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História Seacht - Seacht Saol


Escrita por: AyzuLK e ByaNamikaze

Notas do Autor


Esse é um especial. Representa o primeiro encontro, em cada vida, de nosso casal favorito. A ordem está disposta da última vida até a primeira. 

Capítulo 23 - Seacht Saol


E.U.A 1999

Mikoto Uchiha acreditava em destino. Seu marido, um homem cético que era, sempre a olhava de modo divertido quando ela falava sobre os deuses de seus antepassados no Japão, e a magia dos yokais que a seguiriam pelo resto de sua vida, mesmo que tenha deixado seu lar ainda muito criança após a morte dos pais. Fugaku era diferente. Ele era um homem criado desde sempre no ocidente, que via os contos que seus avós contavam como apenas contos para crianças.

Mikoto apenas lhe sorria com isso, sem discutir. Afinal, fora destino ela ter encontrado Fugaku. Assim como ela sabia que havia sido o destino que havia lhe trazido aquela pequena pessoa em uma manhã de neve na sua porta. Ela carregava uma barriga de cinco meses, e se despedira de um Fugaku angustiado que tivera que sair às pressas para uma missão de três dias. O filho deles mais velho estava com os avós em outra cidade desde o começo da semana.

Ela insistira que tudo ficaria bem, que ligaria qualquer coisa, tinha os números do médico. Mas claro que o marido não ouvira e enviara alguém. E foi o que a levou a encarar grandes olhos azuis, brilhantes, a encarando por baixo de uma toca laranja e por cima de um cachecol azul.

Mikoto ficou um momento estática, com um sorriso se desenhando em seus lábios e alcançando seus olhos. Uma mãozinha enluvada alcançou a sua sem hesitar, os olhos curiosos fitando sua barriga. Levantou o olhar ao perceber outro movimento e viu cabelos vermelhos. Muitos. Eram os irmãos, Kushina e Nagato. Fugaku devia ter ligado para Minato.

Deveria puxar as orelhas dele depois, Kushina morava em outra cidade, não devia ter incomodado, ela era uma jovem médica muito ocupada. Mas a ruiva sorria para ela de forma aberta, o rosto corado por baixo dos agasalhos. O irmão mais novo dela, um belo rapaz de 17 anos saia do carro na entrada, carregando algumas bolsas com um olhar preocupado no rosto até ver o menininho na sua frente.

—Não corra, Naruto! Está escorregadio!

Naruto. Então esse era o menininho deles. Voltou o olhar para a criança na sua frente, não devia nem ter três anos. Era pequeno, o olhar ainda curioso tinha um brilho diferente para uma criança. Era velho, antigo demais. E ela soube ali que ele era especial. Havia algo nele, algo antigo. Sentiu a mãozinha enluvada tocar na sua barriga e ouviu uma risada vir de Kushina atrás, todos calados esperando o que ele faria.

Sentiu o carinho em sua barriga, e a boca do menininho se abriu surpresa, ele soltou o ar, e então o sorriso mais lindo que já vira se abriu e aqueles olhos azuis estavam nela de novo.

—Noland!

Ergueu a sobrancelha com isso.

—Noland?

O menininho assentiu sério e beijou sua barriga. Kushina e Nagato riam abertamente.

—É irlandês. — Kushina falou, finalmente se movendo e lhe beijando o rosto, tocando sua barriga. Nagato a cumprimentou com um aceno e pegou o garotinho loiro no braço com carinho. Ele foi, mas continuou a olhando com olhos curiosos e felizes. —Minato insisti em o ensinar a falar. Sei que faz isso só para poderem me falar pelas costas quando ele crescer. Ele tentou o mesmo com Naa.

Kushina fez um bico e Mikoto riu com isso, lhes dando espaço para entrar.

...........

O barulho do aquecedor era reconfortante. Estava de meias quentes deitada no sofá, os pés inchados no colo da ruiva que os massageava enquanto conversava de forma animada sobre como Seattle era diferente de sua cidade na Florida. Não se viam há três anos. As viagens de Minato, e então o nascimento de Naruto. Tudo isso havia separado as duas amigas de universidade por muito tempo. As duas haviam se conhecido em Nova Iork, com 17 anos, cheias de energia para começar uma nova etapa. Mikoto uma jovem estrangeira, Kushina uma garota da fazenda no Texas com um nome incomum.  Dividiram dormitórios, e se tornaram inseparáveis.

