Gustave sempre sentiu algo em relação a aquele pobre menino, presságios de algo ruim e maçante junto com uma inteligência genuína e amável. Ele se convenceu no primeiro dia em que se conheceram que poderia mudar essa primeira impressão.
– Venha conosco. – O homem ofereceu naquela tarde de verão, o mar fazia cocegas em seus cotovelos e a maresia fazia os cabelos que tentavam esconder a deformidade do rapaz falharem.
Havia uma certa relutância no rosto de Erik, bastava para analisar a situação que se suspeitasse. Gustave era um homem bem afortunado e respeitado, com um talento admirado por muitos e com uma filha dócil e adorável, por que estaria acolhendo ele em seu meio? Alguém que sequer tinha um tostão no bolso, sem pais de origens justas e condenado pela aparência a ser um paria na terra? “Quem amaria o filho de um demônio?” Ele se lembrava das palavras do homem que identificava como pai destilar.
– Por que? O que farão comigo?
Gustave suspirou sentindo o peito apertar ao ouvir as palavras via inúmeras marcas nas pernas magras e braços franzinos do rapaz que denunciavam violências nunca dignas de uma criança. Certamente as que carrega na alma são bem piores.
– Nada, absolutamente nada que você não queira. – O homem sorriu para ele. – Acho que você precisa de ajuda... Precisa ser alimentado e cuidado. Você não deixou que minha bebê fosse puxada pela agua, mas não seria justo se apenas te parabenizasse ou lhe desse algumas moedas. – Ele explicou se ajoelhando na areia molhada contente quando a expressão ferida e o jeito do rapaz mudaram. – Se você vier comigo, eu posso dar uma cama, boa comida e ensina-lo a tocar violino. Não é muito, mas você teria alguém para sempre estar lá com você.
– Como... Uma família? – O rosto de Erik se iluminou com a perspectiva, ou eram lagrimas? Oh não importava, agora ele dava passos na direção do homem ao invés de se esquivar e Gustave sorriu calorosamente ao rapaz.
– Sim, isso mesmo, uma família.
Ao por do sol daquele dia, Erik se juntou a carruagem de Gustave e Christine e ao observar a maneira como ele olhava para a pequena Christine, zelando por seu sono, o deixou um tanto perturbado para depois se animar com os anos que viriam.
[...]
As notas, as partituras e a arte engenhosa explodiram para fora das mãos de Erik quando ele se hospedou na casa deles. O garoto mostrou todo o potencial mascarado por uma vida de dor e sofrimento, nas mãos dos pais e em seguida nas ruas, Gustave os recebeu com braços abertos e admiração.
– Não tenho coragem pai... – Tremia as palavras em suplicas quando via os convidados chegando na mansão. As pernas bambavam e os olhos logo marejavam, Christine beijava suas bochechas mascaradas em busca de alivia-lo. – Não posso...
– Não há de haver medo, estarei contigo.
Gustave foi tão essencial na vida de Erik quanto Christine viria a ser por extensão. Então foi angustiante, e quase insuportável vê-lo morrer acamado, doente e débil, sem poder fazer absolutamente nada.
– Erik? Meu filho... Erik, anjo tímido e solitário, meu doce menino. – Uma mão estendeu-se do leito enferme para chama-lo. – Onde estão meus anjos?
– Estou aqui pai. – Gustave sorriu ao sentir os dedos trêmulos serem segurados por outros que ele não podia ver, apenas reconhecer pelo toque que ainda não mudara, desde aquele toque na praia.
– Pegue uma pena e uma pagina meu rapaz. – Pediu debilmente percebendo que suas ultimas forças deviam ser apreciadas com cautela. – Escreva... – Ele sentiu uma profunda dor ao tentar soar mais alto, um grunhido expressou por si só um som que para Erik era angustiante. – Escreva... Eu Gustave Dae, violinista e compositor, filho de Gerald Dae, deixo nas mãos do meu protegido e filho oficializado, minha casa e bens... – Uma crise se tosse interrompeu as palavras do homem, Erik imediatamente trouxe um lenço aos lábios dele que voltaram com uma grande quantidade de sangue.
– Pai... – Erik sussurrou incapaz de falar mais devido aos soluços que o embalavam.
– E... A guarda e tutela da minha primeira filha, Christine Dae, para ele cuidar inteiramente até que ela encontre um pretendente digno ou tenha a idade adequada. – Ele completou com sorriso lembrando-se de sua amada filha, como poderia deixa-la só nesse mundo? Mas seus tormentos estavam distantes ao pensar em Erik. Ele cuidaria da sua filha, tão bem quanto ele. – Ajude-me filho.
Erik que estava aos prantos pegou a mão tremula do homem, e aproximou-o do documento para que realizassem a sua caligrafia cursiva. Erik achou que conhecia todo o tipo de dor e solidão que um ser humano poderia enfrentar, isso foi antes de ser acolhido por aquele ser bondoso.
