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História Um Amor de Carnaval - La caduta di una divinità


Escrita por: D4rknessEyes

Notas do Autor


Volteei! E com ainda mais palavras rs alguém aí tava sentindo falta dos capítulos longos? Pois bem...

Boa leitura! ♡

Capítulo 25 - La caduta di una divinità


Exatamente um mês depois da primeira visita a San Michele, Donghwa e eu decidimos levar flores ao nosso pai. Dias como aquele - onde possuíamos a manhã inteira livre - haviam se tornado raros, então foi indiscutível que a oportunidade deveria ser aproveitada daquela forma.

Voltar à ilha silenciosa e fúnebre fazia as memórias voltarem também, ainda amargas apesar de não serem tão vívidas. Ficamos o tempo necessário (um mês não era suficiente para tornar a experiência mais fácil), abracei meu irmão quando ele precisou e retornamos quando já não conseguíamos encarar as inscrições gravadas no mármore.


O Grande Canal nos recebeu com uma atmosfera completamente oposta; suas águas tranquilas refletiam o céu sem nuvens - de um azul muito claro. Nas margens, barcos solitários repousavam atracados e as fachadas das construções brilhavam com os raios mornos do sol, que se elevava preguiçosamente no horizonte. Naquele trecho do Canal não havia muito movimento nas docas, envoltas pela quietude das primeiras horas do dia.

Nossa gôndola parou ao lado de uma sequência de degraus moldados em pedra branca, e quando fiz menção de descer, Donghwa segurou meu pulso como imaginei que faria:

– Tem certeza que vai ficar por aqui?

– Claro que tenho. – me desvencilhando de seu toque com delicadeza, aproveitei a oportunidade para ficar de pé no cais antes que ele me impedisse – Eu avisei que visitaria um amigo quando chegássemos de San Michele, lembra?

– Hm… sim, mas… – meu irmão ajeitou os óculos sobre a ponte do nariz, encarando fixamente a rua atrás de mim – Pensei que Kyuhyun morasse um pouco mais à frente.

– Não é ele. Não é alguém que você conheça. – confessei, mesmo sabendo que não deveria. Seus olhos me analisaram por um momento, estreitando-se logo em seguida.

– Certo… e você vai assim mesmo?

– Assim como? – arqueei uma sobrancelha.

– Tão… despreparado.

Despreparado…? Seja mais claro, por favor. Está insinuando que eu deveria vestir roupas melhores, levar um presente comigo ou andar armado?

Ele se reclinou em silêncio no assento de veludo preto, dando de ombros enquanto apoiava o cotovelo na lateral de madeira.

– Donghwa, não vou sair por aí com uma lâmina escondida na bota para me encontrar com um amigo!

– Espere um pouco, você está colocando palavras na minha boca!

– Como se precisasse... – balancei a cabeça, explicando pacientemente – Olha, não é muito longe daqui, e como pode perceber também não é longe do palácio. Não há motivo para tantas preocupações, confie em mim. Prometo que não vou demorar.

– Tudo bem, eu não poderia segurá-lo mesmo se quisesse. Só… tome cuidado, Donghae. Você sabe como pode ser perigoso, não preciso sequer comentar, não é? – com um sinal seu, a gôndola começou a entrar em movimento outra vez – Estarei esperando.

– Volto antes do almoço! – assegurei, acenando enquanto meu irmão se afastava. Permaneci observando o veículo deslizar pelas águas serenas até que não fosse possível distingui-lo, então segui meu caminho rua adentro.

Após tantos dias ocupado, preso entre paredes majestosas com livros e documentos fazendo companhia, eu não queria retornar ao palácio tão cedo. Mesmo as ocasionais visitas que recebia para dar continuidade ao “treinamento” - que já perdera toda a sua seriedade - não eram suficientes. Nada poderia substituir o prazer de estar do lado de fora, o ar místico das passagens e pontes ancestrais sendo o único peso sobre mim. 

A breve caminhada foi proveitosa, renovando aos poucos a energia esmaecida e melancólica que me cercava sem aviso. Cada detalhe daquela cidade me deixava mais cativado sempre que vagava por ela, conhecendo sua beleza arcaica e oculta como antes raramente possuía a oportunidade de fazer. Algumas praças e bifurcações depois, avistei o anjo de mármore que marcava sua presença no topo do La Gran Scena.

Animado por alcançar o local sozinho pela primeira vez, subi a sequência de degraus e passei pelo par de colunas que guardavam as portas - por algum motivo - abertas. Agora com um ar rejuvenescido, o teatro se apresentava majestoso em seus diversos tons de vermelho com detalhes em dourado. O breve corredor de paredes carmesins (limpo de cartazes ou panfletos) era iluminado apenas pela fraca incidência do exterior, e mesmo com o lustre brilhante no centro do teto, o ambiente ainda era tomado pela penumbra.

De pé no caminho estreito entre as poltronas, sorri ao reconhecer um emaranhado de cabelos loiros na primeira fileira. Encostado confortavelmente com as pernas cruzadas, Junsu tamborilava os dedos contra o braço do assento enquanto franzia as feições suaves, concentrado no volume considerável de folhas em seu colo. 

– Você nunca descansa? – perguntei, e esse simples gesto quase o fez pular da poltrona.

– Céus! Ah, Hae, é você… que surpresa! É muito bom vê-lo aqui, não esperava receber uma visita tão cedo! – empertigando-se no assento, fez um gesto me convidando a ocupar o lugar ao seu lado – Como sabia onde me encontrar?

– Não há outro lugar possível, na verdade. Imagino que o teatro tenha se tornado seu lar em um sentido muito literal.

– Bom, eu não passo a noite aqui se é o que está pensando. Não ainda. – ele riu, deixando o olhar passear pelos arredores – É um ambiente muito calmo, perfeito para me concentrar e memorizar falas quando preciso. Não dá para resistir.

– E o que você tem aí, outro papel de sucesso? – indiquei as folhas em sua posse.

– Ah, isso… eu não sei direito. Quero dizer, é um roteiro novo, mas… não sei se estarei presente nele. – fitando o texto com um ar pensativo, toda a sua postura perdeu a empolgação de antes – Como sabe, o futuro anda muito incerto para nós… basta um primeiro indício de movimento do outro lado, e tudo muda. Além disso, quando acabar… provavelmente não ficaremos. Não pertencemos mais a um único local.

– Por essa razão você não tem certeza se deve aceitar. – deduzi.

– Exato. Não quero abandonar a equipe do La Gran Scena enquanto precisarem de mim. Seria rude da minha parte, não acha?

Concordei, mesmo sabendo que a verdade ia além. Não precisava de muito para perceber que, apesar do breve tempo passado ali, o loiro havia desenvolvido profundo apego pelos companheiros de palco, pela estrutura encantadora e (não mais) decadente do teatro, pelas performances. Seria difícil abrir mão de tudo sem ao menos saber qual dos momentos lá dentro seria o último.

– Mesmo assim, talvez você devesse arriscar. – acrescentei após alguns instantes, refletindo – Não precisa ser o protagonista dessa vez. Fique com um personagem sem complicações para substituir caso seja necessário, mas que ainda lhe permita aproveitar a experiência.

Ele me fitou durante um curto intervalo, a indecisão cobrindo cada centímetro de seu rosto. Ao vê-lo fazer menção de responder, torci para que aceitasse, mas no fundo não acreditava ser possível. De qualquer forma, não pude ter certeza de sua decisão, pois no mesmo segundo outra voz se manifestou:

– Você deveria considerar o conselho dele, Junsu. Arrisque. – vinha da parede oposta, em um canto afastado onde as sombras eram espessas e enganavam a visão – Eu adoraria ouvir sua voz ecoando naquele palco mais uma vez, nem que fosse a última.

Viramos a cabeça ao mesmo tempo, alarmados não só por descobrir que havia mais alguém conosco, mas também por sabermos exatamente a quem pertencia aquele tom familiar. Em silêncio, apenas aguardamos à medida que o som de passos aumentava em nossa direção, possuindo um ruído metálico como plano de fundo. Sem a capacidade de controlar, senti a pulsação no lado esquerdo do peito aumentar, se tornar descompassada. Não consegui discernir se raiva ou receio era sua causa.

Alcançando o centro do corredor entre as poltronas e enfim se posicionando sob a claridade âmbar do lustre, a figura de Yoochun se tornou nítida. Os cabelos negros estavam presos com uma fita azul, algumas mechas soltas cobrindo-lhe o rosto; se escondia sob vestes discretas na cor preta, todos os botões do casaco nas devidas casas. Suas feições permaneciam livres de qualquer emoção, apesar das suaves linhas de expressão denunciarem cansaço.

– É um prazer encontrá-lo de novo. Sempre será. – sorriu, os dedos ágeis movimentando um canivete que provocava aquele ruído insistente – Ah, olá para você também, Donghae.

Entre nós, o silêncio manteve-se firme e tangível como uma barreira. Junsu e eu estávamos surpresos demais pela chegada repentina do visitante, incapazes de fazer outra coisa além de observá-lo.

– Que recepção medíocre. Tanto tempo afastado e não recebo sequer um cumprimento. – ele acrescentou, parando diante do loiro com um suspiro – Você não sentiu minha falta mesmo? Pelo menos um pouquinho?

De onde estava, pude enxergar um músculo no maxilar de Junsu se retesar:

– Nem preciso responder. Também não preciso lembrá-lo dos limites de espaço pessoal que já estabeleci várias vezes. – com a ponta da bota, empurrou a perna do moreno até que o forçasse a recuar alguns passos – Por que decidiu entrar aqui hoje?

– Bom, as portas estavam escancaradas caso não tenha percebido. Ainda estão.

– Muito engraçado. – nada em seu tom expressava humor – Agora responda minha pergunta direito.

Yoochun passou uma das mãos enluvadas pelo cabelo, não escondendo o sorriso divertido ou o ar satisfeito. Apoiando-se contra a lateral do palco, deu de ombros:

– Tudo bem, eu confesso… decidi voltar pois estava com saudade de provocar você. Suas tentativas de soar grosseiro são o ponto alto da minha rotina que, como sabe, não esteve nada fácil.

– É mesmo, durante o mês todo você permaneceu ocupado demais fugindo dos próprios cúmplices. – comentei sem pensar, cansado de suas respostas evasivas – Pensei que não tivesse tempo ou oportunidade para dar passeios à toa e voltar ao La Gran Scena. Gosta de se arriscar, é isso?

