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História Você Sempre Será - Sinônimos - PARTE 1


Escrita por: hidechanrainbow

Notas do Autor


"Quanto tempo o coração leva pra saber
Que o sinônimo de amar é sofrer
No aroma de amores pode haver espinhos
É como ter mulheres e milhões e ser sozinho"

Capítulo 10 - Sinônimos - PARTE 1


          Mu conferiu o waze uma última vez antes de estacionar em frente ao grande portão azul que fora passado como referência, e, enquanto olhava com curiosidade para a fachada suja de fuligem e o cemitério do outro lado da rua, retirou o celular do suporte preso ao painel do carro, discando em seguida o número decorado. O sobrado pequeno, espremido entre outras duas construções maiores, não era exatamente convidativo, porém a simplicidade não o incomodou. Estava acostumado a visitar Afrodite em seu rico apartamento ou até mesmo à sua própria casa, no bairro nobre, porém antes de tudo, seu pai viera de uma família humilde e tinha sim muito orgulho do fato.  

- Cheguei! _anunciou animado ao ser atendido, Shaka respondeu monossilábico encerrando a ligação em seguida.

         Enquanto continuava a analisar a rua vazia, em poucos minutos o loiro apareceu com evidente pressa, trazendo carteira e chaves nas mãos ao mesmo tempo em que tentava desembaraçar os cabelos com os dedos, arrebentando alguns fios no processo.   

- Olá! _Mu destravou as portas e esperou que Shaka se acomodasse _tudo bem?

- Uhum, e você? Feliz aniversário Mu! _abriu um largo sorriso o abraçando com afeto _tudo de bom, muitos anos de vida e aquelas coisas ótimas todas.

- Obrigado _sentiu um afago gostoso nas costas e o perfume amadeirado característico antes de Shaka se afastar, mas apenas o suficiente para ganhar um beijo longo e convidativo. Seu coração acelerou _hum, que delícia, agora estou curtindo fazer 27 anos _sussurrou entre selinhos.

- A gente oferece o que tem de melhor né _piscou malicioso.

- Hum nossa! Menino convencido!!

                A explosão de risos acabou em partes com o clima voluptuoso, Shaka se ajeitou prendendo o cinto ao mesmo tempo em que Mu ajeitava o retrovisor, ambos respirando fundo deixando aparente sorriso nos lábios.  

- Ah, você quer entrar? Não tenho nada de especial para te servir, mas... _disse em meio ao embaraço.

- Não, outro dia. Prometi ao Afrodite que não ia demorar muito.

- Beleza, aliás obrigado por vir até aqui _se abanou _vim correndo do trabalho, nem terminei de me arrumar direito, foi mal.

- AH! _apontou para o loiro com o dedo em riste _onde diabos você trabalha?!!

                Shaka, que tentava dar jeito nos cabelos, se assustou com o grito repentino estremecendo da cabeça aos pés, os olhos azuis arregalaram como duas bolas de gude.  

- ‘ porra _resmungou, se recompondo _um dia você descobre.

- Ah mano, vou morrer! Eu vou morrer!!  _se afundou no banco, ouvindo sonora gargalhada ao seu lado.

- Morre nada _voltou a trabalhar nas longas madeixas. 

                Shaka finalmente prendeu os cabelos, ainda úmidos pelo banho recém tomado, num coque perfeito, tomando cuidado com os fios soltos e a franja metodicamente alinhada, se olhou na câmera frontal do celular antigo confirmando seu bom trabalho enquanto Mu dava partida, indignado com o eterno espírito de porco do virginiano, mas se divertindo com o mistério bobo.

- Sérião, me conta _tentou alcançá-lo para uma leva de cócegas, mas a atenção no trânsito não permitiu sucesso na brincadeira.

- Vamos fazer melhor, eu te levo lá esse final de semana _segurou sua mão com ternura e assim permaneceu.    

- Fechou! _sorriu ansioso, acariciando os dedos finos presos aos seus.  

         E depois da breve brincadeira, caíram então no silêncio, Shaka crispou os lábios e se encolheu no banco assim que Mu preciso recolher a mão para a troca de marcha. A atitude expressiva chamou a atenção do ariano, olhou de canto maquinando o que poderia significar seu desconforto, durante a semana se falaram normalmente ainda que o assunto passasse a ser muito mais os acontecimentos do mundo atual do que deles mesmos.

         Por conta do risco eminente de uma possível pandemia, a grande cidade de São Paulo dava enfim maior atenção para as notícias vindas do exterior, aos poucos, as pessoas se uniam para divulgar informações sobre os cuidados com a nova doença surgida na China alertando como possível os cidadãos brasileiros. Shaka, por sua personalidade naturalmente cheia de paranóias, estava se limitando a ir trabalhar e voltar para casa evitando o máximo de lugares públicos possíveis, não conseguia exatamente controlar seu medo chegando a se sentir mal e acuado no transporte público, entretanto infelizmente sua realidade não o permitia abster-se do mundo lá fora. Mu, um pouco menos temeroso, mas igualmente cuidadoso, ofereceu então carona naquela noite de Sexta-Feira até o apartamento de Afrodite, onde comemorariam seu aniversário. Fora inclusive uma ótima decisão no seu ponto de vista, pode conhecer enfim um pouco melhor a realidade de Shaka e sentir-se mais incluso na rotina cansativa do virginiano, além disso, após a conversa no Lush Motel eles ainda tinham muito a esclarecer e aproveitaria a deixa para terem mais tempo a sós, ganhando oportunidade de estender o horário que normalmente se limitava ao último metrô.  

          Continuaram pelas ruas estreitas do Tatuapé até a avenida que os levariam para o bairro nobre, Mu ligou o rádio e deixou numa música qualquer, mas que logo virou risos por Shaka se deixar levar numa parca imitação da estonteante Pablo Vitar, fazendo todos os trejeitos da artista. O clima descontraído perdurou por todo trajeto, distraindo ambos, e vez ou outra os olhares se encontravam acendendo fortes sentimentos. Mu não sabia explicar, Shaka tão pouco, mas os corações de ambos sempre batiam treslouco e o desejo queimava em suas almas quando lhes permitiam deixar de lado as difíceis questões de suas vidas. E sempre fora assim, desde o primeiro momento ainda que de forma inconsciente.  