– Leve esse documento ao advogado de herança, não deixem que lhe afastem de Christine. Eu não percebi a primeiro, não percebi o quão amoroso você era com ela... Minha pobre Christine, sem mãe e logo sem pai... Que horrores essa vida guarda para minha doce menina?
– Não vou deixar, não deixarei que façam mal a ela.
– Isso é tão bom de ouvir Erik... – Lagrimas escorriam pelo rosto do Dae, seria mais perceptível se não houvessem outras no rosto de Erik.
Choravam em silencio, no limiar da morte e de uma nova vida. Gustave se perguntava como era o céu, ou para onde sua esposa e aqueles que amava foram, será que de lá poderia acompanhar sua prole ou iria para um vazio, amargo e escuro.
– Disse a Christine que enviaria um anjo a lhe cuidar... – O rosto do homem tremeluzia indícios de uma nova vontade de chorar, sem alegrias ou satisfação, apenas o medo da morte que perpetuava entre os homens. – Como pude o fazer? Quando nem saberei para onde irei. Mentiras ao meu legado, desespero ao morrer... Essa é a lembrança que você terá de mim, o quanto falho em tentar lhe dar coragens. Tenho medo da morte, temo por meus filhos e pelo que virá...
Erik já não sabia o que fazer, via-se entrando em desespero como Gustave, aquele homem era para ele a definição de bondade e gentileza. Mesmo pertencendo a uma classe com alguns poucos privilégios, não buscara se enaltecer no sofrimento nos outros, a qual sempre foi piedoso e lamentoso, quase ingênuo se não levasse em conta a sabedoria que carregava em seu olhar.
E agora estava com medo. Ele queria ter uma chance de poder estender os anos de vida dele mais a frente. Quando ele tivesse condições de agradece-lo com vitórias, bens materiais e conquistas que enriqueceriam os corações de qualquer pai. Mas essa ilusão desabava a cada folego quebrado por lamentos e soluços do mesmo.
Erik apertou a mão de Gustave com mais força, pensando em proferir todas as verdades que guardava dentro do coração. O seu amor por Christine, a fé renovada que teve do mundo, a gratidão por aqueles anos de jubilo e alegria. Mas conseguiu expressar todas essas mesmas verdades em uma frase:
– Não haverá de ter medo pai, estarei contigo. E quando o senhor se for guardarei Christine com toda a cautela e ternura. Como um anjo para um devoto, como um homem pela sua esposa.
Se Gustave estava surpreso pela declaração, ele não demonstrou. Seu sorriso era terno e as lagrimas de dor turvaram-se em emoção enquanto sua visão desfocava aos poucos, os sentidos a sua volta tremendo e desaparecendo; o gosto da febre, o aperto firme de Erik, o som distorcido dos ventos tornando-se acordes, o timbre de sinos o coral dos anjos.
Oh os anjos, a luz incandescente, lagrimas douradas.
Perdido. Achado.
A areia morna da praia, o mar quente, o sol que nunca se punha. Caminhou pelas aguas.
Olhou para trás e viu uma mulher bela e delicada que já fora o reflexo de sua menina, viu um homem talentoso e grandioso que sobrepunha sua face horrenda. Eles tinham um menino com seu nome, ele sorriu e se distanciou.
Adeus ao palco desde mundo belo, o fim do ato final.
O fim dessa maravilhosa ópera que foi sua vida.
[...]
Erik ficou com o pai e em silencio enquanto ele ditava os versos mais belos do que o menino julgava ser uma morte horrível. Mas tentou compreender que aquilo não fora apenas sofrimento infundado, fora amor, dor, alegrias e tristeza, misturado em sussurros de versos quase espectrais.
E no final ele escolheu a paz a lutar contra aquilo que os homens temem.
Ele compôs meia dúzia de melodias, poemas e outras tantas obras destinadas ao pai que tocaram em seu casamento com Christine, que mesmo estando repleta de alegria e leveza, chorou quando tomaram um minuto para homenagear o pai.
– Qual nome você prefere? – Christine perguntou quando receberam a criança em seus braços, era quase indiscutível para Erik que se fosse de sua plena vontade, qual seria o nome do menino.
– Gustave... – O homem respondeu com um suspiro resignado, o tipo que se segurava para não chorar ou estragar o momento alegre.
– Ele será talentoso e bondoso como o avô? – Christine perguntou enrolando uma mecha do cabelo castanho do bebe nos dedos, acariciando a bochecha rosada com o polegar enquanto sente os lábios do marido na sua testa.
– Sim será.
Uma lagrima escapa dos olhos de Erik enquanto desfrutam do silencio deixando que a respiração dos três embalassem aquela sala.
Mal desconfiavam que ele conseguia ouvir claramente. Envolto de nuvens de cetim e a canção dos astros celestes. Gustave ouvia com atenção e deleite; cada batimento, respiração suave e afetos a serem trocados.
A mais bela das sinfonias,
FIM.
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