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História Bacanal - Sexo e uva


Escrita por: staNormaniNase

Notas do Autor


Foto de capa: garanhão Akhal-Teke, raça de cavalos de Apolo.

Capítulo 19 - Sexo e uva


Fanfic / Fanfiction Bacanal - Sexo e uva

Antes de me ofender

Antes de se afastar

Gosto de você, pra começar.

Gosto de você, pra começar.

Antes de entristecer

E antes de me culpar

Gosto de você, pra começar...

— Cícero, “Porta, Retrato” (Adaptada)

 

 

Eros respirou fundo bem devagar, franzido de leve o cenho branco. Tinha espalhado chá de camomila pela mesa inteira, lascando a sua linda porcelana chinesa, enchendo o ar com seu aroma delicado. Mas o perfume de Apolo também chegava com facilidade as suas narinas. Ele tinha um cheiro levemente adocicado parecido com própolis, e algo mais seco e suave por baixo, como aveia ou cereais. Porém, o que riscou linhas na sua testa, foi outro cheiro impregnado nele. Algo mais forte, apelativo, e extremamente familiar ao deus do Amor.

— E então, tio querido? — Eros questionou, exprimindo as palavras entre os dentes perfeitos numa falsa paciência raivosa. — Vai ficar só olhando para a minha cara linda? Podia ter pedido um quadro!

 — Não se faça de inocente, Eros! — Apolo rosnou, mostrando os dentes compridos e brancos. O Amor achava nunca o ter visto tão furioso na vida e eles tinham um histórico bem comprometedor nesse sentido.

Suas pupilas eram pontinhos minúsculos no céu do azul dos seus olhos, os cabelos lisos e dourados estavam completamente desordenados, esparramados pela sua testa morena, e os punhos fechados tremiam de raiva contida. Ele parecia uma força da natureza, como uma tempestade de areia ou incêndio natural. O que era absolutamente estranho aos seus modos sempre polidos, pensados e contidos. Todavia, se havia alguma reserva de cometimento e frieza lógica nele agora, estava muito bem oculta pela sua pele bronzeada e febril, esquentando causticamente o ar ameno a sua volta. E o ardor incendiário por detrás das suas íris azuis parecia extremamente destrutivo. Mas, seja lá qual motivo o tenha levado a isso, não era exatamente desagradável de se ver.

Eros não pode deixar de se impressionar com a beleza dele, mesmo a aquele risco. Sempre achara Apolo estonteante. O filho de Afrodite entendia por que a maioria o tinha elegido como o mais belo entre os deuses. Tudo nele espelhava a graça da mãe, parecendo equilibrado e convidativo. Sua áurea afetiva contribuía, sem dúvida. Porém, ele próprio não estava tão certo quanto a isso. Podia ser a fusão perfeita do encanto dos dois gêneros e de fato era. Mas havia algo mais no deus do Sol. Uma solidez máscula, uma timidez intrigante e uma sensualidade distraída que ele nunca poderia imitar. Além do mais, existe algo na cólera masculina que lembra intimamente a virilidade. E aquela raiva cadente só servia para deixá-lo mais bonito.

"O quanto nós não poderíamos nos aproveitar se não fosse por essa rixa estúpida..." O Cupido se lamentou, para si mesmo, quase deixando um sorriso mínimo entregar seus pensamentos. "O pior disso tudo, Apolo, é que, no fundo, eu gosto de você." E, de fato, sorriu sem querer. "Eu sempre gostei de você...".

Mas seus devaneios afetivos foram interrompidos quando ouviu Apolo gritando:

— ... pelo amor de todos os deuses, me diga de uma vez, por que você fez isso?

— Um momento aí! — o anfitrião exclamou, erguendo um dedo fino e elegante para ele, depois de despertar dos seus sonhos lúcidos com uma sacudida de cabeça. — Você vem até a minha casa sem ser convidado, quase quebra o meu pescoço e eu que tenho que me explicar? — por pouco não gritou, completamente indignado. "Nem tanto, querido..." — Não mesmo, Polly!

— Eu não estou com clima para brincadeiras...