         Shaka suspirou, quanto mais vivia o bom momento, porém, mais sentia vontade de correr, de se esconder. Tudo isso porque era um casmurro sem solução, orgulhoso até o último fio de cabelo, uma combinação péssima de personalidade que o fez petulante dentro de si mesmo durante todo aquele tempo. Demorou dias, remoendo a angústia que lhe dava admitir seus erros, até finalmente dizer em voz alta que estava claramente apaixonado por Mu. A constatação obvia nunca lhe soara tão cheia de medo, se ainda conseguisse o tratar apenas como amigo, como ele mesmo sugerira, quem sabe agora o sofrimento seria menor deixando então sua mente trabalhar em paz, longe da falta de bom senso do coração gritante diante do amor. O desejo pelo sorriso aberto, pelo abraço apertado, pelo aroma gostoso de seu perfume. Tudo em Mu o atraía desde o primeiro momento, se lembrava ainda da exata sensação de euforia ao abrir os olhos, no meio da multidão enquanto se exibia com a dança do ventre, e encontrá-lo diante de si, vidrado em seus movimentos. “Não...” pensou ainda mais alto, desde que tinha ouvido seu riso alto entre as árvores, naquele mesmo dia, já havia chamado sua atenção, como se finalmente estivesse ao lado de sua metade sentindo maravilhosa nostalgia e descanso para sua eterna procura. Uma procura involuntária na qual ocorria a todos os seres humanos, presos na roda da vida com seus carmas e deveres.

          Sua mente o forçava a encontrar lógica para as peças soltas em seu coração, não lhe fazia sentido se apaixonar novamente, não depois de tudo o que sofrera, não depois de bater o pé para si mesmo dizendo que aquilo jamais voltaria a ser um problema em sua rotina. Mas estava ali, há três meses vendo seu mundo ruir aos pouquinhos, deixando as lágrimas o sufocarem nos momentos de solidão e as decisões erradas virem sem controle; tudo porque era um turrão consigo mesmo, demorando a aceitar o inevitável.

          E foram tantas e tantas pequenas demonstrações de seu subconsciente: O esforço de sair após horas do trabalho cansativo para encontrar Mu, do outro lado da cidade. A ansiedade pelos encontros desejando nunca ser o último, imaginando junto de sua melhor amiga como seria cada um deles. Tantas vezes mudara a folga no trabalho ou então deixara de gastar o pouco dinheiro que sobrava do salário para ter o mínimo de condição de se descolar até ele, pagar pelo menos sua conta no restaurante. Coisas deveras normais para uma pessoa, mas a mente orgulhosa do virginiano via tudo como uma sincera doação de si mesmo; uma demonstração de carinho. Era tão difícil de explicar quanto de se fazer entender e estava certo de que poderia continuar a esconder tal fato de si mesmo. “Teimoso, casmurro, turrão!” repetiu.

         A música romântica soada pela voz de Ed. Sheeran e o silêncio apertaram ainda mais seu coração, teria um longo caminho até a realização de seus anseios, ou melhor, quem sabe se aquele caminho realmente existia. Independente da pequena melhoria em sua personalidade ou de seu esforço até ali, a caixa de Pandora jazia aberta em seu colo e Mu à sua frente, curioso, prestes a olhar para dentro da escuridão.

 - Ah, preciso passar no mercado _anunciou já dando seta para o estacionamento, manobrou sem dificuldade fazendo até uma graça para o companheiro ao deixar o carro perfeitamente alinhado entre os dois Corollas de luxo _já volto, pode me esperar aqui se não quiser entrar no mercado cheio, por causa do coronga.

- Se você não precisar de ajuda... me desculpe.

- Da nada, rapidão!

                Mu sorriu o deixando sozinho e batendo a porta do carro ao sair, Shaka respirou fundo relaxando o corpo no estofado macio. Admirou os pequenos detalhes do carro: volante gasto, papéis de bala e moedas dentro do porta copo, terço pendurado no retrovisor. Nada daquilo lhe pertencia, mas trazia para si conforto, sensação na qual Mu o tragava desde o primeiro dia. Como era bom sentir-se em casa. Um calafrio subiu por sua espinha, se pudesse, desejaria voltar no tempo, no exato momento que percebera as esmeraldas brilharem pelos fogos de artifício e então a partir dali faria tudo diferente.

                A tristeza estampou os olhos claros e perdurou por toda sua expressão corporal, era certo que haviam se entendido, mas era certo que fora só uma pequena parte do pior e agora, prestes a talvez perder Mu e nem podendo imaginar a má impressão de Afrodite sobre si, o amor dentro de si finalmente gritava arrebentando sua alma e todas as suas verdades. “Ah... se eu pudesse fazer tudo diferente...” voltou a se lamentar olhando para fora sem prestar atenção na paisagem urbana. De qualquer forma, sentia que aquilo nunca seria mesmo para si: um menino rico e de boa índole acabar ao lado de um da periferia, cheio de B.Os em seu passado e presente; um riso curto e resignado deixou os lábios de Shaka. Quanto mais pensava em Mu, menos conseguia conviver consigo mesmo encontrando uma culpa atrás da outra para colocar em seus ombros.

                “E se eu nunca tivesse ficado para ver os fogos de artifício...?” 

- Voltei! _Mu deu uma batidinha rápida no vidro o tirando do torpor, com várias sacolas nas mãos, Shaka saiu do carro para ajudar com o porta-malas.           

       O aroma gostoso de lavanda invadiu seu olfato ao ficarem lado a lado, enquanto o ajudava a ajeitar as compras, seu coração falhou uma batida e não pode mais esconder o semblante angustiado. Mu o mirou de relance.

- O que foi? _os olhos verdes buscaram os celestes, preocupados.

- Nada não...

- Sha _se virou para ele segurando firme nos passantes laterais da calça jeans com ambas as mãos e o puxando para perto de si. Sorriu para ele com amabilidade_ você está ansioso. É por causa do Afrodite? Não queria vir?

- Não, lógico que não! É só... _suspirou, tomando coragem para tirar do peito uma das tantas coisas que carregava _ atípico pra mim visitar as casas das pessoas, família e essas coisas... bom, cada um tem sua rotina, sua particularidade, invadir isso sempre me foi estranho _explicou paciente _mas nós combinamos e eu não teria aceito se fosse desistir no último minuto.

- E o que mais? _perguntou já sabendo ser apenas uma enorme desculpa, era claro o motivo de seu nervosismo e não ia mais deixá-lo fugir sempre que algo o incomodasse. Pelo menos não quando tivesse certeza do motivo.

- ...não vou atrapalhar vocês...? Digo, o Afrodite quer mesmo ver a minha cara? _disse enfim, traduzindo em palavras seu comportamento anormal _...não era melhor a gente só conversar e eu ir embora?

