Eu já tinha escrito e apagado umas oitenta ou cem vezes, talvez. Já tinha digitado no mínimo uns dez textos quilométricos, até decidir que enviar um texto talvez significasse desespero demais. Só esse tempo de digitação – que, no final, me foi em vão – havia me tomado duas ou três horas.
Frustrado em não conseguir escrever nada que eu julgasse bom o bastante, quase mandei um áudio. Mas o descartei quando minha voz se tornara afobada e minhas palavras confusas e, então, eu percebi que estava praticamente me declarando ali.
Eu já havia circulado pela casa inteira, por todos os cômodos, de cima a baixo e de baixo a cima. Eu andei tanto que não duvidaria de olhar pra trás e encontrar buracos no lugar de minhas pegadas, isso se eu tivesse tirado a atenção do celular para checar por um segundo.
Minha mãe estava no trabalho, então eu tinha passe livre para surtar.
Quando eu já prestes a soltar um berro de ódio e tacar o celular na parede, respirei fundo. Respirei bem fundo. E cheguei a conclusão de que, se eu não deixasse de ficar encarando o chat aberto de Kacchan por horas a fio daquele jeito, eu definitivamente cederia a tentação de quebrar a janela e rasgar o pulso com um dos cacos de vidro.
Joguei o celular no sofá com força e marchei até a cozinha. Abri a geladeira na força do ódio e mirei direto na garrafa de pepsi, porém, quando eu estava prestes a pegá-la, meus olhos deslizaram para a latinha de cerveja favorita da minha mãe, posicionada estrategicamente mais ao fundo.
Sentei na bancada com a lata em mãos e me pus a beber, a ardência em minha garganta me causando um alívio ilusório, enquanto eu divagava sobre que porra bateu em mim para que eu tivesse pensado que estava tudo bem em beijar a boca do meu melhor amigo. Meu único amigo. E hétero.
Eu nunca fui do tipo de agir por impulso. Em todo esse tempo em que estive com ele, nunca deixei a emoção subir à cabeça.
Se bem que...
Depois que Uraraka apareceu, tudo ficou diferente.
Eu não sou mais o mesmo Izuku de antes. E não sei se é de um jeito bom ou ruim.
Eu deveria saber que não aguentaria para sempre. Deveria saber que esconder esse sentimento nunca seria uma tarefa fácil.
Fui ingênuo em acreditar que podia lidar com isso.
Uma hora ou outra, certamente eu iria falhar.
Como falhei agora.
A lembrança dos seus olhos arregalados e da boca entreaberta, numa expressão de completo e puro choque em minha direção, me fizeram mandar todo o resto de cerveja para dentro do meu organismo em um único gole.
E o último resquício de claridade já havia abandonado os céus quando peguei o meu celular de volta e, sem pensar muito, afundei no sofá da sala e comecei a lhe mandar mensagens uma atrás da outra – porque eu sabia que, se eu pensasse demais, acabaria desistindo.
[Izuku]: Desculpa por hoje
[Izuku]: Eu não sei oq deu em mim
[Izuku]: Não sei nem oq te dizer, sinceramente
[Izuku]: Acho que eu só tô muito carente, sla... e você tava me falando coisas tão bonitas...
[Izuku]: Bateu a emoção e eu agi por impulso, desculpa
[Izuku]: Demorei p mandar msg pq eu tava ate agr tentando assimilar oq aconteceu
[Izuku]: E tb porque tô com muita vergonha
[Izuku]: Desculpa
Kacchan visualizou imediatamente.
E, quando o digitando apareceu debaixo do contato dele, eu simplesmente entrei em pânico e joguei o celular longe no estofado, enterrando o rosto em minhas mãos.
Respira fundo, Izuku. Respira fundo.
A merda já tá feita.
Agora, só reze para que ele engula esse teu papinho furado.
A ansiedade transbordava em forma de suor pelos meus poros.
Não demorou quase nada para várias notificações, uma atrás da outra, ecoarem pela sala e dentro de mim. No mesmo instante eu me lancei em cima do meu celular, quase deixando-o cair no chão ao desastradamente tentar segurá-lo de volta.
Minhas mãos tremiam.
Para ele ter respondido tão rápido, talvez ele estivesse todo esse tempo esperando que eu dissesse algo?
Talvez ele estivesse todo esse tempo pensando no que dizer...
Talvez ele estivesse todo esse tempo pensando em como não quebrar meu coração.
E eu só não queria desbloquear a tela e encontrar uma mensagem dele dizendo que seria melhor nos afastarmos um do outro.
Mas não sabia se era pior receber isso ou a sua pena.
[Kacchan]: tudo bem
[Kacchan]: ta tudo bem, serio
[Kacchan]: vdd q eu fiquei surpreso na hr, n vo mentir pra vc
[Kacchan]: acho q quem deve se desculpar sou eu, eu tive uma reação MT de hetero top ne? Kkkkkkk
[Kacchan]: mas meio q ser beijado de surpresa n tava no roteirok
[Kacchan]: eu entendo, serio... eu sei q vc ta passando por um momento difícil
[Kacchan]: eu acho q eu devia ter te mandado msg primeiro, te ligado, sla... mas eu meio q ainda tava processando oq aconteceu tb, e sla, achei melhor te dar um espaço
[Kacchan]: n precisa ficar com vergonha, relaxa
[Kacchan]: sou só eu
É exatamente por isso, Kacchan.
Porque é você.
[Kacchan]: e n eh como se eu tivesse ficado traumatizado sabe???
[Kacchan]: tua boca ate q eh macia k
Ok, Katsuki.
Eu definitivamente não estou saudável mentalmente para brincadeirinhas desse tipo.
Sei que ele quis descontrair com aquela piadinha, mas meu coração não entendia isso da mesma forma que meu cérebro.
Abafei um berro com a almofada jogada ao meu lado antes de pegar o celular com meus dedos trêmulos novamente, tornando a encarar aquele chat aberto enquanto pensava em como diabos eu deveria responder.
Independente do quão tranquilo ele tenha parecido nas mensagens, eu ainda estava temeroso de que ele só estivesse sendo gentil e, na verdade, já tivesse sacado tudo. Talvez ele estivesse com pena, não queria me rejeitar devidamente porque sabia que eu estava passando por um momento ruim e talvez pensasse que eu não encararia sua sinceridade de uma forma muito boa. E se ele estivesse se sentindo desconfortável? Por favor, tudo menos isso.
