Give peace a chance (Dê uma chance à paz)
Let the fear you have fall away (Deixe que seu medo desapareça)
Say yes to heaven - Lana Del Rey
Dois dias haviam se passado desde a chegada deles à misteriosa vila dos Anurai. Nesse meio tempo, Tai'Ren passava boa parte dos dias repousando para recuperar a própria perna enquanto cuidava de Eiji, que seguia desacordado, apesar de sua temperatura estar aparentemente normal outra vez.
Vez ou outra, quando o tédio ultrapassava níveis estratosféricos, o Sully se levantava e tentava fazer qualquer coisa, que ia desde caminhar pela vila, até ajudar Aneya com as poucas tarefas que ele tinha assumido, o que incluía caçar e continuar melhorando o pequeno abrigo deles.
O Metkayina, por sua vez, não costumava gostar dos surtos de energia do mais novo e sempre insistia para que ele continuasse repousando, falhando miseravelmente na maioria das vezes. Aneya vinha tentando se ocupar e também se recuperar dos próprios ferimentos, mas como era um guerreiro, parecia inevitável relaxar sabendo que, não muito longe dali, havia um verdadeiro exército do Povo do Céu.
A preocupação o fez ficar cada vez mais ansioso. Essa euforia frequentemente levava seu sono e o fazia passar longas noites em sua atividade de conforto: esculpir. Desde a conversa com Kaya, seus olhos pareciam mais afiados para com a forma como seu coração interferia na técnica.
Infelizmente, Aneya não conseguia fazer muito a respeito, já que para desenvolver técnica, ele precisava aprender com alguém. Então, o máximo que conseguia colocar em prática, era imaginar a forma como a na'vi entalhou tão rapidamente o pequeno ikran e tentar reproduzir sua agilidade, encontrando os pontos ideais de corte e a força necessária.
Obviamente, aquele era um processo de exigia muita prática e esforço, o que costumava tomar sua concentração a noite inteira. O resultado de tudo isso é que agora Aneya passava as noites em claro e durante a manhã e início da tarde dormia profundamente. Muito atento ao comportamento do rapaz, Tai'Ren aproveitou as brechas e começou a burlar o descanso, escapando enquanto Aneya dormia.
Era exatamente isso que fazia neste momento.
Debaixo da água, ele sorriu, acompanhando o movimento lento das algas coloridas que cobriam o fundo do rio em meio à floresta silenciosa. Deixou o corpo flutuar, mantendo o exímio controle dos pulmões, aprendido com seu pai Ao'nung.
Queria muito voltar pra casa e contar para os seus pais tudo sobre o que tinha visto em Pandora. Suas florestas infinitas, com plantas coloridas, brilhantes e até assassinas; os rios calmos e outros nervosos; os rastros da guerra, mas também da calmaria. Tudo se complementava para formar o mundo que, por tantos anos de vida, passou despercebido por seus olhos que só conheciam o mar e as montanhas aleluia.
Voltou para a superfície com o coração tranquilo, porém ainda com saudades. Olhou ao seu redor, deixando os olhos cinzas varrerem as árvores repletas de entalhes que não reconhecia. Símbolos, desenhos e até marcas de batalha. Tudo ali, desde a terra que pisava até o ar que respirava, parecia querer lhe contar uma história. Infelizmente, além dos sons alegres que a Árvore das Vozes havia lhe mostrado, nada mais sabia sobre aquele povo.
Começando a caminhar, levando consigo uma tigela cheia de água, Tai'Ren suspirou. Não sabia se Kaya tinha qualquer intenção de lhe contar o que havia acontecido naquelas terras. Não queria pressioná-la, mas entendia que, caso uma resposta se mostrasse improvável, teriam que ir embora.
— Ao menos, chegamos até aqui. – Sussurrou para si mesmo, em uma tentativa de ficar menos frustrado.
Conteve um novo suspiro e voltou pela pequena trilha demarcada com pedras coloridas. Existiam diversos outros caminhos demarcados pela floresta, alguns com longas varas de madeira com totens pendurados, mas não ousou adentrar em nenhum deles, já que quando tentou, Kaya foi bem incisiva em proibi-lo.
Tai'Ren diminuiu o ritmo dos passos ao perceber a presença da mulher, mas ela seguia de olhos fechados, imersa em uma conexão com os antepassados na Árvore das Vozes. Não se surpreendeu ao vê-la ali. Na realidade, era bem comum Tai'Ren ou Aneya encontrarem Kaya no local. Ela costumava passar longos períodos no tsaheylu, mas depois que terminava, continuava sua rotina normalmente, mantendo poucas palavras com os dois.
