Somewhere up there (Em algum lugar lá em cima)
You lost yourself in your pain (Você se perdeu na sua própria dor)
You dream of the end (Você sonha com o fim)
To start all over again (Para começar tudo de novo)
Don't jump – Tokio Hotel
Tai'Ren estava especialmente ansioso e não conseguia disfarçar o semblante tenso, o que fez Aneya entrelaçar os dedos nos seus, tentando dissipar um pouco da euforia. O gesto chamou a atenção dos olhos cinzentos, que lhe lançou um olhar carinhoso de agradecimento.
Kaya havia acendido uma fogueira no meio de um dos círculos de pedra e eles se sentaram em torno do fogo, colocando os velhos instrumentos musicais abandonados sobre uma das rochas. Eiji se manteve relativamente próximo de Aneya para ter certeza de que a mulher na'vi não pularia em seu pescoço a qualquer momento.
A guerreira, por sua vez, encarava o fogo, girando lentamente os pequenos brinquedos de madeira em seus dedos, como se estivesse ganhando coragem para prosseguir. Despertando do transe momentâneo, ela suspirou ao notar os três pares de olhos curiosos sobre si.
— Este lugar era onde minha família cantava louvores à Eywa desde muito antes de eu nascer. – Ela gesticulou, apontando para os arredores, onde apenas os círculos de rocha jaziam vazio e os instrumentos abandonados. - Na realidade, o clã Anurai é tão antigo, que até mesmo o primeiro Toruk Makto contou com a ajuda de um dos nossos para domar a Grande Sombra. Nós chamamos essa história de Grande Sono, um dia posso contá-la a vocês. As crianças adoravam.
Ela sorriu e Tai'Ren sentiu uma onda de compaixão por perceber que aquela era a primeira vez que via Kaya realizar tal ato. Aneya conteve a curiosidade para perguntar da história e permaneceu calado para que ela continuasse. De canto, os olhos azuis também ficavam especialmente espertos em Eiji, sabendo que o garoto poderia se meter em apuros falando demais.
— De qualquer forma, aqui era onde nos divertíamos, conversávamos e comemorávamos o nascimento de um novo membro da família. E lá dentro da caverna, está o nosso solo sagrado, onde repousa a Árvore das Almas e o grande protetor da nossa família, o amuleto thanator.
— Vocês esculpiram aquilo? – Tai'Ren não conseguiu se conter.
— O grande totem foi forjado há muitas eras. – Explicou Kaya, sem se importar com a interrupção. – Foi necessário o esforço de todos os artesãos do clã pra cria-lo e nós o protegemos desde então. É nosso item mais valioso. Ele carrega toda a história e o esforço dos meus antepassados e dos nossos irmãos thanatores. Nossa casa é onde nosso amuleto está. Por isso, o protejo com a minha vida. O Povo do Céu tentou muitas vezes, mas nunca conseguiram chegar neste lugar.
— Por que vocês admiram tanto o thanator? – Foi a vez de Aneya perguntar, com as orelhas relativamente inquietas de curiosidade.
— Eles são os maiores caçadores do nosso mundo. São fortes, corajosos e gostam de sentir a terra sob seus pés. – Ela passou os dedos na grama relativamente alta. – Ao mesmo tempo, são repletos de amor e cuidam dos seus filhos com toda sua energia. Desde o início das planícies, dividimos o mesmo lar e aprendemos a lê-los, a respeitá-los e a amá-los. É como se, depois de tanto tempo, dividíssemos a mesma essência.
— É como os tulkuns e os Metkayina! – Disse Aneya, com um sorriso. – Os thanatores são irmãos de espírito para os Anurai.
Kaya gostou da nomenclatura, embora nada daquilo lhe soasse familiar. Eiji franziu as sobrancelhas e resolveu falar:
— Mas se isso tudo é tão sagrado, por que todos foram embora e deixaram só você aqui?
A mulher enrugou o semblante ao escutar a intervenção do pequeno garoto humano no diálogo, mas apenas revirou os olhos, principalmente ao notar a figura minúscula se arrastar lentamente para mais perto de Aneya.
