Minha mãe bufou, indignada.
Dr.Pattison: Anahí precisa ter o espaço dela, Marichelo. - ele continuou, - e sentir que é ela
quem controla sua própria vida. Tudo isso foi tirado dela por um bom tempo, e precisamos
respeitar seu direito de se restabelecer da maneira como achar melhor.
Marichelo: Ah. - Minha mãe torceu o lenço entre os dedos. - Não tinha pensado nisso sob
esse ponto de vista.
Segurei a mão dela quando seu lábio inferior começou a tremer violentamente.
Anahí: Nada seria capaz de me convencer a não falar com Alfonso sobre meu passado. Mas eu
poderia ter avisado você antes. Desculpe por não ter pensado nisso.
Marichelo: Você é muito mais forte do que eu, mas não consigo deixar de me preocupar.
Dr.Pattison: Minha sugestão, é que você reflita sobre quais tipos de eventos e situações mais
lhe causam ansiedade, Marichelo. Depois disso, registre tudo por escrito. -Minha mãe
concordou com a cabeça. - Quando tiver uma lista mais ou menos definida, não precisa ser
nada muito detalhado, vocês podem sentar para conversar e encontrar soluções para essas
preocupações, atitudes com as quais ambas concordem. Por exemplo, se ficar sem notícias
da Anahí por mais de um dia incomoda você, talvez uma mensagem de texto no celular ou um
e-mail seja uma forma menos invasiva de lidar com isso.
Marichelo: Certo.
Dr.Pattison: Se vocês quiserem, podemos discutir a lista juntos.
Essa interação entre os dois quase me fez surtar. Era praticamente um insulto. Eu não
esperava que o dr. Pattison pusesse juízo à força na cabeça da minha mãe, mas esperava que
ele fosse um pouquinho mais duro alguém precisava fazer isso, alguém cuja autoridade ela
respeitasse.
Quando a sessão terminou e estávamos de saída, pedi para minha mãe esperar um pouco
para que eu pudesse fazer uma última pergunta ao dr. Pattison em particular.
dr. Pattison: Sim, Anahí? - Ele estava de pé na minha frente, aparentando sabedoria e
paciência infinitas.
Anahí: Eu andei pensando sobre uma coisa... - Fiz uma pausa, engolindo em seco. - É possível
que duas vítimas de abuso tenham uma relação romântica saudável?
dr. Pattison: Perfeitamente. - Sua resposta imediata e convicta permitiu que eu voltasse a
respirar.
Apertei sua mão.
Anahí: Obrigada.
Quando cheguei em casa, abri a porta com as chaves que Gideon tinha devolvido e fui direto
para o quarto, cumprimentando Christian, que estava praticando ioga seguindo as instruções
de um DVD, apenas com um breve aceno.
Tirei a roupa enquanto caminhava para a cama e entrei debaixo das cobertas frias só de
lingerie. Abracei um travesseiro e fechei os olhos, tão exaurida que não conseguia pensar em
mais nada.
A porta se abriu e um instante depois Christian estava sentado ao meu lado.
Ele afastou os cabelos do meu rosto lavado de lágrimas.
Christian:O que aconteceu, gata?
Anahí: Levei um pé na bunda hoje. E por uma porra de um bilhetinho.- Ele suspirou.
Christin: Você sabe como as coisas funcionam, Anahí. Ele vai querer manter você à distância,
porque acha que vai ser mais uma decepção na vida dele.
Anahí: E estou fazendo de tudo pra mostrar que ele está certo. - Consegui me enxergar
perfeitamente na descrição de Christian. - Corri quando as coisas ficaram feias, porque tinha
certeza de que tudo ia terminar mal. E a única atitude que tomei a respeito foi ir embora em
vez de ser deixada pra trás.
Christian: Porque você precisa lutar pra manter sua própria reabilitação. - Ele deitou junto às
minhas costas, passando um dos braços bem definidos sobre mim e me apertando contra ele.
Eu me aninhei naquele abraço de que nem sabia que precisava. - Ele deve ter me chutado
por causa do meu passado, não do dele. Se isso for verdade, ainda bem que terminou. Mas
acho que no fim vocês vão acabar se entendendo. Pelo menos é o que eu queria que
acontecesse. - Sua respiração roçava de leve meu pescoço. - Quero finais felizes pra todo
mundo que já sofreu o diabo na vida. Mostre que é possível, Anahí, querida. Me faça
acreditar.
A sexta-feira começou com Diego tomando café da manhã comigo e com Christian depois de
dormir lá em casa. Enquanto bebia a primeira xícara de café do dia, observei o modo como
eles interagiam e fiquei contentíssima ao ver seus sorrisos de cumplicidade e a maneira
discreta como trocavam carícias furtivas.