Respeitando o momento dela, o Sully voltou para a vila. Internamente, havia uma parte de si ligeiramente decepcionada por não se sentir verdadeiramente acolhido no local onde deveria ser sua casa, mas a parte restante compreendia o cenário. Era impossível haver um clima de receptividade diante de uma guerra como aquela.
Seus pensamentos foram interrompidos assim que passou por entre as pequenas casas de madeira e viu Aneya caminhar em sua direção. Conteve o ímpeto de revirar os olhos diante da postura de preocupação dele.
— Tai'Ren! – Disse ele, mais próximo. – Eu disse pra descansar! Onde estava?
— Fui nadar um pouco, Aneya. Por que não volta a dormir? – Sorriu, passando direto pelo Metkayina, de forma brincalhona.
Mas Aneya, percebendo o tom de provocação, acabou entrando na brincadeira e correu atrás do menor, se colocando rapidamente a frente dele e abaixando para abraçar suas coxas, sustentando-o até encaixá-lo em cima de seu ombro, fazendo a tigela de água cair na grama.
— Ei! – Tai'Ren protestou, tentando escapar. – Eu disse que não queria ser carregado, Aneya!
O Metkayina riu, levando-o para a floresta.
— Você está muito teimoso ultimamente. – Provocou. – Já que é assim, vai me ajudar a pegar recursos.
— Ah não! Pensando bem, eu tô cansado agora...
— Mas não estava quando fugiu, não é?
— Vai Aneya, me coloca logo no chão.
Mas ele não colocou e Tai'Ren parou de se debater depois de adentrarem a floresta outra vez, seguindo para outra direção, contrária a Árvore das vozes. Depois de longos minutos caminhando, escutando Aneya rir enquanto lhe segurava com firmeza, Tai'Ren foi colocado no chão e não demorou para assumir um semblante emburrado.
— Sinceramente, isso foi ridículo. Não faça de novo.
— Parece que faz anos que não vejo você com a sua cara mimada. – Sorriu Aneya. – Valeu a pena.
Tai'Ren resmungou, virando de costas para não mostrar o rosto corado.
— Quer minha ajuda pra quê mesmo?
— Nada não. – Aneya caminhou para pegar o machado que Kaya tinha dado para colher mais madeira. – Era brincadeira. Só quero ficar de olho em você, então, senta aí. Já já eu termino aqui.
O Sully ficou quieto por um momento, sem acreditar que o outro tinha feito tudo aquilo pra no final não precisar realmente da sua ajuda, mas depois retrucou:
— Eu nem queria ajudar mesmo.
Aneya ignorou a adorável expressão emburrada do outro para focar na tarefa, sentindo-se mais leve depois do momento de descontração. Nem conseguia se lembrar da última vez que puderam só dar algumas risadas, mas agradeceu à Eywa por lhe proporcionar aquele breve momento.
Demorou um pouco mais do que imaginava para conseguir a madeira necessária e outros materiais da floresta. Além das características em comum que todas as matas de Pandora compartilhavam, nas terras Anurai as florestas continham diversas rochas de tons e durezas distintas. Umas mais suaves e outras hiper resistentes.
Quando Kaya lhe mostrou onde coletava recursos, ela ensinou que, para extrair os minerais de cada rocha, precisava de equipamentos próprios para o tipo dela. Neste dia, Aneya descobriu que, dentro de algumas cabanas na vila, havia depósitos enormes de equipamentos e até armas forjadas com materiais destas pedras. Ele até pensou em questionar até que ponto ia as habilidades de escultura dos Anurai, mas optou por se manter em silêncio.
Além disso, tudo sobre a vila ainda era muito misterioso.
— Acho que no fim das contas, alguém vai precisar da minha ajuda. – Provocou Tai'Ren, se aproximando ao ver a quantidade de madeira empilhada e o cesto cheio de folhas, cipós e rochas. – Vamos usar tudo isso?
— O que não formos usar, eu deixo na vila. – Respondeu. – E não, não preciso de ajuda. Carrego a madeira e depois volto pra pegar o cesto.
— Para de brincadeira! – Bufou o mais novo, pegando o cesto grande. – Anda logo e vamos indo.
