Dream about a day where I'll be happy somewhere else (Sonho com um dia onde eu vou estar feliz em algum outro lugar)
Instead of lying, lifeless like I'm just a rag doll on your shelf (Em vez de mentir, sem vida, como se eu fosse apenas uma boneca de pano na sua prateleira)
hear me out - Maggie Lindemann
Tai’Ren deitou a cabeça no ombro de Aneya, apertando mais o braço em torno da cintura dele. O Metkayina por sua vez, sorriu ligeiramente envergonhado e apertou mais o braço em torno dos ombros finos. Ambos eram embalados por uma chuva leve que há muito não se via nas planícies.
Sentados embaixo de uma árvore sem tantos espaços para a água os atingir, eles seguiam abraçados de forma desengonçada, apenas aproveitando o silêncio, vez ou outra interrompido quando a chuva aumentava.
— O cheiro da água da chuva me faz lembrar de casa... – Sussurrou Aneya, por fim.
— Eu ia dizer isso. – Respondeu Tai’Ren, compartilhando da saudade. – Ontem sonhei com meus irmãos.
— E foi um sonho bom?
— Foi sim. – Sorriu o mais novo. – Parecia só mais um dia normal. Você sabe como é em casa, um caos diário.
Foi a vez de Aneya rir.
— Sim, eu consigo imaginar.
— Espero que eles estejam bem.
— Eles estão. – Aneya o tranquilizou.
Ambos voltaram para o silêncio ameno, mas não por muito tempo, pois Tai’Ren de repente estava cansado de ficar sem tagarelar.
— Será que não foi uma ideia péssima deixar o Eiji e a Kaya sozinhos? Você sabe como ele é...
— Se ele não quiser morrer, vai se comportar. Mas não acho que a Kaya vai fazer alguma coisa.
Tai’Ren se inclinou para encarar os olhos azuis.
— Por que não? Ela quase acertou uma flecha em você.
Aneya pensou por algum momento. De fato, Kaya era uma figura bastante impulsiva. Mas, conforme passava mais dias com ela em seu treinamento, começou a entender por que a mulher não costumava hesitar em certas situações. Um segundo pode mudar tudo, foi o que a escutou dizer uma vez.
— É complicado. – Respondeu, finalmente. – Ela não sabia nada sobre o Eiji, mas sabia sobre o Povo do Céu. E bom, você já sabe o resto.
Tai’Ren franziu o rosto, em uma expressão tristonha.
— Sim... tem razão. – Sussurrou. – Deve ser difícil perder um filho assim. Não me parece natural, um filho morrer antes dos pais.
— Não é mesmo. Mas, ainda assim, acho que, mesmo com muita raiva, a Kaya não seria capaz de matar uma criança.
— Você tem aprendido bastante com ela, não é? – Tai’Ren perguntou, com um sorriso.
— Eu aprendo o básico. – Corou ao pensar em seu desempenho nos treinos. – Mas é tudo muito diferente. Eu nasci pra água. Lutar com as armas feitas nas planícies, em terra firme e aberta, é muito complicado.
— Mas você não está aprendendo só a lutar. – Corrigiu o mais novo, com olhos espertos.
Aneya assentiu, agradecendo a tentativa do outro para que ele não desanimasse. Tai’Ren não estava errado. Fazia parte do treinamento do guerreiro das planícies diversas atividades, que incluíam técnicas de combate e manuseio de armas, desde as mais estranhas como a boleadeira de Kaya, até as mais conhecidas como o arco.
Contudo, além disso, era necessário absorver a essência da cultura dos Anurai. E, para isso, o Metkayina iniciou os aprendizados como artesão, pois os conhecimentos adquiridos faziam parte de um dos testes que precisava para, de fato, ser considerado um guerreiro das planícies.
— Até a parte de esculpir é difícil. – Admitiu Aneya.
— É sério? Achei que fosse muito tranquilo pra você, já que treinou tanto escondido de mim quando estávamos em Awa’atlu. – Provocou.
— Ei, eu só queria te dar um presente bonito. – O maior se encolheu. – Pra isso, tinha que treinar.