Eu já havia tido relacionamentos tranquilos como esse, e não soube valorizá-los
devidamente na época. Eram namoros gostosos e descomplicados, mas também um tanto
superficiais em certo sentido.
Como ter uma relação mais profunda se você não conhece os recantos mais obscuros da
pessoa amada? Era esse meu dilema com Alfonso.
O Segundo Dia Pós-Alfonso havia começado. Minha vontade era ir até ele e pedir desculpas
por tê-lo deixado. Queria dizer que ele podia contar comigo, que eu seria toda ouvidos, ou
então ofereceria um consolo silencioso caso fosse preferível. Mas eu estava envolvida
demais emocionalmente. Fragilizada demais. Morrendo de medo de ser rejeitada. E saber
que ele não se abriria para mim só fazia esse medo crescer. Mesmo que nos acertássemos, eu
sabia que só ia me magoar não o tendo por inteiro, tentando conviver apenas com o que ele
decidisse compartilhar comigo.
Pelo menos no trabalho estava tudo bem. O almoço comemorativo que os executivos nos
ofereceram por termos conseguido a conta da Kingsman me deixou feliz de verdade. Senti
que era muita sorte minha trabalhar em um ambiente tão positivo. No entanto, quando ouvi
que Alfonso também tinha sido convidado apesar de ninguém esperar que ele
aparecesse,voltei para minha mesa em silêncio e me concentrei só nos meus afazeres
pelo resto da tarde.
Passei na academia a caminho de casa, depois comprei ingredientes para fazer fettuccini
alfredo para o jantar e crème brûlée para a sobremesa uma comida bem pesada para me
deixar num coma induzido por carboidratos. Esperava que o sono me oferecesse uma trégua
dos questionamentos que percorriam ciclicamente meu cérebro, na esperança de que a
manhã de sábado chegasse bem depressa.
Christian e eu jantamos na sala, com palitinhos, uma ideia dele para me agradar. Ele falou
que o jantar estava ótimo, mas nem ouvi. Saí do transe quando ele ficou em silêncio também,
e percebi que não estava sendo uma companhia muito boa.
Anahí: Quando vão sair os anúncios da campanha da Grey Isles? - perguntei.
Christian: Não sei, mas escute só isso... - Ele sorriu. - Você sabe como os modelos costumam
ser tratados, somos descartados como camisinhas usadas numa orgia. É difícil se destacar, a
não ser que você namore alguém famoso. O que do nada virou meu caso, desde que aquelas
fotos minhas com você começaram a pipocar por toda parte. Entrei por tabela no seu
relacionamento com o Alfonso. Você fez com que eu virasse um objeto cobiçado.
Anahí: Nisso eu não ajudei, não. - Dei risada.
Christian: Bom, mas com certeza mal não fez. Enfim, eles me ligaram para fazer mais algumas
fotos. Acho que estão a fim de me usar por mais de cinco minutos.
Anahí: Precisamos sair pra comemorar. - provoquei.
Christian:Com certeza. Quando você estiver pronta para isso.
Acabamos ficando em casa vendo Tron, o original, não o remake. O celular dele tocou vinte
minutos depois do começo do filme, e eu o ouvi falando com um agente.
Christian: Claro. Estarei aí em quinze minutos no máximo. Ligo pra você quando chegar.
Anahí: Conseguiu um trabalho?- perguntei quando ele desligou.
Christian: Pois é. Um modelo apareceu chapado para uma sessão noturna de fotos e precisam
de um substituto. - Ele olhou bem para mim. - Quer ir junto?
Estiquei as pernas no sofá.
Anahí: Não. Melhor ficar por aqui.
Christian: Tem certeza de que está tudo bem?
Anahí: Só preciso de alguma coisa pra distrair a cabeça. Só de pensar em me trocar já fico
cansada. Eu não me incomodaria de usar minha calça de pijama de flanela e minha camiseta
velha de dormir o fim de semana todo. - Como estava machucada por dentro, o conforto
exterior era uma necessidade para mim. - Não se preocupe comigo. Sei que ando confusa
ultimamente, mas eu me arranjo. Pode ir, e divirta-se.
Depois que Christian saiu, todo apressado, pausei o filme e fui até a cozinha pegar um vinho.
Parei no balcão, passando os dedos nas flores que Alfonso tinha me mandado no fim de
semana anterior. As pétalas caíam como lágrimas. Pensei em cortar os caules e usar o aditivo
que veio junto com o buquê para aumentar sua vida útil, mas não fazia sentido me apegar a
elas. No dia seguinte, iria tudo para o lixo, a última lembrança de meu relacionamento
igualmente condenado.
As coisas com Alfonso haviam ido mais longe do que em relacionamentos anteriores que
duraram mais de um ano. Eu sempre o amaria por isso. Eu sempre o amaria, e ponto final.
Mas, algum dia, talvez isso não me causasse tanta dor.
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