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História Trust No Bitch - West Coast (Ramona's History)


Escrita por: rafaelaribeiro_

Notas do Autor


Link da música nas notas finais.
Confiem em mim, esse capítulo vale a demora...

Wanda Jack - Melissa Ponzo
Donald Jack - Kevin Corrigan
See you around, sweeties!

Capítulo 6 - West Coast (Ramona's History)


Fanfic / Fanfiction Trust No Bitch - West Coast (Ramona's History)

Coloque para ouvir: The Neighbourhood – West Coast (link nas notas finais)

 

“…Me, I'm from a different type of left land, old wild west land

Nosebleeds, palm trees, and tumbleweeds rustling…”

(“...Eu, eu sou de um tipo diferente de litoral, antiga e selvagem terra oeste
Hemorragias nasais, palmeiras e fenos assobiando...”)

 

Não sei por onde começar, de fato. Tentarei conduzir todas vocês nesta dança até o fim desta noite, e trilhar todos os pontos da minha história.

Cresci um pouco longe daqui, mas ainda sim era uma terra quente e úmida, de palmeiras prestes a virar farelo e muito mormaço. A pequena Ramona era tão doce, tão inocente, tão querida... até o dia de sua morte. Até o dia que se afogou no próprio piche que havia dentro de si e fora morta.

“…Outsiders say it's happy here, but it's depressing
Too many pretty faces catching my attention…”

(“...Lá fora, eles dizem que é feliz aqui, mas é deprimente
Muitos rostos bonitos capturam minha atenção...”)

 

Eu e meus cabelos longos e prestos grudados na nuca vínhamos pra casa caminhando, com tênis cor de rosa, bermuda jeans e camisa branca. A escola ficava a poucas quadras de casa. “Casa” era como eu e minha incompleta família chamávamos o conjunto habitacional erguido pelo prefeito na época: casas exatamente iguais, de paredes verdes e telhas vermelhas. Pequenas casas enfileiradas, formando algo semelhante à ruas naquele asfalto sem sinais. Eu chegava ali, pequena e quieta, com minha mochila nas costas e girava a maçaneta, afastava a cortina de contas roxas e via a mesma cena de sempre, que só pude compreender mais tarde. O piso de mármore usado e empoeirado em alguns pontos, as paredes com infiltrações... A sala era um pequeno espaço com dois sofás vermelhos e uma poltrona de camurça velha e marrom. Um tapete branco de crochê, feito a mão pela minha mãe. Ao lado, uma mesa de madeira redonda de jantar, com cinco banquetas e na parede atrás dela, uma janela com uma cortina surrada. Ao lado, um batente com, ao invés de uma porta, mais uma cortina de contas, agora azuis. Atravessando, eu encontrava o espaço retangular da cozinha, com tudo ligeiramente branco. A pia de mármore e os armários de ferro abaixo dela, as panelas no fogão exalando fumaça e o cheiro da comida da minha mãe.

Eu cheguei até ela e cutuquei seu braço, e ela se virou para mim e sorriu.

Wanda Jack. Tinha seus cabelos negros presos em um coque como de costume e a pele parda como a minha. Os olhos grandes e castanhos com nenhuma maquiagem. Usava um avental sujo e gasto por cima de um vestido surrado e florido.

Ela mexeu nos meus cabelos, beijou minha testa perguntou com sua voz doce:

- Como foi o dia, meu anjo?

- Foi bom. – Não havia sido bom. – E o seu?

- O de sempre...

Eu pude ouvir os passos dele chegando até a sala e jogando seu corpo pesado na poltrona de camurça.

- Wanda! Minha cerveja, Wanda!

- Estou indo!

Minha mãe me soltou e foi até a geladeira, pegou uma das diversas garrafas de cerveja, que estavam em um número grandioso comparado à comida e segurou-a com a ponta dos dedos por conta do gelo, depois dirigiu-se até a sala e entregou nas mãos dele.

Fui aos poucos, miúda e silenciosa, atrás da minha mãe. Mantive meu corpo escondido na parede assim como parte do meu rosto. Mas pude vê-lo.

Donald Jack. Ele era asqueroso, parasita e imundo. O bafo fedia a diversos tipos de bebidas, os olhos azuis mal abriam e os pés peludos estavam sempre para o alto. A camisa de botões estava aberta perto do colarinho e na barriga, exibindo mais pelos e a calça desabotoada, mostrando parte da cueca.

Quando minha mãe se casou com ele, tudo era como magia. Mágica essa que foi se esvaindo até acabar. Perdemos nossa casa, recuperamos poucos móveis e roupas e acabamos aqui.

- Deseja mais alguma coisa? – disse minha mãe, aparentemente medrosa.

- Que você saia da minha frente. Você tá na frente da TV e o jogo vai começar. – sua voz era arrastada, assim como ele.

Minha mãe voltou para a cozinha me puxando pelo braço junto com ela.

Paramos novamente em frente ao fogão. Ela se abaixou e beijou minha bochecha. Sorriu e me olhou bem fundo nos olhos quando disse.

- Quando puder sair daqui, saia. Entendeu?

Eu não entendi muito bem na época o que aquilo significava, por isso apenas concordei.

Dei meia volta e voltei para sala, onde encontrei meu padrasto outra vez. Em um surto, resolvi enfrentá-lo, pois estava na idade em que me achava do tamanho do mundo.

Parei em frente à TV, vendo ele balançar a cabeça em uma tentativa tola de ver a tela e gritei.

- VOCÊ NÃO PODE TRATAR MINHA MÃE ASSIM! NÃO PODE TRATAR NINGHUÉM ASSIM!

Minha mãe, provavelmente me ouviu gritar e foi rapidamente até a sala, e chamou meu nome diversas vezes em vão.

- VOCÊ É NOJENTO E JAMAIS SERÁ MEU PAI! NUNCA SERÁ MELHOR DO QUE ELE!

Por uma fração de segundos, fiquei com medo quando ele se levantou, passou as mãos nos cabelos brancos e me olhou com ódio, mas lembrar de como ele levou minha família à ruína me fez abandonar qualquer sentimento de recuar.

- EU SOU SEU PAI, CRIANÇA! VOU FALAR COM VOCÊ COMO EU BEM ENTENDER! SE AUMENTAR A VOZ PARA MIM MAIS UMA VEZ EU VOU...

Minha mãe tapou a boca dele e o empurrou para trás antes que ele pudesse fazer alguma coisa.

Ela o sentou na poltrona e rapidamente sentou no colo dele, com as pernas uma de cada lado de sua cintura enquanto ele estava com os olhos vermelhos de raiva, se debatendo para levantar.