O moreno voltou a atenção para mim, como se recordasse que havia uma terceira pessoa presente. A curva no canto de seus lábios diminuiu um pouco, e o largo canivete entre seus dedos cessou a sequência de giros. No mesmo segundo, percebi que era minha primeira vez falando diretamente com aquele homem, e talvez não tivesse sido a melhor das aproximações. Mesmo assim mantive o rosto impassível, sabendo que o único objetivo de seu silêncio profundo era me deixar desconfortável.

– Ah, agora todo mundo já sabe da minha situação complicada… ainda bem que não pedi para ser mantida em segredo. – lançou um olhar rápido para Junsu, e seu semblante tomou um ar mais sério – Chega de brincadeiras, então.

Sem mover a lâmina curva mas também sem guardá-la, ele inclinou a cabeça para trás, observando o teto decorado enquanto continuava.

– Escolher não participar de uma idiotice agora é considerado traição por aí, sabia? Eu nunca descobri qual seria a consequência disso, até porque nenhum de nós já ousou quebrar o juramento de compromisso antes, mas não deve ser algo bom. Então me mantive longe dos olhos de todos, só para garantir.

Franzindo levemente o cenho, Yoochun fitava o alto com determinação, talvez concentrado nas sombras que espreitavam os camarotes:

– Depois de algumas semanas… percebi que ficar me escondendo é cansativo demais, e não adianta. Isso não é vida. Então decidi esperar o destino me encontrar, e voltei para os únicos lugares que andei frequentando nos últimos tempos. Isso inclui esse teatro. Satisfeitos?

Tentei deixar de lado a aversão e desgosto que sentia na presença daquela figura infame, atento somente às suas palavras. De qualquer maneira, certos detalhes - como o tal juramento - ainda eram difíceis de compreender.

– Então você não é mais um deles? – o loiro indagou, parecendo enfrentar o mesmo impasse em acompanhar os fatos.

– Por enquanto.

– Por enquanto? – ergui uma sobrancelha – Considerando suas últimas ações, diria que está do lado de cá.

– Não estou. Só preciso fazer os outros entenderem que não traí ninguém. – de súbito, ele interrompeu seu momento de contemplação para dar início a um intenso e incômodo contato visual – Não gosto de você, quero deixar claro. Também nunca gostei do Hyukjae, nem do Sungmin, Heechul ou Siwon. Junsu é apenas... tolerável. O Spectrum sempre arruinou tudo o que tentamos ser ou fazer, e por mim todos poderiam ir para o inferno. O único motivo pelo qual parece que estou disposto a ajudar, é o fato de termos alguns interesses em comum.

– Saiba que o sentimento é recíproco. – retruquei sem hesitar – Aliás...

– Por que não aproveita esses “interesses em comum” e nos explica detalhadamente aquelas dicas enigmáticas nos finais de seus bilhetes? – Junsu tomou a palavra antes que eu pudesse despejar tudo o que pensava a respeito do convidado indesejado – Se temos mesmo objetivos parecidos, facilitaria alcançá-los se soubéssemos o que você quis dizer.

– É… faz sentido. – coçando o queixo com a mão que não segurava a arma, ele ponderou – Estamos conversando pessoalmente, creio que não há maneira de nos interceptarem. Bem, a “próxima fase” significa que daqui a…

Sua voz desapareceu no meio da frase assim que os olhos vagaram para cima de novo, fixados em algo além de nós. Estreitando-os, fez uma pausa permeada por desconfiança.

– Hoje é dia de ensaio? – perguntou de repente, sem se mover.

– Não mude de assunto, engraçadinho. – o loiro ralhou, cruzando os braços.

– Isso é mais importante. Deveria ou não existir alguém conosco nesse instante? Talvez os amigos que andou fazendo aqui?

– Uh… claro que não, é fim de semana.

– Hm. Certo. Não quero alarmar vocês, mas tenho quase certeza que avistei movimento naquele primeiro camarote à direita. – o moreno fez um gesto com o cabo da lâmina, apontando na direção mencionada.

Intrigado, me endireitei na poltrona e olhei para trás, para o alto, procurando qualquer coisa em meio à penumbra. Passei os próximos segundos encarando o nada, esperando algo acontecer sem ao menos fazer ideia do que seria, até os cantos escuros perderem o formato e confundirem minha mente. Quando enfim assumi que era perda de tempo, virei outra vez sem esconder uma careta aborrecida:

– Depois de tudo, ainda me dou ao trabalho de levar você a sério.

– Estranho… mas olha só, eu disse que tinha quase certeza. Quase. – inclinando a cabeça, estreitou os olhos novamente antes de prosseguir – Enfim. Como eu estava tentando explicar, vocês precisam estar preparados. Essa é toda a informação que tenho: no próximo s-

Yoochun interrompeu a própria fala com um palavrão obsceno quando um estrondo veio do final do corredor, fazendo o chão vibrar sob nossos pés e calafrios atravessarem meu corpo. Junsu e eu nos levantamos de maneira simultânea, sobressaltados, caminhando com pressa diante das poltronas em busca da origem daquele barulho. As portas do La Gran Scena agora estavam fechadas, e era provável que haviam se chocado com muita força.

Mas não sozinhas.

Diante da estrutura de madeira, no breve espaço entre as paredes carmesins, estava um contorno escuro. Devagar, três passos foram avançados e a forma se tornou visível. Era claramente uma pessoa, parada sob a claridade parcial com nuances alaranjadas definindo sua silhueta, mas nada além disso podia ser reconhecido. Usava um casaco fechado e escuro na altura dos tornozelos, cobrindo parte das botas negras e das mãos cobertas por luvas de couro. O rosto inteiro era coberto por uma máscara branca carnavalesca; grandes manchas douradas se misturavam a notas musicais ao redor dos olhos e a boca pintada na mesma cor estava repuxada em um sorriso macabro. 

Pelos próximos instantes, houve apenas silêncio. A pessoa na entrada não se moveu, não nos cumprimentou, não se identificou. Sequer parecia estar viva, tamanha era sua imobilidade; apenas nos encarou de volta pelo olhar vazio da máscara sorridente. Uma sensação estranha tomou meu rosto, braços e pernas, como se o sangue neles estivesse rapidamente sendo drenado.

– Isso é coisa sua, Yoochun? – sussurrei mesmo que não fosse necessário, o desconforto transbordando na voz – Se for, estou disposto a avançar em você nesse exato momento, seu desgraçado. Não importa quais são minhas chances.

– Sinto lhe desapontar, mas não faço ideia do que seja… aquilo ali na saída. – ele respondeu no mesmo tom, o que me deixou longe de estar aliviado – Junsu, talvez…?

– Não. Nunca vi esse figurino na minha vida, e o pessoal daqui até gosta de brincadeiras, mas… não assim.

Então permanecemos daquele jeito, parados em linha reta sem desviar a atenção da nova presença, ouvindo apenas o som de nossas respirações. Incomodado por estar sob circunstâncias tão estranhas, o loiro foi o primeiro a se manifestar:

– Identifique-se, por favor.

Como esperado, não houve retorno além do silêncio.

– O que você quer? – insistiu, elevando um pouco a voz. 

No segundo em que deu um passo à frente, a figura fez o mesmo. O sorriso eterno que contorcia aqueles lábios dourados parecia zombar de nossa confusão.

Desconfiado, Junsu seguiu com um pé diante do outro pelo corredor, e em todas as vezes o visitante lhe imitou como um espelho. Talvez testando até onde aquilo se estenderia, subitamente começou a recuar, mas o comportamento de reflexo foi invertido; quanto mais se afastava, mais o outro se aproximava.

– Que merda é essa… – pude ouvir o loiro reclamar, em seguida optando por ficar imóvel.

– Ele está provocando você. E se divertindo com isso. – Yoochun voltou a girar o canivete com uma agilidade agressiva, por fim empunhando-o de maneira firme – Nesse caso, serei obrigado a agir. Ninguém vai ameaçar meu posto.

Percorrendo a breve distância que nos separava do ser mascarado, o moreno investiu contra ele sem hesitar, agitando a lâmina em uma sequência de arcos horizontais perfeitos. Não parecia preocupado em saber se o adversário também estava armado, mirando incessantemente em pontos vitais.

O desconhecido desviou de todos os golpes com destreza, apesar do espaço limitado que possuía. E para nosso assombro, ignorou por completo seu agressor. Desviando de um ataque à esquerda com um giro na direção contrária, ele atingiu a lateral de Yoochun com o cotovelo e aproveitou-se do desequilíbrio resultante. Não para revidar, mas para caminhar com rapidez para outro lugar.

Em nossa direção.

Tive pouco tempo para compreender o que estava acontecendo - ou o motivo de estar acontecendo. Já não sabia como reagir ao ver o sorriso dourado de escárnio se aproximando, e quando seu dono sacou nada menos que uma faca de caça do tamanho da minha mão aberta, perdi qualquer noção de coordenação motora. Medo no seu mais puro estado corria em minhas veias, revirando o estômago e fundindo a sola das minhas botas ao chão. Estava ciente de que precisava sair dali, mas não conseguia.

Somente despertei do transe quando senti o toque de Junsu em meu braço, sucedido por um brusco empurrão e um aviso histérico para me mover. Feito mágica meus pés enfim se recordaram de sua função, e ambos deixamos nossas posições; corri para a direita enquanto ele seguiu no sentido oposto. Sem titubear ou diminuir o ritmo, a figura mascarada escolheu a segunda opção.

– Direto para mim?! Mas por quê?! – o loiro exclamou em um tom desafinado, quase trêmulo, e ao se aproximar da parede começou a cortar caminho através dos lugares na plateia – Por acaso tem um alvo enorme na minha testa?!

O intruso continuava em seu encalço, e nem mesmo o atalho improvisado foi capaz de atrasá-lo. Conseguia se equilibrar nos apoios e encostos das poltronas com facilidade, perseguindo-o como se fosse apenas um passatempo. Em alguns momentos, arriscava investidas com a lâmina que segurava, mas Junsu conseguia se esquivar e o objeto acabava fincado no estofado vermelho.

– Se quiser me ferir tudo bem, mas pare de estragar os assentos! Tudo isso vai sair do meu bolso depois, que inferno! – ofegante, jogava as madeixas claras para trás ao mesmo tempo em que protestava e tentava fugir.