— E eu não estou rindo. — o Cupido sibilou, estreitando os olhos escuros e cruzando os braços sobre o peito. "Por que tão difícil?..." — Pode começar me dizendo por que invadiu a minha sala com esse cheiro de sexo...

Antes que pudesse completar, Apolo quase avançou nele.

— Muito bem! Muito bem! ‘Pera lá! — Eros ergueu as mãos em rendição, se afastando uns bons cinco passos dele. Lançou um olhar alarmado para a porta, temendo encontrar Anteros ali, mas o irmão não entrou. "Ele é capaz de deixar Apolo me sacodir bastante antes de interferir, só para poder dizer 'Eu te avisei' com o máximo de drama..." O Amor pensou, fazendo careta.

— Você é inacreditável... — Apolo quase cuspiu, negando com a cabeça. — Não bastava ter feito isso não uma, nem duas vezes! — sibilou, os lábios tremendo de raiva. — Você tinha que fazer de novo...

— Apolo...

— Não importa quanto tempo passe, nem o que eu diga, você não nunca vai me perdoar...

— Apolo, o que...

— E eu nunca vou estar quebrado o suficiente para você!

— Mas eu...

— Não me vinguei na primeira vez, por que entendi que merecia. Na segunda... — ele engoliu a seco, rangendo os dentes, como se alguém tivesse acabado de cravar uma faca na sua pele. — Eu estava destruído demais para sequer pensar nisso...  Mas não! De novo não! — Apolo exclamou, os olhos muito abertos nele. — Você não vai me destruir outra vez!

O Cupido ficou absolutamente calado desta vez, sustentando o olhar dele com aquelas impiedosas íris negras, oscilando-as entre o par de globos azuis do antigo rival, o rosto quase tão liso quando o do irmão.

Os caquinhos foram se juntando na sua cabeça.

Dionísio fora entregar o convite da festa do século a Apolo pessoalmente, como ele havia sugerido. Porém, o deus do Amor não vira o amigo depois disso e não pode perguntar como aquilo tinha acontecido. Então o pequeno simplesmente desaparecera sem nenhuma explicação no próprio palácio, deixando ele e as bacantes a beira do desespero. Mas Apolo o tinha encontrado. Não! Hermes o encontrou, o que não explicava por que foi o Sol que ele viu sozinho na sacada com o deus do vinho. Que, por sinal, passou a noite bem longe de casa...

Tentou lembrar-se dos rostos deles naquele momento. Bochechas coradas, pupilas dilatadas e lábios úmidos. Os sinais estavam ali, devia ter prestado mais atenção. Os dois eram quase elementos reagentes, esperando o contato para entrar em ebulição. Eros vira isso: aquela ansiedade temerosa, quase audível; aquele estremecer mal contido de desejo repentino; aquele pesar em ter que tirar o outro de vista. Apolo poderia ter lutado o quanto quisesse e provavelmente tinha feito isso. Mas Eros conhecia Dionísio. Sabia qual era o gosto daquela boca e a textura da sua pele macia, sabia o quão languida e insana era a sua áurea, o quão entorpecente era o seu perfume, e o quão tentadora era a sua presença. Sabia que bastava um toque, um beijo, um mínimo de descontrole, e ele estaria perdido.

Então Apolo estava ali, tremendo de ódio, e cheirando claramente a sexo...

E uva.

— Você fez amor com Dionísio. Percebeu o quanto está apaixonado por ele. E acha que a culpa é minha. — concluiu por fim, muito calmamente.

"Previsível, Eros, previsível..." O Amor pensou, querendo beliscar a si mesmo. "Às vezes acho que Anteros está certo em me tratar como um idiota."

É claro que Apolo achava que isso era seu feito. As duas únicas vezes em que sentira algo parecido aconteceram sobre a interferência direta do deus da paixão. É claro que ele estava furioso com isso. No momento que fora humilde o suficiente para tentar uma trégua pacifica, era acometido por essa paixão descontrolada e destrutiva. É claro que estava com medo. Já bastavam-lhe os louros na cabeça e os jacintos vermelhos dos jarros do seu quarto, não precisava de parreiras para assombrá-lo também.