Aneya se surpreendeu um pouco pelo tom enfurecido, tão raro no rapaz, e somente o obedeceu, colocando a pilha de madeira sobre os ombros. Eles caminharam devagar, tanto pela quantidade de coisas que carregavam, quanto para respeitar a dificuldade de locomoção de Tai'Ren que, infelizmente, parecia que continuaria mancando permanentemente.
— No que você estava pensando?
— Hm? – Aneya foi despertado com a pergunta.
— Na hora que estava pegando a madeira. – Explicou o Sully. – Você parecia distante.
— Nada demais. – Respondeu, tranquilizador. – Só estava pensando em como o povo daqui era realmente incrível por conseguir criar tantas ferramentas. Nós temos rochas resistentes em Awa'atlu, mas não dá pra comparar com algumas coisas que existem aqui.
Tai'Ren sorriu.
— É, você tem razão. As vezes eu fico imaginando como seria esse lugar se todos ainda estivessem aqui. Como será que foi a infância do meu pai? E por que ele deixou tudo pra trás e foi parar tão longe?
— Vai ver ele só queria conhecer o mundo.
— Acha que a Kaya vai falar o que ela sabe? – Perguntou, ligeiramente inseguro.
Aneya ajeitou as madeiras em seus ombros antes de responder.
— Pela forma como ela fica quando me ensina algumas coisas... acho que deve ter acontecido algo muito ruim. Talvez, não seja o tipo de resposta que estamos preparados pra ter.
Os olhos cinzas baixaram, encarando o conteúdo do cesto.
— Acho que você tem razão...- Sussurrou. – Nesse caso, será que não é melhor só irmos embora? Sinto falta de casa, e se não tem ninguém aqui, nunca vou saber quem era meu pai.
— Vamos esperar o Eiji acordar. – Propôs o Metkayina. – Depois falamos com a Kaya e partimos.
Eles trocaram um olhar carinhoso antes de Tai'Ren acenar e continuar andando. Aneya sabia o quanto aquilo tudo era importante pra ele, mas não podiam fazer muita coisa. Também lhe tirava o sono ter o Povo do Céu tão perto.
Caminharam em silêncio, passando pela floresta e adentrando a vila. Ainda era complicado se acostumar com o clima mais frio, porém, depois de tantos dias sofrendo na viagem, eles se viram mais resistentes.
— Seu ikran melhorou?
— Sim! – Tai'Ren sorriu. – Mas eu ainda o mantenho descansando.
— Que bom, felizmente Eywa o...- Aneya adentrou no abrigo para colocar a madeira, mas teve o raciocínio subitamente cortado. - ... Ele sumiu.
Com o rosto franzido, Tai'Ren se inclinou para espiar o interior da pequena construção onde estavam, constatando urgente, a mesma coisa que Aneya:
Eiji não estava mais lá.
***
Minutos antes...
Eiji despertou em um sobressalto. Ofegante, dolorido e faminto, o menino se sentou rapidamente como se saísse de um pesadelo. Sem camiseta, checou o ombro roxo e com outras manchas amareladas, se perguntando como poderia estar vivo.
Contudo, não demorou mais do que alguns segundos para seu foco ser substituído para os arredores, assumindo uma postura de alerta. Estava em um tipo de cabana claramente feita por na'vis, cercado de um cheiro característico, vindo de um pote com uma pasta esverdeada, que concluiu ser uma mistura de plantas.
— Tai'Ren? – Chamou, rouco pelo tempo sem usar as cordas vocais. – Aneya?
Sem retorno algum, Eiji buscou no amontoado de coisas na cabana a pistola que tinha roubado no acampamento e quando a encontrou, checou a munição.
Saiu da cabana devagar, engatinhando para ser mais discreto. Os estreitos olhos escuros se arregalaram ao enxergar a planície infinita e macabra, repleta de carcaças antigas.
— Não pode ser... – Sussurrou, se colocando de pé, como se pudesse ver além do que era possível. – Passamos da base?
Eiji balançou a cabeça, tentando organizar os últimos flashes em sua mente. Não conseguia se lembrar de muita coisa durante o período máximo da febre, mas recordava do momento em que estavam em apuros, cercados por fuzileiros em suas enormes máquinas de matar. Mas o que tinha acontecido depois?
Ainda em uma postura defensiva, o menino girou para analisar o ambiente a sua volta, tremendo um pouco pelo vento gelado em seu peito. Uma nova sensação se surpresa lhe invadiu ao ver, além da cabana simples onde tinha acordado, uma floresta verdejante, com uma trilha aberta e um pedaço de madeira com um símbolo familiar.