Procurei por Yoochun no meio do corredor; ele havia recobrado a postura e parecia estar se preparando para outra ofensiva quando também me viu. O reflexo de uma ideia iluminou suas feições e, após alguns instantes, balançou a cabeça com suavidade enquanto fazia gestos demonstrativos com as mãos enluvadas. Não gostei nem um pouco do que aquilo sugeria, e neguei de maneira veemente. Ele insistiu, e quando recusei de novo, contorceu o rosto em uma careta exasperada apontando para o loiro. Suspirei.

Após o diálogo silencioso que durou somente uma fração de segundo, engoli toda a apreensão que me consumia e disparei na direção do vulto risonho, tentando não pensar no perigo e no que aconteceria depois. Concentrado em sua “presa”, ele não ouviu ou sentiu minha chegada; quando passou de uma poltrona para outra, saltei com os braços abertos usando o estofado de apoio e agarrei sua cintura enquanto ainda estava no ar. Caímos no pequeno espaço entre a mobília e uma dor intensa se alastrou pelo meu braço esquerdo, que provavelmente atingira o chão de mau jeito.

Antes de qualquer reação ser possível, o moreno alcançou a fileira onde estávamos e segurou o pulso do estranho, tomando para si o objeto brilhante e mortal na mão dele. Soltei a respiração que não percebi ter prendido e me levantei, os ombros ainda tensionados. Um instante mais tarde e eu estaria com sérios problemas. Trocamos olhares preocupados, ainda digerindo o que havia acontecido em menos de dez minutos.

– Não quero desmerecer o esforço de ninguém, não me levem a mal. – Yoochun proferiu com calma, apoiando o joelho nas costas do invasor que se debatia no chão – Mas não é um pouco estranho? Foi tão rápido, pareceu…

– Fácil demais? – completei, flexionando o braço dolorido.

– É. Olhe o tamanho dessa coisa, – exibiu a faca de caça com a mão livre – mesmo assim não temos sequer um arranhão. Meio… mal executado, não acha?

Não havia como discordar.

– Detesto dizer isso, odeio com todas as minhas forças, mas… você tem razão. – Junsu se aproximou, inspirando e expirando com velocidade – Não faz sentido. Quem em sã consciência enfrentaria diretamente um trio, sem se importar com o fato de estar-

– Sozinho? – falando pela primeira vez, o homem completou a frase, deixando cada um de nós em estado de alerta. Como se não bastasse, a palavra única em tom de zombaria foi seguida por uma risada grave - áspera e desarmônica - que destoava com os traços delicados da máscara branca.

Mesmo subjugado, ele possuía doses suficientes de coragem para debochar de nossa desorientação. E tinha razão, pois deduzir que estava sozinho não passava de ingenuidade (ou estupidez). Mas só percebemos no próximo instante quando, sem aviso, um sibilo cortou o ar e o loiro deixou escapar um grunhido de dor. 

Virando o rosto em sua direção, notei que segurava a lateral do próprio antebraço e franzia o cenho, simultaneamente assustado e perplexo. Cravado no assento atrás de si, havia um pequeno objeto prateado refletindo a luz âmbar; tomei a iniciativa de puxá-lo, demonstrando a mesma expressão abalada ao vislumbrar sua ponta triangular. Uma flecha.

– Eu sabia! – o moreno exclamou, erguendo a cabeça – Eu avisei, não avisei? Bem ali.

Já ciente do que se tratava, meu olhar seguiu para o alto e vagou através do primeiro camarote à direita. Uma segunda figura se mesclava às sombras, usando o mesmo padrão de roupas escuras; a única diferença estava em sua máscara, também alva porém marcada por uma expressão solene. Ondas em vários tons de azul se espalhavam pela face como uma maré tempestuosa, decoradas por brilho prateado e arabescos da mesma cor. Os lábios redondos com formato de coração na parte superior eram pintados de azul cobalto, e não sorriam.

Com uma das botas apoiadas no balcão do camarote, a nova companhia sustentava uma pose estratégica; um dos braços era apoiado no joelho enquanto o outro se estendia em um ângulo preciso. Na mão enluvada, uma pequena balestra de metal com cabo de madeira - e devidamente carregada - era apontada para nós.

Mal realizei tais observações quando o gatilho foi acionado de novo, lançando outra flecha prateada com um zumbido. Dessa vez senti o objeto passar muito perto do meu rosto, e só consegui enxergá-lo ao atingir a poltrona ao lado.

– Você foi atingido. – Yoochun murmurou, se dirigindo ao loiro mas parecendo experienciar um conflito dentro da própria mente – É claro…

Antes que pudesse terminar seu raciocínio, o vulto mascarado apanhou mais uma flecha no estojo de couro que atravessava o peito e posicionou-a no arco da balestra metodicamente. O terceiro tiro arrancou um grito doloroso de Yoochun quando o atingiu na coxa; aproveitando-se do momento de distração, o homem da máscara sorridente jogou o peso do corpo para o lado na intenção de fazê-lo perder o equilíbrio e conseguiu a própria liberdade ao se virar e acertá-lo com um chute nas costelas.

Mesmo atordoado pelas ofensivas, o moreno ainda estava no controle e não permitiu que ele se levantasse por completo ou tentasse pegar a lâmina de volta, desferindo uma sequência aleatória de socos com o punho fechado em qualquer lugar que conseguisse alcançar.

– Venham, estamos expostos demais a seja lá o que está acontecendo aqui! – Junsu interferiu na agressão puxando o Deus do Leste pela gola do casaco, e estava certo. Já se tornara nítido que a pessoa no camarote estava errando de propósito, e não sabíamos por quanto tempo permaneceria assim.

De maneira simultânea, deixamos as fileiras vermelhas e evitamos o corredor central, seguindo próximos à parede. Em resposta, mais flechas atravessaram o teatro com intervalos menores entre si e uma precisão alarmante. Os sibilos rápidos eram a única coisa ecoando em meus ouvidos, e não era possível distinguir se serviam para nos assustar ou nos ferir fatalmente.

– Por aqui! – liderando nossa corrida desenfreada, o loiro subiu os degraus laterais do palco e o atravessou a passos largos, criando uma passagem ao separar as cortinas carmesins.

Parei ao seu lado somente pelo tempo em que esperamos Yoochun nos alcançar; ele pressionava o ferimento na coxa com dificuldade em sustentar o próprio peso, retesando o maxilar para conter a dor e o ódio queimando em seus olhos. Quando enfim estávamos todos juntos, Junsu soltou o tecido de maneira que nos separasse (por enquanto) dos estranhos. 

Ali era ainda mais escuro e, para dizer o mínimo, bagunçado. Parecia que o resultado de vários ensaios ou de uma peça recente ainda não havia sido organizado; componentes de cenário espalhavam-se ao redor, e a única iluminação existente vinha dos lampadários decorativos pendurados no alto. Estávamos cercados por mais sombras e silhuetas indistintas do que eu gostaria.

– Podemos ficar no meu camarim, pelo menos até pensarmos em alguma coisa. Qualquer coisa. De verdade, só preciso de um minuto para processar tudo isso. Sigam naquela saída. – ele apontou para os fundos do ambiente, onde havia uma abertura sem portas em forma de arco.

Sequer cruzamos os primeiros metros quando um estrondoso som metálico nos fez parar. Implorei em pensamento para que fosse apenas um acidente, objetos mal empilhados que decidiram desabar com a nossa presença. Na próxima tentativa de avançar, outro som muito alto nos impediu, e com um olhar rápido percebi que dois lampadários de metal polido haviam despencado no chão.

– Só pode ser brincadeira… – sussurrei, me virando a tempo de enxergar outro deles seguindo o mesmo destino; a chama dentro dos entalhes de metal se apagou durante a queda e a estrutura se chocou contra o piso encerado.

– Sei que a esse ponto já é óbvio, mas… temos companhia. – o loiro tocou meu antebraço com delicadeza, indicando um ponto acima – Ali, na varanda de manobra.

A “varanda” em questão era um conjunto de passarelas que contornavam a parte superior do palco, de onde eram feitas a manipulação do cenário e suas mudanças. Em contraste com o silêncio que se instalou, não foi difícil notar o ranger da madeira causado pela movimentação rápida de um vulto. Deixei escapar um palavrão em voz baixa.

– Não teremos sequer uma pausa? – tentei dizer sem soar histérico, provavelmente falhando – Há quantos deles aqui?!

 – Não ficarei para descobrir. – Yoochun retorquiu em um tom que soava distante, e quando voltei minha atenção para descobrir o motivo, vi que caminhava com determinação através da desordem cênica.

Os móveis nos quais se apoiava e os outros objetos dispostos no local foram seu único obstáculo; quando me dei conta ele já havia alcançado a passagem arcada, nos deixando para trás sem que nada lhe acontecesse.

– Então ele pode sair intacto, não é? Desgraçado. – Junsu murmurou friamente, irritado como jamais testemunhei – Não temos esse privilégio, Hae. Bom, eu pelo menos não tenho. Ao meu sinal, corra sem hesitar. E fique sempre perto de mim.

“Porque não vou olhar para trás”, foi o que senti estar implícito em sua fala. Nervoso, observei uma última vez os lampadários balançando sobre nossas cabeças; preferi não pensar no estrago que o metal entrelaçado e repleto de entalhes pontiagudos poderia causar se nos atingisse. Concentrei-me na contagem regressiva que o loiro sussurrava e, no momento certo, comecei a correr.

Meu coração batia tão forte que parecia pressionar o esterno; o barulho de botas percorrendo a madeira das passarelas e dos lampadários sendo arremessados fazia meu estômago se revirar. Os empecilhos pelo caminho somados à iluminação cada vez mais escassa não estavam ajudando - graças às colunas falsas de pedra, caixotes e bancos altos, aqueles foram os oito metros mais turbulentos que já tive o desprazer de atravessar.

Acabei me separando um pouco de Junsu, que conhecia o ambiente com perfeição e seguia impassível rumo à saída. Chegando na abertura arcada, ele desapareceu pelo próximo corredor; eu ainda estava alguns passos atrás e, na pressa de fazer o mesmo, tropecei em um tapete parcialmente enrolado. Perdi o equilíbrio e bati a perna direita no encosto de uma cadeira pesada, caindo de joelhos. Ao fazer menção de levantar, contive uma exclamação assustada quando algo desabou diante dos meus olhos.