— Abandonar a terra de onde viemos foi muito difícil, demônio! Não diga como se tivesse sido uma decisão leviana! – Ela bufou voltando a olhar para fogo. – Desde o começo sabíamos que nunca teríamos chances contra o Povo do Céu. Há muitos anos, tivemos guerreiros que criaram armas, aprenderam a correr com nossos irmãos thanatores e protegeram nosso amuleto. Mas nas planícies, estamos longe de tudo e essas habilidades foram sendo esquecidas, porque não eram necessárias. Não precisávamos de armas e sim de arte e música. Cada na'vi desta família trabalhou para deixar sua marca na vila, algo que percorresse as gerações. Por isso, cada um de nós foi treinado pra aprender a fazer arte, aperfeiçoando nossa técnica e criando músicas para que a Grande Mãe nos ouça.
Kaya fechou os olhos, tentando se lembrar da última vez que cantou, mas não conseguiu.
— Deixamos nossa compaixão e inspiração nos guiar, abandonamos as armas e nos dedicamos somente a vida. Nós, Anurai, acreditamos que a Grande Mãe nos deu mãos ágeis para eternizar o mundo nas nossas esculturas e nas canções. É assim que nos comunicamos através do tempo. Cantamos músicas criadas pelos nossos ancestrais e em toda vila podemos encontrar os vestígios do que eles criaram. O grande amuleto é o maior elo que temos com o passado. – Os olhos amarelados se abriram outra vez. – Mas eu sempre relutei com esses ideais. Mesmo que eu nunca tenha conhecido o mundo, sabia que toda a calmaria não duraria para sempre. Quando eu nasci, o Povo do Céu já estava em Pandora, mas parecia uma realidade distante de nós.
— E como vocês sabiam que eles estavam aqui no nosso mundo? – Questionou Tai'Ren.
— Nós geralmente esculpimos com os recursos que a planície nos dá. Mas, se quisermos continuar evoluindo, precisamos de ferramentas melhores e materiais mais resistentes. Por isso, é comum que os artesãos do clã, depois de completarem a maioridade, voem para o mundo e descubram novas possibilidades. Plantas, árvores e rochas novas. – Explicou ela.
O Sully arregalou os olhos.
— Então, foi assim que meu pai saiu daqui?
— Provavelmente. – Kaya assentiu. – Não era incomum jovens partirem para explorar os recursos, mas geralmente voltavam logo. É provável que seu pai tenha feito isso. Ele está com Eywa?
— Sim. – As orelhas do rapaz baixaram. – Infelizmente, ele foi capturado e morto pelo Povo do Céu logo que eu nasci. Minha mãe não teve um destino muito diferente. Mas agora, eles estão em paz.
— Eu sinto muito. - Respondeu ela, com sinceridade. – Mesmo que não tenha deixado sua marca na vila, ele se eternizou através do amuleto em seu pescoço. E não há recompensa maior para um artesão como nós.
Tai'Ren sorriu, fitando o pingente em seu peito e agradeceu internamente Neteyam por ter cuidado com tanto apreço da última marca de seu pai biológico, afinal, se não fosse o pequeno objeto, jamais estaria pisando naquele lugar.
— Foi assim que descobrimos que o Povo do Céu estava se aproximando das planícies. – Kaya despertou o Sully de seus pensamentos, quando voltou a pergunta inicial. – Um dos artesãos viajante, retornou para a vila com as notícias. Eu cresci sabendo que não estávamos sozinhos no mundo, ainda assim, foi possível que eu crescesse longe das guerras. Eu me interessei pelo estilo de luta das planícies desde muito nova, infelizmente, poucos de nós se dedicavam a isso. Nos tornamos um clã frágil e pacifista. E eu sempre soube que era questão de tempo até a guerra nos alcançar, por isso treinei junto com poucos meninos da vila. Nos unimos com nossos irmãos thanatores e esperamos a guerra chegar.
Ela parou por um instante, para jogar mais alguns gravetos na fogueira.
— Os primeiros ataques foram muito pequenos e esporádicos. Conseguimos viver naturalmente e os manter longe das planícies por alguns anos. Nesse meio tempo, eu construí uma família. Eywa me concedeu um filho e isso só aumentou minha vontade de lutar e proteger o meu lar. Mas os ataques pioraram quando a grande máquina chegou.
— Tá falando da base? – Disse Eiji, mas logo se encolheu quando Aneya o beliscou.
Felizmente, a mulher o ignorou.