Tai’Ren fitou o peixinho em seu peito, com carinho, mas depois seu estômago roncou.
— Você não faz ideia da saudade que eu tenho de comer peixe.
— Ah, eu sei sim. – Aneya riu. – Consegui escutar.
Eles riram baixinho e o mais novo aproveitou para deitar novamente a cabeça no ombro robusto. Aproveitou para respirar profundamente o ar úmido trazido pela chuva, relaxando os músculos.
— Está ansioso? – Aneya quebrou o novo silêncio instaurado.
— Hm? Com o quê?
— Com a viagem. Vamos encontrar todos os que moravam aqui lá na floresta dos Tawkami, lembra?
— Ah, é claro. Ainda é até difícil de acreditar que ainda posso descobrir algo sobre o meu pai.
— Viu, só? O esforço não foi em vão. – Respondeu o Metkayina, mas depois um pensamento lhe ocorreu. – Tai’Ren?
— Hm?
— E quanto a sua mãe? Depois da floresta, temos que partir para descobrir algo sobre ela.
— Na verdade, não precisamos fazer isso. – Revelou Tai’Ren, deixando o outro confuso.
— Por que não?
— Eu conversei com os meus pais sobre isso e tive bastante tempo pra ir pensando ao longo da nossa viagem...- Começou ele, reflexivo. – Mas não acho que deveríamos nos arriscar assim. Sabemos de qual povo minha mãe vem e meu tio Lo’ak comentou que não sobrou muitos na’vis do clã das Cinzas. Ir até a terra onde eles moram demoraria muito e com certeza, vamos se arriscar demais.
— Mas... você não fica triste quando pensa em nunca descobrir nada sobre ela?
— Eu fico sim. – Respondeu com sinceridade. – Mas eu já atravessei o mundo com você, sobrevivemos a tanta coisa e eu já estou muito feliz de saber que, ao menos, a família do meu pai está viva. Eu só quero ir pra casa.
Aneya se sentiu estranhamente dividido com as palavras que escutou. Uma parte de si queria continuar, mas era inegável admitir que Tai’Ren estava certo. Viajar até o lar de um famoso clã na’vi assassino sem qualquer garantia, não parecia ser o caminho mais inteligente.
E no fundo, ele também sentia muita falta de casa.
— Entendo... – Respondeu. – Espero que um dia, Eywa diga pra você algo sobre sua a mãe. É importante não perder a esperança.
Tai’Ren sorriu, agradecido pelas palavras.
— Se for a vontade de Eywa, eu só teria a agradecer.
Eles se abraçaram direito dessa vez, até que Tai’Ren deixou o corpo pesar para puxar Aneya até a grama molhada pelo chuvisco. O Metkayina corou, mas já estava acostumado com as investidas do rapaz, então sorriu, se divertindo.
O mais novo apreciou a face sorridente de seu amado e fez uma nota mental de uma melodia que invadiu seus pensamentos. Viver sentimentos tão intensos e novos era muito bom. Podia sentir seu coração acelerado quando puxou o rosto de pele mais clara contra o seu.
Quando firmaram um beijo suave, Tai’Ren desejou voltar o quanto antes para Awa’atlu, onde poderiam rolar pela areia, se abraçando e rindo. Depois, poderiam nadar juntos como já fizeram tantas outras vezes.
Ao menos assim, poderia aproveitar essa fase nova de sua vida sem o medo constante de estarem expostos ao perigo.
Aneya não pensava muito durante o beijo. Felizmente, já não tinha tanto o nervosismo ao partilhar aqueles momentos mais românticos com o rapaz. Bom, ao menos não no começo. Mas bastava Tai’Ren passear os lábios por sua pele que automaticamente seu coração ameaçava sair pela boca.
Ele até tentava controlar o impulso de se afastar nesses momentos, mas sua insegurança sempre acabava vencendo.
Percebendo a distração do maior, Tai’Ren o empurrou para que alternassem as posições e Aneya deitasse na grama. O beijo foi rompido rapidamente para que ele perguntasse:
— Está bem?
— S-sim... – Aneya gaguejou. – Desculpe.
Os olhos cinzas se estreitaram por um segundo e ele mordeu os lábios para conter um sorriso depois de ter uma ideia brincalhona.
