Rachel
A fúria que sentiu ao vê aquele cinco segundos de vídeo, foram o suficiente para dar a sentença de Ferdinand. Ela sabe que é ele o anônimo. Quem mais seria? Quem mais teria acesso aquelas informações? Ferdinand caiu de joelhos a sua frente, com o peito sangrando. O homem tirou o óculos, e sorriu para Rachel. Ele a achava tão tola por pensar que seus problemas estariam solucionados apenas por tentar tirá-lo do tabuleiro. A mulher a sua frente não fazia a mínima ideia do tamanho do problema que tinha arranjado. E nem a lista de inimigos que possuía.
— Últimas palavras — murmurou Rachel. Apesar da sua pose firme, ela não se sentia bem com aquela cena. Algo a nauseava. Dentro da sua cabeça, uma orquestra desafinada tocava tornando sua dor de cabeça mais intensa. Suas mãos ainda seguravam com firmeza a pistola, pronta para atacar, caso algo saísse dos seus conformes.
Ela mal havia chegado em casa, quando Ferdinand a ligou dizendo que havia adorado seu vídeo com Sarah. Sem entender, Rachel não precisou procurar saber de que vídeo se tratava, já que um Ira pálido mostrou seu celular a ela. Aquilo foi o suficiente para Duncan entender que o controle não existia mais. Ela não era mais uma dominadora. Rachel se tornou uma mera submissa dos seus problemas.
— Eu não seu inimigo, querida — Ferdinand disse com sorrisinho sádico. Ele tentou se levantar aos poucos, e conseguiu. Sua mão precionava seu peito baleado. — O seu único defeito foi em pensar que eu era uma peça, quando na verdade eu sou o jogador.
Rachel não deixou que ele continuasse com suas palavras medíocres. Ela tentou acertar a pistola na cabeça do homem, que se esquivou e agarrou seu braço. Ferdinand apertava o pulso da mulher com força, enquanto se aproximava de seu corpo. Ele tirou a mão que estava sobre seu peito, e passou seus dedos sobre o pescoço e face de Rachel, sujando-a com seu sangue. Ela ficou estática, em relação a ele.
— Não, não, Rachel — ele negou com a cabeça. — Sempre tomando as atitudes erradas.
Ela nada disse.
— Beije o seu senhor! — ordenou Ferdinand, pressionando com força o pulso e o pescoço da mulher. — Eu vou precisar falar duas vezes?
— M-Me solta... — pediu ela com dificuldade para respirar. Ele afrouxou seu pescoço. Rachel respirou fundo, tentando se fazer de forte, mas era quase impossível. Ela estava desestabilizada emocionalmente.
— Beije o seu senhor — repetiu ele.
Rachel o beijou. O homem tocou na cintura da mulher, e isso foi o suficiente para ela acertar seu joelho nas genitais do homem, que rugiu, e mordeu com força os lábios dela. Rachel o empurrou e lhe deu um tiro no pé esquerdo.
Recompondo-se, ela saiu as pressas do galpão. Ninguém nunca encontraria aquele local. Era escondido demais. Longe da cidade. Da estrada. Ou seja, Chevalier não teria como pedir ajuda. Ele iria morrer e deixar de inferniza-la.
As pessoas poderiam chamar Rachel de muitas coisas, mas de assassina, não. Até aquele momento. Tirar a vida de uma pessoa — diretamente — era bem pior do que imaginava. Ela se sentiu imunda. Teve nojo de si própria.
Assim que chegou em seu apartamento, ela encontrou Sarah e Ira conversando. Rachel nem seu deu ao trabalho de perguntar como Sarah havia descoberto seu endereço, ela apenas os ignorou seguindo para o seu quarto se trancado no lugar.
Ouvindo os chamados de Sarah, e suas batucadas incessantes na porta, Rachel pegou a pistola que usou para matar Ferdinand, e o escondeu em um livro falso, que estava guardado em seu armário.
Ela correu para o banheiro. Precisava tomar um banho. Precisava se livrar daquele cheiro de morte que estava entranhado em seu corpo. Enquanto a água caia sobre si, ela percebeu que nunca tivera, de fato, controle da situação. Rachel sempre gostou de se imaginar no comando. De ser temida. A intocável. A rainha. E por um tempo ela acreditou que isso tudo era verdade. Ela foi enganada por si própria.