— De repente, todos entenderam que o Povo do Céu queria ficar e aconteceram muitas discussões entre nosso Olo'eyktan e os artesãos mais experientes. Sabíamos que não tínhamos força para encarar nosso inimigo, mas iríamos contra os nossos princípios se abandonássemos a terra de onde viemos. – Continuou Kaya, tentando não se deixar levar pelas emoções que a tomaram na época. – A maioria de nós foi contra a ideia de ir embora. O clã confiava na minha força e na dos outros guerreiros, assim como em nossos irmãos thanatores, que sempre lutaram conosco. Então, nós ficamos... Foi a pior escolha que poderíamos ter feito.
Tai'Ren se arrepiou. A imagem da pequena vila que viu incendiada e dos corpos empilhados de seus irmãos na'vi de repente ocuparam sua mente outra vez e ele não teve forças para empurrá-la para longe.
— Há alguns anos, não muitos, o Povo do Céu atacou outra vez. Eu e meus amigos lutamos, mas todos eles morreram. Quando eu voltei para a vila, percebi que mesmo dando nossas vidas, não conseguimos evitar o inevitável. O clã perdeu seu Olo'eyktan, mas eu perdi o pai do meu filho. – Kaya balançou a cabeça para expulsar os sentimentos intensos que ameaçavam expor sua fragilidade ainda mais. – Sem um líder e guerreiros, fomos guiados pela tsahik para nos despedirmos de todos os mortos, mas tudo o que eu pude sentir naquele momento, era raiva. Porque eu sabia que isso aconteceria e, mesmo assim, todos achavam que poderíamos passar por isso com o mínimo de luta possível!
— Eu sinto muito pela sua perda, Kaya. – Disse Tai'Ren, verdadeiramente chateado. – Mas eu também entendo todos os outros. Quando não se é um guerreiro, não temos noção de como o mundo pode ser cruel. Vocês viveram aqui em paz desde sempre. Ninguém poderia prever a força do Povo do Céu. A cada dia eles se tornam mais fortes. Eu digo isso porque...eu também sempre acreditei que guerras são desnecessárias, mas às vezes eu me pergunto se todos estaríamos aqui se simplesmente não lutássemos?
— Essa coisa de pacifismo é ridícula. – Sussurrou Eiji, com os ombros encolhidos. – Só os fracos pensam que tudo isso pode ser resolvido sem guerra.
— Eiji...- Começou Aneya, na intenção de repreendê-lo, mas o menino o encarou, firme.
— Eu não estou mentindo! Podem dizer o que quiser, mas o Tai'Ren está certo! Só estamos aqui porque matamos alguém! Seja um na'vi ou um humano, nós matamos e provavelmente continuaremos a fazer isso. Esse mundo está em guerra há muito tempo e os únicos clãs na'vis que estão em paz hoje, só vivem assim porque já lutaram o bastante!
— Não importa o que nós achamos. – Tai'Ren respondeu. – Os Anurai viveram assim durante eras. Não eram guerreiros, então, essa forma de pensar foi natural. Obviamente, tudo isso possui consequências e infelizmente, eles pagaram por isso. Mas eu ainda acho louvável que essa seja a essência do clã. E me orgulho muito de ter artistas como ancestrais. Bom, ao menos por parte de pai.
Kaya balançou a cabeça devagar, em afirmativa.
— Você está certo. Não cabe julgamentos para as escolhas que já passaram. – Ela suspirou. – Quando meu companheiro morreu, todos ficaram apavorados. Os que conseguiram sobreviver não eram guerreiros e estavam feridos também. A tsahik acalmou nossos corações, mesmo assim, foi quase unânime a decisão de partirem para a floresta profunda, lar dos Tawkami. Nunca tivemos muita aproximação, mas sabíamos que eles, assim como nós, eram muito conectados com a herança dos ancestrais. Já receberam alguns dos nossos artesãos e foram amigáveis. Eles poderiam nos ajudar a sobreviver na selva.
— E então todos partiram? – Indagou Aneya.
— Não. – Kaya franziu o rosto. – Eu fui contra as ordens da tsahik e não parti junto com eles. Pra mim, não fazia sentido abandonar nosso amuleto e a terra pela qual meu marido morreu. A morte de todos os meus amigos seria em vão se simplesmente entregássemos o que o Povo do Céu queria! Então, eu resolvi ficar... e meu filho não quis me abandonar.
Ela baixou a cabeça para pousar os olhos outra vez sobre as pequenas esculturas de madeira, coloridas de forma bastante confusa.