- Não precisa ficar desconfortável, quando você conhecer os pais dele vai adorá-los, além disso, quem te convidou foi o próprio Afrodite. Conheço meu amigo mais do que a mim mesmo, ele nunca chamaria alguém que não gostasse, inclusive, se ele não tivesse te compreendido aquele dia _disse sério, encarando o rosto de Shaka com atenção _pode ter certeza absoluta que não estaríamos juntos agora. Entendeu? _Shaka concordou com um aceno rápido _ ótimo. O Dite gosta de você mais do que parece, acredite _sorriu travesso aproveitando para roubar um selinho curto _e depois teremos todo o tempo do mundo para conversar. Agora vamos, estamos atrasados e ele deve estar roendo todas as unhas.

- Mas é o seu aniversário.

- É, mas é mais dele do que meu. Todas as datas comemorativas são dele, nunca vi uma pessoa gostar tanto de festas.  

      Shaka riu, meio indignado, meio divertido. Estava se acostumando a viver entre um e outro, entendendo a dinâmica dos amigos e se colocando no lugar de Camus nas mais variadas situações, decididamente era uma amizade maravilhosa. Lembrou de sua amizade com Saori, no colegial, vivam juntos, grudados, seja na sala de aula ou no intervalo; claro que um laço muito mais imaturo do que comparado ao do ariano e bastante tóxico para ambos.

- Onde ele mora mesmo?

- Alguns quarteirões pra baixo... hum _o contemplou por um momento, deixando de lado o assunto conturbado e visando distrair Shaka para que se sentisse melhor.     

       Naquela noite em especial, Shaka vestia uma bata alaranjada com pequenos detalhes em verde e uma folgada calça jeans lavada, rasgada de forma aleatória nos joelhos, além dos anéis que nunca deixavam os dedos magros e as infindáveis pulseiras coloridas de corda. Nunca cansava de explorar os detalhes de sua aparência, de todas as pessoas que já tivera o prazer de conhecer, nenhuma chamara tanta sua atenção quanto Shaka. Fascinado, se aproximou dando um beijo rápido nos lábios macios, mas o suficiente para sentir a textura agradável.

- Está lindo, já disse o quanto amo seu estilo? _ganhou um sorriso pequeno, quase tímido pelo elogio repentino. Saori e Afrodite sumiram de sua mente no mesmo instante.

- Você tem um amigo estilista e foi gostar logo do meu? Todos desmantelado _disse baixo.

- Não entenda errado, o Afrodite é aquele tipo de ser humano especial que nunca ninguém vai superar no quesito beleza _Shaka concordou enfático _então não conta, estou falando só de seres humanos normais.

- Tonto _sussurrou.

- Bora! _o soltou dando a volta no carro, Shaka fez o mesmo _ só digo que ele tem a quem puxar _comentou animado.

- Não nego a minha curiosidade.  

              O assunto morreu ao ponto que Mu agora prestava atenção no trânsito cheio enquanto tentava sair do estacionamento, Shaka aproveitou para pescar o celular do bolso respondendo uma mensagem e resmungou em desagrado, largando em seguida o aparelho no painel do carro com ligeira irritação. A atitude inusitada fez Mu olhar de canto.    

- Está tudo bem? _perguntou mais curioso do que realmente preocupado.

- Uhum, não foi nada. Minha mãe encontrou a Sá perto de casa e estava me enchendo por eu não estar para irmos todos comer juntos.  

             Incomodado, Mu repassou em sua mente a conversa com Afrodite dias atrás, após o passeio no Ipiranga. Dizia o amigo não ter sentido confiança em Saori, que ela provavelmente manipulava o grupo de acordo com suas vontades e era tão cínica quanto possessiva. Mu achou exagero mesmo sendo incapaz de discordar totalmente da análise do pisciano, ele era anos luz mais experiente em relacionamentos interpessoais devido às suas viagens, a implicância do amigo aparentemente se dera muito mais por não ter gostado da menina logo de cara do que algum real motivo e Mu achou o fato no mínimo curioso; não era comum Afrodite simplesmente despejar mal dizeres em cima de alguém sem um bom motivo.

       Ao contrário do ponto de vista apresentado, o ariano entendia que Saga era o manipulador, ele claramente manipulava Saori e trazia Shaka para o seu lado sem qualquer dificuldade, além disso, tinha o mistério das três tatuagens, mas desvendar o que um empresário na casa dos 30 anos, uma estudante de classe média e um menino da periferia tinha de relação uns com os outros, além de Saga ser ex-namorado de Shaka, se tornou impossível para os amigos bisbilhoteiros. As teorias os levaram do maior ao menor absurdo e Afrodite quebrou toda a construção da personalidade do virginiano ligando sua recusa de contar sobre sua vida com o homem mais velho e também com a melhor amiga oriental; para ele, a causa do mistério ficava mascarada pela personalidade singular, mas na verdade era conseqüência de um monte de erros em sua vida. Shaka deveria estar escondendo coisas deveras desagradáveis (ainda que acreditasse em sua sinceridade, de que ele realmente estaria tentando expor os problemas e encontrar uma solução).

           De fato, o loiro confirmava estar sentindo-se diminuído como ambos já chegaram a discutir e por isso procrastinava em mostrar a vida de baixo status social que levava, mas também ficava claro que isso era apenas uma parte dos problemas. Parte essa que poderia levar Mu a não querer nem ao menos a amizade que tentavam construir. Mu ouviu as palavras do amigo com atenção, é claro, porém afirmou categoricamente que o loiro não o decepcionaria, que ele iria se abrir quando se sentisse confortável e resolveriam a questão juntos. Valeu-se lembrar para o pisciano também que o próprio ariano tinha coisas escondidas e talvez ele temesse tanto quanto levar a relação para algo realmente sério.  

           Dito isso, Afrodite se rendeu, afinal Camus e ele já tinham decidido dar um voto de confiança e não estaria zelando pela amizade deles se de repente mudasse de lado novamente. Pediu então ao melhor amigo para convidar Shaka para dentro de sua casa, na companhia dos seus pais, os mais velhos saberiam julgá-lo muito melhor do que Afrodite e assim, quem sabe, poderia dormir em paz.

        Resumindo o ano agitado, três meses depois do réveillon enfim estaria fadado a terminar o suposto romance, o ariano tinha muitas dúvidas, o virginiano, muitos mistérios. Ainda sentia-se tragado num gigantesco mar agitado, havia descoberto sentimentos novos e também novas vontades, entretanto nem tudo que reluz é ouro e Shaka poderia acabar sendo apenas mais um amigo, um bom amigo. Felizmente a decisão de apresentar seu mundo e abrir o coração injetou novos ânimos: naquele dia, Shaka tentou dizer de forma indireta o quanto agradecia pela paciência e agora iria recompensá-lo, Mu finalmente ganhara o aval do loiro, faltava apenas usá-lo com sabedoria.