Por isso, engolindo em seco, eu não pensei duas vezes antes de mandar:
[Izuku]: Que bom q vc tá levando tudo isso numa boa, eu realmente agi totalmente por impulso
[Izuku]: Não significou nada pra mim
[Izuku]: Você sabe que eu nunca teria feito isso se eu estivesse com a cabeça no lugar
[Izuku]: Você é o meu melhor amigo
E, apertando os lábios, eu não sabia se tinha soado convincente o suficiente.
Então, como um último ato desesperado, finalizei com:
[Izuku]: E você também é como um irmão pra mim
Meu Deus, quanta mentira.
Tive que bloquear o celular por um segundo e respirar um pouco para digerir toda a vergonha que eu estava sentindo de mim mesmo ao reler aquelas minhas últimas mensagens. Não me orgulhava de estar me escondendo atrás de mentiras daquela forma, agindo como um covarde.
Mas o que eu poderia fazer? Não tenho muitas alternativas.
Talvez eu só... devesse contar a ele toda a verdade.
Mas, conhecendo-o do jeito que eu conheço, ele pode até não me falar, mas isso o deixará desconfortável. Com certeza ele ficará desconfortável, não por eu gostar dele, mas porque não poderíamos mais ser os mesmos amigos de antes. Eu nem poderia culpá-lo, qualquer um se sentiria assim no lugar dele, ainda mais nós sendo tão amigos. Ele não se sentiria mais tão à vontade perto de mim, porque evitaria falar sobre a Uraraka ou estar com ela – de forma mais íntima – perto de mim, sem falar que ele não se sentiria mais confortável para fazer brincadeiras como a que ele fez agora, sobre a minha boca ser... macia – coisa que eu aposto que ele não notou de verdade, porque o beijo foi muito rápido e ele estava confuso e chocado demais para pensar em outra coisa –, porque ele saberia que isso me afetaria.
Então, por que eu daria um tiro no meu próprio pé dessa forma?
Quando peguei o celular e o desbloqueei de novo, Kacchan ainda não tinha respondido. Mas estava online.
Digitava e parava, digitava e parava. Talvez cinco minutos tenham se passado assim, cinco minutos que pareceram durar horas para mim.
Eu já estava roendo as unhas, esperando pelo texto que com certeza viria, porém...
[Kacchan]: eu sei q n significou
[Kacchan]: n precisa se explicar pra mim
[Kacchan]: se eu disse q ta tudo bem, ent eh pq ta tudo bem
[Kacchan]: eu jamais me incomodaria com algo tao idiota quanto um selinho
[Kacchan]: n significou nada pra mim tb
O meu objetivo era não dar um tiro no meu próprio pé.
E, sem perceber, eu entreguei a arma a ele e deixei que ele mesmo me desse o tiro.
Aquilo seria o máximo de resposta aos meus sentimentos que um dia eu teria.
Sem saber, ele me deu sua resposta.
Foi o suficiente.
Por mais que eu já soubesse, é engraçado se dar conta de como não nos convencemos totalmente até que a pessoa nos rejeite devidamente. Em alguns casos, algumas pessoas continuam acreditando que há esperança, mesmo depois de serem rejeitadas – porque o amor é traiçoeiro e incontrolável. É como se um lado nosso sempre acreditasse que há uma possibilidade, mesmo que racionalmente saibamos que não. Porque é o que nosso coração deseja, então ele agarra qualquer migalha, na esperança de se tornar algo inteiro.
Com o maxilar travado, tentando segurar o choro que queimava na garganta, digitei preguiçosamente:
[Izuku]: Que bom
[Izuku]: Agora você já sabe que não pode sair por aí sendo tão legal, toma cuidado hein, senão vão acabar te roubando mil beijos >.<
A mensagem brincalhona não condizia em nada com as lágrimas silenciosas que escorriam pelas minhas bochechas frias.
[Kacchan]: vou me lembrar disso k
E a conversa morreu aí. Eu não quis render o assunto e, pelo visto, ele também não.
Desliguei o celular e o deixei sobre a mesinha de centro diante de mim. Fiquei encarando o nada por longos minutos e, em algum momento, acabei deitando no sofá, fitando o teto por provavelmente longos minutos também.
Acabei caindo no sono e, quando acordei, tinha um travesseiro sob minha cabeça e cobertores em cima de mim, o que significava que minha mãe já tinha chegado do trabalho.
Já devia ser tarde da noite e ela com certeza deveria estar no sétimo sono depois de um dia cheio de trabalho.
Mas eu, como um filho mimado que acha que uma desilusão amorosa é o auge dos problemas da vida, me levantei e, enroscado em meio aos cobertores, caminhei em passos vagarosos e sonolentos até o quarto dela.
Abri a porta e, tendo um sono leve que qualquer mãe tem — porque, depois que os filhos nascem, o estado de alerta 24h é ativado e, se fosse possível, elas com certeza dormiriam de olhos abertos —, ela acordou assustada, olhando ao redor até se dar conta de que era só eu. Acendeu o abajur sobre a mesinha de cabeceira, me encarando com os olhos verdes preocupados. Ela sabia que havia algo de estranho comigo, porque as mães simplesmente sabem. Elas sempre sabem.
E, quando ela me perguntou se estava tudo bem, eu abri um sorriso pequeno, não me importando em cessar a lágrima solitária que findava seu caminho até o meu queixo.
— Eu amo o Katsuki, mãe. E eu não sei se posso lidar com isso mais.
Ela sorriu para mim e seus ombros relaxaram. Aquele sorriso simples, sem mostrar os dentes. Um sorriso carinhoso, um sorriso de compreensão. O tipo de sorriso que toda mãe sabe que vai dar para o seu filho em algum momento da vida. O sorriso que dizia eu sabia que essa hora ia chegar, meu querido, e sei que parece o fim do mundo, mas vai ficar tudo bem.
E talvez ela já estivesse esperando para me dar esse sorriso há muito tempo.
Ela abriu os braços e aquilo foi o suficiente. Eu não queria palavras de conforto, e ela sabia que não era disso que eu precisava.
Eu só precisava dormir agarrado ao seu pequeno corpo gordinho, escutando as batidas calmas do seu coração e sentindo seu peito subindo e descendo devagar, sua respiração relaxada ressonando perto no meu ouvido.
E foi assim que passamos a noite.
Ela cantarolava uma música de ninar baixinho para mim, esperando que eu adormecesse, mas foi ela quem adormeceu primeiro.
Eu não posso dizer que não chorei baixinho enquanto seus braços me envolviam, e nem que o mundo lá fora não existia mais.
Mas posso dizer que dormi bem como há tempos não dormia.