Mikoto conhecera Fugaku também na universidade em seu último ano, e em três meses haviam casado. Fora Fugaku que apresentara Minato a Kushina. Ele era amigo de infância do loiro que morava do outro lado do país, também com um nome estranho, filho de irlandeses. Ao contrário deles mesmos, Kushina e Minato brigavam como dois jogadores encrenqueiros. Demorou um ano para perceberem o que todo mundo já sabia, que estavam apaixonados. Um ano depois os pais de Kushina morreram em um acidente, e Nagato fora acolhido com eles. Minato ficou feliz de ter um irmãozinho mais novo para cuidar, e era claro que Nagato o olhava como para um herói. Kushina falara que ele estava disposto para entrar na universidade para direito, e seguir a carreira do marido dela, para seu desgosto, que esperava que o irmão seguisse seus passos.

Era um menino bom. Um adolescente incomum. Calmo, e que pelo jeito, cuidava do sobrinho como um irmão mais velho superprotetor. Kushina apenas rolava os olhos quando o irmão se desesperava cada vez que o sobrinho tropeçava.

Era bom estar com Kushina de novo.

Mikoto observava o loirinho brincando de esconde-esconde o tio, se escondendo atrás de um sofá em que todos estavam vendo-o —inclusive Nagato — e que fingiam que não. E ele ainda estava tentando esconder os risos com a mão.

Impossível, filho da Kushina.

—Ele não é muito bom nisso. — Kushina falou divertida, seguindo seu olhar. Nagato apenas fingia que não o estava vendo.

Mikoto riu, e os olhos azuis se encontraram com os seus, e novamente aquele olhar a prendeu.

—Ele é lindo. —falou, olhando o rostinho corado pela ação. Era impossível não sorrir quando ele soltava uma gargalhada animada ao ser pego por Nagato, que o girava no ar. Era a criança mais linda que já vira.

—Fizemos direito. — Kushina falou orgulhosa. — Mas eu lembro de quando Itachi nasceu, você não tem do que reclamar. Ele pegou o melhor de você, ainda bem, e não a carranca do Fugaku.

—Kushina. — A repreendeu com o olhar e a ruiva deu de ombros.

—E o pequeno Sasuke vai ser a sua cara, estou vendo já. Dizem que o mais velho é o mais inteligente, e o mais novo o mais bonito. Se Itachi já é bonito, imagine Sasuke!

Mikoto riu da outra, e foi quando sentiu mãozinhas de novo na sua barriga. E lá estavam aqueles olhos azuis nos seus, sérios; ele beijou sua barriga e Mikoto sentiu o bebê chutar. O loirinho riu, as mãos acariciando o ventre volumoso. E Mikoto sentiu uma paz plena, uma felicidade que parecia não vir apenas de si, mas do bebê.

Is maith liom é. — O loirinho falou, a olhando com expectativa.

—Hum?

—Ele está dizendo que gosta dele. — Nagato traduziu, ainda sentado no chão, olhando o menininho com orgulho. Mikoto sorriu e o bebê chutou de novo.

—Parece que ele gosta de você também, pequeno. — Ela falou, uma mão na barriga sobre a pequenina, e a outra nos cabelos loiros rebeldes. O menininho a olhou, e novamente teve aquela sensação, de algo antigo. Ele sorriu como se soubesse de um segredo que ninguém mais tinha conhecimento, os olhos de um azul agora mais cinzento.

Ele assentiu, em um gesto tão distinto que não parecia certo em alguém de tão pouca idade. Kushina também franziu a testa, intrigada. Apenas Nagato permaneceu impassível, como se já houvesse presenciado aquilo muitas vezes no pequeno. A mãozinha acariciou mais uma vez sua barriga, dessa vez murmurando algo baixinho.

Quando terminou, beijou a barriga, e beijou sua mão.

—Foi uma benção. — Nagato riu. Mas Mikoto sabia que não era brincadeira. Encarou os olhos do menininho com intensidade, e foi respondida igualmente.

—Obrigada.

Ele sorriu, e escalou para a mãe, que lhe acolheu com carinho. Mas a mão não largou a sua.

Mikoto Uchiha acreditava em destino.

E algo lhe disse, naquele dia, que aquele menininho que conheceu na sua porta, com corpo pequeno e alma antiga, era parte do seu destino e de sua família. E nada mudaria isso.

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Alemanha, 1933

 Roubar havia se tornado rotina para Rodolfo, desde que seu pai foi convocado, e sua mãe caíra doente a comida não era uma das coisas que tinha com fartura, ainda mais depois dos cartões de racionamento.

Com 9 anos sabia como roubar da maneira mais “suave” possível. Ele era esperto, sabia ser rápido e tinha o corpo pequeno, isso já era uma vantagem. Se fosse pego, a única palavra que não queria ouvir era Polizei, até aguentaria uma Watschen¹ dos vendedores, mas a polícia era outra coisa. Não queria que quando seu pai voltasse tivesse a decepção de saber que seu filho tinha virado um ladrão.