- O Saga trabalha como bancário também, não?

- Trabalhava, disse que cansou dessa vida de escravo. É tão ruim assim como ele diz?

- Bom... _Mu ponderou _tem que gostar da coisa e ter dedicação, mas acho que no fim todo trabalho é assim.

- Hoje ele trabalha de contador _Mu fez uma careta _diz que trocou seis por meia dúzia, mas está feliz.

- Feliz é o Afrodite _meneou a cabeça _trabalha em casa, quando quer, na hora que dá na telha... brincadeira, ele segura uma barra também no salão. O Erik não dá moleza quando o assunto é trabalho, o Dite planeja sozinho toda a campanha para as datas especiais, tem época que ele fica no ateliê dia e noite. Além disso _completou, orgulhoso pelo amigo _ainda faz as próprias roupas e pega uma ou outra encomenda, ah e tem, tinha _se corrigiu _o Carnaval. 

- Caramba _comentou genuinamente impressionado _faz de tudo um pouco.

- Faz de tudo um muito! Agora, se eu sair daquele banco estou ferrado.

- Era o que o Saga dizia, chegou a ser gerente do banco do Brasil por um tempo e nunca pensou que iria fazer outra coisa da vida. Mas ai... _recuperou o celular jogado no painel do carro e voltou a guardar no bolso do jeans _coisas aconteceram, ele saiu do emprego e acabou na empresa de contabilidade.  

            Mu não soube o que responder de imediato e nem teve tempo hábil para tal, a aproximação do apartamento o fez desistir da conversa deveras interessante, voltariam no assunto mais tarde, Shaka também perdeu o fio ao olhar para a estrutura belíssima, admirando os detalhes mais evidentes e deixando passar os menores pela janela do carro. Havia imaginado uma estrutura moderna, cheia de janelas panorâmicas, jardins com luzes e, claro, andares a perder de vista, porém fora surpreendido pela estrutura de arquitetura clássica, tão imponente quanto o fazendo apaixonado à primeira vista.  

        Com a portaria já devidamente avisada sobre sua visita, bastou se aproximar do portão para ter acesso encontrando a vaga correspondente sem dificuldade, Shaka olhou curioso para os carros de luxo e também percebeu Mu estacionar bem em frente a uma scooter vermelha, aparentemente nova apesar do modelo ultrapassado.

- Não vai... _apontou para frente _causar problemas para o dono da scooter?

- Ah é do Dite _desligou o motor apagando também os faróis _ele não usa mesmo, ai ficou como vaga para mim _explicou _porque sempre venho ou de moto ou de carro e, em algumas vezes, acabo dormindo aqui.   

           Uma vez estacionado e de volta com as sacolas, Mu esperava agora junto de Shaka o elevador no luxuoso saguão envernizado, adornado por arranjos florais de paleta clara, se aproveitando muito do rose e do bege, e também por grandes espelhos em molduras clássicas. Sob seus pés, um tapete azul royal belíssimo bordado em branco com o nome do prédio seguia da entrada até os elevadores e destoava totalmente das sandálias de Shaka, que apesar de estarem em ótimo estado mesmo com o uso freqüente, ainda estavam longe da magnificência evidente do local.  

- Muito elegante _Shaka comentou no ouvido do ariano o fazendo rir, ao entrarem no elevador, o viu apertar o último botão da fileira interminável constatando o que já tinha imaginado: iriam até a cobertura.

                Ao final de longos segundos e num clima de leve ansiedade, Mu o puxou pela mão em direção à única porta de madeira ao fundo do extenso corredor. Os quadros e a mesma tapeçaria do hall seguiam como decoração padronizada, porém Shaka percebeu um brilho ou outro a mais acreditando ter a ousadia de Afrodite ou talvez, quem sabe, de sua mãe. Um toque feminino sempre deixava qualquer lugar mais aconchegante e único, e elas também não tinham medo de quebrar uma regra tão simples.

         Mu tocou a campainha aguardando os passos apressados, o barulho das chaves tilintando do outro lado não demorou a acontecer e revelar a figura exuberante do seu melhor amigo. Os cabelos azuis voaram em sua direção acompanhados pela voz alta, logo sentiu-se sufocado pelo abraço aconchegante e intenso perfume de rosas.  

- Muzinho! Feliz aniversário meu amor para a vida toda!! _ afagou suas costas, totalmente amável, e enquanto ainda o prendia em seus braços, cumprimentou o loiro com o mesmo sorriso largo _ah olá Shaka, seja muito bem vindo à minha casa! Meus pais estão ansiosos. Vamos, entrem! Tenho uma ou duas surpresas pra você, ariano _o soltou apenas para empurrá-lo para dentro não dando nem chances de reação.  

- Uma ou duas? _Mu sorriu, trocando um olhar curioso com Shaka.

       O loiro seguiu os amigos até hall em silêncio e logo ao passar pelo arco de madeira, seus olhos foram acoitados pelo brilho intenso dos cristais que compunham um suntuoso lustre preso a cima de suas cabeças, exibindo os pendentes translúcidos num desenho único. Fora obrigado a perder um segundo a mais olhando para cima, sentindo-se um idiota talvez. Mal sabia, no entanto, que estava prestes a entrar num espaço que nunca imaginou sequer existir dentro de casas normais, a “Galeria”, batizada pelos donos, continha não somente obras de artes maravilhosas como sugeria o nome, mas também ramificações para o interior do imóvel, sendo Shaka incapaz de pensar em tantos cômodos para um apartamento. Era difícil não se impressionar, ficar com os olhos fixos em cada pequeno detalhe que parecia brotar diante de si. Das paredes, forradas pelo mais delicado papel de parede, até as flores exóticas nos vasos de curiosos formatos, o apartamento todo parecia ter vida e contava uma grande história, cheia de magia e riquezas.    

- Camus?

- Eu disse que tinha várias surpresas!

            A voz alta de Mu seguida por Afrodite o tirou do torpor, Shaka continuou a andar seguindo para a esquerda e se deparando logo com a sala de jantar, decorada para o aniversário de Mu. Ao fundo, a mesa de jantar estilo provençal estava com seis dos oitos lugares postos, pronta para servir as inúmeras iguarias preparadas pelo chef brasileiro, a toalha de renda e a louça sueca impecável novamente paralisaram o loiro, que engoliu seco ao pensar que logo menos seria obrigado a lidar com a “dúzia” de pratos e talheres. De tantos pormenores para se prestar atenção, ralhou consigo mesmo por ficar preocupado com tal bobagem.

- Shaka! _Afrodite se aproximou, trazendo enganchado em seus braços, de um lado Camus e do outro um homem mais velho de sorriso largo e cabelos ligeiramente espetados.