Tão bem que, se eu não acordasse mais, talvez não fosse tão ruim assim.
~*~*~*~
Katsuki
[Izu(de)ku]: Que bom q vc ta levando tudo isso numa boa, eu realmente agi totalmente por impulso
[Izu(de)ku]: Não significou nada pra mim
[Izu(de)ku]: Você sabe que eu nunca teria feito isso se eu estivesse com a cabeça no lugar
[Izu(de)ku]: Você é o meu melhor amigo
[Izu(de)ku]: E você também é como um irmão pra mim
Qual é o oposto de alívio?
Porque eu fiquei encarando o chat aberto em meu celular, relendo e relendo aquelas mensagens várias vezes, tentando entender por que eu me sentia exatamente como esse oposto que, mesmo que eu tentasse, eu não conseguia descobrir qual é.
E, do mesmo jeito que eu não sabia qual palavra define bem esse sentimento, eu também não entendia por que eu sentia o que eu sentia. Era só... estranho.
E irritante.
Pela primeira vez, eu não soube o que responder. Eu me sentia ridículo a cada coisa que eu digitava e sempre terminava apagando. Por que de repente isso ficou tão difícil? Eu nunca pensei muito antes de mandar nada.
Será que, sei lá, inconscientemente as palavras dele feriram um pouco o meu “””ego””” ou alguma porra dessa?
Não, não. Quê? Claro que não, porra. Não sou o tipo de hétero babaca que acha que é alvo de desejo de todos os gays. Até porque, tipo, por que o Izuku me veria mais do que como amigo? Eu... sei lá, ele curte exposições de arte, ele pinta, e eu só sou um típico atleta do ensino médio, claro que eu não faço o tipo dele.
E por que caralhos eu tô pensando nisso?!
Eu deveria ficar feliz, não é? Ele disse que eu sou o melhor amigo dele, que me vê como um irmão. Isso é bom. Isso é ótimo! Eu também o vejo da mesma forma, eu já até falei isso pra ele.
Então por que ler aquilo foi só irritante pra caralho?
Depois de um tempo tentando escrever alguma coisa, eu notei o quanto estúpida aquela situação era. Por que eu tava enrolando tanto pra enviar uma porra de uma resposta? Não fazia sentido. Por isso, puto comigo mesmo e com todos aqueles pensamentos sem sentido me socando, fui digitando rápido e mandando pra ele, sem pensar muito. Eu gostaria de poder dizer que o que eu falei foi com a única e pura intenção de confortá-lo, para que ele soubesse que está tudo bem entre nós dois, mas, de algum jeito que eu não entendia, lá no fundo, eu senti uma vontade esquisita de alfinetá-lo de volta (?), como se isso fizesse algum caralho de sentido.
Ele só disse que me vê como um irmão, o que é até bem fofo da parte dele e significa que nossa amizade é tão importante pra ele quanto é pra mim, mas então por que eu sentia esse embrulho no estômago?
E eu me irritei mais ainda depois que ele respondeu de qualquer jeito, até fazendo uma brincadeira.
[Bakugou]: vou me lembrar disso k
Bloqueei a tela. Normalmente, eu teria feito uma brincadeira à altura, mas sei lá o que me deu, eu só não queria mais ficar olhando o chat dele e relendo as últimas mensagens daquela conversa, era irritante demais.
Bufando, deixei o celular em cima da mesa, virando-o pra baixo pra não ter que ver caso chegasse qualquer notificação nova – eu sempre deixo no silencioso também. Peguei o hambúrguer que eu tinha deixado de lado quando Izuku me mandou mensagem, voltando a comer enquanto aquela conversa – que ainda bem que foi online, eu não sou muito bom em disfarçar as coisas pessoalmente – se repetia na minha cabeça.
A minha expressão congestionava mais com o passar dos segundos ao mesmo tempo em que aquelas palavras me dominavam.
Eu agi totalmente por impulso. Não significou nada pra mim. Você sabe que eu nunca teria feito isso se eu estivesse com a cabeça no lugar. Você é o meu melhor amigo. E você também é como um irmão pra mim.
Mordi o hambúrguer tão forte que senti os meus dentes de cima batendo nos de baixo. Grunhi de dor, puto.
Mas por que caralhos ler tudo isso foi tão, mas tão irritante?!
A campainha tocou e eu franzi o cenho. Meus pais tinham saído em um encontro – por mais que eles se recusassem a chamar assim, diziam que era um termo adolescente demais –, será que esqueceram de alguma coisa e voltaram? Estranho, eles normalmente me ligariam avisando, dizendo para eu prestar atenção na porta e tal.
Gritei um já vai e me apressei para terminar o lanche logo. Quando a campainha tocou mais três vezes seguidas, arrastei a cadeira para trás com força, levantando enquanto mastigava rápido o último pedaço.
— Já vai, caralho! — Disse de boca cheia, logo a limpando com a mão depois de engolir de uma vez. — Esqueceu o cu dessa vez, velha? — Andei rápido até a porta e a abri sem pensar duas vezes. — Vou começar a cobrar por iss—
— Kat!
Que porra?
Arregalei levemente os olhos. Ela tinha aquele sorriso largo de sempre e me roubou um selinho ao passar por mim, entrando na minha casa como se estivesse acostumada a fazer isso todo dia.
O que ela veio fazer aqui?
— Seus pais não estão, né? Eu sei que não, você falou algo sobre eles terem saído juntos. — Riu. — Trouxe alguns doces e outras besteiras pra gente. — E, a partir daí, ela começou a falar um monte de coisa que eu não entendi, mas dava pra notar que ela tava bem animada.
Fechei a porta devagar, ainda meio sem reação com aquela chegada repentina dela. Me virei e a vi seguir alegre até a cozinha, quase saltitando. Eu já tinha a trazido pra cá uma vez, mas geralmente nos encontrávamos na casa dela, porque ela só morava com o pai e ele quase nunca estava em casa.
Fechei os olhos por um segundo e suspirei, ainda parado na frente da porta.
Mas que saco.
Quando cheguei na cozinha, depois de andar preguiçosamente até lá, Uraraka já tava tirando a comida de dentro das sacolas e organizando tudo em cima da mesa.
Ver que ela tinha preparado tudo aquilo, e ainda tava toda animada...
Me fazia sentir mal.
— Lançou um filme novo na Netflix que eu quero muito ver, espero que você goste de filmes de terror, eu tô ansiosa pra estréia dele desde o início do an—
— Foi mal, mas...
Ela imediatamente parou com o que fazia, levantando o olhar para mim.