Isso se seu pai voltasse.

Olhou para uma banca cheia de laranjas. Quase sentia o gosto dos gomos da fruta em sua boca. Foram os anos em que pode comer com fartura, seu pai era antes de ser convocado um advogado e tinha uma bela casa em Berlim, agora, ele se fora.

Se esgueirou pela rua apinhada de gente, era um dos melhores dias para roubar algo, as pessoas iam fazer suas compras e movimentar o centro, os comerciantes ficavam ocupados, as bancas com menos vigilância. Um prato cheio para um garotinho faminto, ou muitos, pois o que não faltava ali eram crianças com fome.

Com passos gatunos se aproximou da banca, algumas mulheres bem-vestidas conversavam perto. Parou ao lado da banca, meio encolhido, o comerciante, um homem de meia idade, conversava com uma senhora. Rodolfo sempre ia ali, pois geralmente era o lugar mais fácil.  

E era naqueles momentos, segundos antes de roubar que ele sentia a hesitação em seus dedos, e seus olhos de azul céu se tornavam maiores. Esticou o braço para cima, os olhos arregalados ziguezaguearam pela rua a procura de alguém que o pudesse ver. E como o bote de uma naja, agarrou a fruta e a enfiou dentro do colete marrom, olhou para os dois lados, abraçou o corpo e começou a andar rapidamente.

Suspirou aliviado, apertando a fruta redonda contra o corpo.

— Ei! Moleque!

Enfim, nunca se tem tudo.

Ele tomou impulso de onde nem sabia e começou a correr entre as pessoas. Empurrando e pisando nos pés de quem não lhe desse passagem. Atrás de si ouviu os protestos dos transeuntes. Podia sentir o homem atrás de si, soltando uma torrente de xingamentos, mas de sua garganta a única coisa que saiu em resposta foi um risinho desdenhoso. Um sorriso zombeteiro no rosto, sentindo a adrenalina de roubar. Isso o deixava em êxtase, conhecia todos os atalhos possíveis, seria moleza.

Seria. Se não tivesse virado naquele beco, do qual o levaria para outra rua mais movimentada onde poderia despistar o homem, e seu corpo se encontrasse com outro.

A trombada foi tão forte que ambos foram ao chão. Gemeu quando seu corpo espatifou-se no concreto o ar correu de seus pulmões e a laranja rolou para longe. Ouviu outro gemido tão dolorido quanto o seu e em seguida, ouviu duas vozes distintas.

— Te peguei ladrãozinho!

— Alfred!

Tentou se erguer, mas sentia os joelhos arderem (não mais do que seu estômago ardia de fome), sua testa e nariz também, e estavam ralados e sangue marejou escorrendo pela testa, manchando os cachos loiros que teimavam em cair em sua testa machucada. Sua cabeça rodou.

— Dummschwallen²... — sussurrou. Ouvindo um outro xingamento mais baixo, devia ser da pessoa que derrubou. Ofegou ao ouvir os passos do homem e fechou os olhos, já esperando alguma agressão, mas para sua surpresa, uma segunda voz se fez presente novamente.

— O que está acontecendo aqui?

Sentiu mãos pequenas geladas em seus braços, o puxando, e um choque atravessou seu corpo dolorido, o deixando desperto. Uma sensação estranha, como se fosse dejavú ou algo parecido, mas como era uma criança, não entendeu nada.

— Esse porco imundo estava me roubando!

— Acalme-se Her...

— Pahfhom.

— Her Pahfhom, o que ele roubou?

Se levantou com ajuda, as pernas trêmulas, sangue pingou no chão. Ergueu os olhos para encontrar um par de ônix bonitos e brilhantes. Era outra criança. Um garotinho branquinho de cabelos negros e lisos curtos, o rostinho de bochechas coradas e nariz arrebitado, os olhos repuxados.

Ele não parecia ter se machucado quanto si, que caiu de cara. Ambos se observaram com curiosidade mal contida, aquele garoto não era como os outros, não era loiro de olhos azuis, era diferente, era igual às pessoas que os adultos geralmente não gostavam. Piscou, sentindo aqueles sentimentos que não entendia gritando dentro de si.

Tanto que Rodolfo esqueceu-se até que estava fugindo.

— Ah... — sugou o ar num silvo delicado e virou o rosto machucado na direção da entrada do beco. O comerciante conversava com um outro homem, ele parecia mais calmo segurando uma nota que havia recebido do homem, e somente lhe olhou de maneira irritada antes de sair. — Mas o que...