Sem conter a curiosidade, Eiji avançou pela trilha, arregalando os olhos ao descobrir um cenário completamente diferente do mórbido Santuário dos Ossos. Observou as esculturas diversas, analisou as casas, os caminhos desenhados com pedras coloridas e as mesas de tarefas.
Acabou escolhendo um dos caminhos mais coloridos para explorar, ainda com a arma na mão. O silêncio mortal tirava muito da beleza da pequena vila e fazia o coração do garoto acelerar um pouco.
— Tai'Ren? Aneya? Vocês estão aí?
A paisagem bonita da vila foi substituída pela floresta amistosa. Eiji sentia o coração pular por saber que sua mãe provavelmente havia caminhado por ali e abriu bem os olhos, tentando acreditar que de fato, tinha chegado em seu destino. Ainda assim, era difícil relaxar perante a ausência de seus companheiros de viagem.
Por isso, Eiji caminhava devagar, tentando não ser consumido pela ansiedade. Sua técnica, contudo, imediatamente foi esquecida quando virou e viu alguns metros à frente a figura de uma mulher na'vi extremamente alta, lhe apontando uma flecha. Os olhos dourados eram assassinos.
Podia ter reagido instintivamente e atirado, mas ainda estava atordoado pela quantidade enorme de informações e, principalmente, pela possibilidade de saber um pouco mais sobre a mudança que Pandora fez em sua mãe. Esse motivo o fez hesitar, erguendo os braços para cima, em sinal claro de rendição.
Abriu a boca para se manifestar, mas o ar fugiu de seus pulmões quando a viu soltar a mão que prendia a flecha. Tudo aconteceu em uma fração tão mínima de segundo, que Eiji mal teve tempo de puxar o ar outra vez antes de ser arremessado ao chão.
— E-espera, Kaya...! – Aneya tentava se levantar rápido, aliviado ao perceber que ninguém havia sido atingido.
A mulher rosnou, empunhando outra flecha.
— O que foi que eu disse!? – Gritou ela. – O demônio não pisa aqui!
Eiji gemeu pela queda e logo estava mais dentro da realidade, saindo da crise ansiosa.
— Eu só quero te perguntar algumas coisas. – Disse o menino, em na'vi, o que só deixou Kaya mais furiosa. – É sobre...
— Não fale comigo!
Mancando, Tai'Ren apareceu entre eles, muito ofegante.
— Kaya, me desculpe! – Ele cambaleou, se colocando na frente de Eiji e Aneya. – Eu me desatentei e não vi o Eiji acordar. Era pra eu ter ficado ao lado dele, mas não fiz isso.
— Onde esses demônios pisam, as pragas surgem! – Vociferou Kaya, se aproximando se uma forma quase predadora. - Eu não me importo com o que vocês pensam sobre o Povo do Céu, eles não são permitidos aqui.
— Respeito isso. – Respondeu Tai'Ren, com seriedade. – Nós não vamos deixar isso acontecer outra vez, por favor, deixe ele voltar pro abrigo.
— Mas...- Eiji tentou interferir, mas Aneya tampou sua boca, o que arrancou um olhar enfurecido do menino.
Perante os olhos cinzas e brilhantes, Kaya bufou.
— Tirem isso da vila. – Ela se virou, adentrando a floresta com passos pesados. – Agora!
Tai'Ren soltou a respiração que nem lembrava estar guardando, profundamente aliviado. Aneya fez o mesmo.
— Foi por pouco...- Sussurrou o Metkayina.
— Quem ela pensa que é pra falar desse jeito? – Resmungou Eiji, chutando uma pedrinha. Depois olhou acusadoramente para o mais alto. – E você, nunca mais tampe a minha boca!
— Você acordou nos matando de susto. – Tai'Ren riu, usando uma das mãos para bagunçar os cabelos pretos da criança. – Mas estou feliz que tenha sobrevivido.
— E dá pra ver que acordou bem mal-humorado também. – Aneya provocou.
Eiji corou pelo carinho recebido do Sully e desviou o olhar, ainda com uma expressão rabugenta.
— Obrigado...- Pigarreou. – Por vocês terem salvado a minha vida... várias vezes, no caso.
Os na'vis se entreolharam, divertidos, mas logo começaram o caminho de volta, temendo comprar outra briga com a moradora do Santuário dos Ossos.
— Eu só ia perguntar pra ela sobre a minha mãe! – Disse Eiji, quando entraram na cabana.