Então era isso. O Sol achava que ele o tinha feito desejar insanamente o pequeno deus do vinho, somente para depois arrasá-lo com isso. Afinal, ele tinha esse poder. Apenas mais uma vingança cruel, mesquinha e tardia. O deus do Amor devia ter antevisto isso. Seria difícil para o deus da razão acreditar que algo tão poderosamente irracional nascera sozinho no seu coração, inda mais depois de tudo pelo que tinha passado, depois de quatro séculos de solidão prudente e auto defensiva. Mas nem sempre a verdade é facilmente tragável ou faz sentido.

A verdade não tem nenhum compromisso.

Aquilo devia ter sacodido tudo o que tinha por certo e lógico, abalado seus princípios coerentes, derrubado mais do que uma das suas paredes internas.  Seria mais fácil negar isso, fugir como os bichos fazem nas tempestades e incêndios repentinos. E, se tudo falhasse, arranjar alguém para levar a culpa.

E o antigo rival, já com tanta culpa a manchar lhe o histórico, fora o previsível escolhido.

Mentalmente, Eros relevou as marcas roxas que já apareciam no seu pescoço.

— Eu finalmente entendo a sua raiva evidente, Apolo. E você estaria certo... — ele disse, tentando parecer diplomata e calmo como o irmão. — se não estivesse errado. — "Ah sim, Anteros gostaria dessa..." Ele pensou, antes de afirmar seriamente — Mas eu simplesmente não fiz isso.

Apolo fez a última coisa que ele imaginava que faria naquele momento.

Apolo riu.

O riso mais amargo e incrédulo que ele ouvira na vida.

*

— M-mas... o que... como...? — Aurora balbuciou, entre o encanto e o choque.

Dionísio riu para ela, ainda focado no vaso lotado de jacintos vermelhos como sangue mortal a sua frente.

— Elas só precisavam de um carinho, não? — disse ele, cutucando a plantinha como se desse a ela a deixa para responder.

— Elas são muito bem cuidadas, meu senhor... — a serva murmurou, acanhadamente.

— Oh, eu sei que sim! — ele exclamou, com ares de desculpas. — O solo está perfeito e daqui tomam a quantidade certa de sol. — acrescentou, remexendo minimamente no vaso de porcelana pintada em azul. — Não foi o que eu quis dizer.

Aurora chegou mais perto, analisando metodicamente as flores rubras.

— Senhor, por favor, me diga... o que estamos fazendo errado? — ela perguntou, com os olhos baixos.

Dionísio se virou para ela de imediato.

— Há uma chance muito pequena de que isso seja culpa de vocês servos. — ele tranquilizou, inclinando a cabeça morena até encontrar os olhos dela lá embaixo, as melenas cacheadas caindo nas suas pálpebras. — Plantas, especialmente as que dão flores, são extremamente sensíveis aos humores da casa. — ele explicou, acarinhando as pétalas recém-avivadas dos jacintos. — Às vezes só é preciso dizer a elas que está tudo bem...

Depois da declaração catastroficamente sincera do deus do vinho a um Apolo ausente, a serva perdera completamente o controle e simplesmente agarrara o menino, o abraçando apertado, e afogando o rostinho dele no meio dos seus seios. Depois passara os próximos dez minutos se desculpando desesperadamente pelo seu atrevimento impensável. Dionísio acabou com aquilo tudo dizendo abraço era abraço, que ele gostava de ser abraçado sim, e que ela podia fazer isso quantas vezes quisesse. Ela aproveitou a oportunidade e pediu para apertar a bochechas dele também. Ele apenas riu dela dizendo que, mais cedo ou mais tarde, todo mundo pedia isso...

Ele tinha um apetite louvável. Comeu tudo o que ela colocou ao seu alcance e bebeu pelo menos dois litros inteiros de leite com mel. Dava gosto cozinhar para ele e mais ainda servi-lo. Quando não restava mais nenhum espacinho disponível dentro dele, Aurora sugeriu que eles explorassem o Palácio da Luz, enquanto Apolo não chegava. Já que, claramente, o menino queria esperar por ele e parecia inquieto demais para fazer isso sentado. Claro que ele aceitou a ideia, batendo palminhas de animação.