— Eu deveria ter insistido mais para ele ir, mas no fim das contas, eu também não queria ficar longe do meu filhote, então, eu o criei aqui nas planícies sozinha. Era solitário pra ele não ter mais outras crianças, por isso, eu tentava me manter por perto, mas um dia, enquanto eu caçava, ele foi longe demais nas planícies e... foi morto pelo Povo do Céu. Eu fiquei tão preocupada em não o deixar perder a infância, que esqueci que o mundo não perdoa inocência.
— E por que não partiu quando ficou sozinha? – Sussurrou Aneya, com as orelhas baixas e os olhos molhados.
Kaya agradeceu internamente o brilho de sinceridade que viu neles. Com um suspiro longo, ela deixou os olhos correrem pela fogueira e depois pelos círculos de pedra, quase como se pudesse escutar outra vez os dias repletos de canções. Depois, puxou um dos brinquedos de madeira em seus braços. Fitou os contornos coloridos do pequeno ikran e concluiu que deveria ter tido coragem de visitar aquele lugar antes.
— Essa terra já era importante pra mim desde que nasci. Mas quando entreguei o corpo do meu filhote a ela, percebi que não importa onde meu clã esteja, não vai haver lugar mais sagrado do que este pra mim. E não me resta mais nada além disso.
Eiji refletiu um pouco sobre tudo aquilo. Seu maior ímpeto de chegar até o Santuário dos Ossos se deu exclusivamente porque queria entender o que fez sua mãe ser transformada a tal ponto que deu a vida por se colocar ao lado dos na'vi. Por muito tempo, essa mudança foi motivo de muitas dúvidas na mente do garoto, mas agora, vendo o vazio profundo dos olhos amarelos de Kaya, ele entendeu que os na'vis eram muito mais complexos do que jamais sonhou aprender na sala branca.
"Pandora dá aos nativos uma poderosa conexão biológica com o local onde estão inseridos, permitindo uma espécie de elo único com a fauna e a flora da região."
Foi o que ouviu certa vez. E como foi treinado para fazer, memorizou aquele breve minuto de aula, guardando a informação para utilizá-la quando fosse necessário dentro da futura colônia. Seu cérebro não se importou de fato em compreender o que tinha escutado, mas armazenou a informação por saber que deveria ser algo relevante.
Neste momento, contudo, todas essas palavras pareciam simples demais. Rasas.
Não se tratava apenas de uma mera "conexão biológica" ou "elo único". Era uma mensagem. Uma série de lições que ultrapassavam gerações e criava em cada na'vi a sua maneira de enxergar o mundo.
E isso era algo que Eiji desconhecia completamente. O senso de pertencimento, do sagrado e da proteção. Estes sentimentos eram tão intensos naqueles nativos que julgou "atrasados", que quando se viam sem estes pilares, perdiam o desejo de existir. Exatamente como Kaya estava naquele momento.
Era como ele mesmo estava também.
De repente, Eiji se deu conta de que estava vazio. Vazio de propósito e de sentimento. Se perguntou se sua mãe também se sentia assim até adotá-lo ou até encontrar os misteriosos na'vis pacifistas. Talvez, de alguma forma, ela tenha encontrado nesta vila uma forma de ver o mundo que a preenchesse. E então, tenha sido verdadeiramente feliz.
Eiji, encolheu os ombros, sentindo os ombros lacrimejarem. Esperava que pudesse alcançar a mesma transformação que sua mãe teve, mas agora não restava nada além de vazio nas planícies. Se lembrou da imagem gravada na árvore e concluiu que, provavelmente, sua mãe tinha descoberto a felicidade depois de chegar até o clã Anurai.
Talvez não seja impossível outros seres desenvolverem essa ligação com a terra que Pandora proporciona aos na'vi. Mas por que se sentia tão triste?
"Ela era feliz quando éramos só nós dois?" se perguntou internamente.
Incomodado com o rumo de seus pensamentos, o menino ignorou a conversa ao seu redor e se levantou.
— Eiji, onde vai? – Tai'Ren perguntou, estranhando a reação do outro.
— Dormir. – Respondeu. – Sei o caminho, não se preocupe.
Correu antes que pudesse ouvir mais alguma pergunta. Disfarçou os olhos brilhantes e se embrenhou na trilha desgastada, que aos poucos, com a chegada do anoitecer, iluminava-se.