- Olá Shaka _Camus o cumprimentou rapidamente, sabendo da ansiedade de seu noivo em apresentar o pai _tudo bem?

- Sim, obrigado e você? _disse cordial, ganhando um aperto de mão breve.

- Estou ótimo mon ami.

- Shaka _Afrodite o chamou novamente _esse é o meu pai, Erik, e pai _o segurou apertando o enlaço antes de soltá-lo para que pudesse abraçar o convidado _esse é o Shaka, o amigo que nós fizemos no réveillon.

          O virginiano teve tempo apenas para respirar antes de ser abraçado pelo homem alto e sorridente, as mãos grandes espalmaram em suas costas e o vozeirão vibrou seus tímpanos o deixando levemente surdo. Afrodite deixou a preocupação estampar seu rosto, mas Mu o impediu de agir: Shaka estava certamente paralisado, mas não por sentir-se mal diante da atitude inesperada e sim pela sublime aparência do homem. Erik era um príncipe vindo direto dos contos de fada para a vida real, como num passe de mágica do agitar de uma varinha de condão. Tudo em si atraía a atenção das pessoas, dos gestos à aparência, o loiro acompanhava a figura de Erik sem piscar, respondendo sem ter a certeza de sua voz e das palavras; deixava sua alma infantil ser levada pela magia, pelo estado etéreo proporcionado pelo homem.

       Sentiu as maçãs do rosto arder em brasa, entendia agora a atração por Afrodite, não erótica, mas sim por algo que nunca soube de fato explicar.   

- Relaxa _murmurou Mu _ o tio já enfeitiçou ele _riram em conjunto _mas então, quem foi o amigo da onça que não me contou que o Camus estava no Brasil?

- Nem eu sabia! Quando cheguei hoje mais cedo com o pappa levei um baita susto. Mon amour sentado no salão de jogos bebendo dry martíni _contou tudo às pressas, olhando de canto para seu pai engajado numa conversa paralela com Shaka _estavam jogando snooker, acredita?  

- Eh... o aniversariante sou eu e quem ganha presente é você _reclamou arrancando do pisciano um riso alto.

- Non se preocupe, Mu, certamente trouxe um presente pra você também _piscou Camus, abraçado ao noivo _tive que voltar para acompanhar uma transação importante na filial e aproveitei para fazer uma pequena surpresa.

- Ele não é o melhor noivo do mundo?! Ai surpresas assim deveriam acontecer diariamente, lembro da época do nosso namoro que el-   

- Afrodite!

- Oi pai, eu! _atrapalhado consigo mesmo, esquecera-se por um momento de Shaka.

- Leve o Shaka para conhecer o restante do apartamento antes do jantar, vai lá meu garoto, depois voltamos a falar sobre a Índia.

- Como o assunto chegou até ai tão rápido?! Ai, Sha, vamos _deu meia volta aproveitando para chamar também o aniversariante _ vem Mu! Deixa meu pai e esse ruivo traiçoeiro que quase me matou de tanta alegria hoje _deu uma piscadela para o noivo _faz companhia para o pappa, sim mon amour? Já voltamos.

- Oui _concordou em meio a um elegante aceno, Erik aproveitou para abraçar os ombros largos do francês e levá-lo para a sala de estar a fim de continuarem a conversar sobre negócios e viagens, interrompida momentos antes pela chegada dos visitantes.

                Agitado pelas boas surpresas, Afrodite deu as costas para os homens e seguiu com os outros dois em direção à cozinha, o loiro voltou a se perder na rica decoração enquanto tentava prestar atenção na conversa alheia.

- Vou te levar ao meu ateliê, Sha! Vamos só passar antes pela cozinha, tenho que te apresentar mais uma pessoa. Está gostando? Quer beber alguma coisa?! Esqueci completamente e ei! O que você está fazendo com essas sacolas nas mãos, Muzinho?

- Ué, trouxe seu champanhe _disse simples.

- Que? _ergueu uma das sobrancelhas _eu pedi isso?

- Duas vezes.

                O pisciano olhou para Mu totalmente perdido, se esforçando para encontrar no fundo de suas memórias tal conversa, mas ao entrarem na cozinha a voz conhecida cortou sua linha de raciocínio.

- Boa noite, Mu, quanto tempo.

- Ah olá senhor Filip, realmente faz muito tempo, tudo bem?

- Estou ótimo, obrigado.

- Pai! Esse é o Shaka _apresentou Afrodite ao homem _Shaka, esse é meu outro pai, Filip.

             Os olhos celestes brilharam ao se deparar com a figura estonteante, dos cabelos castanhos ao maxilar, tudo era perfeitamente alinhado e cuidadosamente esculpido no rosto de aparência sacra, comparado às magníficas estátuas Gregas de mármore. Apesar de a primeira impressão lhe causar leve temor, o sorriso acolhedor imediatamente o tragou para uma nova sensação, como se estivesse de repente encontrado o próprio Deus do amor Éros em sua forma carnal, porém não sexual, demonstrava ele apenas aura intensa do Ágape na mesma magnitude que uma mãe acolhe sua preciosa cria. Adjunto à aura única, Filip era o oposto da figura moderna de Erik, mantinha um corte mediano, fixado por delicada camada de gel, o rosto, livre de piercings e barba, sustentava sobrancelhas arqueadas perfeitas e nada se via na pele de porcelana. Shaka concluiu que ele era um verdadeiro ser mitológico, vindo direto das fábulas antigas quando o mundo ainda não era sequer povoado.

       Sentiu então repentina gana de explorar sua personalidade, Erik se mostrou aberto, convidativo, sentira-se confortável imediatamente para dividir suas opiniões, mas Filip, apesar de igualmente carismático e o atraindo quase hipnoticamente, parecia manter uma alta barreira em torno de si, não tratando de assuntos triviais como uma pessoa considerada socialmente normal faria. Abriu e fechou a boca incapaz de se pronunciar primeiro, tentou desesperadamente encontrar suas respostas agora analisando as roupas, elas traduziam a personalidade de qualquer pessoa e, naquela ocasião, Filip fazia companhia a Camus no social impecável, usufruindo de uma camisa preta, nunca se esquecendo das abotoaduras elegantes, e colete cinza, os olhos celestes perceberam também a calça de alfaiataria e, curiosamente, pés descalços, o que fez suas sobrancelhas se curvarem ligeiramente.  

- Seja muito bem vindo, Shaka, fique à vontade e se precisar de qualquer coisa, basta pedir a nós ou até mesmo para o Mu _os olhos cor mel se dirigiram sem pressa para o ariano _afinal, já faz parte da nossa família.