O homem se virou para si, ele também tinha cabelos negros tão incomuns ali naquela época, era bem alto e tinha uma sombra daquele garotinho que estava a seu lado. Ambos se pareciam bastante. Sentiu novamente aquela sensação ao olhar nos olhos do homem.

— Seu rosto. — A voz era suave, e desviou o olhar para o garoto, ele era maior que Rodolfo, mas deviam ter a mesma idade. Seu coração acelerou.

— Eu, ah, desculpe... — ficou sem palavras, o homem lhe observou por segundos antes de abrir um sorriso sincero e se aproximar. Se virou para ele e deu um passo para trás, mas aquele garoto segurou seu braço novamente, aquela mesma sensação o atingindo. E sem motivos, sentiu uma paz por dentro, reconhecimento, como se fosse uma chama que se acende na escuridão. Seus lábios trabalharam em concordância com suas cordas vocais. Instintivamente. — Noland?

O homem parou, estático. O outro garotinho lhe encarou com um brilho estranho no olhar, que foi devolvido com a mesma intensidade.

— Alfred — O moreninho disse, seu tom de voz era diferente. — Sou Alfred. — O soltou e estendeu a mão para um aperto. — E o desculpo pela trombada.

Naquele momento, quando aceitou o aperto de mão, Rodolfo esqueceu-se de várias coisas.

Esqueceu—-se que estava com fome.

Estava todo ralado.

Estavam sendo observados.

Que sua laranja havia rolado para algum lugar.

E por último e não menos importante, que seu nome era Rodolfo, e não Aeron.

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Austrália, 1897

Ryruma estava entediado com a orla de jornalistas que o perseguiam para uma entrevista. Ao contrário de seu irmão mais velho Kaito, ele não era a pessoa mais sociável do mundo. Não, ele gostava de construir coisas. Era bom em planejar, e em desafios. E com certeza a segunda ponte Victoria estava sendo um desafio. Outra falha como havia sido a primeira não estava dentro de questão. Aquilo havia sido um fracasso, e quem havia planejado era um incompetente que não havia previsto os problemas.

Ele tinha que se focar em obter sucesso, e estava tendo. E não queria um bando de intrometidos lhe perguntando coisas. Mas seu irmão tinha que lhe meter nessa, claro. Prometer dar uma entrevista exclusiva, dar o fora e o deixar nesse bar para encontrar o representante do jornal mais famoso da cidade. Segundo ele, o objetivo era evitar que boatos saíssem, que ao menos tivessem algo concreto. Mas ele apostava que o representante devia ser uma jornalista bonita que ele queria entrar debaixo das saias, ou não teria insistido tanto, e conversado tanto — segundo lhe dissera — com a pessoa durante a semana.

Deu um suspiro irritado. E para completar, a incompetente estava atrasada!

Já estava pronto para sair no próximo minuto e que seu irmão desse seu jeito quando alguém se sentou a seu lado na mesa falando afobado.

—Me desculpe! Me atrasei!  Você deve ser Rymura, irmão do Kaito...

Essa voz...

 Ergueu a cabeça que estava abaixada e se deparou com um par de profundos olhos azuis-esverdeados que o olharam surpresos por um instante, para então suavizarem. Rymura estava errado. Não era uma jornalista bonita. Era um rapaz, de rosto afogueado pela corrida até ali, cabelo loiros cortados bem curtos e sorriso estonteante. Mas ele não errara sobre o “bonito”. Aquela era a criatura mais bonita que já vira, chegava a ser intimidante. E sentiu algo estranho sem seu coração. Como se já o tivesse visto antes.

Toda a irritação passara. E no lugar, uma urgência estranha. Se empertigou na cadeira, quase derrubando o café a sua frente sobre o jornal.

Demorou para notar que o outro falava algo, uma expressão incerta no rosto quando não obteve resposta.

—Desculpe?

—Estava dizendo que me chamo Steve Thompson. Sou o representante do Coluna.

—Isso eu havia imaginado. — Resmungou, tentando se recuperar da vergonha que estava passando pelo seu descontrole. A voz daquele estranho não devia ter tanto poder sobre si. Ainda assim aceitou a mão que lhe era estendida, e no instante que tocou uma corrente elétrica pareceu transpassar seu corpo e a soltou rapidamente. O outro também parecia desconcertado. Seja o que fosse que acontecera, ele também sentira. — Está atrasado. Não tenho tempo a perder. E não sabia que tinham crianças trabalhando no Coluna.

O outro riu, um sorriso torto no rosto que o fazia ainda mais...argh.

—Você é como seu irmão me falou. Exatamente igual. — Ele retrucou, uma caneta rodando em sua mão, caderninho de capa de couro na outra. — Primeiro, mate, tenho vinte e cinco anos, acredito que isso não seja mais uma criança nos padrões da vossa senhoria. E segundo, vamos começar logo então, não quero o fazer gastar seu precioso tempo. Eu o terei por apenas alguns minutos.  Sir.

