamente fitando Hakin e trazendo um suave sorriso à face.

- Aqui está, metade do valor. O restante depois do trabalho realizado. O preço é muito alto pra dispô-lo de uma única vez - comentou esticando o braço com um pequeno saco contendo as cem moedas.

Haanon, porém, não pegou o dinheiro, sacou antes sua espada desembaiando-a de imediato - Põe em dúvida minha palavra, lacaio do rei? Duvidas do que diz Haanon, o mercenário do sul? Duvidas que cumprirei o combinado? - disse irado enquanto maneava as rédeas de Uhon que bailava furioso frente ao conselheiro e seus soldados.

Carjan também deu um forte e estrondoso granido delatando sua posição, abriu suas enormes asas e levantou voo à pequena altura, fazendo com que os soldados se virassem apavorados a encararem o imenso falcão. Apesar de terem sacado a espada os que a possuíam, e armado os arcos aqueles que os tinham, as armas pareciam mais brinquedos às mãos de crianças, tão amedrontados estavam os guardas frente ao conhecido mercenário das terras do sul.

- Acalma-te Haanon, será como você quer então. Aqui está a outra metade - disse enquanto esticava as mãos oferecendo agora dois sacos de moedas, contendo as duzentas conforme combinado.

Haanon acalmou seu cavalo, embaiou a espada e pegou os dois sacos das mãos o conselheiro. Balançou-os próximo aos ouvidos e, sem contar, identificou pelo peso e tilintar as duzentas moedas de ouro.

- Muito bem feiticeiro, considere por realizado o trabalho - disse já maneando as rédeas de Uhon, que em um corrupio e um esplendoroso relincho, pegou o caminho da floresta - só espero que não esteja mentindo sobre o conteúdo do embrulho - comentou mais para si que para o conselheiro.

- Deve lançar o pacote cem passos mar adentro além do pondo mais alto do Pico Asmodeus. É lá que estará o Leviathan nesta noite de lua cheia. E não se esqueça de fazer as oferendas no caminho ou não chegará a seu destino. O urso de Balaam é o demônio guardião daquelas terras. Ele só quer que você demonstre respeito com uma simples oferenda de sangue. Pode ser de uma xinxila ou de qualquer outro animal que encontrar. Ofereça o sangue deles e poupará o seu - falou rápido e em voz alta enquanto Haanon, já a galope, se afastava do grupo à entrada do castelo.

- Se ele quiser sangue, terá o seu próprio, sob o fio de minha espada - disse o mercenário já se distanciando ao galope de seu Shire. Carjan, com um granido alongado e estridente, aumentou a altura de seu voo e seguiu do alto o cavaleiro e seu alado.

***

Ao galope do cavalo, o saco ateado à sela do mercenário sacudia batendo contra o corpo do Shire. Por vezes, esbarrava em galhos e arbustos. Porém, o contido em seu interior não emanava um movimento ou ruído sequer, pois o ópio o entorpecera totalmente.

Distante dali, nas profundezas do mar revolto, um monstro ansiava por se alimentar. Ele se alimentava de corpos e almas. Há muito tempo sua fome não era saciada.

***

 



Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...