- RAMONA, CORRA!

Então eu corri para o meu quarto, e me tranquei ali. Encostei as costas na porta e fui caindo aos poucos, junto com a pose de criança forte que eu deveria ter. Eu chorei desesperadamente. Meu peito doía de saudades do meu pai, minha cabeça girava com tudo o que acontecia. Mas eu deveria suportar. Pela minha mãe, e por minha...

- Irmã! – Lilian. A única coisa bonita que saiu de um casamento catastrófico. Queria que ela fosse uma Appleburn, mas infelizmente nasceu Jack. Lilian Jack. Ela era tão miúda, tão graciosa e delicada. Tão igual a mim e a minha mãe... Exceto pelos olhos azuis de Jack. Era inocente demais para entender coisas que eu, aos meus 11 anos entendia e ela com seus 5, jamais entenderia. – Por que você tá chorando, irmã?

- Tive um dia complicado na escola, meu bem. Só isso.

Lilian não parecia convencida. Ela nunca pareceu. Ela foi chegando perto de mim aos poucos, vendo se eu voltaria a chorar. De repente, e sem avisos, ela me abraçou apertado. Mais apertado do que em qualquer noite de chuva. Mais apertado do que em qualquer Natal. Mais apertado do que em qualquer dia de saudade.

E ela, em toda sua pureza, disse.

- Eu te amo, “Mona”.

- Eu também te amo, Lily.

Voltei a chorar incontrolavelmente, sendo acalmada pela minha pequena irmã que pouco entendia o que estava acontecendo.

[...]

O tempo passou, eu me acalmei e chegou a hora do jantar. Fui com Lily até a sala de estar, seguindo até a mesa onde Lily sentou em sua banqueta ao lado da minha. No prato branco, algumas verduras e um pedaço de bife. Peguei meu garfo e já ia dizer “Bom apetite à todos”, quando olhei pra minha mãe, horrorizada.

Seus braços estavam repletos de vergões e o olho direito estava roxo.

Minha mãe viu que eu a encarei, perplexa e apenas moveu os lábios sem deixar sair algum som. “Está tudo bem”.

Fiquei em silêncio, com a garganta dolorida prendendo a vontade de gritar e chorar e peguei minha colher, remexendo o prato sem comer. Donald já tinha atacado o prato asquerosamente, com os dentes tentando cortar o bife e minha mãe havia se levantado para cortar o bife para Lilian.

 

“…So I look at them, remind myself in the smudged glass


             That pretty isn't everything, you punk ass
       Always hard to see past the surface, when it looks so perfect
              But her eyes will disguise dirt on purpose, you listening?...”

(“...Então eu olho para eles, lembro de mim mesmo nos vidros manchados
"Beleza não é tudo, seu filho da puta"
Sempre difícil ver além da superfície, quando parece tão perfeito
               Mas os olhos dela vão disfarçar a sujeira de propósito, está ouvindo?...”)

 

Eu estava tonta com tudo aquilo, e eles estavam agindo como se estivesse tudo bem e aquele hematoma horrendo no rosto da minha mãe não fosse nada. Eu sentia um misto de ódio e tristeza, e um gosto amargo na boca.

Comi apenas os vegetais, relutante e fui me lavar. Tirei rapidamente a roupa e entrei no banheiro. Me encolhi no chão, em baixo do jato de água quente e repleta de fumaça  e comecei a chorar baixinho, esperando que aquele pesadelo enfim acabasse.

Mas estaria tão longe de terminar...

 

[...]

 

A madrugada havia chegado e eu havia conseguido enfim dormir naquele amontoado de colchões que eu chamava de cama. O quarto era cor-de-rosa com paredes marcadas de fita adesiva e infiltrações. Uma cômoda bege e um amontoado de roupas ficava perto de mim e perto de Lily, e seu amontoado de colchões onde ela dormia suavemente, uma mesa com alguns produtos como desodorante, hidratantes e produtos para cabelos, vários brinquedos cor-de-rosa e meu material escolar em uma pilha.

A noite havia enfim aquietado, tudo parecia bem apesar dos problemas.

Até que eu escuto a porta frente bater e o chacoalhar da cortina de contas. Abri os olhos em um clique. Passos pesados como botas batiam no chão e se arrastavam. O som chegava cada vez mais perto do meu quarto, e eu me sentia assustada. Será que vieram assaltar a casa. Até que eu vejo a maçaneta girar devagar,e então eu puxei meu cobertor até a cabeça. Não queria ver o ladrão.

Pude ver a forma gorda se mover pelo quarto vindo em minha direção... Até que o cobertor fora rapidamente puxado do meu corpo e eu pude vê-lo. Não era nenhum desconhecido querendo assaltar a casa como eu pensei. Era pior.

Donald Jack.

Ele estava cheirando à álcool e cigarro, os olhos estavam perdidos e vazios.

Ele seguiu sua mão até minhas pernas que estavam nuas. Tentei tirar sua mão de lá, que já estava indo em direção ao interior de minhas coxas mas falhei, e ele tapou minha boca e sussurrou.

- Se fizer alguma coisa, farei pior com sua mãe.

E eu comecei a chorar em silêncio enquanto ele se arrastava por mim como bem entendia. Colocava a mão, a boca e até mesmo seu pênis onde bem entendia.

Não contarei mais desta noite à vocês porque me recuso a lembrar de tudo outra vez.

Mas posso dizer que prefiro a morte à viver tudo aquilo de novo.

 

[...]

 

Os anos se passaram, e eu cresci junto dos gritos e abusos constantes do meu padrasto. Descobri junto com o tempo, que Donald já havia feito isso uma vez, e não descobri por que fui tola, afinal, estava bem na minha cara, o nascimento de Lilian Grace Jack fora o resultado disso.

Eu faria 15 anos naquele dia, e tudo parecia mais calmo e tranquilo.

Fui para escola, observando o caminho e vendo que as coisas não mudam tanto assim no ensino médio, só no corpo.

 

[...]

 

A volta pra casa ainda era quente, mesmo com o passar dos anos. Mesmo com uma saia jeans, o calor parecia apenas se intensificar. Virei uma esquina, depois outra e senti o ar pesar, estranhamente. Risadas nasaladas ecoaram atrás de mim, então eu me virei.

Um grupo de garotas que eu nunca havia visto na vida, estava ali. Pareciam me conhecer.

- Posso ajudar?