- O-obrigado _engoliu em falso, estapeando-se mentalmente pela gagueira, mas aliviado por pelo menos ouvir o som de sua própria voz.

- Ótimo, posso te servir um pouco de gin? _revelou atrás de si, sobre o balcão de mármore, um conjunto de taças de cristal repletas do líquido transparente, gelo e uma generosa rodela de laranja Sanguinello _se for muito forte, talvez prefira suco.

- Ah eu... claro, Mu, você pode dividir comigo?

- Uhum! _pegou a primeira da fileira de seis bebericando sem cerimônias _hn! Está perfeito, Filip.

- Muito gentil, mas não fiz nada além de encher as taças, o Erik quem sabe boas receitas... bom, fiquem à vontade, vou aguardá-los junto do meu esposo, com licença.

                Afrodite ganhou um beijo carinhoso na testa, Shaka observou a cena achando curioso o afeto de ambos com o filho, e mais ainda para saber como um casal de suecos vieram se estabelecer no Brasil de maneira tão singular. Afrodite era filho biológico de algum deles? A semelhança do garoto estava em Erik, mas também parecia estar em Filip. Uma ruga formou em sua testa.

- Pappa não é um amor? _disse orgulhoso _mas venham, aqui à diante tem o escritório dos meus pais e o meu, que já aviso estar cheio de tecidos, porque estava trabalhando num modelo novo.

           Seguiu para além da cozinha por uma porta pequena, Shaka se viu novamente no hall de entrada achando confusa a arquitetura do apartamento, sentindo-se num labirinto de infinitas paredes. Afrodite os levou em seguida para um escritório abarrotado de livros e duas poltronas aconchegantes de tecido vermelho sangue, existia no espaço formal também uma mesa para reuniões e uma cristaleira com garrafas de vinho e champanhe, acompanhada de taças do que deduziu, dado ao brilho ofuscante, serem de cristal.  

- E o meu sobretudo? _Mu comentou displicente, passando a taça da bebida forte ao companheiro, Shaka aceitou bebericando o gin.  

- Desenhei, mas ai... não deu tempo meu querido _se lamentou _esse Carnaval acabou comigo.

           Na lateral da sala, quase camuflado pela madeira escura da porta entalhada em arabescos, Afrodite forçou o trinco acobreado de curioso formato de rosa e revelou para eles uma pequena sala, abarrotada de tecidos, papéis e manequins. Ao canto, a máquina de costura moderna junto de outros aparatos de aparente valor e no centro, uma escrivaninha tomada por canetas, lápis de cor, giz de cera e aquarelas, além de lindos desenhos nas folhas soltas que pendiam pelas beiradas do mogno e tantos outros que deveriam existir na pilha de cadernos. Do lado esquerdo do cômodo ainda era visível um aconchegante jardim de inverno adornado principalmente por orquídeas, amores-perfeitos e gloriosas.

- Shaka, esse é o meu local de trabalho, só cuidado onde encosta... _olhou aflito para o chão _eu vivo perdendo meus alfinetes, de repente você pode levar uma espetada dolorida.              

                   Correu os olhos celestes vagarosamente pela mesa se aproximando em passos curtos, encantado com a mistura de cores e formas. Elas pareciam sair direto do papel para os amontoados dos mais variados tecidos, harmonizando com a pedraria brilhante, os infinitos metros de fitas de cetim, renda, organza e tantos outros adereços nos quais não sabia dar nome. Vivia naquele pequeno espaço, as milhares de fábulas na vida real.   

- Você desenha muito bem _o elogio sincero fez o pisciano sorrir involuntariamente _esse lugar... _varreu mais uma vez toda a extensão _respira a arte. Tudo parece estar vivo aqui dentro.

- ...obrigado _murmurou, encantado com as percepção do loiro.

- Não acha, Mu? Que de repente podemos começar a ouvir as cores e enxergar os sons? É como se não precisássemos de todos os sentidos para vivenciar seu trabalho, Afrodite... ah... _parou ao perceber os olhares fixos em si _enfim.

                Shaka deu atenção aos seus próprios pés, encabulado consigo mesmo, seus amigos estavam acostumados a ouvir suas percepções e acabou expondo-se na frente do anfitrião por impulso, sem pensar que não estava na clareira, sequer rodeado por sua “família”. O pisciano, no entanto, sentindo-se tocado pela ternura de palavras tão belas segurou em sua mão agradecendo silenciosamente. Shaka sentiu a mesma ternura de Filip emanar pelo ambiente, sorriu em troca.

- Seus pais são incríveis, assim como o Camus, o Mu e você também.

- E você não é menos! Se não, ninguém aqui em casa teria o adorado, Sha! AI!! _pulou para o lado, olhando com atenção para o chão _pisei num alfinete, sabia que tinha sobrado alguns quando derrubei a caixinha. 

- Andar de chinelo nada, né _o ariano riu se agachando e pegando com certa dificuldade o pequeno objeto.

- Ah, espeta ai em qualquer lugar _disse despreocupado _ vamos jantar?! O Thomas vai ficar chateado se a comida esfriar.

- Thomas? _indagou Mu, se abaixando novamente para recolher agora uma agulha.

- É o seu aniversário, chamei um chef para cozinhar para nós _disse orgulhoso _não viu ele na cozinha?

                Mu estava preocupado com Shaka que estava enfeitiçado por Filip. Afrodite gargalhou.

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- De fora pra dentro _Mu sussurrou em seu ouvido, fazendo o loiro rir.

- Eu sei, tonto. Você está comendo com a mão errada, tem alimentos para cortar _ralhou.

- Uh droga, sempre esqueço _resmungou trocando o talher de mão e tremendo levemente _vai rolar não, como você faz isso?

- Sou ambidestro.

                A conversa paralela deixou Afrodite, que estava sentado ao lado de ambos, curioso, observando os amigos se divertirem com as regras de etiqueta e percebendo o loiro muito mais educado na mesa do que seu melhor amigo ou até mesmo do que ele próprio. Do outro lado da mesa, Filip também os observava, não ligava para formalidades e estava inclusive comendo a salada com o garfo do peixe, mas ficou contente pela boa educação dos meninos. Alheios e sentados ao lado de Filip, Camus e Erik bebericavam o vinho francês enquanto terminavam o prato principal, os talheres e taças todos posicionados exatamente como deveriam estar, além do guardanapo no colo, a coluna ereta e os cotovelos fora da mesa.

- Fico feliz que a Aquarius esteja indo bem aqui no Brasil _comentou Erik depositando o cristal de volta à mesa, o líquido vermelho manchou a lateral imaculada deixando macabra impressão.  