— Acredite...- Tai'Ren começou a descascar uma fruta. – Também não sabemos nada sobre o que aconteceu aqui.
— A Kaya não é muito de conversa. – Reforçou Aneya. – O importante é que você não pode entrar na vila ou na floresta. Tudo o que precisar, nós traremos.
— Isso é ridículo...- Eiji sussurrou, baixinho. Mas as palavras não passaram despercebidas pelo Metkayina, que logo deu um tapa atrás de sua cabeça. – Ai!
— Não sabe da dor dela, é feio dizer isso.
— Ele está certo, tudo deve ser muito doloroso. Kaya com certeza tem seus motivos. – Tai'Ren estendeu a fruta descascada pro menino. – Come, você deve estar com fome.
— O que é isso? – Eiji fez um muxoxo. – Eu não quero ser adotado. Mesmo que sejam um casal, não sou o filho de vocês pra me tratarem assim.
Tai'Ren corou e Aneya conteve a vontade de dar outro tapa na criança de língua afiada.
— Graças a Eywa! – Provocou o guerreiro. – A Grande Mãe não seria cruel ao ponto de me dar um filhote sem educação igual você!
Eiji fez uma careta em resposta e ergueu a máscara brevemente para colocar a fruta na boca. Tai'Ren e Aneya imediatamente riram quando o rosto do menino se franziu por inteiro diante do sabor.
— É azedo! – Eiji tremeu. – Eca!
— Quanto a isso...- Riu o maior. – Eu vou ter que concordar. Só o Tai'Ren gostou.
— O sabor me deixa um pouco nostálgico. – Admitiu o Sully, dando de ombros diante das reações. – Quando eu morava na ilha onde meus pais me encontraram, sobrevivia comendo uma fruta que tinha um gosto parecido com essa. Senti muita falta quando me mudei pra Awa'atlu.
— Que bom que pôde recordar isso então. – Respondeu Aneya, carinhoso.
— Que bom!? – Eiji gemeu. - Eu tenho pena por você só ter tido isso pra comer!
— Deixa de ser exagerado. – Os olhos cinzas reviraram.
Os três passaram mais um tempo juntos, rindo das caras e bocas de Eiji, que teve que comer toda a fruta sob o olhar atento de Tai'Ren, até que escutaram os rosnados característicos de um thanator, o que fez todos tremerem.
Porém, se recuperando rapidamente, Aneya se ergueu, saindo da cabana a tempo de ver Kaya acariciar a cabeça do animal docemente.
— Vamos correr. – Sussurrou ela.
— Aconteceu alguma coisa? – Aneya se aproximou, preocupado.
Tai'Ren e Eiji espiavam da abertura da cabana, ansiosos.
— O Povo do Céu está avançando mais rápido ultimamente. – Revelou Kaya, assumindo a postura irretocável outra vez. – Eu corro pelas planícies com frequência pra afastar eles sempre que necessário.
— Eu quero ir. – Disse Aneya, de pronto. – Pode me levar?
— Não. Sei que é um guerreiro, mas aposto que não luta na terra. E sequer sabe domar um thanator.
— Então, por favor, me ensina. – Os olhos azuis se voltaram para as duas figuras na cabana. - Se existe o risco do Povo do Céu chegar até eles, eu vou lutar. Mesmo que eu não seja treinado como você, se me der um arco, uma lança ou qualquer arma, não vou te atrapalhar.
Ela pensou por longos segundos, analisando a postura do rapaz, até que suspirou:
— Pois bem, pega um arco. Se conseguir me ajudar e não morrer no processo, quando voltarmos, ensino você tudo o que precisa pra ser um guerreiro das planícies.
Aneya sussurrou um "obrigado" antes de correr para a vila, a fim de pegar um dos numerosos arcos e bolsas de flechas dos Anurai. Assim, como o dos Omatikaya, eram entalhados em madeira.
Quando voltou para onde a mulher já lhe esperava sobre o enorme thanator, Tai'Ren se aproximou, um tanto nervoso:
— O que está acontecendo? Onde vai?
— Ajudar a afastar o Povo do Céu das planícies. – Aneya deixou uma das mãos tocar o rosto alheio, que seguia preocupado. – Volto logo.
— Eu quero ir também!
— Não.
— Por quê? Eu posso lutar! Sei atirar! – Tai'Ren insistiu. – Não me deixa pra trás.
— Eu sei que pode fazer tudo isso, mas ainda precisa se recuperar, Tai'Ren. No estado em que está, mal pode andar. Não posso te levar pra um campo de batalha.