A última palavra saiu em som de sarro, mas não percebeu, preso nos olhos azuis irritados em si.

—Apenas se quiser.

A frase saiu sem querer, e se engasgou com o café. O outro ficou vermelho, mas sorriu de forma divertida, uma gargalhada que ecoou entre as mesas, rouca e animada. E só então Rymura percebeu que não era o único de olho no rapaz irritante, atrevido e belo a sua frente. Outras pessoas o olhavam, de forma descarada. Sentiu raiva por isso, que não conseguia entender, mas que sumiu ao se voltar para o outro para o mandar se calar e ter a cena da luz do sol vindo da janela de vidro do bar, o iluminando, e aquele sorriso encantador para si, mesmo que soubesse que ele estava rindo dele, e não com ele.

E um nome veio de algum lugar da sua mente, que não entendeu.

“Aeron.”

—Não peça Senhor construtor da ponte. — O loiro colocou o rosto apoiado em uma mão, o olhando e acordou do transe. — Talvez eu acabe não indo mais embora. — Ele piscou como se houvesse se dado conta do que dissera, ficando com o rosto vermelho, voltando a olhar seu caderninho. — Digo, jornalistas são assim.

Ryruma sorriu com isso. Um sorriso presunçoso, mas verdadeiro, como há muito não tinha. Ele se sentiu em casa. Como se houvesse passado muito tempo fora, e houvesse retornado ao lar.

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Portugal, 1746

 Corria pela floresta, ofegante, suor escorreu pela sua testa, pregando os cabelos anelados a sua testa. Seus pés descalços afundando no chão úmido coberto por folhas. Virou o rosto, procurando seu algoz que o seguia, não o viu, mas também não parou, ramos de samambaias e galhos secos lhe agrediam a pele. Tropeçava em raízes secas, quase caindo, mas recuperava o equilíbrio com facilidade. Era bom naquilo, conhecia toda a floresta como a palma de sua mão, seria fácil encontrar o caminho de volta.

Mas ele não queria voltar.

Isaak morava em uma fazenda do outro lado da ilha, desde que se entendia por gente, estava preso à aquele lugar. Diziam-lhe sempre que ele havia sido vendido pela própria mãe quando ainda era um bebê, em troca de um fardo de café importado. Sempre lhe diziam que não valia nada, que ele sempre seria um garoto rejeitado, um escravo. Sempre seria um objeto. Ele nunca aceitou isso.

Por isso estava ali, no meio da floresta, correndo de um dos capangas do velho Fritz. Havia fugido, mas o viram atravessando o pasto com seu cavalo, e logo estava sendo perseguido. Sabia que se fosse pego, iria apanhar sem dó nem piedade. Não queria isso.

Não queria mesmo.

Sentiu algo escorrer pela bochecha, os pulmões quase explodindo, suas articulações pareciam duras demais, seu corpo pesando cada vez mais. Exausto da corrida, chorando, mas ainda assim não se deu por vencido e continuou.

Ele acabou chegando a um vilarejo beira mar. Era um lugar calmo e bonito. O mar lhe ofuscou a visão por instantes, pelo reflexo do sol que se punha, mas logo se acostumou. O lugar tinha poucas casas, um píer, e um armazém antigo.

Cansado, com sede e com fome, resolveu bater na porta de uma das casas. A procura de um abrigo temporário ao menos para passar a noite. Escolheu uma casa simples e pequena, algumas galinhas ciscavam por perto. A casa ficava entre duas árvores enormes e parecia um bom lugar.

Se arrastou até a porta e bateu duas vezes. Seus pés ardiam pelo tempo que correu descalço, feridos. Os braços arranhados e a roupa rasgada em alguns lugares. Ele olhou para as próprias mãos, as unhas imundas das vezes que caiu e se levantou.

A porta se abriu num guinchado, e ergueu os olhos para o morador.

E travou, prendendo a respiração, arregalando os olhos azuis ao encarar os negros do outro garoto.

E por um segundo Isaak perdeu uma batida de coração.

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França, 1640

Fora pelos outros garotos que Ian soube sobre os ciganos. Era um evento realmente a ser lembrado, até mesmo ele, um mero garoto que vivia nos becos sombrios, sabia disso. Eles haviam sido expulsos, escorraçados de Paris, e agora retornavam, ironicamente, para ajudar a consertar a cidade.

Ele não fora olhar o cortejo, estava preocupado demais, cuidando de uma febre de Pierre que não passava. Carmelinda lhe dera os remédios, sabendo que ele acabaria roubando se não os tivesse, e com toda a movimentação da guarda, acabaria preso.