- Oui, a previsão para os próximos quatre ans é de um aumento considerável nas ações da empresa. Estamos ansiosos para os projetos, mas... _não pode refrear um sorriso, ainda que mínimo nos lábios avermelhados _confesso estar muito mais pelo casamento. Minha família me ajudou com alguns preparativos, minhas primas estão em polvorosa para Setembro, me fazendo provar ternos e gravatas todas as vezes que volto para casa.

- Hn, sei... _resmungou enciumado _Camus, aproveitando o assunto, Afrodite comentou que ainda não conheceu todos os seus familiares. Vocês já fizeram tantas viagens para a França nesses três longos anos.

- Minha grand-mère* estará no jantar quando chegarmos à França, ela ficará encantada com ele _disse ameno, não dando atenção para a entonação do sogro _Hector tamb- (*avó)

- Meu amor! _Afrodite o interrompeu extasiado, em meio a uma salva de risos, Erik o repreendeu com um olhar _ops, ledsen pappa*, Camus, não é verdade que você é amigo da Jennifer Aniston? (*me desculpe, pai)

- Non... bom, minhas primas a conhecem.

                Shaka arqueou as sobrancelhas, mais uma das tantas vezes desde que chegara ao apartamento.

- Minha avó, Shaka, é uma atriz aposentada. Foi muito famosa nos anos 70 em Hollywood com atuações no terror e no drama, acompanhada pelo seu empresário, Hector, que mais tarde viria a ser seu marido. Depois que voltou para França, meu avô aproveitou os contatos que havia feito naquela época e fundou a Aquarius, uma empresa de tecnologia audiovisual, e foi reconhecido por grandes diretores. Por causa dessa origem, recebemos alguns famosos em nossas congregações tanto na matriz, no coração da França, quanto nas filiais dos Estados Unidos e Dubai. Minhas primas mais velhas, as irmãs Natassia e Kido, são donas da filial em Los Angeles e elas levam mais jeito para os artistas, além de obviamente estarem no centro de tudo.

- Me apresenta o Samuel ‘L. Jackson! _deixou escapar, arrancando risos dos anfitriões.

- Eu também queria conhecê-lo _riu em desconcerto _mas non tive oportunidade.

- Brincadeira _murmurou _isso é incrível, Camus. Desejo tudo de bom pra vocês _respondeu educado, ainda que em sua mente, totalmente ignorante quanto ao assunto é claro, achasse curioso o fato de terem filiais em países tão ricos e também no Brasil, onde a economia capengava para se sustentar.

- Merci, mon ami _levantou a taça de já vinho quase vazia num brinde simbólico.

- E vocês se casam quando?

- Setembro! _Afrodite respondeu por Camus, ansioso _na primavera, vamos nos casar aqui no Brasil e nos mudar para a França, na verdade eu vou me mudar para França e ficaremos com duas casas. Depois te mostro as fotos, né amor?! Está tudo tão lindo apesar desse ruivo sacana estar fazendo mistério. Faz três meses, três _sublinhou _que não me mostra mais nada, nem vou para lá. Você vai me fazer ter um infarto, viu.

- Non! _riu divertido, estendeu o braço para segurar a mão delicada e apertá-lo com ternura.

                Em meio aos risos e planos para o futuro, Mu descansou os talheres e abaixou o olhar, a vida de Afrodite era completa e promissora, cheia de boas conquistas, de uma liberdade que nunca terá para si. Raras as vezes que sentia cobiça por seu mundo, mas encarava tudo com admiração, desejava sim do fundo de sua alma ainda mais felicidade para os amigos. Aquele sentimento, porém vinha hoje acompanhado por um desejo: o desejo de parar de se lamentar. Isso a princípio demonstrava o quanto ainda era imaturo, preso ao peso da submissão pelos pais mesmo já sendo tão adulto e independente, mas estava orgulhoso de si mesmo pela coragem que aos pouquinhos ganhava novos ares. Antes sequer refletia sobre o assunto, agora já encarava sua própria situação. E tudo isso graças a Shaka, sua, ainda muito pequena e pálida, luz. 

           Shaka percebeu o ariano perdido em longínquos pensamentos, as íris celestes leram a expressão vazia não podendo adivinhar o motivo, mas sentindo o pesar.

- Hey _sussurrou encostando seu joelho no de Mu _trouxe um presente pra você.

- ...jura? _respondeu apenas num mexer de lábios.

- Não espere grandes coisas, já adianto.

- Oba! _comemorou baixinho em meio a um sorriso tímido.

- Shaka, mas nos conte mais sobre você _a voz alta de Erik chamou sua atenção _se não se importar em ter dois velhos te importunando, é claro.

- Que fique claro _Filip o cortou _que de velho só tem ele aqui.

                Shaka segurou o riso como pode, ambos pareciam tão jovens quanto ele próprio, deduziu terem no máximo a idade de Saga, perto dos 34, mas com um filho de 29 anos estava bem claro que não. Balançou a cabeça em concordância apesar de estar muito mais curioso com todos a sua volta, recolheu as mãos sob a mesa e esperou paciente pelas perguntas. Filip o admirou por um segundo se voltando em seguida para a taça de vinho, Afrodite assuntou os pais deixando a conversa animada sobre seu casamento apenas para Mu e Camus, que continuaram entretidos nos detalhes.

         Enquanto Erik adorava perguntas e boas histórias para enfim desvendar as pessoas, Filip fazia do jeito mais difícil, lia a expressão corporal com atenção delineando o rosto, as mãos e o que mais fosse preciso. Shaka, na sua sincera opinião, era honesto e sincero, lia-se um pouco de negativismo também, mas o julgou a princípio uma boa pessoa. Apoiou o rosto na palma da mão, mesmo com Afrodite batendo o pé a respeito do garoto, via-se muito mais honestidade em Shaka do que em Camus e isso sempre o preocupou, mas o assunto batido não era adequado para o momento deixando de lado a análise do ruivo e se concentrando em sua tarefa.

- Ah então sua mãe é enfermeira no Santa Casa de Franca! Poxa vida, que legal. É uma profissão muito abençoada, quando o Di ficava doente eu adoecia junto! Ainda bem que o Filip é mais tranqüilo nessas situações _Erik comentou angustiado _e esse menino era tão levado... quando não comia terra e ficava passando mal, corria com o patins e batia a cara na parede.

- PAI! _o rosto em brasa se voltou para o homem animado.

- Ainda bem que o meu filhote cresceu um pouco.

- Se atente ao “pouco” _Filip interveio, rindo em conjunto com Shaka.