Quando chegou no abrigo, do lado de fora da vila, fungou levemente. Rapidamente se encolheu no canto onde estava se acostumando a dormir e fitou o pingente do exército que pertenceu a sua mãe, mas sem conseguir tirar os olhos vazios de Kaya (e a estranha identificação que teve com eles) da sua mente afoita.
***
Aneya arregalou os olhos quando Kaya aproximou a tocha de três enormes sementes banhadas de seiva e fortemente amarradas em cordas. Imediatamente, as sementes iniciaram combustão.
— Essa boleadeira é uma arma que usamos para caçar. – Explicou Kaya, dias depois dos eventos na fogueira. – Colocamos fogo apenas quando lutamos contra inimigos e não necessariamente na caça. É para ferir enquanto o mantém imobilizado. Observe.
O Metkayina assentiu e mirou atentamente a postura da mulher, que se ajeitou para começar a girar as sementes flamejantes, criando uma espécie de círculo de fogo. Os olhos amarelos, no entanto, pareciam alheios ao espetáculo e se mantiveram firmes no alvo à frente: uma árvore sem folhas e repletas de marcas chamuscadas.
Com um impulso certeiro, Kaya soltou a arma e a boleadeira cumpriu seu papel lindamente, enroscando-se em torno da árvore, mantendo as sementes acesas.
— Vamos começar treinando alvos fixos. – Anunciou ela. – Depois, você vai caçar comigo e treinamos com alvos em movimento.
Aneya engoliu o seco. Não tinha experiência alguma com armas similares. Em Awa'atlu, nunca construíram nada como aquilo. Mas de certa forma, aprender uma nova forma de lutar com alguém tão experiente como Kaya, era empolgante para o rapaz. No fundo, ele também estava estranhamente feliz com a possiblidade de ser um guerreiro das planícies e pertencer ao mesmo clã que Tai'Ren descendia.
Kaya estreitou os olhos e assentiu com firmeza quando viu o rapaz acertar a postura de arremesso, mas revirou os olhos ao vê-lo se atrapalhar quando iniciou o impulso para girar as sementes.
— Ai! – Praguejou o Metkayina, quando foi acertado por uma das sementes em chamas. – Parecia bem mais fácil vendo você fazer.
— Não pode hesitar no movimento de giro. – Respondeu a mulher, simplesmente.
— Certo...- O rapaz suspirou, mantendo os olhos azuis fixos na árvore.
Contudo, outra vez sua concentração dissipou quando o braço encostou no fogo. Kaya se sentou na grama, pacientemente.
— Tenta de novo.
E assim Aneya o fez. A arma era pesada e o calor das chamas não ajudava seu foco, o que lhe custou várias queimaduras em tentativas falhas.
Quando finalmente aprendeu a estabilizar o giro se empolgou, mas quando fez o primeiro arremesso, que passou longe da árvore e quase iniciou um incêndio na floresta, ele percebeu que a parte que vinha se dedicando o dia inteiro, era mais fácil e agora precisava encarar o verdadeiro desafio.
— Se fazer isso já está difícil pra mim, imagina domar um thanator. – Lamentou.
— Na realidade, não há muito esforço nessa parte. – Admitiu Kaya, ligeiramente divertida com a reação do jovem guerreiro.
Aneya franziu o rosto, em estranheza.
— Como não? Está me dizendo que é simples montar em um deles?
— O que você precisa fazer é apenas mostrar sua coragem. Não domamos nossos irmãos. Eles nos escolhem.
— Mas... e o tsaheylu?
— É caótico no início. Você precisa estar em sincronia com um corpo muito mais forte e ágil. E ainda assim, ter destreza o suficiente pra não ser tomado pelas emoções intensas de um thanator.
— Como assim?
— O thanator é um animal intenso. Suas emoções e instintos são mais difíceis de estabilizar em uma conexão do que o corpo forte. – Revelou ela. – Mas se você mostrar que está no controle, eles ficam dóceis até mesmo quando não há tsaheylu.
— É assim que você controla todos aqueles nas planícies? – Perguntou Aneya, girando a boleadeira para mais uma tentativa.
— Eu não os controlo. – Kaya corrigiu, observando mais uma tentativa falha do outro. - Minha coragem me fez digna do respeito deles. Aqueles thanatores lutam ao meu lado porque querem fazer isso, afinal, essa casa é deles também.