Não era um dos lampadários de metal que tanto temia, mas algo pior: a silhueta de uma pessoa, amortecendo a própria queda com um giro e erguendo-se imponente sobre mim. O terceiro invasor havia pulado da varanda. Pensei em chamar pelo loiro, mas sequer houve tempo. A figura veio direto para onde eu estava e me acertou no peito com a sola da bota usando muita, muita força.

O impacto me jogou para trás e caí de costas no piso, perdendo completamente o fôlego. Piscando várias vezes, tentei focar no que estava à minha volta, lutando para ignorar a dor dilacerante irradiando por minha caixa torácica. Não me movi, e o vulto na minha frente também não. Com a cabeça inclinada, ele apenas observou, parecendo quase interessado.

Durante alguns segundos apenas fitei seus olhos vazios, tentando não sufocar com minha própria respiração desregulada. Folhas viçosas e cravos desabrochando eram retratados com tinta verde em sua máscara branca, e ocasionais esmeraldas completavam a decoração. Os lábios delicados da cor do musgo não expressavam qualquer tipo de sentimento. Havia um objeto em sua mão, e mesmo que não conseguisse enxergar muito bem devido ao ambiente escuro, imaginei que deveria ser afiado com a função de me machucar.

Permanecer imóvel estava funcionando, mas o medo de ser acertado com outro golpe inesperado era maior; arrastei-me para trás e busquei apoio em um baú ao meu lado. Foi instantâneo - mal consegui o equilíbrio para ficar de pé e ele avançou, descendo a lâmina fina e curta que atingiu a madeira do baú com um estalo. Meia fração de segundo mais tarde e poderia ter sido nas minhas costas. 

Saí tropeçando pelo palco, os punhos cerrados com tanta força que as unhas feriam a palma das mãos. Percebi que ainda segurava a flecha de metal que puxei da poltrona, mas não poderia usá-la contra o homem mascarado enquanto ele tivesse um punhal (seria suicídio), então me concentrei em continuar fugindo. Voltar pelas cortinas não era uma opção; não quando um deles bloqueava a saída e o outro tinha uma balestra em sua posse.

Forçando a mente a trabalhar com velocidade, decidi usar o cenário caótico a meu favor. Evitando seguir em linha reta, interagi com o máximo de obstáculos que consegui - derrubei cadeiras e colunas, joguei copos, jarras de ferro e vasos de flores no chão, passei embaixo de mesas levando comigo a toalha e tudo o que estivesse sobre elas. Mas não surtiu o efeito esperado, ou pelo menos duradouro, porque logo alcancei a parede oposta e não havia por onde me esquivar.

Virei o corpo para localizar meu adversário e descobri, da pior maneira, que a distância entre nós não era tão grande quanto pensei. A única coisa que reconheci no próximo momento foi dor. Súbita, muito forte e aumentando a cada soco que ele desferia em meu abdômen. Encurralado contra a parede, tentei me proteger, mas os intervalos entre cada ataque eram curtos demais. Com a força e objetividade que usava, seu único desejo parecia ser acabar comigo. E se eu não fizesse nada, poderia torná-lo realidade.

Desnorteado, tentei pensar em algo e não sucumbir à dor ao mesmo tempo; seu punho fechado continuou me acertando entre breves intervalos e nada mais fazia sentido.

Até que houve um instante de pausa.

O primeiro reflexo foi me curvar, abraçando o próprio corpo e contraindo o maxilar com força. Em seguida, uma onda de desespero tomou conta de mim ao notar que ele só havia parado para trocar de mão e usar o punhal para me atingir. Imediatamente reagi, esquecendo da queimação no estômago e do fato de que não tinha plano algum.

Impulsionei-me para frente, fugindo às cegas de um golpe que não sabia quando ou de onde viria. Abaixei por impulso, girei e usei a única tática que consegui lembrar, da qual já havia sido vítima diversas vezes: dei uma rasteira no vulto mascarado.

Não foi forte o bastante para derrubá-lo, mas o fez perder o equilíbrio, porque o desgraçado estava me subestimando. Segurei o cabo de metal da flecha com as duas mãos e deixei as correntes de adrenalina que me atravessavam tomar o controle, movendo os braços em um arco horizontal. Sem pensar no que estava fazendo, enterrei o objeto nele, um pouco abaixo de suas costelas. Meu adversário soltou um rosnado grave como se fizesse esforço para não gritar, e no mesmo segundo revidou acertando meu rosto com as costas da mão.

Quase de maneira instantânea, todo o terror que estive sentindo deu lugar a uma raiva descomunal e sem precedentes. Tateei no escuro com rapidez, agarrando a primeira coisa à disposição; um dos lampadários de metal. Só poderia ser obra do destino.

Com os dedos encaixados entre os arabescos e detalhes intrincados na estrutura, realizei uma investida triunfal sem fazer questão de medir forças, atingindo sua cabeça. Ele tombou para o lado, atordoado e grunhindo. O alívio que senti foi satisfatório, mas não durou muito, pois um assobio agudo surgiu debaixo dos cravos e esmeraldas que decoravam sua máscara. Ele estava tentando pedir reforços.

Lembrei que deveria continuar o que estava fazendo antes: correr. Refiz meu caminho pelo palco, somente então percebendo o quão cansado estava - o ar entrava em meus pulmões com dificuldade e não conseguia manter outra postura que não fosse curvada. O abdômen ainda doía muito, e piorava a cada movimento. Não deixei nada disso diminuir meu ritmo; a ideia de ser atacado sem aviso outra vez era aterrorizante a ponto de se tornar uma motivação.

Enfim cheguei na saída, sentindo como se os breves minutos anteriores tivessem me roubado dez anos de existência. Passando sob a abertura em forma de arco, alcancei um corredor de teto baixo com arandelas fixadas nas paredes da cor bordô. A distância nele era pequena, e após percorrê-la virei na única curva existente à esquerda; uma sequência de portas com nomes em placas de metal se estendia diante dos meus olhos. Os camarins.

Só consegui absorver os detalhes do ambiente depois; a primeira coisa que fiz foi sufocar uma exclamação surpresa ao avistar Junsu correndo em minha direção. Nada poderia ter me deixado mais feliz.

– Hae, o que aconteceu?! – ele desacelerou, preocupado – Pensei que estivesse logo atrás de m-

– Volte, volte agora! – avisei, o empurrando para retornar por onde viera. Não fui capaz de explicar mais, assolado pela sensação vívida e recente de perseguição; poderia entrar em mais detalhes quando me sentisse seguro.

Nos apressamos através das portas de madeira com diferentes decorativos na superfície até encontrarmos a placa prateada com estrelas ao redor de seu nome. Aparentemente havia acabado de ser aberta, pois a chave ainda estava no lado externo e Yoochun buscava apoio no batente; suas feições continuavam sérias, demonstrando irritação. Empurramos o Deus do Leste para dentro - ignorando seus protestos ou a condição de sua perna - pois cada segundo era valioso, nos acomodando no espaço pequeno.

Apenas me permiti suspirar quando ouvi o loiro trancar a porta, o clique soando em meus ouvidos feito música. De costas contra a parede, não resisti quando meus joelhos vacilaram e escorreguei até estar sentado no chão, sentindo os cantos dos olhos começarem a arder. O excesso dos últimos minutos e a rapidez com que tudo aconteceu se acumulavam na forma de tensão em meus ombros; o coração parecia se recusar a desacelerar.

O que significa tudo isso?! – Junsu atravessou o cômodo e, quando me dei conta, havia segurado o moreno pela gola do casaco, empurrando-o contra a penteadeira. Frascos e potes tilintaram, tombando sobre o móvel.

– Acha mesmo que eu tenho a resposta? Minha perna está meio ferrada aqui Junsu, dá um tempo! – ele empurrou de volta e um músculo se retesou em sua têmpora.

Continuei observando, pouco interessado em intervir e sem condições para tal. Se tentassem matar um ao outro, infelizmente eu seria obrigado a me tornar um espectador.

– Com certeza você sabe mais do que está dizendo!

– Ah, sei?

– Não se faça de idiota. – em um tom controlado, longe de soar histérico, o loiro acusou enquanto apontava com o indicador – De maneira “misteriosa” o teatro ficou “movimentado” no mesmo dia em que você decidiu aparecer, e devo acreditar que não passa de coincidência?

– Se eu tivesse intenção de fazer algo grave contra você, não estaríamos discutindo nesse momento. “Falta de oportunidade” nunca foi um problema para mim, pensei que já estivesse claro.

– Bem, o número de visitantes que temos não deixa de ser curioso, e nem preciso me estender no fato de você ter passado sem preocupações sob as passarelas lá atrás.

– Sobre isso… tenho um palpite. Mas primeiro você precisa se controlar. – frisando as últimas palavras, Yoochun segurou o loiro pelos ombros e o afastou – Que tal começar me dando um pouco de espaço, hein? Preciso resolver uma coisinha, caso não se importe.

Sentando-se na cadeira estofada diante da penteadeira, o moreno tirou as luvas e respirou fundo algumas vezes, analisando a flecha e a forma como havia sido alojada. Em seguida franziu o cenho, provavelmente incomodado por não conseguir quebrá-la já que era feita de metal.

– Só liguei os pontos quando você foi escolhido como alvo pela segunda vez. – enquanto mexia nas gavetas do móvel, ele lançou um olhar para o antebraço de Junsu que havia sido atingido de raspão, onde uma mancha escura se espalhara no tecido – Desconfio que estejamos em meio a um pequeno mal entendido. Bem, não tão pequeno assim, e talvez um pouco fatal, mas ainda é um mal entendido. Imaginei que pudesse acontecer, mas não que até o Donghae estaria envolvido.

Soltando um suspiro insatisfeito, Yoochun olhou para cima durante alguns segundos - como se reunisse coragem - e, numa única tentativa, começou a puxar o objeto cravado na lateral de sua coxa.

– Hã… tem certeza que é uma boa ideia? A ponta triangular vai fazer um estrago no caminho de volta, sabe...  – eu não estava preocupado, só imaginei que deveria me pronunciar ao testemunhar uma imprudência.

Ele permaneceu em silêncio, omitindo a dor com perfeição como se fosse apenas mais um dia comum, e somente respondeu após jogar a flecha ensanguentada no chão.