Os olhos cinzas baixaram, desolados.
— Não temos que lutar separados.
Aneya o puxou para um abraço caloroso.
— Eu não consigo dormir a noite sabendo que eles estão lá fora e sabem que nós estamos aqui. – Sussurrou. – Preciso ter certeza de que estamos seguros. Você precisa focar na sua recuperação. Assim, quando eu voltar, lutaremos sempre juntos.
Sem ter mais forças pra refutar, Tai'Ren apenas apertou mais o abraço e depois fechou os olhos quando recebeu um beijo rápido. Seu coração apertou quando viu Aneya subir no thanator com a ajuda de Kaya, mas não podia dizer que não compreendia os receios do rapaz.
De fato, estavam muito vulneráveis. Por isso, lançou um olhar ansioso para Kaya, como se lhe pedisse para trazê-lo a salvo e recebeu um leve aceno em resposta antes da mulher gritar o sinal que fez o animal rosnar, correndo pelo solo reto e infinito.
Eiji respeitou o momento silencioso do Sully quando se viram sozinhos na cabana e aproveitou para se deitar, encarando o teto do abrigo. Depois de longos momentos em aflição, Tai'Ren acabou se deitando também.
Mesmo que ainda fosse cedo, sabia que o tempo passaria mais rápido se descansasse um pouco, então tentou dormir.
***
Eiji sabia que não deveria estar fazendo aquilo, mas não podia desperdiçar a oportunidade.
Quando acordou de seu breve cochilo e viu Tai'Ren desacordado, se viu no momento perfeito para explorar aquelas terras exóticas, por onde sua mãe deveria ter caminhado. Por isso, dotado de uma euforia crescente, o menino caminhou pela vila abandonada, espiando as cabanas com camas, outras com utensílios do dia a dia e até armas e ferramentas. Conseguiu somente conclusões óbvias tateando os dedos pelas esculturas bem trabalhadas, mas não desistiu.
Observou as trilhas existentes na floresta e seguiu na mesma que tinha ido mais cedo, ligeiramente desinteressado por só ver mais floresta, porém, imediatamente sendo surpreendido ao descobrir a Árvore das Vozes.
Já tinha estudado sobre elas durante seus anos na base. Era impressionante saber que os na'vis podiam escutar seus antepassados através dessa poderosa conexão que sua biologia proporcionava. Por um mísero instante, desejou ser um na'vi para quem sabe poder ter algum vislumbre de sua mãe outra vez.
Acho que nem funciona assim, pensou logo em seguida.
Tocou curioso os filamentos das folhas roxas e luminosas, arrependendo-se logo em seguida.
— Desculpe...hm... Eywa. – Sussurrou.
Agradecendo por não escutar nenhuma voz mística saindo da árvore brilhante, Eiji seguiu em frente, analisando a trilha de pedrinhas luminosas e os inúmeros totens pendurados em uma altura muito acima da sua cabeça.
Apressou o passo quando escutou o som de água corrente e sorriu com a visão do rio largo que cortava a floresta. Se abaixou para mergulhar os braços na água fria, deixando os olhos repousarem um pouco mais demoradamente no braço queimado e no local onde deveria estar sua mão.
Reviver, mesmo que brevemente, o momento da explosão na estufa da base, o fez voltar a realidade e Eiji se levantou para continuar o caminho em sua exploração, mas quase desmaiou ao virar e ver Tai'Ren atrás dele, de braços cruzados e com uma expressão de poucos amigos.
— Tá querendo morrer!? – Repreendeu o mais velho. – Será que já esqueceu tudo o que passamos mais cedo?
— Você não entende, Tai'Ren!
— Eu não entendo? Você precisa se colocar no lugar do outro, Eiji! Kaya não permitiu você pisar aqui e o Aneya quase se machucou pra te proteger!
— A minha mãe esteve aqui! – Gritou o garoto, determinado. – Eu não vou ficar esperando a boa vontade de uma ranzinza amargurada! Quero descobrir o que aconteceu e sei que você quer também, Tai'Ren!
— Invadir um local sagrado que nem nos pertence, sem permissão, é uma péssima forma de encontrar respostas, Eiji. – Respondeu o Sully, firme, porém, compadecido ao ver os olhos aflitos da criança. – Sabe o que vai acontecer se a Kaya te encontrar aqui?
— Se ela quiser me matar, que seja. – Eiji deu de ombros, entrando em uma trilha onde nem mesmo Tai'Ren tinha pisado.