- Até hoje ainda dá umas raladas no joelho, Filip e eu ficávamos em pânico! Quando começamos o levar para o salão, com todas aquelas tesouras e pranchas quentes, muitos dedinhos foram queimados _disse amável, lembrando com carinho os tempos antigos _mas foi uma época maravilhosa. Aliás, ainda é, a cada dia essa criança é ainda mais adorável! Só me trás orgulho.

- Pappa Erik... _afundou na cadeira ganhando um sorriso discreto de Camus, que amava ouvir suas passagens de criança e deixara sua atenção se desviar de Mu por um instante.

- E o seu pai, meu bem? _continuou Erik.

- Hn, também tive muitos momentos como esse junto do meu pai, e eu não era menos agitado do que o Afrodite _riu brevemente _mas ele infelizmente faleceu quando eu era garoto.

- Oh sinto muito, perdão pela falta de tato.  

                Filip, que observava com atenção as nuances de Shaka enquanto Erik o enchia de perguntas, no entanto não percebeu desconforto, parecia feliz em poder conversar sobre seus pais ainda que as respostas fossem polidas e quase sem nenhuma informação relevante.

- Sabe o que é bom para preencher o vazio que nos trás a tristeza, Shaka? _os olhos celestes piscaram em curiosidade, Erik deu um leve tapinha em suas costas _doces! Thomas? _chamou o chef que por ali passava ao acaso _Thomas, o bolo, por favor. Meu amado esposo, pode pegar para nós o champanhe?

                A mesa fora retirada imediatamente e posta para a sobremesa, Mu nesse meio tempo abriu os presentes que formavam uma pequena pilha na sala de estar, entre os muitos pacotes estavam luxuosos itens de vestuário e acessórios importados comprados ao longo da semana tanto por Afrodite e seus pais, quanto pelo francês. O ariano agradeceu a cada um imensamente, não se importava com a quantidade sequer com a qualidade e nem tinha poder para retribuir a altura, mas a amizade entre eles não mais pedia formalidades, era unicamente uma forma de se expressarem.

                O bolo recheado de frutas fora posto ao lado de outros docinhos comuns às festas de aniversário, Shaka ficou impressionado com a decoração espelhada em violeta e azul marinho, se perguntando se tudo ali era de fato comestível, mas as balas de coco ainda ganhavam em toda e qualquer ocasião sendo o primeiro a experimentá-las. Uma após a outra se deliciou no alto nível de açúcar e gosto forte, descobriu também haver outros sabores como abacaxi e morango, se divertindo com seu espírito infantil.

- Délicieux _Camus exclamou tirando da bandeja de prata um canoli de limão siciliano, deixando ali uma falha na fileira metodicamente montada.

- A França tem doces maravilhosos, não? _empurrou discretamente os outros canolis para voltarem à simetria.

- Oui, em Paris temos as melhores docerias do mundo. Receitas novas e tradicionais lado a lado, trazendo toda a cultura secular numa única vitrine.

- Aceita mais uma pedaço de bolo, Shaka? _Erik postou-se ao lado dos garotos escolhendo da mesa um beijinho _poxa vida, Di, você pediu doces tradicionais e colocou canoli e macaron no cardápio?

- ...ué, o Mu gosta _respondeu simples, fatiando outro pedaço do bolo para si _deixa de ser metódico pappa. Shaka pegue todos os doces que puder e vem comigo, vamos no salão de jogos! O aniversário do Mu só é aniversário quando apostamos no truco.

                Afrodite puxou o loiro pela mão até a sala de estar, na parede oposta à janela semicircular, uma suntuosa porta de correr fora aberta por Erik e Filip, revelando o luxuoso salão de jogos. O ambiente era todo decorado com cortinas escuras e baixa luz dos pendentes modernos, criando um ar quase pesado e destoando do restante claro do apartamento. Além da mesa de carteado e de bilhar, também havia nos fundos um pequeno espaço abrigando uma flauta transversal dourada e um clarinete, ambos presos no suporte ao lado da janela. Shaka se aproximou o suficiente para ver o brilho das peças e constatou que talvez não fossem tocados há um tempo, mas que eram antigas e trazidas provavelmente do estrangeiro.

                Mu sentou-se à mesa tirando o baralho gasto de uma das gavetinhas e esperou por Shaka. Camus jogaria de par com Afrodite e Erik com Filip, todos já faziam o mesmo ritual ha anos e, na falta da companhia de um número par, se revezavam conforme perdiam. O ariano crispou os lábios, dessa vez estava em desvantagem por nunca ter jogado com o loiro antes.

- Sabe jogar truco? _perguntou quando finalmente Shaka voltou de sua breve admiração pelos instrumentos.

- Claro _tomou seu lugar entre Camus e Erik, ficando de frente para o companheiro _apostando o que?

- O ganhador escolhe, da pessoa que fez dupla com ele, o prêmio. No caso, se nós ganharmos você escolhe alguma coisa de mim e eu de você. Topa?

- Fechado _estendeu a mão pedindo para que o deixasse embaralhar as cartas.  

                A serenidade de Shaka deixou Filip apreensivo, com sua habilidade única, era raro ele e Erik perderem, mas algo em si dizia estar sendo desafiado por um alguém muito bem treinado no jogo sujo. Um sorriso discreto tomou seus lábios, em menor escala e experiência, percebeu terem habilidade semelhante.   

- Hn... _Filip repreendeu Shaka com um cruzar de braços, o garoto riu e entregou o baralho para Afrodite.

- Eu embaralho? _os olhos aquamarine piscaram, confusos.

                Filip e Shaka trocaram outro riso curto. Shaka estava roubando logo na distribuição das cartas e fora pego no flagra.

- O que aconteceu? _Mu olhou para o loiro, tão perdido quanto o melhor amigo.

- Se nós ganharmos, meu prêmio vai ter que ser bem bom viu _respondeu Shaka _vai ser difícil...

- Filip! _Erik interveio, entendendo finalmente _para de fazer isso. Ele está lendo os movimentos do Shaka _explicou.

- Não se preocupe, Sr. Erik, truco só é truco dessa forma _disse tranqüilo, pegando suas cartas já distribuídas sobre a mesa _difícil, mas não impossível e eu vou provar.

- Oh claro _Filip exclamou, convencido do contrário e pegando as suas próprias. Os olhos mel encararam os celestes aceitando o desafio.  

            A disputa ainda ganharia horas dentro da noite relativamente fria, os quatro jogadores envolvidos no clima amigável, traduzindo o que chamavam de “família”.   

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Notas Finais


Título - https://www.youtube.com/watch?v=mq8raSpJNCA

Nota: Feliz Aniversário Muzinho! Para o meu e para todos os outros, de todos os universos paralelos existentes!! Hehe.


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