O Metkayina assentiu, ligeiramente ansioso para aprender ainda mais. Infelizmente, parecia que seu treinamento não terminaria tão rápido. Outra vez, lançou a arma para longe do alvo.
— Não precisa buscar a perfeição. O lançamento precisa se instintivo. Se continuar pensando nos próximos passos mais do que nesse, como vai avançar?
— Desculpa. – Aneya agitou a cauda, frustrado. – Vou me focar.
— Não tenha pressa. – Kaya se manteve calma. – Mantenha o giro estável e solte antes que seu punho passe na frente do alvo. Se lembre que a boleadeira está em movimento e ela terá sua própria trajetória.
Aneya balançou a cabeça, em afirmativa.
— Certo.
Ajeitando a postura e mantendo as orelhas focadas no giro enquanto os olhos se alinhavam no alvo, ele realizou o impulso no braço e soltou a arma quando julgou ser a hora certa, imaginando que ela teria uma trajetória de meia-lua.
Porém, apesar de ter previsto corretamente o movimento, o momento que soltou ainda não estava certo e, outra vez, as chamas voaram até a floresta, passando da árvore.
Teria um longo caminho pela frente.
****
— Eiji, você está bem? Se sente doente? – Tai'Ren tinha olhos preocupados na figura do garoto deitado de costas para ele.
Nos últimos dias, apesar da esperança estar forte por saber que ainda poderia descobrir algo sobre seu pai, também se sentia frustrado por não poder partir das planícies por ainda estar se recuperando da perna.
Fitou o joelho ferido, agora enfaixado e com o cheiro da pasta medicinal que Kaya gentilmente preparou para ele e rezou internamente para Eywa ajudar com a sua recuperação.
— Eu tô bem.
A resposta curta e seca do menino não tranquilizou em nada o Sully.
— Desde aquele dia na fogueira você passa a maior parte do tempo deitado. E nem tentou fugir pra vila de novo, o que é bem estranho vindo de você. – Ele se aproximou devagar por conta da perna. – Vamos, me diz o que está acontecendo.
— Já disse que não é nada! – Eiji bufou, irritado.
— Você não faz ideia de como eu posso ser teimoso. – Provocou Tai'Ren, sorrindo por se lembrar das birras similares que Nan'ti costumava ter. – Eu posso ser um irmão mais velho muito insuportável!
— Você não é meu irmão...
— Pode até ser, mas vou ser chato como um. Agora, será que pode me contar?
— Não.
— Bom, você pediu. Não diga que não avisei antes.
Tai'Ren sorriu antes de iniciar uma série de cócegas na figura minúscula de Eiji, que se contorceu inteiro diante da sensação inteiramente nova, que lhe arrancou gargalhadas que nem ele mesmo tinha escutado na vida.
O Sully riu junto quando o garoto implorou entre risos para que ele parasse, mas decidiu continuar:
— Só vou parar quando você deixar essa birra de lado e conversar comigo!
— E-eu... – Eiji ria. – Tá bom! Eu falo! Para!
O menino estava vermelho e ofegante pela estranha crise de riso e ficou ainda mais corado ao perceber que tinha rido tão alto. Contudo, seu ânimo aos poucos foi baixando quando se lembrou dos pensamentos inquietantes que vinham ganhando espaço na sua cabeça. As reações conflitantes não passaram despercebidas pelos olhos cinzas.
— Não precisa guardar tudo pra você. Por mais estranho que pareça, somos uma equipe.
— Isso é muito estranho mesmo. – Eiji deu de ombros, se sentando ao lado de Tai'Ren.
O menino ficou em silêncio por algum tempo e tocou o braço amputado. O Sully respeitou o momento de quietude, esperando que o outro falasse.
— Eu acho que a minha mãe gostou tanto daqui porque ela se tornou alguém feliz depois de conhecer os na'vis que viviam na vila. – Disse Eiji, de repente. – Cheguei a essa conclusão e, por mais idiota que seja, tô triste por isso.
— Acha que sua mãe lutou ao lado dos na'vi apenas porque foi aqui que ela se tornou alguém feliz?
O menino assentiu.
— Então, está me dizendo que chegou a conclusão que ela não era feliz com você? – Supôs o na'vi.
— Ficou meio óbvio pra mim. – Eiji concordou. – Não tinha como ser feliz naquela base. Por isso, ela deve ter gostado tanto de explorar Pandora. Ao menos, teve dias tranquilos aqui.