Como eu vou dizer pra ela que não tô a fim de nada disso?
Pior, como eu vou dizer que quero ficar sozinho, sem que ela fique chateada?
— O quê? Você não gosta de terror? — Ela arregalou os olhos. — Ah, tudo bem... o que você quer ver, então? Ação? Você me parece o tipo de pessoa que curte filmes de luta. Eu gosto de tudo, pode escolher. Ou prefere uma série? —Riu e, como de costume, colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha, sorrindo lindamente para mim.
Olhar para ela, agora, era estranho.
Ela tinha essa mania. Ela costumava pegar uma mecha que caía na frente do rosto e a ajeitava delicadamente atrás da orelha.
Esse gesto, que antes era tão fofo e bonito para mim, agora não me causava nada.
E perceber isso me deixou confuso.
Na verdade, pensando bem...
Faz algum tempo que olhar pra ela não me causa nada.
— Olha, eu sei que eu disse que eu ia pra casa do Deku e depois te falei que acabei não indo... mas, bem... — Cocei a nuca com a mão, sem jeito. A garota me encarava com expectativa e eu simplesmente odiaria quebrá-la. — Eu não quis dizer que... bem, não foi um convite, sabe? — Ela arregalou os olhos e eu senti vontade de socar a minha cara. Bufei, desviando o olhar. Caralho, esse era o meu medo, eu sabia que eu acabaria sendo muito grosso mesmo sem a intenção, eu não sei medir as palavras quando algo me incomoda e não consigo ser muito delicado, mas eu definitivamente não queria magoá-la. — Olha, desculpa. Não entenda mal, é só que... não tô com cabeça pra nada hoje. O dia foi meio cheio, você sabe.
Estática, ela permaneceu me encarando, as mãos paralisadas dentro da sacola.
Até que ela soltou uma risada nasal, nitidamente envergonhada, enquanto deixava de me olhar para encarar as embalagens já abertas sobre a mesa.
Ela é uma garota muito legal e eu tava me odiando por ter que fazer aquilo, mas eu não conseguiria simplesmente ignorar o que eu realmente queria e passar a noite com ela como se eu estivesse ok com isso.
Não é nada com ela. Eu só não tô no clima, hoje o dia foi estressante pra caralho, eu ainda tô preocupado com o Izuku e eu só... tipo...
Não é nada com ela, né?
Isso é confuso. Confuso pra caralho. Há uma semana, eu tinha certeza que a queria como minha namorada. Já tava até planejando o pedido, eu iria fazer no final do campeonato estadual daqui a umas semanas, a levaria para algum lugar quieto e vazio depois do jogo, um que desse pra ver as luzes da cidade ou algo assim...
E, agora, eu...
Simplesmente não me vejo mais fazendo nada disso.
Não sei mais o que pensar. Talvez eu só esteja com a cabeça muito pesada pelos últimos dias, tudo foi muito exaustivo e, somando com tudo que rolou hoje, puta merda...
Talvez não tenha nada a ver com ela. Eu só não tô conseguindo pensar direito, devo estar confundindo as coisas.
— Ah, eu sei... hoje foi um dia muito ruim mesmo. — Ela sorriu leve, sem mostrar os dentes. — Desculpa por ter aparecido assim, do nada. Eu sabia que você não tava se sentindo muito bem, então pensei que seria bom te fazer companhia, sabe? Queria te distrair um pouco—
— Eu tô bem. E você perguntou pro Izuku como ele tá? Acho que ele tá precisando mais disso do que eu.
As palavras acabaram saindo com uma irritação que eu não calculei.
Em seu olhar, pude ver o quanto aquilo a atingiu. De olhos arregalados, ela levou a mão ao peito como se eu tivesse a insultado, soltando um riso nasal desacreditado.
— C-claro que eu falei com ele.
O clima pesou. Ela me encarava como se eu estivesse sendo horrível e eu não me sentia muito diferente disso, mas eu só percebi o quão rude as minhas palavras tinham sido depois que eu as falei.
Bem, mas também não é como se eu pudesse tirar toda a minha culpa, dizendo que não tive a intenção.
Porque, lá no fundo, eu realmente não tava muito a fim de ser paciente.
— Então... — Ela abraçou o próprio corpo, me encarando com aqueles olhos enormes e brilhantes. Engoli em seco. — Você tá dizendo que quer que eu vá embora?
Os segundos, em silêncio, se passaram arrastados.
Mordi os lábios, sem jeito.
E eu não precisei dizer nada para que ela entendesse.
Envergonhada, ela começou a, devagar, guardar as coisas. Desviei o olhar, coçando a nuca com a mão, sem saber como lidar com aquele silêncio constrangedor.
A risada nasalada que ela soltou chamou a minha atenção de novo.
— Tô tão envergonhada...
Quando eu estava prestes a amenizar a situação dizendo que poderíamos sair outro dia, ela completou com:
— Você estava pronto pra ir pra casa do Izuku sem pensar duas vezes, mas eu venho pra sua casa com um monte de comida e isso parece um martírio pra você.
Franzi o cenho, o ar de repente se tornando pesado ao nosso redor.
Hã?
O que uma coisa tem a ver com outra?
— Não sei se você lembra do que aconteceu hoje, mas o Izuku—
— Izuku isso, Izuku aquilo. — Parou de guardar as coisas para me encarar. Era a primeira vez que eu via um semblante como aquele em seu rosto sempre tão feliz. — Você só fala disso agora, já reparou?
Soltei um riso, não acreditando no que ela dizia.
— Estamos vivendo em mundos diferentes? Por acaso cê viu a mesma coisa que eu vi hoje? O moleque sofreu pra caralho, não acha que cê tá sendo um pouco insensí—
— Não tô falando de hoje, é isso que você não entende! — Gritou, jogando as coisas pro alto e fazendo alguns doces voarem para todos os lados. Arregalei os olhos. — Sabe, é muito cansativo escutar as pessoas sempre insinuando que vocês dois têm alguma coisa, ou fazendo piadas sobre vocês estarem juntos. Mesmo que tudo isso seja mentira, é simplesmente frustrante estar com alguém que parece se importar mais com o amigo do que com a própria namorada, você tem alguma ideia de como isso me faz sentir?! — Apontou para si mesma, seus olhos me encarando fixamente como se procurassem por algum sentimento nos meus próprios. — Todos sempre falam de Katsuki e Izuku e não de Katsuki e Uraraka e eu tô absolutamente cansada disso—
— Estamos namorando? — Cruzei os braços, franzindo o cenho. — Acho que você só esqueceu de me contar.