Ele faria. Ele faria qualquer coisa para ajudar Pierre, devia sua vida e sanidade a ele. Se não fosse pelo garoto mais velho — na verdade, agora Pierre era um homem. — Ainda estaria preso com sua mãe prostituta e bêbada, e ela estaria o vendendo para qualquer pervertido que lhe desse um preço mais alto, como havia tentado tantas vezes.

Na primeira vez, ele tinha apenas 5 anos quando um dos clientes dela o notou em canto do quarto, mais um objeto sujo de poeira do que uma criança que ela tivera sem querer e não podia se livrar. A maldita não hesitou quando o homem pediu para comprá-lo, perguntando se ele gostava de garotinhos. Ian fugiu pela janela no mesmo instante, rápido demais para ser pego. Foi quando conheceu Pierre, com então dez anos, que morava em um dos becos para onde fugira.

O garoto o acolheu como se fossem velhos amigos. Ian sempre acabava voltando para a mãe, pela mão dos vizinhos, e sempre fugia quando algum cliente dela aparecia. Quando ela estava bêbada demais para cuidar dele, era Pierre que o fazia. Ele lhe trazia comida, o vigiava sentado na janela durante o sono. O ajudara a colocar uma tranca no quarto. E desconfiava que havia ameaçado a mulher, pois ela não o oferecia mais a cliente nenhum, apenas fingia que ele não existia e o deixava trancado do lado de fora. Pelo menos foi o que achou, até completar dez anos e se encontrar sendo imprensado contra um colchão sujo por um homem horrível, enquanto sua mãe apenas fingia que nada acontecia, bebendo na outra sala.

Quando tudo acabou, ele encontrou caminho para Pierre, e na mesma noite os dois tinham fugido daquela cidade. E Pierre jurou — e cumpriu — que nunca deixaria nada assim acontecer com ele novamente.  

E desde então, eram apenas os dois. Eles tinham apenas um ao outro.

Por isso, ele só conheceu os ciganos noites depois, quando Pierre já estava bem, e voltavam do bar onde o mais velho agora trabalhava carregando caixas. E foi quando ouviu o som, belíssimo, de um violino. Ian parou no trajeto, e Pierre parou logo a frente, olhando para trás, curioso. Os olhos azuis de Ian viram o fogo ao longe, e cantoria. O acampamento de ciganos, não estava longe dali. Podia ver de longe as cores, berrantes, as vozes. Era algo vivo, algo que não se via naquelas ruas, ou na sua vida.

—Quer ir ver?

A voz de Pierre foi suave, olhou para cima e o homem o fitava com um sorriso de canto, uma mão em seu ombro. Os olhos negros tinham algo triste. Não entendia o porquê. Assentiu, e logo caminhavam silenciosos até lá. Não entendia por que essa vontade, mas havia algo naquela música que o chamava. Apressou o passo, sabendo que Pierre estaria logo atrás de si.

Quando virou a rua, e viu o acampamento, seus olhos buscaram em meio as cores bonitas, de onde vinha o som, e viu um rapaz que tocava, enquanto mulheres dançavam ao redor da fogueira.

Ian parou, os azuis curiosos, até que o violinista se virou em meio a dança e pode ver claramente o rosto do outro lado da fogueira.

Seu coração acelerou, os olhos negros, tão escuros quanto os de Pierre — eles até mesmo se pareciam — se prenderam nos seus com intensidade. A música parou, mas nem mesmo percebera. Só percebera ele.

—Noland. — Murmurou e franziu a testa, sem saber de onde esse nome viera. Os olhos enigmáticos que refletiam o fogo pareciam sorrir para si, contando segredos, que nunca percebera que estivera procurando.

Nem se deu conta quando começara a caminhar para perto da fogueira, até estar em frente ao outro garoto, que também parecia ter caminhado até ele. As pessoas continuavam dançando, os outros violinistas continuavam tocando. Mas eles não viam nada disso.

Alguns passos atrás de si, Pierre os olhava de modo triste, fitando os dois garotos —possivelmente da mesma idade dessa vez — se olhando estáticos, bebendo a presença um do outro, ignorante a todos. Seus olhos se desviaram da cena, que já havia visto tantas vezes.

 Seu coração se comprimiu, porque sabia qual seria o resultado de tudo isso. E daquela vez, ao menos daquela vez, ele havia achado — mesmo que por algum tempo — que poderia ter parado com isso. Ele havia feito Ian... não, Aeron lhe amar, mas parecia que isso nunca fora o bastante.