- Você é Ramona, não é? Ramona Appleburn? – perguntou uma menina cheia de sardas no rosto, no meio de duas meninas de cada lado seu.

- S-sou...

Elas começaram a caminhar devagar, até que em um momento me vi cercada.

- Seu nome é engraçado, apple-burn.

Elas começaram a rir, e eu fiquei encarando-as, completamente confusa. Não elevei minha voz nem nada do tipo contra elas pois naquela época, acabei desenvolvendo algo relacionado à inferioridade, provocado pelo meu padrasto. Eu sabia que era errado, sabia que deveria me elevar e ainda assim me mantive quieta.

- Sabe, nossa escola não deveria aceitar pessoas como você. O gueto fica melhor no gueto. – disse uma loira de olhos azuis que eu acho que reconheci.

- Deveriam aceitar pessoas com mais classe, postura e acho que com um guarda roupa melhor que o seu. Que roupas horríveis! – disse uma garota alta e magrela.

- Mas não se preocupe, iremos dar um jeito nisso. – disse a menina sardenta.

Ela retirou a bolsa do ombro e de lá, bexigas de diversas cores, que distribuíram entre si, cada uma com duas.

Elas me encaravam com ódio, um ódio sem motivo como um castigo dado sem um crime.

Não era a primeira vez que eu me via em uma situação assim. Um menino puxava meu cabelo o tempo inteiro no primário, me chamando de suja e perguntando onde estava a minha família para me defender.

 

 

“…I grew up here, under the sun, in grade school, I was the odd one, out of the bunch
And I don't mean I was the kid to eat bugs for lunch,
I was the one who wasn't coming from where they're coming from…”

(“...Eu cresci aqui, sob o sol, primário, eu era o estranho, fora do grupo
E eu não quero dizer que eu era o garoto que comia insetos no almoço,
Eu era o único que não estava vindo de onde eles estão vindo...”)

 

De repente, senti algo explodir em minha barriga e minhas pernas ficarem grudentas, olhei para baixo vendo que uma das bexigas fora arremessada na minha sala, e dentro dela tinha ovos podres e farinha.

De repente, aquilo virou uma chuva enquanto eu tentava correr. Eu me sentia quase sem ar, e com a garganta apertada querendo chorar. Até que um grito ecoou na rua que eu jurava estar vazia. Uma menina de cabelos castanhos claros e muito pálida entrou na minha frente, sendo atingida por um dos balões, mas fazendo com que a artilharia parasse.

- Procurando mais uma vítima para assombrar, Jordan?

A garota sardenta gargalhou alto, antes de se voltar para a desconhecida na minha frente, que me tapava da vista delas.

- Ora, vamos, é divertido! Não quer tentar? – ela estendeu uma bexiga para a menina dos cabelos castanhos, e meu coração disparou de medo.

Ela riu sem humor e cravou seu olhar na menina sardenta, com fúria.

- Prefiro que atirem em mim também. Mas sabe as consequências que isso traria, não é?

A menina fechou o rosto e após me encarar com nojo e olhar para a menina à minha frente com ódio, ela deu meia volta e começou a caminhar, deixando suas súditas ali confusas, mas que logo foram atrás de sua abelha-rainha.

A menina dos cabelos castanhos se virou para mim. Ela parecia angelical até, ou seria fruto da minha imaginação por ela ter me ajudado. Ela tinha lábios rosados e olhos negros, seus cabelos eram ondas que atingiam a nuca e era corpuda, mas nem um pouco gorda. Ela vestia um macacão claro com nada abaixo dele para tapar as costas, as costelas e até um pouco dos seios e coturnos. Tudo agora sujo, gosmento e mal cheiroso por conta do que havia acontecido. Até seus cabelos estavam um pouco brancos, mas nada comparado ao meu. Eu estava uma verdadeira bagunça, com ovo podre e farinha em todos os lugares.

Ela me encarou doce, mas sua voz era firme.

- Por que não reagiu?

Eu a encarei com os olhos um pouco arregalados. Na época, eu também não sabia o motivo de não ter reagido, só fui compreender com a idade.

- Obrigada. – disse, por fim.

Ela sorriu pra mim, balançando a cabeça negativamente, deveria achar que eu era louca.

- Sou Ramona. Ramona Appleburn.

Estendi minha mão mesmo suja de farinha, que ela apertou mesmo assim.

- Sou Khalifornia West.

 

[...]

 

Ela me trouxe até minha casa naquele dia. Conversamos sobre o tempo, sobre o que havia acontecido, sobre coisas bobas...

- Mas por que você tem esse nome? – perguntei.

- Ah, minha mãe. Ela diz que seus melhores anos foram vividos na Cálifornia. Então nada como seu melhor presente ter o mesmo nome.

- É quase um endereço. – comentei com ela. – Khalifornia West, número 1562.

Nós duas demos risada. Alguma coisa nela me fez sentir que ela era especial, e eu nunca soube exatamente o que.

Quando ela percebeu que eu morava no conjunto habitacional, ela riu sem humor. Riu de si mesma.

- Não se preocupe com o que aquelas garotas dizem. Nem todo mundo é igual.

- Como assim? – perguntei.

- Vamos apenas dizer que eu também não sou como elas.

- Então já sofreu tudo o que eu sofri?

- Claro. Mas reagi no primeiro ataque daquele bando. Não se preocupe, isso passa assim como tudo irá passar. É preciso ser durona nessa vida, Rams. Eles irão te deixar cair, jamais te erguer.

Eu a encarei enquanto ela parecia procurar alguma coisa nos meus olhos que ela tivesse provocado. Khalifornia era do tipo de pessoa transformadora, imprevisível e rigorosa quando o assunto era cuidar dos outros e de si mesma.

Depois de um tempo, ela desviou seu olhar do meu para suas mãos, que estavam entrelaçadas.

- É melhor você entrar. Sua mãe deve estar te esperando.

Ela se virou e começou a caminhar para longe, e um pavor inexplicável tomou conta de mim.

- ESPERE!

Ela se virou, ainda longe.

- Eu vou te ver outra vez?

Khalifornia sorriu tímida para mim e disse antes de voltar a caminhar de volta pelo mesmo caminho em que viemos:

- Quem sabe?

 

 

“…I speak poetically, and never pride my ignorance, but this California shit is rigorous
They say it's happy here, happiness is figurative
I'm happy 'cause of me, doesn't matter where I'm living…”

(“...Falo poeticamente, e nunca me orgulho da minha ignorância, mas essa merda da Califórnia é rigorosa
Eles dizem que é feliz aqui, a felicidade é figurativa
Sou feliz por minha causa, não importa onde eu estou vivendo...”)