Sarah
É difícil tentar ajudar uma pessoa, que se recusa ser ajudado. Sarah entende que algo vem acontecendo. Ela não é idiota. Algo vem perturbando a sua mulher. E a forma como Rachel chegou em seu apartamento — abatida e suja de sangue — foi uma comprovação de suas suspeitas. Sarah não iria ir embora, até que as coisas estivessem esclarecidas. Desistindo de bater na porta, Sarah se sentou perto a parede. Ela olhou em seu celular, e viu que faltavam 20 minutos para a meia noite, ou seja, ela precisava ir ao Graham's começar seu expediente.
Na naquele instante, ela decidiu que só saíria dali, se tivesse a certeza que Rachel não estava machucada, ou qualquer coisa do tipo. Ela só queria poder abraçar a mulher que vem transformando a sua vida em um furacão.
— Acredito que seria melhor você ir para casa. — Sarah se levantou ao vê Ira se aproximando.
— Eu não vou — respondeu ela, obstinada. — Eu preciso...
— Eu conheço a Rachel. Ela não vai sair daí tão cedo.
Ira se escorou perto de uma parede, ficando de frente para Sarah.
— Eu tenho todo o tempo do mundo.
— Eu sei que está preocupada, Sarah...
— Você não está? — indagou ela.
— Estou.
— Não parece — ela disse rude. — Você a viu, Dobermann. Rachel estava suja de sangue. Eu preciso saber se ela está bem.
— Você se importa tanto assim com ela? — perguntou ele, sério. — Pensei que o que vocês tivessem fosse só um casinho.
— Ela disse que nós éramos só um casinho?
— Não.
— Então não diga que somos só um casinho! — Sarah apontou para o homem, irritada.
— Era você naquele vídeo — começou Ira, depois de uma pausa de silêncio. — Se não tivesse procurado ela, aquilo nunca teria acontecido.
Sarah o olhou desacreditada.
— Está dizendo que a culpa é minha, cachorrinho? — Ela pressionou o corpo do homem com violência contra a parede. Seu antebraço enforcava Ira.
A porta do quarto foi destrancada. Sarah soltou Ira de imediato. Rachel passou por eles, como se o casal de clones fossem invisíveis aos seus olhos. Ira tentou segui-la, mas Sarah o impediu, indo somente ela, atrás de Rachel.
As duas estavam na cozinha. Sarah observava Rachel beber um copo de água, ainda ignorando a sua existência. Aparentemente Rachel não possuía nenhum arranhão, isso faz Sarah chegar a conclusão que o sangue não era dela.
— A gente precisa conversar — disse Sarah, não tendo a certeza se aquela era a melhor hora para isso.
Rachel continuou ignorando-a. Ela parou de beber a água, e pôs o copo na pia.
— É sério? Vai continuar me ignorando?
— Shiiuu — fez Rachel, com as mãos sobre a mesa, encarando o nada. — Silêncio.
Sarah suspirou.
— Você tem alguma coisa para me contar? Como por exemplo, quem diabos fez aquela gravação? Ira acha que a culpa é minha.
Não houve resposta.
Sarah se aproximou de Rachel, forçando-a a encará-la. — Vai continuar me ignorando?
O silêncio continuou. As duas se encaravam fixamente, mas nada era dito.
— Ok — Sarah se deu por vencida. Ela iria se afastar, mas Rachel a puxou pelo braço e a beijou.
— Eu quero tanto foder você — disse Rachel, durante o beijo.
Sarah se afastou da mulher, decepcionada.
— Não — Sarah disse, deixando o ombros caírem.
— Não o que?
— Não, eu não quero isso — respondeu, dando um passo para trás. — Não, você não quer isso. É a raiva falando por você. Pare pra pensar! Me diz o que está acontecendo. Eu preciso saber. Estamos juntas nessa.
— Eu não sei, Sarah.
— Mentira! Você sabe, pelo menos um pouquinho, mas sabe. Por que não quer me contar?
— As coisas não são tão fáceis, quanto parece — Rachel disse baixinho.
— É, Rachel. Eu percebi isso. É só que... As coisas só serão fáceis, quando você se permitir ser ajudada. Se não, não poderemos fazer nada. Mas saiba que Ira e eu estamos aqui por você. Cosima, S e Felix me ajudarão a ajudar você. Apenas me diga o que está acontecendo... — A única reação de Rachel, foi se virar, ficando de costas para Sarah. Ela voltou a ignorá-la. — Ok, você não quer dizer. Eu respeito isso. Não aceito, mas respeito. Eu preciso ir agora. Vou pro Graham's. Boa noite.