Ela arregalou os lábios.
O silêncio durou alguns segundos, e ela me olhava como se estivesse digerindo o que eu falei.
E eu não me arrependia nenhum pouco.
Na verdade, eu estava me controlando pra não falar mais.
Não posso dizer que ela tá errada em se sentir como se sente. Eu até entenderia e ouviria com mais atenção se ela tivesse falado tudo aquilo de outra forma.
Mas o erro dela foi ter botado o Izuku no meio.
O discurso dela me fez lembrar de um muito similar que ele próprio havia feito há algum tempo.
A diferença é que eu senti uma vontade quase desesperada de tentar prová-lo o contrário. De abraçá-lo e pedir desculpas. De dizer que eu nunca mais o faria se sentir daquela forma.
Mas ela...
Eu acho que não me importo com o que ela pensa sobre isso.
O rosto triste dela não me comove.
E perceber isso me fez questionar o que eu realmente sinto por ela.
— O que eu sou pra você, Katsuki? — Ela começou a se aproximar em passos calmos – e, ao meu ver, temerosos –, os braços largados do lado do corpo. — Você... — Mordeu o lábio inferior, apreensiva, tombando um pouco a cabeça pro lado. — Você não gosta de mim?
Aquela pergunta me atingiu em cheio.
Respirei fundo, fugindo do seu olhar decepcionado ao me desviar do seu caminho, passando por ela e indo até onde ela estava antes. Comecei a juntar suas coisas, guardando e arrumando tudo rapidamente.
Eu sinceramente não sei te responder, Uraraka. E desculpa, você não merece passar por isso.
Há alguns dias, eu provavelmente não hesitaria em te responder que sim.
Mas, agora, a única coisa que eu sei, é que quero que você saia da minha casa.
— Olha, você só me pegou num dia péssimo, ok? — Eu resmungava enquanto encarava minhas mãos que guardavam toda aquela comida, me sentindo péssimo por ver tudo o que ela tinha preparado e, principalmente, me sentindo um covarde por fugir daquela conversa e dos seus olhos decepcionados, mas eu simplesmente não posso responder coisas que eu não sei. E eu odeio não saber. Mas não posso tomar uma decisão precipitada e me arrepender depois. Ela é uma garota incrível, eu só... sei lá, o dia foi horrível e isso deve ter mexido muito com minha cabeça. Eu tinha tanta certeza do que eu queria, não é possível que isso tenha mudado de um dia pro outro. Isso me faz parecer superficial e eu odeio me sentir assim, porque me sinto nojento como todos naquela escola. — Eu não tô com cabeça pra discutir essas coisas agora, Uraraka. Só quero ficar na minha. Desculpa. — Peguei o meu celular na mesa depois de guardar todas as coisas dela. — Vou te pagar um Uber pra casa.
— Você nunca teria coragem de falar assim com ele, né? — Levantei a cabeça para encará-la, arregalando os olhos ao vê-la... chorando? — Sabe o que mais dói? Você diz que quer ficar sozinho, mas eu sei que, se ele te ligasse agora e pedisse pra você ir até ele, você iria.
— Você tá se escutando? — Semicerrei os olhos, confuso com o rumo daquela conversa. — Claro que eu iria. Eu só não fui hoje porque... — Engoli em seco ao lembrar do beijo – se é que eu poderia chamar assim, foi um encostar de lábios que mal tive tempo de processar. Desviei o olhar, coçando a nuca com a mão livre. Suspirei. Meu estômago revirava sempre eu pensava naquilo, mas eu não sabia o que isso significava ou se tinha que significar algo. Acho que nunca me senti tão confuso quanto me sinto agora, é uma confusão tão grande sobre tantas coisas que me sinto perdido. Eu não sei mais o que pensar e é a primeira vez que isso acontece comigo. É horrível sentir como se meu corpo não fosse mais controlado por mim, como se eu mesmo não soubesse o que eu quero, como se eu não me conhecesse. Me sinto sem respostas e essa é uma sensação que eu odeio pra caralho, porque odeio não saber. A Uraraka provavelmente pensa que eu tô tentando enrolar ela e odeio causar essa impressão a ela, porque a última coisa que eu quero é machucá-la. Balancei a cabeça pra afastar esses pensamentos irritantes. — Porque, enfim, eu senti que não devia. Mas ele tá passando por um momento escroto pra caralho, entenda disso. Então, se ele precisasse de mim, eu com certeza iria—
— Você iria, independente se ele estivesse mal ou não. — Ela me interrompeu com suas palavras calmas, ainda que uma lágrima ou outra ainda rolasse. Mudei meu foco para a mesa diante de mim, era mais fácil do que encarar seus olhos tristes. Eu odeio quando as pessoas choram perto de mim, porque eu nunca sei o que fazer.
Mas, todas as vezes que o Izuku chorou, eu sempre soube o que fazer.
Eu não só sabia o que fazer, como também queria fazer.
Apertei os lábios.
— Uraraka, por favor, para de chorar... — Murmurei, sem saber como lidar com aquela situação. Parecia que eu estava a rejeitando e definitivamente não era o que estava acontecendo, mas eu me sentia um monstro. Só queria que ela fosse um pouquinho mais compreensiva.
Ela tá realmente irritada por eu me preocupar com meu melhor amigo, que tá passando por um momento difícil e que só tem a mim como amigo?
Não me parece justo.
— Você nem consegue olhar pra mim.
Bufei, arrastando a mão pelo rosto, cansado.
— Eu já disse, eu só tô com a cabeça cheia pra caralho, não vou conseguir conversar com você da forma que você quer que eu—
— Você diz que iria até o Izuku se ele estivesse mal, mas eu tô aqui, na sua frente, chorando, e você nem consegue olhar pra mim.
Meu peito apertou e eu a encarei.
Você gosta dele.
As palavras de Kirishima tomaram forma diante dos meus olhos. Eu não liguei muito quando ele falou isso, porque, para mim, era só mais uma provocação e não levei a sério.
Mas, agora, Uraraka parecia estar me dizendo a mesma coisa.
— Por que tá se comparando com ele? Isso não faz nem senti—
— Porque ele é a única coisa que me atrapalha de te ter só pra mim, será que você é tão burro que não percebe isso?!
Uraraka se arrependeu no mesmo momento em que falou.
Ela secou os olhos rapidamente e se aproximou para pegar as sacolas. Eu apenas continuei a encarando, sem entender de onde vinha aquele ressentimento todo. Não faz sentido para mim, porque ela é a garota que eu tô ficando, e ele é só o meu melhor amigo. Por que ela tá agindo como se fosse a mesma coisa? Como se o Izuku fosse um problema...?