— Ei! Não pode ir aí! – O Sully hesitou por um instante, mas com um grunhido, o seguiu. – É assim que nos agradece por salvar sua vida? Jogando ela fora?
— Eu não pedi pra vocês me salvarem! – Retrucou o menino, acelerando o passo para não ser pego.
Sem conseguir acompanhar o mesmo ritmo, Tai'Ren praguejava enquanto mancava para tentar alcançar a figura minúscula.
— O que aconteceu com o "Obrigado por salvarem a minha vida"? – Provocou.
— Retiro o que eu disse! Podem me deixar morrer.
— Francamente, você...!
Tai'Ren quase tropeçou quando Eiji sumiu de seu campo de visão, desaparecendo em meio aos arbustos. A trilha foi sumindo, sendo cuidadosamente consumida pela natureza, pela ausência de cuidados.
Quando o coração martelou e ele se preparou para gritar por Eiji, ultrapassou os arbustos e encontrou o menino igualmente paralisado.
Ambos arregalaram os olhos quando a visão foi preenchida por uma clareira colorida, com rochas dispostas em formato circulares, como se fossem assentos de pequenos grupos.
Diversas varas de madeira indicavam que havia uma trilha delimitada por toda a clareira, mas também tinha desaparecido e os totens jaziam na grama. Entre os círculos de rochas azuladas, pretas e até roxas, pequenas pilhas de instrumentos musicais diversos descansavam, quase engolidas pela grama.
Contudo, o que mais chamava a atenção deles era a entrada imensa de uma caverna rochosa. Sem trocarem uma só palavra, ambos caminharam silenciosamente pela trilha desgastada, passando pelos círculos abandonados e entrando na caverna escura.
Mas ao contrário do que imaginavam, não foram recebidos por um ambiente hostil e úmido. O interior da caverna era igualmente verdejante e com flores diversas. Árvores contrariavam todas as expectativas e cresciam lá dentro, inteiramente bioluminescentes e repleta de gravuras e esculturas feitas de ossos que jaziam penduradas em seus galhos.
Thanatores, ikrans, flores e até na'vis. Uma infinidade de pequenos pingentes coloridos, enfeitando as árvores como se elas fossem um membro da família. Eiji se distraiu com uma das árvores e Tai'Ren se manteve caminhando adiante, com os olhos fixos no fim da caverna, onde uma fenda se abria, permitindo que a luz do dia banhasse precisamente a maior árvore do recinto.
De troncos com veias roxas e brilhantes, e filamentos que balançavam um brilho etéreo, seus olhos quase emocionaram sabendo que estava no local mais sagrado de seus antepassados: A Árvore das Almas. Deixou os orbes cinzas apreciarem a luz convidativa e fez uma prece silenciosa à Eywa.
Quando terminou, percebeu que havia um caminho que contornava a árvore, levando-o diretamente para um novo ambiente, absurdamente enorme e também com uma fenda no teto.
Seu coração acelerou perante a visão magnífica de uma escultura monumental. Um thanator, que parecia ser de tamanho real, jazia inteiramente esculpido de ossos. Seus dedos gravitaram até os entalhes nas patas, mas pararam antes de tocá-lo. A escultura parecia tão antiga e significativa para estar ali, junto com a Árvore das Almas, que não se viu digno de tocá-la.
Por fim, Tai'Ren acabou voltando para onde tinha vindo, eufórico para mostrar ao menino tudo aquilo.
— Você não vai acreditar...- Começou, mas imediatamente parou quando viu o menino chorando diante de uma das árvores próximas da entrada da caverna. – Eiji, o que houve?
Tendo apenas os baixos soluços em resposta, o na'vi se aproximou, tocando o ombro da criança e focando os olhos na árvore, que assim como as outras, estava repleta de entalhes. Não demorou para compreender o motivo das lágrimas.
A árvore retratava uma cena. Uma figura fina de anatomia claramente estranha para os na'vis desenharem, tocava o rosto de um thanator, curvado em gentileza. A imagem de alguém do Povo do Céu diante do maior predador de Pandora, realizando um provável gesto de carinho, deixou Tai'Ren boquiaberto. Nem na floresta Omatikaya seria capaz de imaginar tal cena. Até porque domar um thanator era raro entre seus familiares da floresta.
— É ela. – Eiji sussurrou, com o rosto vermelho pelo choro.
— Como pode ter certeza?