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 Inglaterra, 1597

 Ser o filho de um mordomo não queria dizer necessariamente que seria um também, mas para Masaru, sim. Havia aprendido todo o ofício com o pai, era filho único e se sentia na obrigação de fazer o que seu pai sonhava para si. Uma vida servindo a seus senhores.

Mesmo que achasse aquilo um desperdício.

Naquele dia em especial, 19 de outubro, foi quando seu destino foi selado ao de seu amo. Quando o viu pela primeira vez.

Olhava a mansão com curiosidade, mesmo que já tivesse ido ali várias vezes, a imagem daquele enorme casarão sempre impressionava, ainda mais visto de frente. Quanto quartos haveria ali? No mínimo cinquenta.

Além disso, os jardins que se estendiam por quilômetros eram de uma beleza ofuscante, com cores variadas e um labirinto vivo nos fundos, do qual havia destrinchado um dia de tarde que foi visitar o pai.

— Masaru, o Senhor Stephen o espera.

Se virou à mulher a sua frente, era um dos serviçais, conhecida sua de longa data, de quando seu pai ainda prestava serviços a família Stephen.

Agora era sua vez de assumir os serviços, iria herdar o cargo de seu falecido pai.

Respirou fundo e assentiu sério, seguindo a mulher escadaria acima.

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— Lamentamos pelo seu pai, Masaru, ele ainda era muito jovem. — disse o homem alto, de corpo esguio, vestido com um terno caro, os sapatos lustrosos, sentado em uma poltrona da biblioteca enorme. Tudo ali tinha cheiro de páginas antigas e chá.

— Obrigado, Senhor. — Fez uma mesura. — Estarei a postos.

— A propósito. Acredito que seu pai lhe ensinou muito bem, ele era um ótimo mordomo, sempre soube o que fazer na hora certa, o que não fazer, o que dizer e o que não ouvir. Espero que também o sabia.

Levantou os olhos para o homem. George Stephen tinha um rosto oval, olhos pequenos e esverdeados, a pele rosada e bem tratada. O nariz era grande, os lábios finos e um bigode escuro e bem aparado. Ele lhe encarou com intensidade e entendeu as palavras dele.

— Claro, Senhor.

— Irá cuidar especialmente de Castiel. — O homem se levantou e fez um sinal para que o seguisse. O fez. Saíram pelo corredor, o silêncio do homem era quase mortal, somente o som dos sapatos de ambos sobre o carpete importado.  — Ele é um rapaz muito calmo, delicado de saúde, que precisa de sempre estar acompanhado. Ele não conhece muito da Inglaterra, ele veio da Rússia. Você irá fazer tudo o que ele pedir, acho que não preciso ditar todos seus deveres.

Sua voz era como um trovão ali dentro, Masaru reprimiu um arrepio, aquelas paredes eram geladas.

 — Mas antes... — parou ao lado de uma ampla porta escura, a madeira de carvalho bem envernizado. E recebeu os pequenos olhos verdes nos seus num aviso explícito, ameaçadores. — Os pais de Castiel morreram num naufrágio e eu peguei a guarda, assim como todos os bens dele como tutor. Ele se tornou para mim meu bem mais precioso em poucos meses, Masaru, eu o cuido com muito requinte e quero o bem dele. Por isso ele é somente meu. Espero que seja fiel a isso

Masaru assentiu. — Eu prometo que serei, Senhor.

O homem esperou por mais alguma coisa, mas como não recebeu somente se virou para a porta.

— Irei apresentar-te a ele, sobre seus afazeres e os quartos da casa, Nina irá lhe ensinar tudo o que precisar.

Ele abriu a porta e entrou, o seguiu para um quarto amplo e claro, as paredes tinha papel de parede tom pêssego, o chão de carpete tom creme. Seu olhar não notou mais nada, se fixando somente na cama enorme no meio, o lençol de seda branco brilhava com a luz do sol que entrava pela janela que ficava ao lado, e entre uma dezena de travesseiros de penas de ganso, estava deitado displicentemente com as pernas cruzadas, o pé direito balançando. Os cabelos loiros espalhados por um travesseiro, o corpo relaxado, as roupas tão brancas como a seda da cama. Ele parecia brilhar em meio do luxo dos lençóis.

Mas quando recebeu o olhar azul enigmático, em conjunto com o rosto amistoso — e belo — do rapaz, Masaru soube que não conseguiria cumprir a promessa a seu mestre. Castiel era... Um anjo.

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Irlanda, 500 d.C.

 

Olhava tudo com medo, aquelas árvores pareciam mais altas que o normal, os sons da floresta eram aterrorizantes. Seus passos eram incertos, e tentou não começar a chorar. Seu pai dizia sempre para não entrar na floresta sozinho, pois podia se perder, e que o que havia lá era perigoso demais. Mas como uma boa criança, nunca o ouviu.