Foram à varanda, larga e espaçosa. Ás fontes termais rodeadas de jardim nos fundos do palácio. Aos chafarizes esculpidos em mármore branco na frente. À biblioteca gigantesca dos andares superiores. À belíssima e generosamente lotada sala de música. Ao observatório na torre leste. À estufa de flores raras na oeste. Até as cozinhas o menino quis conhecer. Mas, sem dúvida nenhuma, o que ele mais gostou de ver foram os Akhal-Teke dourados, esguios e elegantes que puxavam a carruagem de passeios do deus do sol, nos estábulos impecavelmente limpos do castelo. A raça milenar dos cavalos era conhecida por ser teimosa e desconfiada, e era preciso um pulso firme, sendo necessários muito tempo e paciência para ganhar a sua confiança...

Em tese.

O primeiro alazão em que Dionísio tocou, esfregou o focinho na mão dele, baixando a cabeça comprida em completa submissão. Ele foi de um e um, perguntando seus nomes, conversando com eles e lhes fazendo carinho nas crinas louras. Todos agiram como se ele fosse um velho amigo com contato recente: cheiravam seus cabelos castanhos, abrindo as narinas compridas, depois bufavam carinhosamente e esfregavam o focinho rosado nele. Um potro, mais jovem e voluntarioso, chegou a lamber o seu rosto, arrancando dele uma risada de pura felicidade.

O menino tinha um jeito especial com os animais, estava claro, assim como também tinha com as plantas. Absolutamente todos os cômodos do lugar eram enfeitados ou com ramos de louro banhados a ouro, ou com vasos de jacintos, quebrando a uniformidade branca, azul e dourada do palácio com suas pétalas escarlates. Logo no primeiro buquê, Dionísio parou a frente da planta, com o olhar concentrado de um cientista e pegou um botão vermelho entre os dedos.

— Por que você está tristinha, plantinha? — ele perguntou para ela, seriamente. — Eles não cantam para você?

De fato, a maioria das flores dentro do castelo, tinham um ar abatido e cansado, como se lhes faltasse água ou sol. O que não era, de forma alguma, o caso. Assim como tudo naquele lugar, os jacintos eram impecavelmente cuidados. E mesmo assim tinham os caules frouxos e a cor esmaecida. Aurora já não sabia mais o que fazer com eles. Então Dionísio começou a cantar.

Ela não teria acreditado se não tivesse visto.

Como que impulsionadas pela própria vida, as flores começaram a mudar.

**

“Fiz amor...” Apolo ironizou, acidamente na própria cabeça, ainda rindo naquele tom assustador. As nódoas rubras e o sangue dourado no corpo frágil e delgado de Dionísio pipocavam na parte de dentro das suas pálpebras toda vez que ele piscava.

Vinte e seis.

Ele contara vinte e seis marcas arroxeadas, variando entre chupões grosseiros e mordidas ferais, enquanto as curava, rezando covardemente para que o menino não acordasse enquanto isso.

Dezoito.

Haviam dezoito linhas escarlates feitas à unha distribuídas entre a pele macia dos seus braços e costas.

Três.

Três queimaduras protagonizavam aquela pantomima cruel e dolorida.

Vinte e seis nódoas, dezoito arranhões, três queimaduras e alguns mililitros de icor; em apenas um metro e sessenta e quatro de pessoa.

Um metro e sessenta e quatro de pele alva ridiculamente macia.

Um metro e sessenta e quatro de curvas suaves e músculos delicados.

Um metro e sessenta e quatro de inocência lasciva e sinceridade explícita.

Um metro e sessenta e quatro de Dionísio...

"Fiz amor?" Apolo ainda perguntava, enquanto o riso morria morbidamente na sua boca.

Assistindo-o, Eros separava levemente os lábios rosados, entre a dúvida receosa e surpresa tensa. "Tem mais nessa história do que eu pude deduzir..." o Cupido pensou, estreitando os olhos escuros.

Apolo parecia completamente perdido em algum lugar dentro de si mesmo ou no escuro fugaz do piscar das suas pálpebras, os olhos desfocados e distraídos, os lábios pálidos e partidos. A expressão indignada de quem vê alguém espancando um filhote de felino.