O menino apontou para um dos galhos da árvore, onde o característico pingente dos soldados do Povo do Céu balançava junto com os totens.
— Será que você pegar pra mim? Eu não alcanço.
Compadecido, Tai'Ren tirou cuidadosamente o colar do galho, entregando-o ao garoto, que sorriu ao confirmar que de fato, o objeto pertencia a sua mãe.
— Você acha que ela fez mesmo isso? – Tai'Ren fitou novamente o entalhe na árvore. – Eu quase desmaiei quando fiquei tão perto de um thanator, imagina tocar ele assim.
— Você não conheceu a minha mãe. – O menino riu, fungando pelo choro recente. – Ela era muito durona e não tinha medo de nada.
— Nem de um thanator gigante? – O mais velho provocou, fazendo um carinho nos cabelos lisos do outro.
— Muito menos de um thanator gigante!
Eles riram, mas imediatamente pararam quando perceberam que não estavam mais sozinhos na caverna. Kaya entrou silenciosamente no local e Tai'Ren sorriu ao ver Aneya atrás dela, mas o Metkayina, apesar de intacto, parecia em alerta diante da aproximação da na'vi, pronto para impedi-la de machucar os dois perto da árvore.
Eiji se manteve a frente de Tai'Ren.
— Se quer me matar, pode fazer isso! Agora eu já descobri que a minha mãe esteve aqui e... posso imaginar o que a fez gostar de vocês. Mas deixa eles em paz, foi eu quem quebrei as regras!
— Eu não deveria ter vindo também, Kaya. Me desculpe...- Tai'Ren encolheu os ombros, tremendo pela presença que a misteriosa guerreira tinha.
Contudo, ambos arregalaram os olhos, vendo a mulher passar direto por eles, caminhando até a árvore das almas com um semblante impassível.
— K-kaya...? – Tai'Ren tentou outra vez. – Juro que não toquei em nada.
Kaya, por sua vez, deixou os olhos amarelos descansarem sobre as inúmeras filas de conexões da árvore antes de deslizarem lentamente através do tronco forte e das raízes discretas, até chegar em uma pequena pilha de esculturas nos pés da árvore. Ela pegou os minúsculos animais de madeira e os explorou com os dedos, observando a pintura desalinhada com olhos ternos.
Aneya se aproximou de Tai'Ren e Eiji, abraçando carinhosamente o Sully enquanto suas orelhas matinham-se atentas aos movimentos da mulher a frente. Eiji franziu o resto, estranhando o silêncio sepulcral.
— Você não vai me matar não? – Resolveu perguntar depois do que pareceu uma eternidade naquela situação.
— Eiji! – Tai'Ren o repreendeu e Aneya não conteve um rosnado. – Vamos dar um jeito nele, Kaya! Me desculpe de novo por ter vindo até aqui sem permissão. Estamos voltando agora!
Aneya lançou um olhar mortal para o menino humano, forçando-o a caminhar rapidamente para fora, mas amoleceu a postura quando o braço de Tai'Ren envolveu sua cintura e eles começaram a andar em direção à saída da caverna.
— Você disse que quer respostas, não é? – A voz de Kaya soou atrás deles, o que automaticamente interrompeu a caminhada.
Tai'Ren se virou para encará-la, mas a mulher seguia de costas.
— Sim. – Respondeu, tentando não ceder a ansiedade.
Devagar, ela se voltou na direção deles, com o rosto contorcido em uma expressão que revezava entre aflição e lembranças doces.
— Faz muito tempo que eu não piso aqui...- Ela fitou os animais coloridos em suas mãos. - ... Achei que não conseguiria fazer isso outra vez. Mas o tamanho da teimosia de vocês me surpreende.
— O que quer dizer com isso? – Aneya perguntou.
— Prometi que nunca diria o que eu vou dizer pra vocês agora. – Ela apertou mais as pequenas esculturas entre os dedos. – Mas se Eywa os guiou até aqui, sabendo do vínculo que possuem ou criarão com as planícies, talvez seja um sinal de que eu deveria confiar nas suas palavras de esperança, Tai'Ren.
O Sully sentiu o sangue pulsar com o ritmo frenético de seu coração pelas palavras, mas não ousou interromper:
— Não sei quem é seu pai. Pela sua idade, eu deveria ser adolescente quando ele partiu, mas sei que ainda pode encontrar as respostas.
— I-isso...significa que...
— Eles ainda vivem. Não mais aqui, mas nosso povo ainda resiste.
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