Seus pezinhos, cobertos pelas sandálias de couro faziam barulho contra o chão coberto por folhas e capim. Tentava desviar dos ramos e plantas, por medo de ser algum arbusto venenoso, ou por esconder algum animal. Sempre que Ewen tentava lhe ensinar sobre alguma planta venenosa, sempre tinha algo mais divertido para fazer. Não que notasse que fazia falta aquela informação naquele momento.

O vento correu, as folhas farfalhavam, frio. E mordeu o lábio, parando e olhando arredor. Sem saber o que fazer. Maldita hora que foi aceitar a brincadeira com mais alguns garotos do vilarejo, eles, os mais velhos, que Ewen dizia para não se aproximar.

Seus olhos marejaram e sua visão ficou turva, mordeu o lábio contendo um soluço e se aproximou de uma árvore, cujo tronco era muito grosso e seus ramos pareciam se estender por vários metros. Pulou algumas raízes e se sentou no chão, escorado no tronco da frondosa árvore, levando os joelhos ao peito, escondendo o rosto entre eles.

Não era um garoto que chorava fácil, já tinha oito anos, seu pai lhe havia ensinado muito sobre pescar e caçar, sobre seu Deus e como um homem deve agir.

E chorar não é uma coisa que um homem deve fazer.

Mas não conseguia, somente pensar em seu pai e seu irmão, já achava que nunca mais os veriam. Talvez aqueles garotos não avisassem onde estava, não procurasse ajuda. E então como faria? Iria morrer, tinha certeza.

Soluçou, deixando-se levar pelo desespero.

E foi quando o ouviu. Sua orelha de tom alaranjado girou na direção do som, e sim, tinha certeza do que era. Olhou na direção do som, seu nariz amarronzado movendo-se, farejando.

Era uma criança, uma criança no meio da floresta, que chorava.

Se levantou da rocha que antes estava sentado, observando de cima daquele precipício o mar que se movia insistentemente, e correu na direção das árvores. Suas grandes patas brancas arrancavam terra e faziam um tamborilar de som no chão. Seu corpo grande e esguio movendo-se com graciosidade enquanto passava e pulava com pelas árvores em alta velocidade.

Não demorou, e ouviu o choro cada vez mais perto. E, ao saltar um último arbusto se transformou, tomando sua forma habitual de humano, que aterrissou no chão com perspicácia, já retirando sua lança dourada das costas, se aproximando devagar para rodear o grande pinheiro. E foi quando o viu, encolhido ao lado de uma raiz, o rosto escondido entre as pernas. Sentiu o coração amolecer.

— Criança. — E como se tivesse levado um choque, o garotinho levantou o rosto, e pulou de pé.

E de imediato Aeron soube o que ele era. Aquela criança era um bárbaro, ou filho de um. Suas roupas, claramente não eram feitas de peles de animais como os seu povo, eram de tecido. A camisa branca de algodão e a calça de tom mais encardido também de algodão. Ambas sujas de terra. Os cabelos escuros estavam curtos demais e arrepiados.

Sentiu vontade de o assassinar ali, cravar sua lança no coração dele. Ele era um daqueles que matavam por matar, que fizeram seu povo recuar, que os fizeram sofrer sobre o solo que lhes era de direito. Aquela criança, assim como os outros, era um intruso ali, nem devia pisar naquela floresta, na sua floresta. Mas não o fez, não, não depois de ter os olhos fisgados pelos da criança.

Eles eram negros, estavam vermelhos e brilhantes por lágrimas no momento. 

E foram as lágrimas que o fizeram parar. A expressão inocente ao mundo, pura de uma criança que ainda não conhecia o mal.

— Está perdido? — perguntou, sorrindo calorosamente para o menino, colocou novamente a lança nas costas, se aproximando. Ele recuou. — Não faço mal a ninguém, agora, responda-me.

Agachou-se ficando na altura dele.

— S-sim. — ele sussurrou, Aeron piscou levemente aturdido ao sentir algo estranho em seu peito. Um chamado.

Sua mente se iluminou em reconhecimento.

Aquele garoto não era uma simples criança. Era como se sentisse sua alma pulsar junto a ele em um único som. Um chamado, de algo há muito perdido e que agora retornava ao lar.

Seu sorriso aumentou e abriu os braços. Viu o moreninho também sorrir, parecendo fascinado com a aura de paz e ternura do rapaz loiro.

— Venha, vou lhe levar a um lugar, para achar sua casa, criança.

Por algum motivo Noland já se sentia em casa.

 


Notas Finais


Watchen (¹) : Uma boa surra.
Dummschwallen (²) : Merda.


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