Usando sua melhor expressão galanteadora, Tai’Ren aproximou os lábios do pescoço clarinho de Aneya e imediatamente sentiu o corpo abaixo do seu tencionar.
O Metkayina tentou controlar o ritmo do coração quando sentiu a respiração quentinha em sua jugular e manteve os olhos no céu claro, sentindo os pingos gelado de chuva tocarem seu rosto. Porém, nada daquilo o relaxou e quando ele se preparou para se afastar outra vez, Tai’Ren o fez antes, rindo.
— Deixei você sem graça, não é?
— Isso foi de propósito!? – Questionou, em um misto de vergonha e raiva.
Tai’Ren depositou um beijo na bochecha escurecida.
— Foi uma brincadeira! Fazia tempo que eu não te via assim. – Riu ele, carinhoso.
Aneya revirou os olhos.
— Bem engraçado.
Ainda risonho pela expressão estressada do mais velho, Tai’Ren se ajeitou para sentar na grama outra vez, porém, um apoio errado fez seu joelho protestar, o que automaticamente arrancou um gemido dolorido de seus lábios.
— Ai!
Aneya se ergueu rapidamente.
— Toma cuidado! – Soou preocupado, observando a perna do outro. – Onde dói?
— Meu joelho... – Tai’Ren parecia frustrado. – Eu não sei mais o que preciso fazer pra melhorar.
— Se esforçou muito enquanto estava ferido, sabe que seu joelho nunca melhorou completamente. E convenhamos, você não me obedece quando mando você descansar!
— Certo, por que não voltamos? Tá me dando bronca todo dia! – Reclamou emburrado.
— Você merece. – Respondeu Aneya, se levantando e puxando Tai’Ren para que se apoiasse em seu ombro. – Vamos voltar logo. E nada de fugir do repouso.
***
Eiji estava terrivelmente concentrado.
Com delicadeza, ele organizou a pequena pilha de bonecos de madeira em dois grupos, montando uma verdadeira vila do seu jeito. Olhou para o grupo da esquerda, formado por figuras na’vis e ikrans, e depois para o da direita, com mais na’vis e alguns thanatores.
— Prontinho. Vocês... – Apontou para o da esquerda. – São os “resistentes da floresta”. E os outros são os “guerreiros das planícies”!
Com sua única mão, o menino puxou dos bolsos surrados diversas pedrinhas que tinha pegado nos últimos dias, quando caminhou ao lado de Tai’Ren. Usou as pedras de tamanhos e cores variadas para construir delimitações ao redor dos dois grupos. Depois, utilizou alguns pedaços menores de madeira – dos quais tinha agilmente roubado da mesa de trabalho de Aneya – para formar o que pareciam ser cabanas dentro dos limites das pedrinhas. Ele tinha tomado o cuidado de pintá-las de cores diferentes com as misturas que Aneya estava aprendendo a extrair das árvores e das plantas.
Depois de longos minutos trabalhando em sua “construção”, o menino se afastou para observar, tremendamente satisfeito com o trabalho. Eiji então começou a guiar um dos bonecos de na’vi para os extremos da sua vila, guiando-o até a vila vizinha, iniciando um pequeno embate.
Alheio, ele não percebeu que dois olhos dourados lhe observavam atentamente.
Kaya franziu o rosto ao ver a criança entretida há pelo menos uma hora, imersa em uma história que não fazia muita questão de entender. Até pensou em tomar os brinquedos, mas sabia que não pertenciam a ninguém da vila.
Aneya estava tão focado em treinar suas técnicas como artesão que vinha esculpindo formas minúsculas e diversas. Como quem não quer nada, Eiji observava o trabalho do outro e certo dia tomou coragem de pedir alguns dos bonecos, mas sem explicar a finalidade. O Metkayina estranhou o pedido, mas cedeu e depois disso fez muitos outros para o menino.
Ainda assim, era difícil para a mulher desviar os olhos da figura intrusa que brincava na vila. Os dias vinham se passando rapidamente desde a chegada deles, mas por incrível que pudesse parecer, estavam desfrutando de um período de paz. Isso era claro pela forma como o menino mantinha toda a guarda baixa e nem sequer notava a presença de Kaya.