 

[...]

 

 

Já faziam duas semanas desde a primeira vez em que eu vi Khalie. Desde então, ela sempre aparecia na saída da escola e me trazia até em casa. Eu virei a madrugada de sexta para sábado pensando nas coisas que ela me disse. Ela era mais nova e ainda assim mais sábia que eu, ou que qualquer pessoa que eu conhecia. Khalie era destemida e ousada, coisas que eu só pensava que seria um dia. Estava deitava na minha “cama” encarando o teto e as paredes com rabiscos antigos de Lily.

Meus pensamentos foram interrompidos quando uma pequena pedra acertou minha janela. Não quebrou o vidro, apenas emitiu som, chamando minha atenção.

Fiquei encarando, mas não me levantei. Poderia ser alguma criança brincando do lado de fora, ou até mesmo Lily.

Logo outra pedra atingiu o vidro, e mais uma, e mais uma.

Me levantei, curiosa e quando olhei pela janela, eu não poderia ficar mais surpresa.

O céu já estava no auge de seu crepúsculo, com os céus em uma mistura de laranja, roxo e um tom forte e escuro de azul. E à frente, uma figura alta com seus cabelos curtos voando com o vento.

Khalifornia.

[...]

Quando me encontrei com ela fora de casa, ela sorria pra mim. Sorria daquele jeito como quem trama uma fuga.

- O que faz aqui? – perguntei quando cheguei até ela.

- Vim te levar pra um passeio pelo lugar que tem meu nome.

- Mas já está escurecendo...

- E...? É sábado, Ramona.

- Não sei, não...

- Ei, confia em mim?

Fiquei em silêncio, apenas encarando Khalie e seus grandes olhos. Respirei fundo antes de enfim dizer:

- Como eu posso confiar em você?

- Só tem um jeito de descobrir.

Ela estendeu para mim sua mão, de unhas grandes pintadas de azul e muito glitter e eu, após ficar indecisa entre o conforto e o inesperado, segurei sua mão. Não entendi o porquê mas depois de um tempo corei, soltando sua mão rapidamente e encarei o chão.

Khalifornia não entendeu meu desconforto mas, para minha alegria, fingiu não perceber.

- Vamos, temos uma longa noite pela frente.

Ela começou a andar em seus coturnos pretos, saia vermelha rodada e uma regata branca mostrando bem mais do que deveria.

Eu olhei para trás. Para casa. Eu deveria pelo menos falar com a minha mãe... mas Donald estragaria tudo. Com um pouco de razão. Então apenas apressei o passo para chegar até Khalie e juntas, fomos rumo ao “velho amigo” para ela, e “desconhecido” para mim.

 

“…If the sun was God, I'd be covered in faith
If the ocean was the devil, I'd be covered in hate
I'm so west coast, it's a goddamn shame
I'm so west coast, it's a goddamn shame…”

(“...Se o sol era Deus, eu estaria coberto de fé
Se o oceano era o diabo, eu estaria coberto de ódio
Eu sou tão West Coast, é uma vergonha maldita
Eu sou tão West Coast, é uma vergonha maldita...”)

 

[...]

“…I'm waking up underneath sheets, naked still sweating
Slept in late so everybody else is ready
My friend called up, he said
"Hurry up buddy, it's almost sundown already"
So I hopped up, I went and washed up
I ate some pasta, then I gave my mom hugs
And then I thought, "Uh, it's gonna be a pretty nice night"
But pretty isn't everything, right?...”

(“...Eu acordo embaixo dos lençóis, nu ainda suando
Dormi tarde, portanto todo mundo está pronto
Meu amigo ligou, ele disse:
"Apresse-se cara, já é quase por do sol"
Então eu subi, tomei banho
Eu comi algumas massas, dei abraços na minha mãe
E então eu pensei: "Uh, vai ser uma noite bastante agradável"
Mas beleza não é tudo, certo?...”)

 

Entrei aos poucos, quieta, observando tudo ao meu redor.  Eu não usava maquiagem alguma, diferente das meninas de lá cheias de brilho no rosto. Elas vestiam roupas curtas e eu jeans claros, uma camisa amarela e All Stars brancos de cano médio.

Aquele pub me era estranho, mas parecia confortável. O ambiente parecia ser moldado para homens como Donald Jack, mas estava repleto de adolescentes. Paredes que imitavam madeira e o piso de assoalho escuro. Mesas de bilhar e sofás vermelhos estavam espalhados por todos os cantos. Um grandioso bar servia bebidas sem se importar com a idade das pessoas ali ou até mesmo com os rastros de fumaça provocados por cigarros.

As pessoas viam Khalie e não imaginavam que ela tinha seus 13 anos de idade, talvez pelas roupas provocantes e pela postura. Eu gostava daquilo. Gostava como ela fazia a alegria por onde chegasse sendo apenas ela.

Ela percebeu que eu não havia seguido adiante junto dela e me puxou, continuando com seus acenos e sessões de abraços, fazendo com que as pessoas me cumprimentassem também. Ali não era o mundo de grosseria e antipatia com o qual eu era acostumada. Era tudo mais limpo, colorido e divertido.

Chegamos até o bar e ouvi Khalifornia murmurar alguma coisa para o homem atrás de balcão que, depois de um tempo, se virou com seis pequenos copos com um líquido transparente.

O cheiro era forte.

- Agora vou te ensinar a beber tequila!

Khalifornia me guiou até um dos bancos altos restantes no bar e me estendeu um copo.

Um mexi a cabeça freneticamente.

- Nem pensar! O que acha que minha mãe vai fazer quando eu chegar em casa?

- Relaxa, Appleburn. – Khalifornia pegou um dos copos e o virou de uma vez, fechando os olhos com força e depois os abrindo. Ela sorria abertamente. Parece que o efeito daquilo era rápido. – Apenas relaxe, ok? Vamos, tente!

Ela continuou a me estender o copo e eu, depois de encará-la, aceitei.

- Agora vire de uma vez só, sem questionar.

Eu mexi minha cabeça afirmativamente, com medo.

Depois de encarar o copo em minhas mãos e seu líquido transparente, eu o fiz. Pareciam que rajadas de fogo desciam pela minha garganta sem parar. Eu comecei a tossir com os olhos lacrimejando aos poucos.

Khalifornia deu risada enquanto dava leves tapas na minhas costas, não sei se para me ajudar ou para me dar apoio pelo que eu acabara de fazer.

- É isso aí, garota!