– Não foi muito profundo. Já passei por coisas piores. E não queria ficar por aí com essa coisa enfiada em mim. – observou pausadamente, pressionando a região do ferimento – Como eu disse antes, possuo um palpite. Não tenho certeza se é o que estou pensando, mas explicarei do começo. Os Deuses do Leste, bem… como posso dizer… nós temos um compromisso com esse nome, criado quando era a única coisa na qual poderíamos nos apoiar. A fim de jamais deixá-la perecer, essa aliança e tudo que a envolve sempre será uma prioridade; construímos um laço eterno e complexo como símbolo de proteção, onde lealdade é uma base fundamental-

Baques fortes contra a porta do camarim fizeram-na tremer sobre as dobradiças no mesmo instante, detendo sua narrativa. Nossa única reação foi uma breve troca de olhares.

– É um sinal de que preciso falar mais rápido, com certeza. Muito bem, vamos aos pontos principais. – o moreno prosseguiu, enrolando em torno da coxa um lenço florido que encontrara em sua busca pelas gavetas – Naquela noite em que, por diversos motivos, me recusei a ir atrás de Hyukjae no palácio, eu basicamente arrebentei o alicerce de nossa relação. Joguei minha lealdade no lixo. Não foi a primeira vez que interferi em um plano, e imagino que eles já saibam. Vocês acham que algo assim poderia passar em branco?

Os ataques contra a porta aumentaram de intensidade e parecia evidente que logo ela cederia. Quase como um reflexo, levantei e me apoiei contra sua estrutura, tentando usar o peso do corpo de barreira improvisada. Esperei que fosse suficiente, mas as vibrações intensas contra minhas costas insinuavam o contrário.

– Bem, para toda ação existe uma consequência. Nesse caso ela não é imediata, afinal, temos apenas um ao outro e merecemos uma segunda chance. No entanto, essa chance não virá em uma bandeja de prata… ela deve ser conquistada. Eu preciso merecê-la, fazendo a escolha certa para compensar a tal da traição. Provar que sou capaz de colocar nosso nome como prioridade. E dependendo do que fizer… minhas próprias ações serão responsáveis por minha punição. No fim das contas, sou eu quem decide meu destino.

– Então é como um teste, e você precisa passar? – o loiro indagou, cruzando os braços – De que maneira?

– São os membros remanescentes que decidem. Mas não há melhor forma de mostrar o que há em seu coração do que um momento crítico; para quem nunca teve muito, as pequenas preciosidades têm valor inestimável. E são ótimas armadilhas. – amarrando o lenço com dois nós firmes, Yoochun recostou-se na cadeira tranquilamente como se a porta não estivesse sendo chutada – Se os conheço bem, apelariam para o lado afetivo, o ponto fraco da maioria das pessoas. É aí que entra o grande mal entendido: eles devem achar que você tem valor sentimental para mim.

– Como é? – Junsu deixou escapar uma risada incrédula, combinando com a expressão em seu rosto.

– Eu sei, é ridículo. Mas olhando de fora, deve fazer sentido. Passamos um bom tempo juntos caso não tenha percebido, e nunca nos esforçamos para esconder minhas visitinhas. Alguém deve ter visto. Houve a ocasião do musical também, em que você escapou por pouco. Tentei fazer com que parecesse coincidência, mas vai saber. Enfim, é um comportamento bem incomum, considerando que não estamos do mesmo lado.

– Plausível. – raciocinei, acostumado com os estrondos ecoando às minhas costas e dentro da minha cabeça – Explicaria por que o homem da máscara risonha só reagiu a você. E por que a primeira flecha foi na sua direção.

– Certo. – o loiro aceitou com relutância, lançando a mim (ou melhor, à porta) um olhar preocupado – E como fazemos isso parar?

– Vocês, não sei. Mas eu não preciso fazer nada. Se quiser salvar minha pele e minha moral com os Deuses do Leste, só preciso não interferir. – Yoochun esboçou o começo de um sorriso, acrescentando rapidamente ao notar a fúria em nossas feições – É óbvio que não farei isso, porque ainda tenho planos a realizar. Donghae é inútil, mas você por outro lado pode ser importante, então serei obrigado a encontrar um jeito de nos tirar daqui.

Ignorei as farpas que ele adorava atirar em minha direção, mais interessado na ruga suave entre suas sobrancelhas. Apesar de se exibir como a personificação do desdém, havia alguma coisa incomodando-o a níveis extremos, que nem sua armadura de frieza conseguia esconder.

– Tem algo errado, não tem? Quero dizer… mais errado do que já está. – juntando os pés, concentrei meu peso no quadril, “protegendo” a superfície de madeira como se minha vida dependesse disso.

– É muito estranho, de fato. As pessoas lá fora, pelo menos o da faca… exala amadorismo por todos os poros. O estilo de luta dele é diferente do que eu costumava enfrentar nos treinos, e nunca vi Yunho, Changmin ou Jaejoong manusearem uma balestra antes. – pensativo, o moreno fitou o espelho emoldurado da penteadeira com um ar distante – Além disso, o jeito como tudo isso foi orquestrado… é escandaloso demais, os rapazes não agiriam assim.

– Você não tem certeza do que estamos enfrentando. – concluí.

– É. – se levantando com cautela, ele atravessou os poucos metros entre nós – Mas não vou demorar a confirmar ou descartar minha hipótese.

Durante meia fração de segundo, acreditei que sua aproximação tinha como objetivo me ajudar a conter os baques violentos. Eu não poderia ter sido mais ingênuo pois, sem aviso, Yoochun me empurrou para o lado e girou a chave duas vezes, abrindo a porta do camarim com tanta veemência que a mesma se chocou contra a parede adjacente.

O homem do sorriso macabro - que estava prestes a investir contra a madeira usando o ombro - não esperava por esse gesto, e antes que pudesse refrear seus passos, entrou diretamente no cômodo. Yoochun se aproveitou do impulso para segurá-lo pela capa, jogando-o contra a parede oposta; ele bateu a cabeça contra o espelho, que por algum milagre permaneceu intacto. Pela visão periférica notei que os outros vultos mascarados também estavam no corredor, e só não reagiram de imediato por estarem atônitos com o acontecido.

Tentando não ser vencido pela dor intensa no abdômen que se recusava a cessar, fui na direção da maçaneta o mais rápido que pude, e esse movimento bastou para despertá-los do transe. Fechei a porta no instante em que a figura de máscara azul decidiu atirar; a flecha conseguiu fazer seu caminho para dentro, sibilando próximo ao batente e acertando uma fantasia pendurada em um dos cabides ao fundo. Girei a chave de novo e permaneci ali, consideravelmente abalado. Os golpes contra a madeira retornaram, mais agressivos, desafiando minha resistência.

O barulho de vidro se quebrando seguido de um aroma suave e adocicado chamou minha atenção. Virei o rosto para trás, surpreso ao constatar que o invasor já estava imobilizado no chão; o moreno sentava-se impassível sobre suas costas, contendo seus braços e segurando os pulsos juntos. Pequenos acessórios e vidros de perfume estavam espalhados ao redor, alguns quebrados.

– Você enlouqueceu?! – Junsu soltou o que foi quase um grito, exteriorizando a raiva provocada pelo susto – Não saia fazendo coisas arriscadas por conta própria, você não está sozinho aqui!

– Pense comigo: da mesma forma que você não esperava por isso, eles também não. O segredo está no elemento surpresa. – parecendo se divertir, ele sorriu enquanto atava as mãos do invasor com cadarços de um par de botas de montaria, deixadas ao lado do cabideiro – Eu disse que o amadorismo era gritante aqui. Foi tão fácil quanto imaginei.

– Repita essa estratégia e eu mato você.

– Não se eu for mais rápido.

– Alguém mais percebeu que ele não está se mexendo? – intervi, olhando para o corpo estirado no tapete. 

Contornado por manchas douradas e notas musicais, o olhar vazio da máscara fitava o nada; seu dono não tentou continuar lutando, apesar da falta de atenção do moreno (que estava claramente com a guarda baixa).

– Devo ter usado mais força que o necessário. Só precisamos aguardar um pouco. – Yoochun explicou no ápice da calma, fazendo uma vistoria metódica pelas roupas escuras do homem desacordado.

Escondidas em pontos estratégicos como bolsos internos, cintura e interior das botas, havia outras armas. Uma a uma, eram encontradas e deixadas sobre o assento da cadeira estofada; uma faca serrilhada, uma adaga e dois canivetes. Aquilo me recordou do comentário de Donghwa sobre estar despreparado, e lamentei por notar que talvez ele tivesse razão.

Segundos depois, resmungos soaram sob os lábios dourados e repuxados quando o adversário recobrou a consciência. Ele resistiu um pouco mas, percebendo que era inútil, permaneceu imóvel. Seu silêncio era absoluto, e nem mesmo a situação desvantajosa na qual se encontrava foi suficiente para fazê-lo soltar mais do que alguns grunhidos descontentes.

– Já tive suspense o bastante por hoje, vamos logo com isso. – inclinando-se com impaciência, o loiro segurou a lateral da máscara e a puxou, revelando o rosto do invasor e fazendo Yoochun abrir um sorriso convencido.

Não era nenhum dos Deuses do Leste restantes.

Sob cabelos ondulados de um ruivo claro, quase arenoso, espreitava um par de olhos castanhos; o maxilar era marcado no semblante jovem e uma grossa cicatriz que começava na têmpora direita se estendia até a ponta do queixo.

Eu nunca vira aquele rosto na minha vida.

– Quem mandou você aqui? – cruzando os braços, Junsu inquiriu, mas não foi levado a sério como era de se esperar. O rapaz apenas sorriu com escárnio, exibindo uma enorme falha entre os dentes da frente.

Em mais um de seus atos repentinos, Yoochun retirou o par de luvas do estranho com agilidade, flexionando o dedo indicador dele com uma das mãos até um estalo baixo e desagradável ecoar no ambiente. Ao mesmo tempo, uma exclamação de dor sobrepôs qualquer outro som.

As investidas contra a porta cessaram durante três, quatro, cinco segundos pausados e intermináveis, até retornarem com o dobro da força. O loiro veio em minha direção e se apoiou ao meu lado na superfície de madeira, usando o próprio peso como reforço.

Quem mandou você aqui? – foi a vez do moreno perguntar, em um tom severo.

Com uma expressão angustiada que repuxava a cicatriz em seu rosto, o jovem emitiu um resmungo, longe de entregar a resposta. Sem hesitar, Yoochun escolheu outro dedo e também o quebrou com facilidade:

– Lembrando que você ainda tem mais oito, e enquanto aquela porta permanecer no lugar, posso fazer isso por muito tempo. Sem problemas.