Isso me irritou.
Eu sou a única pessoa que ele tem – além da família, claro –, e me irrita que ela esteja sendo tão egoísta sobre isso. Como se me pedisse para me afastar dele.
Talvez ela tivesse até razão em se sentir mal e, se eu estivesse de cabeça fria, provavelmente analisaria tudo o que ela falou com mais calma, mas, no momento, eu só consigo me botar no lugar do Izuku e sentir raiva.
— Não faça isso.
— O quê? — Ela arqueou a sobrancelha.
— Não me peça pra escolher entre você e ele. — Não hesitei em dizer seriamente, o cenho fortemente franzido enquanto a fitava, sem piscar. — Você não vai gostar da resposta.
O ar fugiu dos seus pulmões, como um soldado com uma espada cravada no peito que solta seu último suspiro. Seus olhos brilhantes me encaravam como se procurassem por uma brecha, que não encontrou.
Ela sorriu fraco, seu maxilar tremendo forte.
— Tudo bem. Você já respondeu o suficiente.
E se virou, indo embora com as sacolas em mãos, tão rápida quanto um foguete.
Eu não queria ir atrás dela.
Mas eu não poderia simplesmente deixar uma mulher sair da minha casa tão tarde e fingir que nada tá acontecendo.
Bufei.
Desisti da ideia do Uber, ele ainda demoraria para chegar e ela com certeza não esperaria. Peguei as chaves da minha moto e fui atrás dela, que andava rápido, o farfalhar das sacolas ecoando pela rua vazia.
— Ei. — Chamei, mas ela não deu ouvidos. Apressei o passo e segurei seu pulso. Ela parou de andar por livre e espontânea vontade – já que eu não segurava com força –, ainda que continuasse de costas para mim. — Passa essas sacolas pra cá. Vou te dar uma carona.
Ela riu.
— Acha que depois de tudo o que falei e ouvi, eu vou subir naquela moto com você?
— Olha, não me importa o que cê acha disso. Eu não vou te deixar andar por aí sozinha.
Ela se virou de frente para mim, puxando o próprio braço com força.
— Você não gosta de mim e age assim, por quê? — Apertou os lábios, balançando a cabeça negativamente. — Eu não entendo.
— Eu nunca disse que não gosto de você.
— Mas não disse que gosta. O que você sente, então?
Suspirei, deixando a cabeça tombar para trás por um momento.
Eu realmente não quero ter essa conversa.
— Eu não sei, ok? Eu não sei! — Encarei seus olhos. Aqueles olhos que me deixavam hipnotizado, mas agora... eu poderia facilmente desviar o olhar. — Eu tô confuso. Não dá pra ser mais sincero do que isso.
Ela apertou os lábios numa linha fina.
— Isso é porque eu não transei com você?
Mas que porra?!
— Quê? — De sobrancelhas juntas e olhos arregalados, eu torcia para ter escutado errado. — Cê tá maluca?!
Uraraka engoliu em seco e abaixou a cabeça, trocando o peso de um pé para o outro e provavelmente se dando conta da merda que falou.
Decidi só ignorar. Ela tava só falando coisas sem pensar.
Suspirei.
— Eu não sei o que eu tô sentindo agora. Talvez seja porque esses últimos dias foram ruins pra mim, talvez não. Eu realmente não sei e não posso te dar uma resposta definitiva agora. Não me leve a mal, não quero enrolar você. E me desculpe se fui rude, de verdade, eu não quis te machucar. — Ela continuou de cabeça abaixada, fitando os próprios pés. Escondi as mãos nos bolsos da calça de moletom e encolhi meus ombros. Eu não queria ser o babaca que quebra o coração de alguém. — Me sinto mal de te ver indo embora assim. Sei que você tinha intenções boas quando veio, mas eu não poderia simplesmente fingir que tá tudo bem. E acho que você também não merece alguém que finja. Não é nada pessoal com você, e não significa que eu não gosto da sua companhia ou qualquer coisa do tipo... escuta, só... — Suspirei pesado pela milionésima vez naquela noite, cansado de tudo aquilo. — Conversamos melhor depois, ok?
Uraraka soltou uma risadinha nasal, mas permaneceu sem me encarar.
— Por favor, não venha com esse papo furado de não é nada com você. Você tá estranho comigo e não é de hoje. Espera que eu realmente acredite que você não faz ideia disso? Ou você tá me enrolando ou você tem a inteligência emocional de uma cabra.
Engoli em seco, sem saber o que responder.
Talvez eu tenha a inteligência emocional de uma cabra, então.
Ela me fez perceber que eu não sei o que eu sinto e nem o que quero. Acho que nem ao menos consigo ler bem o sentimento de outras pessoas, só se esfregarem na minha cara. Isso me faz alguém raso? Superficial? Eu sempre me achei perspicaz e atento sobre tudo, mas, agora, eu vejo que não sou nada disso. E eu tô tão confuso... mas, na verdade, essa confusão é só e simplesmente porque eu me dei conta de tudo isso agora. Me dei conta de que não sou o cara que está sempre com tudo sob controle, como eu pensava.
Eu acho que não conheço direito nem a mim mesmo e isso me corrói por dentro.
Apertei os lábios com força, meu estômago embrulhando.
— Mas, agora, você vem e segura meu braço, dizendo que não pode me deixar ir pra casa sozinha. — Tornou a me encarar, seus olhos vermelhos pelo choro que, novamente, ameaçava sair. Merda, merda. Eu não sei o que fazer. Ver a Uraraka chorando me dói, sim.
Mas vê-la chorando automaticamente me faz lembrar de Izuku chorando.
E nada me dói mais do que isso.
Porra, por que agora sou eu quem está comparando os dois?
— Você me deixa confusa. — Riu, o maxilar tremendo. Eu via que ela segurava o choro com força, tentava ao máximo e isso me desmontava, porque era horrível ver uma pessoa chorando por minha causa. — Você me rejeita, mas logo depois age como um príncipe. Eu tento te entender, mas é difícil. Nunca conheci um garoto como você.
Se eu quisesse, eu poderia inverter o jogo e fazê-la rapidamente se sentir bem. Com poucas palavras, eu conseguiria.
Mas eu não quero que ela fique feliz com palavras vazias.
