Tarde da noite é para pessoas solitárias
Era madrugada quando John acordou e encontrou Sherlock na sala, assistindo uma daquelas propagandas de panela antiaderente naquela televisão velha e que só pegava dois ou três canais.
Oh, Deus. Por que ele havia comprado aquela maldita TV?
Ele parecia fascinado, os olhos brilhavam refletindo as cores chamativas do comercial. Claro que não era como se aquilo a sua frente fosse a cena de algum crime, mas ainda assim era um brilho.
Havia uma semana que nada interessante o suficiente aparecesse para que Sherlock levantasse do sofá e agisse como um ser humano funcional.
Pobre John não aguentava mais aqueles longos dias de convivência com Sherlock Holmes entediado. O detetive consultor, requisitado nos casos mais impossíveis, gênio da dedução.
Sim, esse era Sherlock Holmes em seus dias de investigação. Mas ninguém além de John sabia como Sherlock poderia ser difícil de lidar. Talvez a senhora Hudson, que gentil e pacientemente os levava refeições todos os dias. Só que a senhora Hudson não acordava de madrugada e encontrava Sherlock à beira de um colapso por não dormir há quase três dias.
— Céus, Sherlock! — John não era exatmente uma pessoa paciente — Eu não acredito que você está assistindo essas coisas em vez de dormir!
— John — o detetive respondeu calmo, não porque estava realmente calmo, mas porque estava exausto. Ainda sim, lutava brava e estupidamente contra o sono, se recusando a ter boas horas de descanso e depois acordar sem algo para ocupar sua mente — Não gruda nada, e o trabalho na hora de lavar a louça é mínimo — repetia as falas do vendedor, com os olhos vidrados agora focando em John, ou pelo menos eles estavam um pouco na direção de John.
— Você não lava louça — John era a pessoa sem paciência, o que só tornava ainda mais supreendente a calma que ele adquiria (às vezes) quando se tratava de Sherlock — aliás —John lembrou-se de algo importante — Você não tem se alimentado direito, tem Sherlock?
— Eu comi algo hoj... ontem? Era fofinho.
— Bolinhos, senhora Hudson trouxe bolinhos.
— Ah, isso mesmo! Estavam excelentes! Quando foi que ela trouxe?
— Na sexta — ele respondeu, como se esperasse Sherlock deduzir algo a partir disso.
Sherlock o encarou, com aquela cara de desconfiança quando ficava confuso. Ah sim, John queria que ele soubesse o dia.
— E estamos em que dia? Pelo amor de deus, John! Veja se eu estou em estado de lembrar datas! Se ainda fossem para um caso, eu até poderia salvar, mas agora de que adianta guardar números inúteis?
John se aproximou, parecia zangado.
Oh-oh
— Senhora Hudson trouxe os bolinhos na sexta. Estamos na segunda, Sherlock.
— Ah isso, segunda — Sherlock ignorou o que sabia que viria: um belo sermão de Watson — o que significa que logo mais vai passar aquele comercial do cortador de frutas, você precisa ver, é incrível como é fácil fazer uma salada..
— Você não gosta de frutas.
Sherlock deu de ombros, como se fosse um mero detalhe. Nao gostar de frutas não parecia um empecilho para que ele apreciasse um cortador de funcionamento manual composto por três lâminas.
— Não tenho culpa se a textura delas é tão estranha.
John riu de desespero, Sherlock já deveria estar delirando e misturando os sentidos por conta da privação de sono naquele moemtno.
— Você precisa se alimentar, e dormir, não quero ter que lidar com uma versão sua ainda mais irritante.
— Você me acha irritante?
— Se eu te chamasse só de irritante estaria sendo gentil — John sentou-se em sua poltrona, naquela mesma cena que se repetia desde o começo: ele e Sherlock, em silêncio na sala, costumavam não sentir necessidade de dizer algo. Eram amigos acostumados ao silêncio.
No entanto, Sherlock não queria aquele silêncio preenchendo tanto espaço no 221B naquela madrugada.
Poderia culpar o sono, estaria delirando, diria a si mesmo depois. Claro que estaria mentindo, mas Sherlock Holmes era um grande mentiroso afinal.
Minha mente está inquieta com os pensamentos de você.
E todas as coisas que você faz.
Eu mal posso fechar meus olhos.
Ele não sentia sono naquele momento. Desviou o foco da pequena televisão, encarando John, que descansava com as mãos sobre o peito, os olhos fechados e aquela paz reinando em sua expressão.
Eu sou cativado por você.
E estou tão apaixonado pelas coisas que você faz.
Bonito. John era muito mais que beleza externa. Ele era atencioso, era paciente, aguentava todos os surtos, todas as crises do outro, estava sempre ao seu lado, o elogiava e dizia o quanto Sherlock era incrível. Fazia o melhor detetive da Inglaterra sentir-se amado e querido. John era... seu melhor amigo.