De toda forma, seus pensamentos foram interrompidos quando escutou passos logo atrás de si. Aneya e Tai’Ren sorriram quando surgiram em seu campo de visão.
— Pronto pra caçar? – Perguntou para seu primeiro pupilo.
— Estou sim, só preciso colocar o Tai’Ren de repouso. – Respondeu.
— Ei, eu posso voltar sozinho!
— Sem problemas. – Kaya ignorou a reclamação do menor.
Aneya olhou rapidamente para Eiji, que parecia mais concentrado na batalha que tinha começado entre as vilas na’vi do que neles.
— É estranho ver ele brincar. – Disse, verdadeiramente surpreso.
— Ele é só uma criança, no fim das contas. – Tai’Ren respondeu. – É bom que agora ele possa se lembrar disso.
— É, você tem razão. Mas tenho certeza de que esse menino anda pegando meu material... – Reclamou o Metkayina, estreitando os olhos enquanto olhava para a cena que ocorria mais a frente.
— Deixa ele, o que não falta aqui é madeira pra fazer mais!
— Espero você no campo aberto. – Disse Kaya, deixando os dois a sós.
— Viu, só? – Aneya sussurrou. – Eu disse que ela não faria nada com ele. Agora vamos.
— Você não tem jeito mesmo... eu já disse que posso me cuidar.
Mas os protestos do Sully foram veementemente ignorados até que ambos chegassem no abrigo, que agora estava mais reforçado. A chuva já estava muito mais amena e felizmente, já estavam acostumados com a ausência do clima tropical de Awa’atlu.
Aneya organizou tudo o que o outro precisaria para ficar quieto e repousando, mas não se iludiu. Tinha certeza de que seus esforços não seriam respeitados. Então, optou apenas por dar um beijo na testa do rapaz emburrado antes de sair para encarar a nova fase de seu treinamento.
***
Apesar da dificuldade, aprendeu a lidar com a boleadeira ao ponto de conseguir atingir alvos fixos. Foi um processo árduo e que lhe rendeu algumas queimaduras, mas tinha conseguido vencer. O problema é que em uma luta, os alvos não ficavam parados como uma árvore. Era necessário saber usar a boleadeira ao ponto de prever sua rota de forma que ela encontrasse o alvo em movimento.
E era exatamente isso que Aneya precisava fazer agora.
Ele olhou nervosamente para Kaya, que já estava a postos ao lado de seu thanator. Ver o animal, que passava a admirar cada dia mais, o empolgou por um momento:
— Quando eu vou poder ter o meu?
— Não está pronto ainda. – Respondeu a mulher simplesmente. – Vamos, eu nos guio e você consegue a caça.
— Mas... – O rapaz engoliu o seco. – E se eu não conseguir?
— Ficamos sem comer hoje. – Disse Kaya, com naturalidade.
Aneya pensou no estômago barulhento de Tai’Ren e se encolheu. Precisava dar um jeito de conseguir. Tentando não se mostrar tão abalado, ele aceitou quando a mulher lhe estendeu a mão para montarem no thanator.
Estar em cima da criatura que quase tomou sua vida logo no início da viagem foi muito estranho no começo, mas aos poucos o Metkayina começou a entender a natureza dos thanator e a se afeiçoar ao animal. Agora, ele estava até ansioso para poder conseguir quem sabe, um dia correr com um.
Kaya sibilou, fazendo o jovem thanator disparar através da terra molhada, passando pelas inúmeras carcaças antigas com maestria.
— Mantenha os olhos atentos. – Instruiu ela. – A presença do thanator pode afastar as presas. Precisa agir rápido. Ataque antes que ela sinta nossa aproximação.
Parecia simples ouvindo-a falar daquela forma, porém, o rapaz sabia que não seria fácil. Para não dificultar ainda mais a tarefa, Kaya desacelerou quando chegaram em uma área já conhecida por ter presas.
Com seus comandos, o thanator avançou como um felino, encostando as patas levemente no solo de grama baixa. Por sua estatura e a geografia da região, era impossível se ocultarem.