Aos poucos, fui me recuperando. Qual era a diversão daquilo?

- Vamos lá, mais um!

Ela entregou o pequeno copo em minhas mãos e pegou mais um para ela. Ela só podia estar ficando louca.

- No três, certo? Um, dois, três!

Ambas viramos os pequenos copos garganta abaixo e estranhamente não foi tão ruim quanto na primeira vez.

Ambas fizemos caretas só que, dessa vez, não passei mal.

Viramos o último e quando me dei conta, o homem atrás do balcão já havia trazido outras doses para ambas e seguimos tomando todas.

Quando me dei conta, eu não enxergava o mundo da mesma maneira. Eu estava falante, eu dava risada e queria conhecer tudo e todos. Uma incontrolável vontade de dançar tomou conta de mim e eu, sem me dar conta de meus atos, subi naquele balcão e comecei a dançar. Entendendo a deixa, um rapaz de dreads azuis aumentou o som e logo todos gritavam e exclamavam meu nome, até Khalifornia.

Ela provavelmente estava orgulhosa de mim.

Concretizei esse palpite quando ela subiu junto de mim no balcão e começou a dançar, e todos no chão também começavam a dançar.

 

 

 

“…Golden state mind, I'm taking my time


Plain white shirt, and a skinny black tie
My top let down when I get picked up
P C H so California…”

 

(“...Mente Golden State, eu estou tendo meu tempo
Camisa branca lisa e uma gravata preta
Meu top decepcionou quando eu fui pegá-los
PCH tão Califórnia...”)

 

Naquele momento, eu me sentia respirando como se fosse pela primeira vez. Como se cada segundo fosse pura magia e que jamais fosse acabar. Eu não via o que estava atrás de mim, somente o que vinha a seguir, E o que vinha, eram milhares de pessoas no mesmo embalo que eu. Elas eram algo diferente de mim: livres. E agora eu me sentia assim também. Aquela felicidade falsa provocada por bebidas me fazia querer gritar, chorar e depois dançar outra vez.

 

 

“…Maybe they were right; happiness is a warm gun
But before you shoot, please
 warn us…”

(“...Talvez eles estejam certos, felicidade é uma arma quente
Mas antes de atirar, por favor nos avise...”)

 

Todos estavam com os braços erguidos agora, aos berros conforme a música seguia e Khalifornia estava com um dos braços apoiado nos meus ombros. Todos riam demais, gritavam demais.

De repente, Khalifornia desceu do balcão para o banco, mas ainda de pé. Ela estava na minha altura, ainda cantando e rindo comigo.

Ao fim da música, enquanto todos festejavam por estarem vivos e felizes. Meus olhos estavam grudados nos de Khalifornia, e os dela nos meus. Ainda estávamos rindo do nada quando nos aproximamos aos poucos e fechamos os olhos. Até que, enfim, eu acabei com a mínima distância que havia entre os meus lábios e os dela. Foi um beijo quente, macio e suave demais considerado que fora regado à álcool. Todos começaram a bater palmas para nós. Isso teria me deixado constrangida e eu teria partido um beijo que não deveria ter existido. Mas naquele momento não. Aquela Ramona não. Levei minhas mãos até seu rosto e intensifiquei o beijo.

Quando o beijo enfim acabou, nos encaramos de pertinho e sorrimos. Um sorriso sincero, não o sorriso de quem acabara de fazer uma besteira que depois provavelmente se arrependeria.

Ela entrelaçou minha mão na dela e começamos a descer, nos esquivamos das pessoas. Me dei conta que estávamos já fora do pub quando o vento atingiu o meu rosto suado, causando frescor. Meus cabelos estavam incrivelmente molhados e os de Khalie grudavam em sua nuca.

Nos olhamos e começamos a inexplicavelmente dar risada. Gargalhávamos alto em uma rua com algumas pessoas no mesmo estado que nós.

Quando enfim nos acalmamos, eu e Khali desviamos nossos olhares para nossas mãos ainda entrelaçadas e depois, de volta uma para a outra. Começamos a correr sem destino pelas ruas, gritando e rindo como se ninguém pudesse nos parar. De repente, uma chuva forte caiu, o que não nos incomodou de forma alguma. Tanto que deu abertura para mais beijos molhados (em todos os sentidos) e mais carinho.

Uma luz dentro de mim havia se acendido, e eu passei a acreditar outra vez na beleza do mundo.

 

[...]

 

Até hoje, não me lembro como aquela noite terminara. Lembro de ter visto um borrão com números quando cheguei em casa. 01:15. Uma e quinze da manhã.

Eu acordei com uma dor de cabeça explosiva, sentindo como se tudo estivesse pesado demais dentro de mim. Os enjoos batiam cada vez mais forte.

Então é isso o que é ressaca?

Me levantei percebendo que a cama de Lily estava feita e suas coisas em ordem. Provavelmente já era tarde. Eu teria que agir como se estivesse doente ou coisa parecida.

Saí do quarto aos poucos, me apoiando nas paredes até chegar à sala, onde minha mãe estava sentada com Lily vendo A Roda da Fortuna.

Ela olhou para mim e sorriu de maneira doce.

- Bom dia, meu doce.

- Bom dia...

- Está tudo bem?

- Me sinto enjoada, e com a cabeça estourando. Acho que estou doente.

- Posso preparar alguma coisa que faça você se sentir melhor.

Minha mãe falava de um jeito calmo e doce, mas naquele momento, soou como se ela estivesse gritando.

- Não precisa, deve ser um mal estar. Vou ficar bem.

Me juntei à elas no sofá e assistimos ao programa juntas.

Os momentos eram assim quando Donald não estava em casa: serenos e de muito carinho.

 

[...]

 

Já era terça-feira e nenhuma notícia de Khalifornia West chegou a mim.

As memórias daquela noite pra mim eram grandes borrões de barulhos e sombras. Menos o beijo. Aquele beijo...

Eu voltava para casa da escola, encarando o chão tomada por lembranças daquela noite e dos dias que antecederam à ela quando aquela voz me chamou, e eu não tive dúvidas.

- Ramona!

Me virei, escondendo uma alegria imensa que tomou meu peito.

Ela estava caminhando em minha direção com um carro atrás dela, aparentemente amontoado de coisas e um caminhão. Não consegui ler o que estava escrito nele.

- Oi! Não te vejo desde o fim de semana.

- Pois é, eu estive um pouco ocupada...

- Ocupada?