Outro ano sendo melhores amigos.
Capaz de deduções incríveis, ele poderia dizer onde John estava, com quem e tantos outros detalhes. Entretanto, por mais que odiasse, oh deus e como ele odiava, precisava admitir: era humano, e sua falha, sua única falha, era John Watson.
E por mais que fosse capaz de deduzr toda a vida dele, não se sentia capaz de perceber nele qualquer coisa indicando que aquele sentimento era recíproco.
Eu gostaria de poder ficar ao seu lado.
Mas estou com medo do que você pode fazer.
— Que bela ironia, não acha? — disse em voz alta. John estava com sono, provavelmente não daria importância, apenas perguntaria "o quê" e depois voltaria a fechar os olhos — isso se os abrisse.
— O quê? — e realmente, não abriu os olhos.
— Sherlock Holmes não consegue resolver um simples caso, e esse simples caso vem a ser justamente algo que o interessa de forma como nenhum outro é capaz.
John riu, estava praticamente derretendo na poltrona, mas ajeitou a postura e então abriu os olhos.
Sherlock adorava.
Adorava o sorriso de John.
Adorava fazê-lo sorrir.
Adorava admirar aqueles olhos brilhantes e sempre tão interessados.
— O que foi? Assassinato? Desaparecimento? Saiba que eu não vou te ajudar, amanhã é minha folga.
Sherlock deixou escapar um pequeno sorriso. Nem precisou chamá-lo, e ele já estava se recusando a ir. Como se fosse a ordem natural das coisas: Sherlock Holmes tinha um caso em suas mãos, John Watson o acompanhava.
— John, seja mais criativo, use a imaginação.
— Eu odeio quando você diz isso.
— E você já disse que me odeia dez vezes hoje, Watson. Precisa variar o vocabulário.
John respirou fundo.
— Nada te interessa além de morte, caos e situações bizarras, então a única coisa que eu sei é que alguém morreu, ou vai morrer.
— Na verdade...
— Ou deveria estar morto — John ainda não havia terminado de falar.
— Eu já entendi — Sherlock o interrompeu.— não, dessa vez não envolve morte.
— Pra ser interessante e não envolver morte só pode ser algo inexplicável. Fantasmas?
— Okay — Sherlock sentou-se mais na beirada da poltrona e apoiou os cotovelos nos joelhos, usando as mãos em um gesto para pedir atenção e interromper pela segunda vez o outro — Não use nunca mais sua imaginação perto de mim, por favor. Vamos, John, pense logicamente, o que, além de morte e crimes, pode ser interessante para mim? — fez aquele olhar, onde fechava um pouco os olhos, como se estivesse arrancando de John seus pensamentos.
Queria que John percebesse, que por si só visse a importância que exercia na vida do outro. Sherlock não queria dizer, porque não saberia o que dizer, e não saber não só o irritava, como o apavorava. Estava sentindo coisas demais.
Eu não posso evitar, franzindo a testa com o pensamento de que tudo acabaria.
Meus sentimentos iriam te assustar?
Eu sentiria muito pelas coisas que eu diria.
John subitamente parecia nervoso, desviando os olhares que rapidamente trocaram.
— Você sabe que não precisa da minha ajuda para isso, resolve casos sem nem mesmo sair de casa.
— John, eu preciso, preciso muito que você me responda, preciso que você saiba.
— Eu juro que se forem panelas...
— Por deus John! — Sherlock se levantou. Parecia que era tão óbvio, ele achava todos os dias deixar claro que aquilo era mais do que um sentimento de amizade. As pessoas não percebiam quando alguém gostava delas? John Watson era uma porta às vezes.
E Sherlock também era.
Ele, que parecia ver através de John não era capaz de ver o óbvio.
— Você fica sem dormir e quem tem que entender seu raciocínio sou eu? Diga logo o que é.
Hm.
Talvez, talvez não fosse o fim do mundo. John era adulto, um homem capaz de lidar com a informação. Porém Sherlock também era adulto e não sabia lidar com a situação, mesmo depois de anos morando juntos, anos e anos confiando sua vida nas mãos de John.
Oras.
Estava decidido: Sherlock precisava ser exato. Sem falhas.
— Eu vou dizer — andava pelo cômodo em aflição, apontou para John, como se buscasse o apoio para o pronunciamento.
Mas e se não acabar bem?
Você ainda ficaria?
E se eu estragar tudo como sempre faço?
— Sou todo ouvidos, diga — John o direcionou um daqueles doces sorrisos atenciosos. Por deus, era ridiculamente óbvio como naquele momento Sherlock era seu único foco. Atencioso. John era capaz de tudo se Sherlock precisasse dele. Moveria montanhas, mataria, e nunca, nunca o abandonaria.