– Eu também posso. – em meio a mais grunhidos, ele soltou uma risada carregada de deboche – Acha que é o primeiro a tentar me torturar quebrando coisas?

– Com certeza não. – fingindo pensar, Yoochun por fim sacou seu canivete e o girou nos dedos da mão livre – Mas posso ser o primeiro a cortar coisas fora. Todas as lâminas que carrega são inúteis se não puder segurá-las.

No momento em que o moreno posicionou o canivete sobre o polegar dele e começou a aplicar pressão, o estranho finalmente cedeu, perdendo toda a postura arrogante:

– Tudo bem, espera um pouco! Olha só, tenha calma, talvez possamos trocar umas palavrinhas, pode ser?

– Claro que pode! – o Deus do Leste riu com satisfação – Comece dizendo quem mandou você aqui. É a última vez que perguntarei, aliás.

– Sinto muito, eu não sei responder isso.

– Pense melhor a respeito, você só tem dez oportunidades de falar a verdade. Ou melhor, nove-

– Não estou mentindo, juro pela minha vida! – a voz do ruivo se tornava mais histérica a cada ameaça implícita de perder seus dedos – Sou pago para fazer meu trabalho, não para fazer perguntas. Recebemos nossa missão por mensagens através de terceiros, justamente para evitar situações… deselegantes como essa. Não posso entregar informações que não tenho.

– Hm… então ao menos compartilhe qual foi exatamente o comando.

– Silenciar aquele ali. – seu olhar vagou direto para Junsu – A maneira como deveria ser feito… ficou a nosso critério, mas foi estritamente estabelecido que… qualquer um a tentar impedir receberia o mesmo destino.

– Parece muito com a sua teoria de antes. – admiti, relutante em concordar com Yoochun pela terceira vez no mesmo dia – Acho que você estava certo.

– É claro que estava. Mas não deveria. Não consigo entender por que eles fariam isso… por que não vieram pessoalmente? – franzindo o cenho, ele deslizou uma mecha de cabelo escuro para trás da orelha, proferindo em tom ameaçador – O que mais você está escondendo?

– Nada! Eu não sei… de muita coisa. – o homem da cicatriz respirava lenta e pausadamente devido ao peso aplicado sobre suas costas – Como eu disse… não podemos correr o risco de delatar nossos clientes.

– Como sabiam que eu estaria aqui hoje?

– Não sabíamos. Só… aguardamos até o momento correto. É o que posso dizer.

– Isso está levando tempo demais. Devo lembrá-lo que você não está em condições de soar enigmático? – com a tranquilidade costumeira, o Deus do Leste deslizou a lâmina entre a segunda e a terceira articulação do dedo anelar dele, com força o suficiente para abrir um corte de profundidade alarmante – Não poupe os detalhes, por favor.

– Pare com isso, que merda! Não havia como sabermos, entendeu?! Não somos videntes! Por isso recebemos a ordem de esperar! – o estranho despejava tudo o que conseguia lembrar, seus olhos vagando com rapidez de um lado ao outro – Hoje não foi nossa primeira vez na droga desse teatro, aguardamos por alguns dias até o sinal! A ordem era executar a missão somente quando uma pessoa que se encaixasse na descrição aparecesse. No caso, você.

– Estavam me esperando? Que adorável!

– Mas não imaginávamos que haveria um terceiro sujeito. – ele me fitou por alguns instantes – Toda a estratégia teve que mudar. Decidimos nos manter separados ao invés de concentrar o ataque na área do palco… isso enfraqueceu o plano inicial.

– Então você acabou servindo para alguma coisa, Donghae! – o moreno lançou a mim um sorriso condescendente, e me segurei para não acertá-lo com um chute – Hm. O que mais?

– É só isso, de verdade! Não sei de mais nada, me deixe em paz! – ele praticamente implorava, murmurando palavrões em voz baixa.

– No fim, a culpa foi toda sua. – Junsu acusou o Deus do Leste, e era nítido seu desconforto por descobrir que havia sido observado dentro do La Gran Scena – Quem mandou você vir me importunar uns dias atrás? Com certeza seus companheiros viram, e só precisaram esperar pela próxima oportunidade.

– Que se dane. Eu não poderia me importar menos, sabia? E no momento atual, isso não faz diferença. – pressionando as laterais do pescoço do invasor até ele perder a consciência, Yoochun se levantou, acrescentando – Que tal focar em sair daqui? Preciso dar um jeito na minha perna com urgência. Não fiz o mais decente dos curativos, se é que pode ser chamado assim.

– Está um pouco complicado sair agora, sabe. – movimentei a cabeça para trás, indicando a agitação do lado de fora.

– Bom… acredito que o elemento surpresa não vá funcionar uma segunda vez. Mas tudo bem, eu pensei em algo. – cambaleando em nossa direção, ele compartilhou em voz baixa e de forma breve a tentativa de fuga que havia planejado.

Junsu e eu ouvimos com atenção, desaprovando cada palavra. De qualquer forma não conseguimos pensar em nada melhor, e de uma perspectiva geral, não seríamos os principais prejudicados caso falhasse. Então concordamos.

– Tem certeza disso? – indaguei, apreensivo pela falta de detalhes ou garantias.

– É claro que não. Agora vamos lá. – o moreno fez um gesto com as mãos para nos afastarmos da porta e nos prepararmos para desempenhar nosso papel.

Passei por cima do corpo no chão e me apressei até a penteadeira, avaliando as gavetas e os objetos em sua superfície; escolhi uma lata redonda de tamanho e peso mediano, com entalhes delicados na tampa. Pó de arroz. Ao mesmo tempo, o loiro já havia caminhado na direção oposta e empurrava à sua frente um espelho retangular de corpo inteiro; a moldura era espessa e feita de madeira, com ornamentos nas extremidades pintados para se assemelhar a ouro. Teria que servir.

Fui até ele, segurando no suporte de trás e ajudando-o a carregar o objeto até a porta, que parecia prestes a se desfazer em pedaços. Sentindo-me ridículo com os “equipamentos de defesa” que havíamos reunido, me agarrei ao pensamento de que logo aquilo estaria terminado. Repassamos o que cada um deveria fazer, ignorando o fato de que tudo era baseado em dedução e pura sorte.

– Prontos? – o Deus do Leste ergueu uma sobrancelha ao segurar a maçaneta, e um sorriso repleto de diversão decorou seus lábios quando negamos.

Atento às batidas incessantes contra a única barreira nos separando dos intrusos, ele esperou com paciência até encontrar um padrão. Concentrado em contar os segundos, ergueu o indicador em um aviso silencioso. Aguardei enquanto tentava refrear a inquietação, sentindo meu coração pulsar como se estivesse subindo pela garganta. Na próxima pausa entre um baque e outro, ele abriu a porta e tudo aconteceu rápido demais.

Yoochun lançou-se sobre o primeiro vulto que encontrou - no caso, o da máscara com detalhes verdes - e o empurrou contra a parede do corredor. Imediatamente, Junsu e eu arrastamos o espelho para fora do cômodo, usando-o como escudo improvisado. Não havia momento melhor pois, assim como imaginávamos, a segunda figura estava posicionada no meio do caminho (mais próxima que o esperado) e disparou uma flecha em nossa direção. 

O objeto prateado acertou o centro do espelho, lançando estilhaços no piso. Uma parte da ponta triangular atravessou o fundo de madeira, parando a poucos centímetros de onde nossas mãos se apoiavam. O atirador movimentou-se para encaixar outra flecha no arco e, simultaneamente, o Deus do Leste foi jogado contra a parede oposta, lutando para conter seu adversário mesmo após bater a cabeça em uma das arandelas.

Temendo perder os preciosos segundos de intervalo em meio ao súbito caos, seguimos o combinado; Junsu impulsionou o que restou do espelho para frente, derrubando nossa única proteção. Sufoquei a sensação de urgência somada ao inevitável desespero por estar exposto, olhando com rapidez para o alto em busca de um ponto específico no teto. Havia uma saliência na junção entre duas partes da madeira, que parecia estar ali por décadas e possuía sinais evidentes de apodrecimento se alastrando ao longo de sua extensão.

Não pensei muito; não poderia me dar a esse luxo. Torcendo para que minha pontaria fosse boa o bastante, arremessei a lata com força naquela exata direção; ela acertou a saliência no local que parecia mais frágil e se abriu antes de cair no chão. Uma nuvem espessa de pó branco eclodiu no corredor e, no mesmo instante, fragmentos de madeira despencaram em cima do invasor de máscara azul. Pego de surpresa, ele acabou soltando a balestra quando um pedaço do teto acertou seu braço. Ao notar que nosso objetivo (desarmá-lo) havia enfim sido alcançado, encontramos nossa deixa.

– Venha, Hae! – tossindo, o loiro segurou minha mão e me puxou para trás.

Corremos no sentido contrário, aproveitando a oportunidade de abandoná-los enquanto estavam distraídos. A passos rápidos, chegamos ao fim do corredor e viramos à direita uma vez, depois outra. O espaço à nossa frente era um pouco mais largo, e não havia mais camarins; a sequência de arandelas iluminava um caminho vazio que terminava em uma porta pesada. Incrédulo, pisquei várias vezes ao perceber que saímos para o exterior do teatro, na área dos fundos.

Empurrando a estrutura de madeira que se fechou com um barulho alto, Junsu puxou o ferrolho com velocidade e não hesitou em fixá-lo no lugar com o cadeado que estava ali. Ofegante, encostou-se contra a parede e inspecionou o ambiente de um lado ao outro com desconfiança:

– Por favor, me diga que acabou. Precisa ter acabado. Não há mais ninguém aqui, certo? Não é possível que tenha, não mesmo.

Olhei ao redor com o mesmo incômodo, e não ficaria surpreso se alguém tentasse nos atacar saindo de uma janela ou telhado. Mas a rua estava tranquila; o único movimento vinha das mesas sendo organizadas em um café adiante. Através das construções era possível enxergar um azul límpido e celeste, decorado por nuvens pálidas sem contorno. Depois de tudo, a calmaria da manhã era quase absurda.

– Não virão atrás de nós. – afirmei, mas sem soar tão seguro quanto gostaria – Finalmente podemos ficar parados por mais de trinta segundos. Eu acho.

Soltando um longo suspiro, ele se agachou, apoiando os cotovelos nos joelhos e abaixando a cabeça.

