Tudo ficou escuro, e o gosto de pântano, morte, putrefação e escuridão inundava o nariz e a boca. Nos poucos segundos que ficou sumerso, pôde experimentar o sabor do escuro. Quando emergiu, deu-se conta de que toda luz havia sumido.
A paisagem parecia enfeitiçada, os arbustos pareciam dedos que arranhavam sua pele como cegos querendo identificar um estranho, e apontavam para algum lugar.
Gaara mal havia caminhado alguns metros para o interior da floresta quando foi tomado por um silêncio intenso, irreal. Estar isolado do escuro por uma bolha de luz não lhe dava a sensação de segurança. A certeza de saber que era o objeto mais visível na floresta o fez sentir-se vulnerável, desprotegido.
Num instante, o ruivo sentiu: a sensação de estar sendo observado. A escuridão recaia sobre si como um cobertor. Ele prendeu a respiração e pensou: Não, o mal não é uma coisa, o mal não se incorpora. É o oposto disso, é um vácuo, a ausência do bem, uma lacuna. A única coisa a temer aqui sou eu mesmo.
Mas, de qualquer forma, não conseguia se livrar daquela sensação. Alguém cravava o olhar nele. Gaara tremeu. Congelou. Seu interior parecia estar dentro de um frizer. Buscava ar nos pulmões, mas a neve lhe fazia rarefeita. Correu, tão rápido quanto uma bala, contudo, parecia não sair do lugar. Era uma floresta sedutora, numa estação invernal.
Ele estava sozinho, e os dedos — galhos — pareciam levá-lo à morte.
[...]
Gaara acordou sobressaltado, ouvindo o som de seu celular tocando. Estava suado, pingando suor. Foi um pesadelo. Havia tempos em que não tinha um daqueles. Forçou-se a ir até o criado-mudo, pegando seu celular. Era Naruto; ligando às três da manhã.
Por algum impulso, deslizou o botão verde, atendendo a chamada.
— Ainda está acordado?
— Você me acordou. — Parecia um comentário pertinente, mas o Sabaku agradecia-o por tê-lo tirado de lá. — Aconteceu alguma coisa? — perguntou, tentando regular sua respiração para não sair ofegante.
— Eu havia prometido ir na sua casa depois da aula, mas não consegui, desculpe. Fiquei com Neji e Sakura na biblioteca, sabe, tentando estudar — riu. — Queria pegar alguns livros... E daí resolvemos comer alguma coisa, e ficamos conversando. Cheguei às 10 horas, tomei banho ouvindo as reclamações da minha mãe e acabei dormindo. Acordei agora e senti vontade de te ligar... Sei lá, talvez você estivesse me esperando.
— Hmm... — Gaara tinha uma vaga sensação de que deveria dar mais atenção ou mostrar mais interesse. Mas não tinha paciência. Ainda mais no meio da noite.
— Você... está bem? — questionou, receoso.
— Estou... quer dizer... — articulou aquela palavra, que parecia querer estourar seus neurônios. — Enfim, deixe para lá — deteve-se. — Todavia, não é como se eu estivesse morto ou algo assim.
— Para de dizer essas coisas... Atrai coisas ruins.
— Tipo o quê? Fantasmas? — ironizou.
— Idiota — riu.
Ser chamado de idiota por um idiota era o cúmulo.
— Vá dormir. Amanhã ainda teremos aula. E são 3 da manhã. — Gaara pontuou.
— Ta bom... E eu também estou o caco... Amanhã a gente se fala! — falou, em tom animado.
O avermelhado finalizou a chamada. Levantou da cama e caminhou em direção ao banheiro, iria tomar banho — para retirar aquele suor e para tentar aliviar um pouco sua inquietação.
Deixou a água escorrer por seu corpo, massageando os músculos tensionados. Gaara estava esperando por eles. Os Fantasmas. Aquelas criaturas invisíveis e assombrosas. Eles sempre apareciam em seus momentos de solitude — talvez para fazer-lhe companhia.