— Eu não tô sendo um príncipe. Eu só não quero entrar em casa sabendo que te deixei andar sozinha numa rua escura e que um filho da puta pode te olhar e pensar que hoje é o dia de sorte dele. Acho que é assim que todos deveriam agir e isso não me faz alguém incrível, apenas normal.
E ela imediatamente respondeu:
— Quem me dera se todos os homens fossem normais como você.
Silêncio.
Era estranho olhar em volta e ver aquela rua, sempre tão movimentada, agora tão vazia.
Parecia como olhar para um reflexo de mim mesmo.
Observando que Uraraka continuava parada e provavelmente não sairia correndo, andei tranquilamente até minha moto estacionada na frente da garagem. Subi nela e dei a partida, dirigindo devagar até parar do lado da garota na calçada.
Ela me olhava como se estivesse em dúvida do que fazer, como se subir naquela moto fosse ferir seu orgulho, mas eu sabia que, se ela realmente fosse ir embora, ela já teria ido.
— Eu vou sozinha, Katsuki... — Ela disse, mas não parecia convencida disso.
Peguei um dos meus capacetes e coloquei gentilmente em sua cabeça, me certificando de prender corretamente a fivela. Enquanto isso, ela apenas me fitava a todo o tempo atentamente, sem ao menos piscar uma vez.
— Então nós não estamos mais juntos? — Perguntou tão baixo que, se a rua não estivesse deserta e consequentemente silenciosa, eu não teria a escutado. Talvez ela tenha perguntado tão baixo por medo da resposta.
— Não é isso, Uraraka. — Esclareci imediatamente. — Eu não disse isso em nenhum momento, só falei que tava confuso e precisava pensar, é você que tá me interpretando errad—
— Eu sou mulher, Katsuki. — Sorriu. Um sorriso triste. — Eu sei quando estou sendo rejeitada.
— Não fala assim. — Levantei da moto – não sem antes abaixar o descanso lateral – e me aproximei da garota, pousando minhas mãos em seus ombros estreitos. Agora, estando tão perto dela dessa forma, nossa diferença gritante de altura era mais do que evidente. — Não tô te rejeitando, não é isso. — Mas você tá certa. Acho que não te vejo mais como antes. Você não me balança mais como antes. — Mas não adianta querer exigir algo de mim agora. Depois a gente conversa, tá bom? — Falei da forma mais gentil e cautelosa que pude.
Mas eu espero poder te dar todas essas respostas logo.
E espero poder ter todas as respostas para minhas próprias dúvidas tão logo quanto.
Eu tenho medo de terminar tudo com você agora e me arrepender depois.
Não é possível que o sentimento tão bom que eu tinha por você tenha ido embora como se não fosse nada.
Por isso, eu preciso de um tempo. Para entender isso tudo e a mim mesmo.
Mas não te deixarei esperando muito, eu prometo pra você.
— Deixa eu te dar uma carona, por favor.
Mesmo que ela não tenha dito nada, eu via no seu jeito de olhar que consegui acalmá-la.
Ela parou pra pensar um pouco e terminou batendo as sacolas fracamente contra meu peito a fim de me entregá-las.
— Só dessa vez, ok?
Soltei uma risada, assentindo com a cabeça. Havia uma pitada de humor em sua voz acanhada e isso me fez sentir algum alívio.
— Ok.
~*~*~*~
Midoriya
O dia seguinte chegou surpreendentemente calmo.
Mas claro que isso não durou por muito tempo.
As memórias daquele beijo executavam um ótimo trabalho em tirar minha paz.
E as palavras que minha mãe me disse hoje cedo também tinham parte da culpa.
Eu amo a amizade de vocês dois. E me parte o coração dizer isso, mas você tem que se afastar dele, filho. Tem que conhecer novas pessoas. Se tudo o que você conhece e consegue pensar for sobre ele, o que você sente não deixará de existir simplesmente porque você quer. E ninguém aguenta isso. Ninguém consegue superar um amor assim. Ainda mais o primeiro amor, porque eu sei como é. Eu sei como o primeiro amor parece ser o último.
E se afastar não significa parar de falar com ele. Significa um tempo para se encontrar, mas sem ele.
Eu acho que você se sentiria melhor se falasse pra ele como se sente. Mas tudo bem se não quiser fazer isso.
Eu gosto demais do Katsuki, meu amor.
Mas eu, como sua mãe, tenho que te aconselhar a se afastar dele.
E pode ter certeza que isso vai doer em você tanto quanto vai doer em mim. Eu vou sofrer junto com você.
Não vai ser fácil.
Mas vai ser melhor pra você.
E você poderá se reaproximar quando seu coração estiver em paz.
Tudo o que ela me falou era tudo o que eu já sabia.
No entanto, ter alguém me confirmando que era realmente isso o que eu tinha que fazer, me fez sentir como se eu estivesse dentro de uma ampulheta e meu tempo estivesse acabando.
Eu não sei se eu teria coragem. Ele é a única coisa que me sustenta naquela escola.
Só se eu fosse pra outra escola...
Mas isso significaria que Katsuki e eu, com o tempo, nos tornaríamos completos estranhos.
E essa nova perspectiva me apavora.
Eu preciso me afastar dele.
Mas não quero perdê-lo.
Mais do que meu primeiro amor, ele também é meu melhor amigo.
Mas...
Não se pode ter tudo, não é?
Eu preciso perder algumas coisas para ganhar outras.
Estando na mesma escola que ele, eu sei que eu não conseguiria me afastar tanto assim. Ele não deixaria. E não entenderia. Ele me perguntaria o motivo de estarmos distantes, e eu não saberia responder. E isso faria ele pensar que eu não ligo mais pra nossa amizade, ficaria triste e nunca poderia entender o real motivo, e isso vai partir o meu coração.
Entretanto, se eu for para outra escola...
Nossa distância será apenas natural.
E, de bônus, eu não precisaria mais conviver com as pessoas daquela escola.
Abaixei a cabeça ao esconder o rosto entre minhas mãos, a lembrança daquele beijo, de repente, me atingindo como um meteoro.
Mas eu, como sua mãe, tenho que te aconselhar a se afastar dele.
E pode ter certeza que isso vai doer em você tanto quanto vai doer em mim. Eu vou sofrer junto com você.
Não vai ser fácil.
Mas vai ser melhor pra você.
Ela tem razão. O primeiro amor parece ser o último.
Definitivamente não será fácil, mamãe.
E, agora, eu tenho este beijo para me fazer lembrar. Para me assombrar.