– Está uma bagunça lá dentro. Vou fazer aquele desgraçado pagar pelos estragos até a última moeda. – murmurou, tentando exteriorizar a frustração de alguma forma – Quem ele pensa que é, causando essa confusão toda e nos arrastando junto?

– Você acha que ele virá nos encontrar aqui? – indaguei, também me referindo ao Deus do Leste e à parte que faltava do “plano”.

– Não sei. Eu avisei sobre nossa localização. Resta esperar que ele consiga se livrar dos outros e, claro, não os atraia para cá.

– Acha que fariam alguma coisa conosco, mesmo se viessem? Em plena luz do dia, com outras pessoas ao redor?

– Prefiro não descobrir.

Sentei ao seu lado, abraçando os joelhos. Trocamos rápidas preocupações sobre o estado um do outro; as agressões ainda ecoavam em meus músculos e o corte no braço dele doía um pouco, mas já não sangrava. Pelos próximos minutos aguardamos em silêncio, observando toldos de lojas serem abertos e fileiras de pássaros descansarem no topo das casas.

 De vez em quando, alguém passava olhando vitrines ou aproveitando o frescor da manhã para uma caminhada. O tempo pareceu avançar bastante mas, em ambos os extremos da rua, não houve qualquer manifestação suspeita.

– Deve ter acontecido alguma coisa. – o loiro repetiu a mesma afirmação que viera fazendo nos últimos minutos.

– Quer verificar? Você precisa voltar lá de qualquer jeito mesmo.  – ofereci, sabendo que ele não descansaria enquanto não soubesse o motivo da demora.

– Hm… certo. Só para ter certeza. Também não posso abandonar o La Gran Scena aberto e naquele estado… agora há um buraco no teto, tem noção disso? Tudo bem que faltava reformar aquela parte, mas… isso não era permissão para sair quebrando.

Levantamos e seguimos pela rua ampla, decidindo que seria menos arriscado retornar pela frente. Mas ao invés de perder tempo fazendo uma volta completa, procuramos pela primeira divisão entre duas construções e adentramos a passagem estreita. Mal havíamos completado os primeiros passos quando ouvimos certa agitação na rua seguinte; encostando contra a parede na tentativa de nos unirmos às sombras, ficamos imóveis.

Ninguém menos que uma dupla de mascarados atravessou nosso campo de visão: o da balestra e o do sorriso macabro. O primeiro estava coberto de poeira branca; o segundo carregava um volume envolto em um tecido escuro, que tilintava a cada passo seu. Pouco depois, a terceira figura com a máscara de cravos e esmeraldas surgiu, pressionando a lateral do corpo com uma das mãos e apoiando a outra na cabeça. Todo o seu comportamento gritava infelicidade, e foi com um resmungo que ele seguiu por outra direção, desaparecendo em uma rua qualquer.

Troquei um olhar intrigado com Junsu, imaginando o que aquilo deveria significar. Cautelosos, esperamos alguns segundos para garantir que encontros indesejados fossem evitados e deixamos o beco, regressando à rua do teatro. Caminhamos com pressa até a fachada branca, atentos ao redor; as portas estavam abertas novamente e uma redoma de silêncio cobria toda a estrutura. Nenhum sinal de movimento.

Yoochun? – o loiro chamou após atravessar o corredor de paredes carmesins, sua voz suave serpenteando pelas poltronas e camarotes. Não houve resposta.

Ele chamou mais algumas vezes, mais alto, andando devagar pelas fileiras e olhando em volta; decidi contribuir com a busca somente porque estava curioso para descobrir o paradeiro do Deus do Leste. Se os outros haviam saído… ele tinha de estar em algum lugar.

Eu estava prestes a sugerir que procurássemos lá fora pois seria o mais lógico quando, no canto do palco, as pesadas cortinas foram puxadas e o moreno saiu por elas. Andando de um jeito peculiar, ele apoiava-se na parede enquanto dava um passo à frente do outro; desceu os degraus laterais devagar, sem dizer uma única palavra. Não estranhei o olhar sério em seu rosto, já que ostentava-o na maioria das ocasiões. Mas quando alcançou o corredor onde estávamos e pude vê-lo com maior clareza, entendi o motivo para tal comportamento.

O estado de Yoochun era pior em comparação a quando o deixamos. Seus cabelos negros estavam soltos por completo, bagunçados, cobrindo o olho esquerdo e contornando suas feições. Uma mancha escura crescia sobre o lenço florido amarrado em sua coxa. O casaco perdera a maioria dos botões e, na camisa branca sob ele, outra mancha escarlate se fazia aparente. Havia mais algumas em seu pescoço, tronco e lateral da cabeça, mas não tive certeza se todas lhe pertenciam.

– Não aguento mais esse lugar. – segurando com firmeza no encosto das poltronas, ele caminhou rumo à saída – Você tem sorte Junsu, hoje não consegui irritá-lo como gostaria. Agora, se me derem licença…

– Por que aquelas pessoas decidiram simplesmente ir embora? – indaguei em tom alto e claro, mas se ele ouviu, decidiu ignorar.

O loiro também teve suas tentativas de questioná-lo, todas sem sucesso. Observamos a silhueta dele seguir pelo corredor estreito no mais profundo silêncio, fingindo que não existíamos. Concordando que era no mínimo estranho, seguimos o Deus do Leste até o exterior.

– O que aconteceu com você? – Junsu insistiu, passando pelo par de colunas na entrada e descendo os breves degraus ao lado dele.

O moreno apenas soltou suspiros longos, que se tornavam mais curtos e intensos à medida que atravessava a rua. Encostando o ombro contra um muro de tijolos do outro lado, ele andou alguns metros e enfiou-se na próxima viela. O local era tão estreito que mal cabia nós três ao mesmo tempo, e as laterais eram tão altas que o céu não passava de uma faixa azul clara. 

– Aquele idiota com a máscara de florzinhas foi o que aconteceu comigo. – sentando no chão, enfim se pronunciou – Acabei não conseguindo desviar daquele punhal.

Ele esticou as pernas o máximo que pôde, mas os joelhos continuaram meio dobrados quando a ponta de seus pés tocou a parede oposta. Puxando as laterais do casaco, ergueu a barra da camisa exibindo um corte feio que cruzava seu abdômen na diagonal. Não demorou a abaixar o tecido, mesmo assim, tive de sufocar uma exclamação surpresa graças à imagem vívida que restara em minha mente. Provavelmente não acertara um órgão vital, mas ainda parecia profundo e a quantidade de sangue no local era inquietante.

– Depois disso não precisei fazer mais nada. – finalizou, apoiando a cabeça na estrutura de tijolos escurecidos atrás de si – Em pouco tempo, todos desapareceram. Também não sei porquê. Pensei que iriam atrás de vocês.

– Espera aí, o que acha que está fazendo? – Junsu franziu o cenho e agachou ao lado dele, parecendo não se importar com a explicação que tanto pediu – Não fique aí sentado desse jeito, você precisa de ajuda!

– Como é? – Yoochun riu, contendo uma expressão de dor no mesmo instante – Está preocupadinho? Que amável da sua parte, assim ficarei emocionado!

– Céus, deixe de ser tão implicante! Prefere que eu o assista sangrar até a morte? Pois não consigo, mesmo sendo tentador.

– Mas deveria, oras. Um rival a menos para se aborrecer.

– Como consegue falar assim de si mesmo? Você está machucado, Yoochun. Levanta, vai.

– Certo, e depois? Eu não tenho para onde ir. Não mais. – ele fechou os olhos por alguns segundos, comprimindo os lábios em uma linha fina – Se estamos discutindo agora, é porque perdi a chance. Meu “teste” acabou no momento em que não deixei uma faca de caça lhe atravessar. Fiz uma escolha, mesmo tendo minhas próprias motivações. E eles não farão questão de entender.

– O que acha de resolver isso mais tarde? – o loiro tentou convencê-lo, demonstrando inquietação como se sua paciência estivesse acabando – Não me importo se houve uma razão estratégica por trás. Você me ajudou, mais de uma vez, e não quero ficar em dívida com um Deus do Leste. Fique aí então, que eu vou chamar alguém.

– Não deixarei um membro do Spectrum cuidar de mim, seria jogar minha dignidade no lixo também. – Yoochun o segurou pelo pulso, obstinado – Você não vai a lugar algum. Eu mesmo buscarei ajuda, se for o suficiente para impedi-lo de me atormentar.

– Ótimo. Então vá!

– Antes, gostaria de esclarecer que não há uma dívida pendente entre nós. Eu não fiz nenhum favor a você, e mesmo que alguns de nossos encontros tenham sido agradáveis… eu só estava tentando usá-lo para atingir um objetivo, e não consegui, como pode ver.

– É a milésima vez que insinua algo parecido. – observei, colocando em palavras o que eu sabia que o loiro também estava pensando – Seja mais específico.

O Deus do Leste passou a língua pelo corte no lábio inferior, tentando disfarçar um sorriso discreto. Parecia contente por capturar nossa atenção.

– Bem, à essa altura… talvez eu possa compartilhar. Não tenho nada a perder.

Ele se apoiou na palma das mãos e ajeitou a postura com dificuldade, recostando-se com o maior conforto que pôde encontrar (e que não era muito) antes de explicar:

– Os rapazes e eu… ansiamos pela quebra do acordo por muito tempo, como se fosse uma certeza ao invés de uma possibilidade. Sabíamos que o destino seria injusto e perverso a ponto de colocar o Spectrum em nosso caminho outra vez. Mas quando finalmente aconteceu… seria mentira dizer que não houve certo desequilíbrio. Cada um de nós sabia seu papel, mas… pensar que a hora tão esperada havia enfim chegado… conseguiu mexer de maneira profunda com alguns.

O moreno envolveu o próprio corpo com os braços, pressionando a região e aguardando uma fração de segundo. A mancha escarlate na camisa de seda havia ficado maior, mais escura, e não pararia tão cedo. Isso não o impediu de continuar, dessa vez soltando as palavras um pouco mais rápido:

– O Jaejoong, por exemplo… só conseguia pensar nisso. Se deixássemos, ele teria resolvido tudo na mesma noite. Para a sorte de vocês, não conseguimos encontrar “o infrator” em meio à multidão da praça San Marco.

– Hyukjae, você quer dizer? – Junsu perguntou de forma quase retórica – Já sabemos o que aconteceu.