Saiu do banheiro e abriu a pequena gaveta em seu criado-mudo. Iria tomar o único remédio que lhe deixava mais calmo; lhe dopava, fazio-o dormir — mesmo que seja um adormecer falso — e amenizava sua dor de cabeça terrível: aspirina. O fantasmagórico espírito da falsa calmaria.
[...]
Gaara caminhava pelos corredores enquanto lia Frankenstein, de Mary Shelley. Amava aquele livro, e a escritora dele é bem peculiar. Gosta de livros com ficção científica, terror... Assim como adorava os Assombração da Casa da Colina, de Shirley Jackson.
Os olhares sobre si lhe incomodavam, claro — tinha quase a mesma sensação de estar sendo observado em seus sonhos — porém, os livros lhe distraiam e forçava-o a ignorar. Foi aí que Naruto chegou, quebrando todo seu silêncio.
— Bom dia! — falou.
— Bom dia. — Gaara ajeitou seu uniforme, pigarreou e retornou a ler.
— Mamãe gosta desse livro... da Mery sei lá o quê.
— Mary Shelley — corrigiu.
— Isso aí. Peguei alguns livros na biblioteca... Quero que você os leia para mim.
Gaara o encarou com os olhos perplexos.
— Não. Não vou ler e muito menos quero-o em minha casa novamente.
— Por que? Gosto da sua voz quando ler... É bonita! — O loiro exclamou. — E eu nem baguncei a sua casa! — Cruzou os braços.
O avermelhado soltou um suspiro, fechando o livro.
— Pare de me elogiar assim, do nada — pediu, sentindo-se constrangido. — E muito obrigado por não bagunçar, Naruto. — Rolou os olhos. — Mas sua presença me incomoda.
Adentraram a sala, e Gaara se sentou no lugar de costume — sendo seguido pelo loiro.
— Por que? — Ele questionou.
— Não sei. Pessoas me incomodam.
— Hmm — murmurou. — Você poderia ir na minha casa, algum dia.
— Não.
— Chato — disse de forma arrastada.
— Eu sei que sou, não precisa reafirmar.
— Por que não gosta de sair?
— Você está com muitos "Porquês" hoje.
— Desculpe. — Riu. — Neji, Sakura e Sasuke me chamaram para sair hoje. Quer ir também?
— Não, estou bem com meus livros — pontuou.
Não demorou muito para que a professora de Geografia chegasse, em seguida português, matemática, biologia...
[...]
Era hora de retornar para casa. Gaara caminhava calmamente pelos corredores brancos da escola. Seu olhar empermedido estava direcionado à sua frente, ignorando quem estivesse aos lados. Mesmo não conversando ou gostando do Sabaku, ninguém poderia negar: as íris azul piscianas do ruivo eram incrivelmente lindas; bem como seu cabelo vermelho.
Ao cruzar o portão, deu de cara com Naruto e mais três pessoas — que ele intuiu serem Neji, Sasuke e Sakura. Iria ignorá-los se o Uzumaki não o puxasse pelo braço.
— O que quer? — perguntou, censurando os outros que estavam ali.
— Tem certeza de que não quer sair conosco?
— Absoluta.
Naruto suspirou.
— Tudo bem então. — Sorriu nasalmente, soltando o rapaz.
Gaara voltou a caminhar e seguiu para casa — ou melhor, refúgio.
— Vamos logo. — Sasuke demandou.
No Starbucks, os três jovens conversavam sobre assuntos triviais — que oscilavam entre atividades escolares e relacionamentos amorosos. E, de alguma forma, o diálogo começou a ser sobre Gaara.
— Ele é uma pessoa legal. A voz dele é incrível. — Naruto falou.
— Ele me pareceu grosso. — Foi o que Sasuke disse.
— Falou a pessoa mais gentil do mundo. — O loiro soltou.