Sarah fez o mesmo percurso para encontrar a saída. Ela sabe que colocar Rachel contra a parede não foi a melhor maneira de tentar resolver o problema. Mas o que ela disse era a verdade. Rachel precisava entender que Sarah estará ao seu lado, em qualquer circunstância.
— Sarah...
Ira a chamou, antes que ela passasse pela porta. A mulher apenas o encarou.
— Independente do que aconteça, não abandone-a. Ela ouve mais você, do que a mim.
Balançando a cabeça, Sarah foi embora. Ela mandou uma mensagem para Graham dizendo que ouve um contratempo, por isso o atraso, mas não era para ele não se preocupar, pois já estava a caminho.
Naquela noite não houve muitos clientes. Até as duas da manhã, apenas cinco pessoas apareceram para comprar algo. Então o lugar estava bem deserto. Somente Sarah e Graham trabalhavam naquele expediente. Ele na cozinha, e ela no atendimento e no caixa.
— Está frio, não acha? — Graham sentou em uma das mesas, na qual Sarah limpava. Ele esfregava as mãos, e assoprava ora ou outra. — Senta aí, depois eu termino de limpar.
— Eu devia ter trazido a minha jaqueta — lamentou Sarah sentando a mesa.
— Quer a minha? — Sem esperar por uma resposta, Graham tirou sua jaqueta marrom e entregou à mulher.
Sarah agradeceu pela gentileza.
— Quer beber? Por conta da casa.
— Olha... Eu vou aceitar — sorriu ela.
Graham se levantou para buscar uma garrafa de cachaça, e logo retornou com dois copos. No decorrer das horas, os dois já conversavam alto e davam boas risadas. Como não apareceu mais nenhum cliente, eles resolveram jogar xadrez, para passar o tempo. Sarah ficou com as peças brancas, Graham com as pretas.
Com trinta e três minutos de partida, Graham moveu seu cavalo para a casa F2, gritando um xeque-mate. Sarah tampou os ouvidos, com a gritaria do homem.
Sarah moveu seu bispo da casa C5 para a F2, capturado o cavalo de Graham.
— Rá! Acho que alguém está perdendo — zombou Sarah.
— Quando você menos esperar Sarah, eu vou capturar a sua rainha — comentou Graham, usando sua torre para tirar a Rainha branca da jogada. Foi quando Sarah percebeu que caiu em uma emboscada do homem.
— Eu não quero mais jogar — disse ela, ao se dar conta que iria perder.
Graham riu.
— Nunca pensei que você fosse de desistir tão fácil. A diversão está em jogar.
— Perder não é divertido — Sarah analisava atenta ao tabuleiro.
— Lembre-se que nós somos os jogadores.
— As peças são alvo fáceis de manipulações — ela falou. — Já parou para pensar que talvez a vida seja um jogo?
— E se for? Quem é você? — indagou ele, tomando mais um gole do álcool.
— Não é como se nós pudéssemos escolher.
— Resposta errada — disse ele. — As peças são alvo fáceis de manipulações, Manning. Você disse isso. Pessoas frágeis geralmente são peças.
— Todos nós queremos ser os manipuladores.
— Correto. O jogador sempre escolhe a peça que está mais vulnerável à si. Quem é você? — voltou a perguntar.
— Uma peça — respondeu, Sarah, depois de pensar por um tempo. — E você?
— Por que uma peça?
Ela voltou a pensar. Era uma pergunta difícil. Quem na verdade somos? A nossa posição no jogo reflete as nossas atitudes. Olhando para a sua vida, Sarah percebeu que talvez ela não seja uma peça. E nem uma jogadora. Sarah Manning é o desconhecido. O instrumento nunca tocado. Ela nunca foi de seguir regras, e sim, fazer as suas próprias. Ela entende que isso não a dar o direito de impor suas ideologias sobre os outros. Quem Sarah é?
— Eu apenas observo — respondeu, Sarah, por fim. — Analiso os movimentos. Mas se eu tiver que entrar no jogo, eu viro uma peça extra. O coringa. Aquela que ninguém sabe de onde surgiu, mas que se rebela contra os senhores. Se eu não pude me salvar — Sarah movimentou seu cavalo, deixando-o exposto para Graham capturá-la com seu bispo, e assim ele o fez. — Eu vou salvar o meu rei, matando o seu. Xeque-mate — o movimento final foi de Sarah, com sua torre. O Rei de Graham fora posto para fora da jogada. A partida havia finalizado.
— Seja essa peça coringa, Manning — aconselhou Graham.
— Eu já sou.
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