Tai'Ren sorriu ao ver os olhos do menino baixarem e depois se voltarem para um outro canto da cabana, lacrimejados. Descrente de estar realmente ouvindo aquilo, deixou uma das mãos pousarem nos cabelos lisos e muito escuros, afagando-os com lentidão, o que deu um leve sobressalto em Eiji. Seu corpo não sabia reagir ao afeto que recebia, mas o coração imediatamente respondeu, aumentando as lágrimas no rosto vermelho.
— O que está fazendo? – Fungou ele, tentando manter o choro silencioso.
— Como você pode chegar a uma conclusão tão boba quanto essa? – O mais velho se manteve sorrindo, deixando os dedos se movimentarem no alto da cabeça da criança.
— Não é boba! Eu pensei muito sobre isso!
— Se sua mãe era tão feliz aqui e não foi antes, por quê ela voltou para a base onde você estava?
— Ela deve ter sido capturada, ué.
— Se ela não se importasse com você, por quê diria tudo o que descobriu com os Anurai?
—...
— Eiji, ela morreu deixando a lição que aprendeu aqui pra você. E acha que ela fez isso por quê?
—... eu não sei. – Sussurrou o menino.
— Porque ela te amava, seu grande bobo. Já parou pra pensar que durante o tempo que ela ficou aqui e descobriu que poderia haver um mundo de paz, ela tenha sonhado com esse futuro pra você?
Eiji não tinha pensado em nada daquilo, mas o pensamento o fez fungar outra vez e direcionar os olhos para Tai'Ren, que parecia muito tranquilo.
— Eu não posso te dizer com certeza como sua mãe enxergava o mundo. Mas os meus pais sempre me disseram que depois que aprenderam a me amar, entenderam que esse era um sentimento que nunca vai embora. Um pai e uma mãe sempre vão amar o seu filhote. E pelas coisas que você disse, é mais do que claro que ela te amava. Não é a toa que é tão birrento! Foi muito mimado!
O garoto fungou, com raiva por estar tão exposto em seu choro, mas estranhamente agradecido por ainda ter os dedos de Tai'Ren em seus cabelos.
— Olha quem fala! – Respondeu por fim, com a voz embargada.
Tai'Ren riu um pouco mais alto do que antes.
— Não importa o que você viveu ou foi treinado pra fazer, você é só uma criança, Eiji. E sua mãe sabia disso. Por isso, independente do que encontrou aqui, ela voltou pra você e contou que existia muito mais formas de enxergar o mundo. Mas, não adianta você tentar buscar o mesmo que ela seguindo seus passos. Precisa encontrar seu próprio caminho.
Eiji refletiu outra vez. Talvez Tai'Ren estivesse certo. Sua mãe tinha lhe deixado uma oportunidade de enxergar Pandora de uma forma diferente e a cada dia que passava ao lado daqueles estranhos na'vis, estava construindo suas próprias conclusões sobre isso. Precisava deixar de buscar algo que estava preparado apenas para sua mãe.
— Quantos irmãos você tem mesmo?
— Três. – Respondeu Tai'Ren, estranhando a mudança de assunto. – Nan'ti, Luwen e Kai'lan.
— Eles devem gostar de ter você como irmão mais velho...
— Isso foi um agradecimento pelos meus conselhos?
— Não tire palavras da minha boca! – Eiji se levantou, fazendo uma careta e correu para sair da cabana.
— Ei! Onde vai?
— Espiar a vila e fugir da Kaya se ela me encontrar!
Tai'Ren riu da audácia da criança, mas se aliviou por vê-lo agir normalmente. Era até engraçado ver alguém com pensamentos tão racionais como Eiji, tirar conclusões tão simples por pura insegurança. Mas depois, o Sully entendeu que não deveria haver nada de tão estranho nisso, afinal, independente de tudo o que o Povo do Céu tinha tentado fazer, Eiji ainda era uma criança e, mesmo que se esforce, ainda não tem a maturidade de um adulto.
Um pequeno instinto de proteção se aflorou por saber que tinha ajudado o menino e isso fez Tai'Ren automaticamente lembrar de diversos momentos que precisou lidar com os pequenos dilemas da infância de seus irmãos.
Suspirou e encarou a perna ferida mais uma vez antes de deitar, prometendo a si mesmo que desbravaria a selva onde os Anurai estavam e depois voltaria para sua família o mais breve possível.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.