Ela se virou para o carro e depois, voltou seu olhar para mim. Era um olhar triste, quase piedoso. Ela vestia uma simples blusa branca de mangas compridas, calças caqui e coturnos. Um colar delicado, de um pingente singelo com uma borboleta estava pendurado em seu pescoço, mas aquilo não disfarçava suas clavículas saltadas.

Ela puxou as mangas até cobrirem suas mãos e abraçou a si mesma antes de fazer com que um buraco se abrisse no chão, e me jogar dentro dele.

- Eu estou indo embora.

Eu fiquei em silêncio, apenas encarando-a. Meus lábios tremeram quando eu enfim dei uma resposta.

- Embora?

- Meu pai conseguiu um emprego em São Francisco permanentemente e... Bom, não tem como ele viajar todos os dias parar ir trabalhar, então eu e minha mãe iremos com ele.

Meus olhos começaram a se encher de água, eu estava me afogando em mim mesma aos poucos. De repente, tudo ficou escuro outra vez.

- Você não pode ir embora! Não pode me deixar sozinha outra vez!

- Ramona...

- Por favor, não vá! – Eu já começava a chorar sem parar, em desespero. – Eu te imploro, não vá!

- Ramona, já está decido. Eu estou indo agora com os meus pais... – Ela olhou para trás, e foi quando eu me dei conta de que aquele caminhão era de mudança e o carro cheio de coisas no banco do carona a amarrados no teto era de seu pai, que estava dentro do carro junto de sua mãe. – Não poderia ser desfeito nem se eu lutasse. Eu só queria me despedir antes de partir.

Ela me tomou em um abraço apertado e urgente. Eu não conseguia acreditar. Eu já havia sofrido perdas antes, mais uma deveria me matar como veneno: em silêncio.

De repente ela me soltou, e eu só queria que ela não tivesse feito isso.

- Adeus, Ramona.

Ela começou a caminhar de volta para o carro, e eu não pude fazer nada além de ficar ali, parada. Vendo meu primeiro grande amor que tão rápido chegou e me tomou, agora ia embora na mesma velocidade.

Assim que ela fechou a porta do banco do carona, o carro partiu e o caminhão também...

E eu fiquei.

 

 

“…Life is too fun, California will you marry me?
Let God be the sun and in the ocean they shall bury me…”

(“...A vida é muito divertida, Califórnia quer se casar comigo?
Deixe Deus ser o sol e no oceano eu devo ser enterrado...”)

[...]

Uma semana. Fazia apenas uma mísera semana desde que Khalifornia West fora embora, e eu pude me lembrar da podridão que me cercava. Lembrar do homem nojento que me tocava contra a minha vontade, do medo constante de Lilian ser a próxima e de minha mãe sendo oprimida e tendo seus valores devastados.

Minha cabeça parecia querer explodir. Será que enfim havia chegado a hora? Eu estava insana o suficiente?

Se eu parar para pensar, iria recuar em alguns minutos. Mas não, não seria mais fraca, submissa ou calada. Chegara a hora.

Eu iria embora daquele lugar. E levaria minha mãe e minha irmã comigo.

 

[...]

Em um típico domingo, estávamos todos em casa. A maldita família feliz. Minha mãe estava sentada no sofá, fazendo bordado em uma camisa, Lily estava no chão prestando atenção em um programa de TV qualquer e Donald em sua poltrona como sempre com uma cerveja na mão e os botões da camisa desabotoados exibindo a pança peluda.

Cheguei aos poucos até a sala e me encostei na parede. Minha mãe percebera minha presença.

- Oi, meu bem. Eu e Lily vamos até o mercado esta noite fazer as compras do mês da casa. Pelo menos, o que der para comprar... quer vir?

- Não, desculpe. Não me sinto muito bem.

Pude reparar Donald me olhando de cima a baixo. Aquilo me dava nojo, mas eu não poderia fazer nada. Não naquele momento.

- Tudo bem, não irei demorar mundo. Posso inclusive trazer uma aspirina pra você.

- Seria ótimo, obrigada.

 

   [...]

Passado o tempo, minha mãe e Lily saíram de casa sendo escoltadas por Donald, que as deixou no mercado e provavelmente fora para algum bar depois.

Eu teria o tempo até Donald chegar para preparar tudo...

Peguei minha mochila e a virei, fazendo com que todos os livros e cadernos caíssem de lá e comecei a colocar algumas mudas de roupas, um pacote de bolacha e um suco de caixinha. Larguei minha mochila e fui em direção à minha “cama” mas antes, fiquei um pouco pensativa quanto a mochila. Era uma mochila bege e surrada, de pano. Bem, teria que servir.

Arrastei os colchões e de trás deles, peguei um pode vazio de maionese onde eu guardava alguns trocados. Guardo-os desde criança, desde a primeira moeda. Eram trocados por fazer serviços domésticos à vizinhas quando eu era mais nova e algumas vezes em que eu ia lavar pratos em uma lanchonete agora mais crescida. Joguei esse pote dentro da minha mochila. Eu tinha tudo o que precisava para quando fosse ir embora.

Mas antes...

Fui até o quarto de minha mãe, um canto singelo de paredes brancas e chão escuro, uma janela de cortinas brancas, uma velha cômoda de madeira escura e uma televisão antiguíssima que Donald  ganhara em uma aposta de bar. Fui até a cômoda e já encontrara na primeira gaveta o que eu precisaria. Uma lingerie. Ela era delicada e macia, cor vinho e detalhes em renda.

Depois comecei a ver as outras gavetas, ela se lembrava de uma das graves ameaças de Donald à sua mãe em que ela estava encolhida no canto daquele quarto e na mão de Donald havia uma arma.

Achei que estaria mais escondida. Quando a puxei da quarta gaveta, eu a observei. Era uma pistola, simples. Cor gravite e metálica. Ela pesava.

Fiquei pensando na força que eu precisaria ter para empunhá-la e atirar. Força física e psicológica, afinal, eu só havia matado formigas até então.

Voltei correndo para o meu quarto. Me despi e coloquei a lingerie de minha mãe em meu corpo que ficara um pouco apertada por minha mãe ser um pouco mais magra que eu e soltei meus cabelos. Senti os fios batendo em minha cintura enquanto eu me encarava no espelho. Perfeito.

Peguei a arma de Donald e a guardei na primeira gaveta da minha cômoda, onde eu teria fácil acesso.

Escondi minha mochila atrás de minha cama e me posicionei em frente a minha cômoda. Agora eu teria que esperar Donald chegar.

                                                                                 [...]

Em poucos minutos, pude ver os faróis de seu carro brilharem intensamente e o som do motor do carro, e em uma questão de segundos ambos cessaram. Ele havia chegado.