Aneya controlou a respiração instintivamente e estreitou os olhos, girando a boleadeira com cuidado. Em um terreno amplo, sem locais para se esconder, não era difícil encontrar uma presa. No entanto, era impossível passar despercebido também.
No fim das contas, vencia o mais rápido.
Identificando rapidamente um animal, Aneya acelerou a rotação da arma e Kaya se aproximou, bem atenta aos movimentos do jovem guerreiro. Quando um leve estalo fez a presa erguer a cabeça, o Metkayina soltou a arma que girava em seus dedos, vendo as cordas travarem uma rota até se enrolarem em suas pernas, derrubando-o instantaneamente.
Kaya não pôde conter a surpresa pela tentativa bem-sucedida e o rapaz não perdeu tempo, desceu do thanator e puxou um punhal para terminar a caçada do animal que se contorcia tentando soltar as pernas.
Agradeceu a vida cedida ao cravar a faca, tirando a vida do animal com o menor sofrimento possível.
— Foi muito bem. – Escutou a voz feminina se aproximando.
— Ainda nem consigo acreditar. – Aneya de repente ficou eufórico e muito orgulhoso. – Não dava pra voltar sem nada e deixar todos com fome.
— Parece que você realmente leva as coisas a sério quando está sob pressão.
— É o que dizem... – Respondeu, lembrando de Tai’Ren faminto e sentindo-se muito feliz por ter conseguido.
— Será que consegue se tentar de novo? – Desafiou Kaya. – Ou foi sorte?
Engolindo o seco, Aneya se levantou.
— Podemos tentar outra vez. – Assumiu, incerto, recebendo um sorriso zombeteiro em resposta.
— Era só uma brincadeira. Vamos voltar. Terá outras oportunidades pra me provar se foi sorte ou não.
***
Horas depois, quando a noite se colocou sobre eles e todos puderam jantar, Tai’Ren aproveitou que Aneya estava focado nas tarefas de escultura ao lado de um curioso Eiji, e seguiu por uma das trilhas em direção à Arvore das Almas.
Desde que escutou a trágica história de Kaya, se via bastante reflexivo sobre os acontecimentos ocorridos ali e como eles impactaram todos aqueles que um dia tiveram suas vidas de paz nas planícies.
Se perguntou se há muitos anos atrás, seu pai corria por aquele caminho, talvez ao lado de amigos. O que ele teria sonhado descobrir quando decidiu abandonar seu lar e se aventurar em Pandora? Se ele partiu sozinho, como teria conhecido sua mãe? Teria ele ido até as terras do clã das Cinzas?
Balançou a cabeça, não faria diferença criar teorias.
Mancando, Tai’Ren atravessou os círculos de pedras abandonados, mas antes, tomou o cuidado de pegar um dos instrumentos presentes na pilha de outros igualmente esquecidos. Observou as cordas e as dedilhou para checar se continuavam firmes antes de seguir para dentro da caverna.
Era difícil não se surpreender sempre que adentrava o local. As inúmeras árvores enfeitadas com totens ornamentavam o caminho até o fundo da caverna, onde o brilho sereno da Arvore das Almas acolhia quem quer que se aproximasse.
Tai’Ren deixou os olhos descansarem por alguns segundos nos movimentos suaves dos filamentos etéreos da árvore, antes de se sentar diante dela, observando diversos brinquedos coloridos dispostos diante de um declive que dava para o interior das raízes luminosas.
Não era difícil saber que era uma forma de Kaya manter o filho – já unido às raízes da árvore – perto dos brinquedos que ele gostava tanto.
— Eu sinto muito que tenha vivido tão pouco. – Sussurrou, em uma tristeza sincera. – Sinto por todos vocês.
Desde que soube tudo o que havia acontecido por ali, Tai’Ren se via atordoado. Por muitos anos, viveu tão alheio às mazelas do mundo, por conta do amor que recebia de seus pais, que agora encarar a morte de forma tão cruel parecia torturante.
— Eu pretendia cantar essa música quando pudesse velar os meus pais, mas sei que vocês amam música e que ninguém canta aqui há muito tempo, então, espero que possam escutar.