Era tudo isso que ele dizia com um simples momento em que parava e prestava atenção às coisas que Sherlock dizia.
— Você.
— Eu o quê?
Sherlock respirou fundo. Droga, era difícil mesmo dizer.
— É mais importante, mais do que qualquer caso poderia ser.
John franziu as sobrancelhas confuso. Reação esperada porém não bem-vinda.
— Você... — falou com os olhos fechados, digerindo a informação — me acha importante?
— Sim.
— Eu também te ach..
— Não apenas como amigo, John — ali estava o Sherlock que dizia o que queria, tomando (um pouco) o controle de suas palavras — Eu gosto de você. Talvez eu sempre soube, desde o primeiro dia, e por conveniência tentei ignorar.
— Oh.
Então era isso, Sherlock havia finalemnte adimitod em voz alta. John finalemnte sabua.
— Antes que você diga algo, saiba que não sei como aconteceu — Sherlock andava ainda mais aflito, gesticulando de forma exagerada — Um dia eu estava procurando um lugar pra morar e no outro você estava me acompanhando aonde quer que eu fosse. E agora o simples pensamento de um dia não te ter aqui... Eu tenho medo, John.
— Sherlock..
— Estou com medo, e entendo se você não se sentir assim, mas achei que não teria problema falar, podemos lidar com isso sem que signifique um fim, certo? Por favor diga que sim, porque eu já me sinto um idiota.
Sherlock sentia a vontade de desmaiar a qualquer momento. O arrependimento de ter feito algo errado pesava mundos em suas costas.
— Sherlock por favor me deixa falar — Johh se levantou, indo até o amigo e o segurando pelo braços, o mantendo parado numa tentantiva de fazê-lo ficar quieto e ouvir — Não minta pra mim.
— Eu nunca mentiria pra você... De novo.
— Certeza? — John levantou uma sobrancelha.
— Okay, talvez sim, mas nunca sobre isso! Porque eu faria algo assim?
John riu, Sherlock ficava irritado quando não acreditavam nele, o mentiroso.
— Certo, senhor sabe tudo — ele soltou os braços do outro — Então acho que somos dois idiotas, porque eu também gosto de você.
— Gosta de mim? — quantas coisas um ser humano poderia sentir ao mesmo tempo, por culpa de uma mesma pessoa?
John assentiu, se aproximando.
— Não foi um processo fácil, conseguir admitir pra mim. Você sabe, toda aquela coisa de "Não sou gay" — eram quase cópias nessa questão: expressar em palavras levou anos, John precisou de muito tempo para entender que aquilo não era uma amizade. E depois que entendeu, a estabilidade era melhor do que a rejeição, mesmo que doesse um pouco, Sherlock estava sempre ali, ainda que não fossem um casal, estavam lado a lado, nos piores e melhores momentos — Quando eu te disse que estava tudo bem se você tivesse namorado, acho que estava inconscientemente vendo se eu tinha chance.
— Ou concorrência.
John riu.
— E então? Eu tenho?
— Claro que sim, você sabe que muitas pessoas acabam não resistindo a Sherlock Holmes. Por outro lado isso também parece atrair pessoas que realmente me odeiam.
John revirou os olhos
— Chance, Sherlock.
E se não acabar bem?
Ainda estaríamos bem?
Quando o mundo acabar e nós afundarmos, você ainda seria meu?
— Eu só quero te ver bem e não sei se sou a pessoa qualificada pra isso.
— Você é. Nós vamos fazer isso funcionar, juntos.
Naquele momento Sherlock parou para apenas admirar o rosto de John, ele estava calmo, mas parecia com sono. Acariciou a bochecha do outro, observando ele fechar os olhos com o contato.
Podemos conversar por dias.
Sobre como nós previmos isso.
Outro sinal escrito no meu rosto.
Mesmo que nunca tivessem tido tal forma de aproximação, momentos não faltaram para que existesse confiança ali. Haviam criado laços desde o primeiro dia em que se conheceram.
Estavam abraçados, no meio da sala, e se a senhora Hudson chegasse naquele momento não haveria explicação para o que acontecia além da verdade.
Eles se aproximaram, deixando um beijo simples unir os lábios por alguns segundos preciosos, inesquecíveis segundos. Estavam implorando pela sensação de ter um ao outro daquele jeito. Lentamente se separaram, John abraçou Sherlock, aproveitando aquele momento. Ele retribuiu, finalmente sentindo o que era abraçar seu John.
— Juntos — Sherlock disse, resumindo tudo que passava em sua sua mente numa única palavra. John não viu o sorriso que o detetive tinha nos lábios, ainda processando a ideia sendo dita em voz alta.
— Como sempre deve ser — repetiu em confirmação.
Parece que você sempre me conheceu
E estou tão orgulhoso de chamá-lo de meu.
Sherlock poderia ter uma boa noite de sono.
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