– É mesmo? Pois bem. No dia seguinte, quando descobrimos que ele estava de volta àquele palácio e pretendia ficar, foi como se estivesse nos entregando a própria cabeça em uma bandeja. Jaejoong viu naquilo uma grande oportunidade, quase um presente; qualquer outro plano que tivéssemos arquitetado e não envolvesse o acordo ou essa rivalidade deveria ser abandonado. Segundo ele, precisávamos colocar a situação como prioridade. Foi assim que surgiu nosso primeiro atrito. – o Deus do Leste olhou para cima, contemplando a fenda entre as construções e uma parte do céu – Eu discordei, afinal, nos preparamos por cinco anos; não havia motivo para agir com tamanho desespero. Além disso, não teria graça nenhuma ir atrás de Hyukjae enquanto ele estivesse sozinho. Seria fácil demais. Então sugeri que esperássemos os outros chegarem; o Spectrum é previsível e não deixaria um dos seus para trás. Com todos aqui, poderíamos dar início à promessa original de eliminá-los.

– E você provou que estava certo quando, poucos dias depois, eu cheguei. – o loiro deduziu.

– Sim. Bem na hora, aliás… estava ficando difícil ganhar tempo. Quando o vi naquela praça, fui obrigado a dar algumas dicas. Com aquele mapa cheio de rabiscos, você ainda levaria umas setenta horas para encontrar seu líder por conta própria, e eu precisava que estivessem juntos o mais cedo possível para que as coisas fossem feitas do jeito certo. Infelizmente, sua presença deixou os ânimos exaltados e causou uma mudança em nossas… “atividades”. Jaejoong convenceu os rapazes a… como posso dizer… passar uma mensagem. Ele queria deixar claro quem possui o poder nas mãos, intimidar vocês mostrando o que construímos nessa cidade. Mostrando que os Deuses do Leste são intocáveis. Assim, nossa “atuação” do cotidiano ganhou um tom de… espetáculo.

– Ah… está falando dos inúmeros crimes, muitas vezes hediondos, que movimentam sua vivência? – ressaltei, indignado com o uso de eufemismo – Admito que foi uma grande exibição o que fizeram na festa de Kyuhyun, e depois dela também. Um verdadeiro espetáculo: agiram em meio a vários convidados sem hesitar, deixaram corpos para trás como se não tivessem valor, e mesmo assim nada lhes afetou. Sem provas, sem testemunhas. Se chamam isso de ser intocáveis, não há mensagem mais clara, apesar de eu ainda não entender como é possível.

– Não é possível, na verdade. Acha que teríamos chegado tão longe sendo desleixados desse jeito? Foi apenas ostentação de poder para assustar o Spectrum. Na minha opinião, mudar nosso modo de operar por causa de cinco palhaços circenses foi uma decisão desnecessária, até exagerada, mas Jaejoong não pareceu gostar quando eu falei isso. – o moreno puxou uma mecha de cabelo para trás da orelha com os dedos pálidos, manchando a lateral do rosto – Ele retrucou com diversas justificativas, mas por baixo da arrogância eu via o quanto estava cego por vingança, determinado a não oferecer brechas para o Spectrum escapar de seu destino. Então depois… vieram muitas discussões. Sempre que formávamos estratégias para os crimes comuns, ele queria interferir e se concentrar em atacar vocês logo, mas eu rejeitava; por estar se apressando, as ideias que ele tinha sempre possuíam algum furo e se tornavam impraticáveis. Às vezes Yunho me apoiava, e aí… eles brigavam entre si. Reconciliavam, brigavam de novo. Brigavam comigo. Nosso lar virou um inferno, o que fez Changmin evitar estar presente pelo maior tempo que conseguisse. Não havia pior momento para conflitos internos surgirem.

Fazendo menção de se levantar, Yoochun virou o corpo para a esquerda e apoiou seu peso nos joelhos. Parecia sentir muita dor. Com o maxilar retesado e o cenho franzido, permaneceu imóvel, sentado sobre a sola das botas. Não achei que conseguisse continuar sozinho, mas não ousei me aproximar; seu olhar sombrio e afiado indicava que não aceitaria ajuda. Respirou fundo algumas vezes como se fosse uma tarefa árdua antes de prosseguir:

– Eu não aguentava mais assistir às nossas vidas e objetivos serem alterados por causa do Spectrum, se adequando à presença deles. Foi o que aconteceu no passado, quase nos fez desmoronar, e estava acontecendo de novo. Os Deuses do Leste são tudo o que tenho... minha família, minha identidade, e não devem perecer. Depois dos anos de prosperidade em Veneza longe dos cinco bobos da corte, era ridículo pensar que estávamos praticamente orbitando ao redor deles. Senti que precisava fazer alguma coisa, provar que… mesmo se falhásssemos, isso não diminuiria nosso poder aqui, não mudaria quem somos. Queria lembrá-los do que importa de verdade.

Ele se ergueu com um grunhido, segurando na parede à frente; seus dedos deixaram longos rastros de sangue na tinta descascada. O odor férreo tomava conta da viela estreita e fazia minha mente girar.

– Decidi que os rapazes precisavam fracassar, para enfim perceberem que o maior dos planos não adianta se não houver foco e autocontrole. Com falhas sucessivas, buscariam a origem do problema e a encontrariam na própria altivez, precipitação e quase obsessão. Mas isso apenas funcionaria se o Spectrum soubesse como ganhar, o que fazer para escapar das iminentes armadilhas, e só conseguiriam tais informações através de mim.

– Aí você me escolheu como canal. – Junsu proferiu em tom baixo.

– É. Eu sabia que o Spectrum jamais acreditaria em qualquer coisa que saísse da minha boca por motivos óbvios, mas talvez valesse à pena arriscar com você. Por não estar lá desde o começo, era a única pessoa que conseguia suportar minha presença por mais de três segundos sem fazer um escândalo. Então decidi me aproximar aos poucos, deixando dicas sutis sobre o que estava por vir e torcendo para que não as ignorasse; era tudo parte do meu “plano”, claro, mas saiba que em muitas daquelas conversas eu fui sincero sobre várias coisas. Enfim… foi ingenuidade acreditar que minha estratégia funcionaria.

– Bom, eu estou aqui. Você impediu que um lustre enorme caísse na minha cabeça, então o quê exatamente não funcionou? – o loiro juntou as mãos à frente do corpo, entrelaçando os dedos e tentando (sem sucesso) disfarçar a preocupação que parecia sentir pelo outro.

– Até essa parte não houve problemas, sabe? Você fez bem em me ouvir, confesso que não esperava. Só que a reação dos outros também não foi como esperei. Jaejoong ficou muito irritado quando, ao final da peça, você ainda estava respirando e recebendo aplausos. De verdade, eu nunca vira tanto ódio queimando em seu olhar como naquela noite. Estava convencido de que deveríamos compensar aquela falha, e a melhor forma era indo atrás de quem estava mais perto e causaria um impacto maior.

– Hyukjae. – o nome escapou dos meus lábios antes que eu percebesse.

– O próprio. Transferir nosso alvo para o líder do Spectrum e tirá-lo de jogo seria perfeito para causar um estrago, com certeza os deixariam no mínimo desestabilizados, então Yunho concordou e ordenou que fôssemos direto para o palácio. A ideia seria boa em outro contexto, mas… daquele jeito? De última hora, movidos pela frustração? Era burrice, e eu não queria fazer parte daquilo. Acabei me oferecendo para vigiar, assim evitaria acompanhar uma desgraça de perto, mas pouco depois resolvi ir embora. Ou fugir, como preferirem.

Mesmo de pé, o moreno continuou apoiado contra os tijolos gastos. Com a postura um pouco inclinada, fechou os olhos como se sentisse náuseas; por baixo das mechas de cabelo e sinais de sangue em seu rosto, era possível notar a pele ficando cada vez mais lívida.

– O resto… vocês já sabem. Fui rotulado de traidor, quando na verdade estava tentando trazê-los de volta à realidade… tentando proteger nosso nome como jurei que faria. Se ao menos me ouvissem, eu poderia… ah, querem saber? Que se dane. Não passei na merda do desafio, não sou leal o suficiente e sei lá mais o quê. Espero que se afundem no próprio orgulho. – ele arriscou alguns passos, tentando passar uma confiança e firmeza que não tinha – Bom, acho que já falei demais. Só preciso… repousar um pouco e… decidir o que fazer depois.

Apesar da segurança que o Deus do Leste tentava demonstrar, seu corpo se recusava a omitir o cansaço; devagar, entre um passo e outro, ele começou a inclinar para a esquerda como se estivesse perdendo os sentidos. O primeiro reflexo de Junsu foi apressar-se até o outro e segurá-lo antes que batesse a cabeça na parede, mas em resposta, foi afastado de maneira brusca com um empurrão.

Não toque em mim. Você disse que não iria me atormentar se eu fosse sozinho.

– Deixe de ser teimoso e olhe para si mesmo, você não-

– Estou falando sério. – Yoochun rosnou antes de sacar o canivete e abri-lo, exibindo o objeto em um tom ameaçador; seu olhar sombrio dizia que não era um blefe – E não ouse fazer essa cara de pena, não preciso dela. Vou dar um jeito.

Sem alternativas, o loiro deixou os braços caírem ao lado do corpo e continuou observando com certo incômodo enquanto o outro caminhava pelos ladrilhos da viela. Contra a própria vontade ele cambaleava, às vezes encostando nas laterais para superar a falta de equilíbrio, e seguiu dessa maneira até sua silhueta desaparecer na próxima rua.

 – Ele não vai dar um jeito. Não vai procurar ninguém. – Junsu murmurou, sem desviar a atenção do caminho vazio à nossa frente – Acho que toda essa conversa… foi para ganhar tempo me distraindo, me impedindo de ajudá-lo. Ele está piorando rápido e tenho certeza que não vai fazer nada sobre isso. Desse jeito… 

O loiro decidiu não terminar a frase, encerrando-a com um suspiro. Permaneci em silêncio pois não havia como contestar, nem algo que pudéssemos fazer a respeito. Dificilmente o Deus do Leste teria nos dado tantas informações caso planejasse se recuperar e continuar com o próprio plano. Então mesmo sem olhar para trás, sem oferecer nenhum gesto significativo ou uma despedida apropriada, de algum jeito eu sabia que jamais o veria outra vez.



Notas Finais


Me desculpem qualquer erro que eu tenha deixado passar, depois volto pra arrumar~
Dúvidas, surtos, shades, teorias, críticas construtivas e afins, compartilhem aí comigo o/

Até a próxima! ♡


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