Enquanto o ônibus fazia seu percurso diário até a escola, minha cara pegava fogo e eu engolia um grito sempre que me lembrava. Meu Deus, que vergonha. Eu fui tão, tão estúpido. Como pude ser tão estúpido? Como pude me deixar levar por simples palavras gentis? Que merda. Mas que merda! Por que o beijei? Mesmo que agora nós dois tenhamos nos resolvido sobre isso, ainda assim, não fica menos vergonhoso. E até um pouco humilhante. Acho que eu tô tão esgotado de tudo que tô simplesmente perdendo os parafusos e isso é perigoso. É por isso que eu preciso me afastar, é por isso que eu—
— Com licença.
Hã?
Essa voz definitivamente não vem de dentro da minha cabeça.
Aos poucos, fui abaixando as mãos que cobriam meu rosto.
Vagarosamente, quase parando, virei a cabeça para encarar o dono daquela voz, que sentara no assento vazio ao meu lado.
Os cabelos roxos eram bagunçados e seus olhos tediosos, enfeitado por olheiras, me fitavam com curiosidade.
— Foi mal por interromper o teu momento aí, mas é que você tá meio que resmungando sozinho já vai fazer uns cinco minutos. Se quer minha opinião, não se martirize tanto só por um beijo. Se for assim, então todos nós somos estúpidos.
Arregalei os olhos.
Quê?
Eu tava falando alto...?
Meu Deus.
MEU DEEEEEEEUUUUUS!!
É UM MICÃO ATRÁS DO OUTRO, CARALHOOOOOOOOOOOO!!
Se eu estava à procura do objetivo da minha vida, acabei de encontrar.
Eu só sirvo para ser o coadjuvante que é o alívio cômico nos filmes. Aquele que só aparece de vez em quando e, quando aparece, é só para se foder e fazer o cinema todo rir.
Se for para ser assim, eu opto pelo papel de figurante mesmo.
Se é que isso pode ser considerado um papel.
— N-não, é que... bem... — Ajeitei os óculos que deslizavam pelo meu nariz, disfarçando com um pigarro – bem exagerado, por sinal – ao virar a cara como se isso fosse esconder a vermelhidão absurda do meu rosto – tava ardendo real e não é nem zoeira. — E-eu tô escrevendo uma história, sabe? E tô meio que... tipo... tentando me botar no lugar do personagem pra sentir melhor os sentimentos e pensamentos dele e—
— Hm, sei. Você vai se sentir melhor se eu fingir que acredito? — Engoli em seco e, antes que eu pudesse me atirar da janela do ônibus, uma mão surgiu diante dos meus olhos. — Certo, boa sorte com a sua história, então. Meu nome é Hitoshi.
Arregalei os olhos e me virei para encarar seu rosto. Seu rosto ainda meio inexpressivo e um pouco tedioso. Algo me diz que ele é sempre assim, independente se ele estiver feliz ou não.
Meio sem graça, ergui minha mão para apertar a sua.
— Midoriya. Mas pode me chamar de Izuku.
— Ah, esse é o meu ponto.
— A-ah, tá! — Ele levantou e seguiu para o fundo do ônibus. — Tchau! — Acenei com a mão, mas logo depois me freei ao perceber que talvez eu estivesse acenando de uma forma exagerada demais – mais uma vergonha pra lista, quis me bater.
Ele me olhou e sorriu de leve, levantou a mão em um aceno sutil e, então, saiu.
Me apressei para observá-lo pela janela enquanto o ônibus se distanciava, minhas bochechas ainda quentes. Seguindo-o com o olhar, vi que ele, com uma mochila nas costas, andava em direção de uma construção toda enorme e bonita, com prédios altos e cheios de janelas. E tinham várias pessoas também caminhando até lá. Eles pareciam felizes e aquela animação até me contagiou um pouco.
Não parecia haver grupos ali. Quero dizer, todos tinham os seus grupos de amigos, claro, mas não parecia ter uma hierarquia. Não tinha o grupo dos populares, grupo dos excluídos, grupo dos atletas e afins. Todos cumprimentavam todos, todos conversavam uns com os outros. Ao menos, foi a leitura que pude fazer em dez segundos.
Até Hitoshi, que me aparentava ser meio deslocado e caladão, foi recebido por um grupo de pessoas sorridentes.
E, lá em cima, no topo da instituição, estava escrito: Colégio e Universidade Yuuei.
Por algum motivo, meu coração acelerou.
~*~
— Bom dia, Deku!
Fui recebido por um abraço quente e apertado.
Da Uraraka.
Fiquei um pouco surpreso, isso não é muito comum. Principalmente nos últimos tempos, em que ela tem estado grudada em Katsuki.
Mas abri um sorriso e a devolvi o abraço.
— Oi, Uraraka. Bom dia. — Respondi tão alegre quanto um adolescente com a cabeça fodida e sequelada pode responder. — Cadê o Katsuki?
— Ah, não sei. Por aí. — Se afastou com um sorriso pequeno, desviando o olhar enquanto guardava a típica mecha castanha atrás da orelha.
Franzi o cenho.
Estranhei aquela resposta vaga. E seu olhar estava um tanto perdido.
Algo parecia errado.
— Como cê tá? — Tornou a me encarar com um sorriso largo, aparentemente querendo mudar de assunto. — O que aconteceu ontem... hm... deve ter sido muito difícil pra você.
— Sim. Um pouco. — Sorri pequeno, sem mostrar os dentes.
E começamos a andar lado a lado.
— Eu imagino. O Kat foi incrível por te defender daquela form—
— Desculpa, mas não tô muito a fim de falar disso, tudo bem?
— Ah... — Ela piscou os olhos, sem graça. — Claro, desculpa. As provas começam amanhã, né? Devíamos estudar juntos hoje. Você não é muito bom em ciências no geral, né? Posso te ajudar com isso, eu... — E ela desatou a falar um monte de coisa que eu não entendi nada, entrava por um ouvido e saía pelo outro, tudo porque eu estava encucado demais sobre uma coisa:
— Você e o Kacchan... tá tudo bem?
E eu me arrependi no exato instante em que abri a boca.
Ela me olhou como se eu tivesse pisado em um território sombrio e eu imediatamente engoli em seco.
Mas, então, estranhamente, ela abriu um sorriso largo.
— Claro que sim. Por que não estaríamos? — Riu. — Estamos melhor do que nunca, você não sabia?
Franzi o cenho.
E seu sorriso aumentou.
— Nós... bem... — Soltou uma risadinha e, envergonhada, se aproximou para sussurrar ao pé do meu ouvido. — Nós tivemos nossa primeira vez ontem.
E eu nunca desejei tanto ser surdo como naquele momento.
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