Ou vi a porta da frente e o estralar da cortina de contas sendo afastada, produzindo o sim de pequenos vidros de batendo.

Pude ouvir seus passos pesados, e um arroto que deve ter infestado o ar da sala de estar com um cheiro absurdo de wisky, e como de costume muitas tossidas. Seus passos foram ganhando mais peso, mais força e o som fora aumentando. Ele estava se aproximando. Subitamente ele apareceu em meu quarto e me vira naquele estado, completamente exposta e vulnerável à qualquer desejo dele.

Ele sorriu pra mim.

Seus olhos estavam vermelhos, ele parecia tonto e prestes a desmaiar por conta de sua embriaguez. Ele veio em minha direção, empurrando meu corpo contra o seu e nos direcionando até a cômoda. O baque de minhas costas na cômoda fora forte, o puxador causara uma dor agonizante. Ele parecia estar com ódio e ao mesmo tempo com uma espécie de tesão que me causava nojo. Suas mãos começaram a subir pelas minhas pernas, alcançando o interior das minhas coxas enquanto eu, disfarçadamente mantive meu braço para trás, abrindo a gaveta aos poucos. Ele direcionou sua boca para o meu pescoço fazendo com que sua barba raspasse em minha pele causando mais desconforto ainda. Consegui alcançar a arma e silenciosamente, mirei em seu peito. A arma já estava carregada, então eu apenas puxei o gatilho.

Um. Dois. Três tiros. Todos enterrados em seu peito.

Ele se afastou de mim aos poucos, com os olhos arregalados e a boca aberta expressando surpresa.

Ele caiu aos poucos no chão, o sangue tingia sua camisa rapidamente.

E então, em alguns espasmos, ele morreu.

Eu fiquei ali, estática. Eu tinha apenas dezesseis anos e matei um homem de alma de monstro, o que me fazia quase pior do que ele.

Fora defesa, mas mesmo assim, meu ato fora terrível.

Então sem pensar eu peguei minha mochila e a pendurei em meus ombros. Calcei meus tênis e estava pronta para ir.

Mas eu não poderia ir embora sem dizer “até logo”...

Rasguei um pequeno pedaço de papel em branco do meu livro de história, empunhei uma caneta azul e comecei a escrever tremendo e com pressa.

“Eu voltarei quando encontrar um lugar seguro para nós. Fiquem seguras, alguém virá atrás de vingança.

Eu amo vocês duas.

                                                                              Amor R.”

E assim eu disparei para a porta. Corri pelos caminhos entre as casas até as ruas. Quem me via, me encarava estranho. “O que essa menina faz seminua correndo por aí?”. Corri o mais rápido que eu pude até a rua, e das ruas para pontos mais movimentados naquele fim de mundo. Até que enfim encontrei um táxi, que parou para mim.

Entrei com pressa no banco de trás, sem gentilezas ou cumprimentos.

- Para on... o que aconteceu com você?

- Tem como me levar até São Francisco?

P taxista me encarou de cima a baixo. Uma garota suada, seminua e incrivelmente assustada. Eu estava com medo, o que ele poderia fazer comigo considerando a situação em que eu estava?

Era um homem careca de olhos muito azuis, barba mal feita e lábios finos.

- Posso.

Então ele se virou, ainda pensativo e começou a dirigir. Para ele com um destino, para mim sem rumo.

 

“…If the sun was God, I'd be covered in faith,


If the ocean was the devil, I'd be covered in hate...”

 

(“...Se o sol fosse Deus, eu estaria coberto de fé


Se o oceano fosse o diabo, eu estaria coberto de ódio...”)

 

[...]

Quando coloquei os pés para fora do táxi que por sorte o motorista fora solidário e não me cobrou, me senti livre. Eu não estava mais naquele lugar, apesar do desespero por algo conhecido estar estampado em meu rosto.

O táxi me deixara na rodoviária de São Francisco, grandiosa e limpa. As pessoas tomavam os mesmos sustos quando viam minha aparência, mas eu apenas apertava o passo pois naquele momento, eu não queria solidariedade. Isso envolveria pessoas em um meio de onde não conseguiriam sair.

Saí da rodoviária e comecei a caminhar pelas ruas, sem direção. Carros buzinavam para mim. Eram jovens bêbados demais em limusines, carros comuns demonstrando alguma solidariedade ou zombando de mim...

Eu caminhei por várias horas, até chegar em um ponto desesperador de cansaço em que me deparei com uma boate.

Ela era grandiosa, de paredes que imitavam tijolos de pedra e um grande letreiro azul ao lado, com holofotes se movimentando pra cima e pra baixo. Pessoas entravam felizes naquele lugar, e eu me lembrei da rápida vez em que eu estava feliz ao lado deles. Na minha primeira noite ao lado de Khalifornia....

“…I'm so west coast, it's a goddamn shame…”

Senti um aperto em meu peito ,e então resolvi seguir em frente. Caminhei por mais algum tempo, até que eu cheguei em uma parte da cidade no qual eu nunca havia ouvido falar. Carros explodiam rap, mulheres passavam com dinheiro preso nos seis e se esfregavam para os homens.

Uma casa grandiosa, com a aparência de uma belíssima mansão antiga ganhava destaque, com os holofotes tingindo as paredes de cor-de-rosa.

Caminhei lentamente pelas pessoas que cheiravam à cerveja e tinham joias pesadas penduradas em si. Adentrei o lugar, estranhando tudo.

A casa estava completamente bagunçada por conta da festa que invadira a rua, eu estava no que deveria ser a slaa de estar, observando tudo em silêncio e passando despercebida pelas pessoas. Bem... quase todas.

- Ei!

Quando me virei, um homem alto e gordo de pele negra estava me encarando. Ele vestia uma regata de basquete vermelha, calças largas demais e tênis grandes demais. Sua careca brilhava demais. Eu achara cômico, mas o medo que eu senti fora maior.

- Quem é você? – perguntou ele para mim com sua voz incrivelmente grossa.

- Me desculpe, eu apenas preciso de um lugar para passar a noite...

Ele me olhou de cima a baixo, ainda sério.

- Trabalha para o Lafaiate?

- Quem?

- Ela não parece ser da cidade. – disse um rapaz ruivo e magrelo, que parecia ter minha idade. – Acho que ela não sabe onde está.

Seu rosto suavizara, apesar de ainda estar sério.

- Você pode ter razão, Stefan. Quem é você? De onde você é?

- Meu nome é Ramona, vim do lado oeste do estado.