— Calem a boca. — Sakura berrou.
— Gaara não me pareceu ser alguém que gosta de contato com outras pessoas. — Neji pontuou.
— Naruto foi na casa dele ontem. — A rosada interveio.
— O que fizeram lá? — O Uchiha questionou. Sua pergunta havia um quê de curiosidade, mas também de ciúmes.
— Lemos, conversamos um pouco, dormimos, acordamos, tomamos café e eu vim para à escola.
— Por que ele não veio junto com você? — O Hyuuga quis saber.
— Disse que não estava se sentindo bem. Aliás, a casa dele é bem organizada, exceto o quarto. Quer dizer, não é totalmente bagunçado, mas há umas coisinhas fora do lugar; como vários papéis em cima da mesa e a cama desforrada.
— Como são os pais dele? — falou a Haruno.
— Eles não moram com Gaara, ele mora sozinho, eu acho.
— Por que? — Sasuke perguntou.
— Dá para vocês pararem com tantos "porquês"?! — falou, irritado.
Os três riram, mudando de assunto.
[...]
Gaara chegou em casa, seguindo para o banheiro. Tomou banho, vestiu algo confortável e foi para o quarto — junto com uma xícara de café. Ligou o computador e clicou no arquivo intitulado "Naruto". Parecia uma coisa meia estranha de se dizer, não queria parecer um "Stalker", porém, desde o dia em que a única coisa que conseguiu escrever foi "Na-ru-to", Gaara vem escrevendo sobre o rapaz.
Não era um romance, ou uma ficção, ou nada que envolvesse uma história em si. Ele só escrevia as características do garoto, e o que ele fazia — e o que aconteceu consigo quando ele fazia tais coisas. Ontem, passou boa parte da madrugada trabalhando naquilo, vendo o rosto diurno do rapaz.
Suspirou. Não era como se aquilo lhe desse alguma... felicidade, ele só queria entender aquele loiro sorridente. E, como se o universo lesse seus pensamentos, escutou o tinindo do celular. Uma mensagem de Naruto. Abriu o aplicativo de mensagens, vendo um "Oi!" brilhando na tela.
Gaara:
(Oi. Já chegou?)
Não era uma resposta com pretensões de vê-lo, apenas ficou surpreso por ele ter mandando mensagem tão cedo.
Naruto:
(Sim. Acabamos discutindo lanchonete, e daí todos retornaram para casa.)
Gaara sentiu vontade de rir, era bem a cara do loiro.
- Gaara:
(Hmm...
Por que me mandou mensagem?)
- Naruto:
(Não sei, achei que você estivesse se sentindo sozinho)
Aquilo foi surpreendente para o Sabaku. Ele já estava acostumado com a solidão — que ele prefere chamar de solitude — e o escuro do quarto.
- Gaara:
(Não é como se eu me importasse em estar sozinho)
- Naruto:
(Por que não faz amizade com outras pessoas, hum? É bom conhecer novos sujeitos)
- Gaara:
(Não quero. Sinto-me bem assim.
A escuridão também tem gosto, sabia?)
- Naruto:
(Isso é... estranho
Não há maneira de se comer o escuro)
- Gaara:
(Tem gosto de putrefação... pântano, morte)
- Naruto:
(Isso soa estranho, Gaara)
(Você tem certeza de que está bem?)
- Gaara:
(Sim. Há fantasmas para todos os lados)
- Naruto:
(Fantasmas?)
- Gaara:
(Daqueles que sufocam, e matam usando o psicológico)
O ruivo ouviu os passos conhecidos no andar de baixo.
- Naruto:
(Isso dá medo)
- Gaara:
(É bem pior do que os monstros em baixo da cama, eles são horripilantes)
Desligou o celular e, parados no vão da porta — com os braços cruzados e olhar recôndito — estavam seus fantasmas. Dois. Horríveis. Tanto que seus lábios tremiam. Eram seus pais.
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