Tentando se conectar com o instrumento, que não tinha sido feito por suas mãos, deixou os dedos trabalharem mais uma vez nas cordas, conhecendo os sons antes de começar a trabalhar nas notas que tinha criado muitos antes de ir embora de casa.
De olhos fechados, Tai’Ren permitiu cantar uma melodia doce de despedida, onde desejava paz aos que partiram e muita coragem aos que ficaram. Por um instante, Tai’Ren teve um vislumbre da paisagem que via do penhasco da ilha onde cresceu.
Apesar das memórias não serem tão vívidas, as vezes, quando cantava, era quase como se elas brilhassem diante de seus olhos outra vez. Ao mesmo tempo, relembrar das vozes que escutou quando pôde realizar a conexão ao lado de Aneya o encheu de compaixão.
Por um instante, desejou ter tido a chance de desfrutar das noites de música com todos os que viviam na vila. Esperava de coração que eles pudessem escutar sua canção e desfrutar, mesmo que ao lado de Eywa.
Quando deixou a última nota ecoar, abriu os olhos com calma, apenas para perceber que não estava sozinho na caverna. Kaya se aproximou com passos lentos. Seus olhos estavam marejados quando tocou seu ombro.
— Obrigada. – Sussurrou. – Pela música.
— Não precisa me agradecer. – Respondeu Tai’Ren, voltando a deixar os olhos descansarem nos brinquedos. – Sinto muito, Kaya. Pela sua perda. Quantos anos ele tinha?
— Dez. – Ela se sentou ao lado do Sully.- Foi muito difícil pra ele ficar longe de todos, mesmo assim, ele não quis me deixar para trás. Tudo teria sido diferente se ele tivesse ido embora com todo o clã.
— Isso não significa que foi culpa sua o que aconteceu. Todas essas mortes são consequências da guerra. Meu pai, Neteyam, sofreu muito por todas as lutas que teve que travar. Ele disse que nunca mais foi o mesmo. Talvez...- Os olhos cinzentos fitaram a Arvore das Almas. - ...você nunca seja a mesma de novo. Mas, isso não significa que sua vida acabou ou que não pode ser feliz outra vez.
— Eu pensei muito sobre isso. – Admitiu Kaya, com pesar. – Antes de vocês chegarem, eu protegia esse solo com toda minha vida, porque todos aqueles que eu amei fazem parte dele agora. Mas...
A voz dela falhou e Tai’Ren buscou seus olhos.
— Mas...- A incentivou.
— Mas eles não estão mais nessa terra. – Respondeu ela, falhando em conter as lágrimas grossas que varreram as bochechas magras. – Meu filho, o pai dele, meus amigos... todos estão com Eywa. E eu fiquei sozinha aqui. Pensar que eles estão aqui, faz eu me sentir menos solitária.
— Não precisa ser assim.
— E por quê?
— Você pode vir conosco em busca dos Anurai que sobreviveram. Não acha que eles ficariam felizes em te ver?
— Alguém precisa proteger o totem. – Respondeu ela, balançando a cabeça.
— Eu sei o quanto consideram o passado importante. Mas do que adianta preservar o totem se todos os que vivem hoje morrerem? Um dia você vai partir também, Kaya. E então, não restará ninguém pra proteger tudo o que existe aqui. Por isso, eu acredito que o primeiro passo pra vencer essa guerra é se unindo, mas sei que é uma decisão apenas sua. Só quero que saiba que nosso convite sempre vai estar de pé!
Tai’Ren sorriu, antes de se levantar. Ele se preparou para deixar o instrumento ali, perto da árvore, mas Kaya tocou seu braço.
— Fique com ele.
— Mas...
— Foi eu quem o construiu. – Revelou ela. – Um instrumento com o som tão bonito não foi feito pra ser abandonado. Leve-o com você.
Agradecido pelo presente, o rapaz sorriu mais uma vez antes de voltar, deixando a mulher sozinha.
Kaya, por sua vez, tocou a grama verde, repleta de bioluminescência com a chegada da noite. De olhos fechados e o rosto molhado, ela sabia que precisava tomar uma decisão.
Só não esperava que isso fosse ser tão difícil.
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