Ele continuou a me encarar, parecia duvidar de mim.

- Isso já me diz tudo. Mas gostaria de saber mais, não abrigo qualquer pessoa no Mansolete.

[...]

“…I'm so west coast, it's a goddamn shame…”

- Aqui – Stefan, o garoto ruivo e magrelo me estendera uma regata azul petróleo e uma bermuda. Ambos masculinos. – Acho que devem servir em você.

- Obrigada.

Stefan havia expulsado uma orgia da suíte para que eu pudesse me trocar. As roupas, no fim das contas se ajustaram em mim. Eu me encarava no espelho do banheiro, que tinha forma retangular e ocupada toda a parede. Seus detalhes eram delicados e era tudo ligeiramente branco, inclusive a banheira. Tinham duas pias ali. Por um momento, fiquei me perguntado o motivo. As pias eram sustentadas por um mármore também branco, com seus detalhes feitos e prata. Depois de um tempo, saí do banheiro e me deparei com Stefan sentado na cama. Ele vestia um moletom cinza de uma universidade, calças esportivas e tênis brancos.

- Se sente confortável? – ele me perguntou.

- Sim, na medida do possível.

Ele acenou com a cabeça, percebendo que eu era tímida demais para tentar qualquer interação com ele.

- Então... qual é a sua história?

Suspirei e me sentei ao seu lado.

- Acha que eu deveria lhe confiar a história da minha vida?

- Eu confio em você. Se não, Big J já teria te expulsado daqui.

          - Bom, então se prepare.

[...]

Eu havia virado a noite conversando com Stefan antes de, quando o céu já havia clareado, eu adormecer. Era bom ter feito um amigo, Um amigo de verdade. E muito longe do tipo de pessoa no qual eu era acostumada. Descobri que ele cresceu nessa rua junto de seus amigos, e que todos fazem parte do time no qual ele não quis em contar, disse que isso era dever de Big J.

Eu dormi no sofá, mas não achei aquilo ruim. Era a coisa mais macia que eu havia me deitado em tantos anos. O veludo cinza e macio me aquecera naquela noite.

Acordei com os passos de Big J pela casa, junto de muitos homens e até mesmo alguns adolescentes que defini como amigos de Stefan, já que ele estava junto deles.

Big J me encarava ainda bravo.

- Levante-se, garota.

Levantei rapidamente, apesar de ainda estar sonolenta.

- Você deve muito ao Stefan, pois ele me convenceu a deixar você trabalhar aqui.

- Trabalhar aqui? Mas o que vocês fazem?

Todos gargalharam alto, menos Stefan. Será que ele havia começado a achar que era uma má ideia?

- Somos a maior rede de tráfico de drogas de toda a Califórnia.

Eu me espantei. Tráfico de drogas? Eram marginais!

Big J reparou que eu havia ficado assustada.

- Se quiser ir embora, a porta é logo ali.

- Não, não. Eu só fiquei um pouco surpresa.

- Por quê? Somos fofos demais para vender drogas, princesa?

Eles começaram a rir novamente.

- Tá bom, tá bom. Se quiser, o emprego é totalmente seu. Mas saiba que, se pisar na bola uma vez, será a última. E eu não queria ter de acabar com um rostinho tão bonito.

Eu realmente pensei em recusar a oferta, juro à vocês. Mas eu precisava tirar minha mãe e Lily daquela confusão o mais rápido possível.

- Eu topo. Quando começo?

- Ei, calma aí. – Stefan saiu do meio deles e veio até mim. – Se vamos fazer isso, você precisa de treinamento.

- Vou deixar isso por sua conta, Stefan – disse Big J.

- Eu cuido dela. – ele se virou para mim, sorrindo.

“…I'm so west coast, it's a goddamn shame..."

[...]

Stefan e eu estávamos caminhando pela cidade, observando como tudo funciona. Ele disse que começaria meu treinamento logo, mas que daria um tempo até eu me adaptar a tudo e compreender o que eu estava fazendo.

- Stefan?- comecei.

- Sim?

- Gostaria de fazer uma coisa antes...

- O que?

Eu havia levado minha mochila junto comigo e ergui meu rosto, vendo um salão de cabeleireiro de bairro. Eu adentrei e Stefan veio atrás de mim.

 

    [...]

Saí de lá com os longos fios castanhos agora curtos na altura dos ombros e negros como carvão, as sobrancelhas feitas e as unhas continuaram grandes, mas agora pintadas de vermelho.

- Não acredito que quis ter um dia de beleza antes de entrar para uma rede de tráfico de drogas.

- Não Stefan. - Eu olhei para ele, e havia visto que ainda tinha bastante dinheiro. – Eu estou construindo a nova Ramona Appleburn.

Parti na frente dele, que ficou me encarando por um tempo antes de se apressar e se juntar a mim.

- Então tudo bem, gostei de ver! Para onde vamos agora?

- Conhece algum lugar que faria uma tatuagem em mim?

[...]

Minhas mudanças de estilo agradaram Big J, que fez com que após eu aprendesse sobre tudo me infiltrasse como isca em festas de grandes traficantes na intenção de matá-los.

O tempo passou, consegui a confiança de todos eles e me toquei que, apesar de fazerem um trabalho completamente sujo no qual eu agora fazia parte, eram uma grande família no qual matariam e morreriam pelo outro.

Eu estava com 19 anos quando Big J comprou a THE CLUB e me oferecera o posto de garçonete, ou melhor, a garota do bar.

Aceitei de bom grado, seria mais dinheiro para que eu conseguisse trazer minha mãe e Lily para cá. Elas nem tinham ideia de onde eu estava, mas eu sabia onde elas estavam. E torcia todas as noites para que ao menos estivessem seguras.

Big J estabelecera o seguinte plano: eu atrairia quem ele quisesse que eu matasse enquanto servia bebias para o mesmo, já que quanto mais álcool, maior a lentidão para perceber qualquer estratégia. Então eu o levaria até onde pudéssemos ficar a sós e faria o que deveria ser feito.

Fiz isso por várias vezes com o passar do tempo. Muitas noites eu estava simplesmente servindo bebidas no bar e outros copos mais planejados.

Até que uma noite, isso tudo deu errado.

E foi aí que eu encontrei vocês quatro.

“…I'm so west coast, it's a goddamn shame…”

 


Notas Finais


música: https://www.youtube.com/watch?v=d4NqkmAH26M

tentarei lançar o próximo capítulo o mais rápido que eu puder, enquanto isso, aproveitem!

Xxx 🍭


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