Eros se aproximou dele muito devagar, como se fosse uma raposa assustadiça.  Antes que estivesse perto o suficiente para tocá-lo, começou a transpirar. O espaço pessoal do deus do sol parecia uma sauna particular e o Cupido tinha certeza que, se encostasse nele agora, sairia com uma queimadura feia para contar a história.

Apolo estava perdendo o controle.

— Apolo... — Eros mal murmurou, no tom mais suave que a sua voz macia pode alcançar.

O Sol ergueu os olhos para ele, numa lentidão petrificada e dura, afogado o deus da paixão em um mar de desespero, dor e culpa.

— O que aconteceu? — o Cupido sussurrou, quase numa suplica, sentindo a garganta se apertar. Essa talvez fosse a maior maldição do deus do amor: a sua empatia crua e nua, sua vulnerabilidade a dor alheia, seu instinto de afeto irracional. Não importava que Apolo queria pôr fogo nele, no momento, Eros só queria abraçá-lo. – Me diga o que aconteceu...

Ele quis contar.

Quis desesperadamente.

"Eu perdi a cabeça! Perdi o controle! Isso nunca tinha acontecido antes. Não sei por que fiz isso. Eu não queria! Não queria machucá-lo. Já tinha feito antes. Já o tinha queimado sem querer. Não era para acontecer de novo! Eu tentei me afastar dele. Tentei fazer com que se afastasse de mim. Eu tentei... Mas..."

As palavras estavam quase escapulindo da sua boca. Apolo se sentia uma criança, querendo que a mãe lhe dissesse que o que ele fizera não fora tão ruim, que não era um monstro por isso, que aquilo tinha conserto. Eros era o deus da paixão, da volúpia, do desejo. Talvez ele entendesse.

Mas então...

Qual é a chance de que Eros tenha feito isso?

— Isso o quê?

O Sol arregalou os olhos, horrorizado, ao perceber que dissera aquilo alto.

Baco seguiu o seu olhar, e acabou por colocar os dedos sobre a própria garganta.

— Ah, isso? — perguntou, deslizando o indicador pelo pseudo-círculo arroxeado. — Foi Eros. – confirmou, com tom de irrelevância. — Embora seja intrigante. Ele não tem o costume de deixar-me marcas, é sempre muito delicado.

Diferente de mim. Constatou Apolo.

Diferente de mim...

Não.

Ele não entenderia.

Não havia o que ser entendido.

— Por que você fez isso...? — foi tudo o que o Sol sussurrou. E ele não era mais um incêndio violento e destrutivo. Era vidro rachado, caqueado, derretido, feito em um milhão de pedacinhos coloridos.

Eros chegou ainda mais perto, a ponto que tudo o que sentia era o seu cheiro de mel com aveia e o claro rastro de perfume amadeirado e doce de Dionísio, esquentado na pele bronzeada do rival. Apolo parecia muito mais tentado a desabar do que a agredi-lo agora, e se não fosse aquele calor cáustico que tornava até mesmo difícil respirar a sua volta, o Cupido o teria tocado.

— Apolo, olhe para mim. — ele pediu, o rosto a centímetros do dele.

Aquelas duas piscinas azuis se fixaram nos seus poços negros sem fim.

— Eu. Não. Fiz. Isso. — disse, muito devagar, sem sequer piscar os olhos escuros. — Não sou diretamente responsável por toda e qualquer manifestação amorosa e a afetiva, assim como você não causa propositalmente toda insolação. Acha que fui eu quem arquitetou cada paixão adúltera de Zeus? Hera teria dependurado a minha cabeça na sua porta há séculos se fosse o caso. Todo ser é livre para amar por conta própria. Inclusive você.

Apolo não disse nada, apenas continuou olhando para ele, como se estivesse falando uma língua estranha. Eros suspirou.

— O que você está sentindo é real. Não foi um plano maligno nem uma vingança mesquinha. Você o desejou desde que o viu pela primeira vez, eu tenho certeza, por isso o evitou por anos. E quando isso não foi mais possível, você se apaixonou. Eu vi acontecer, admito. Vi seus olhos presos nele, vi o desgosto no seu rosto quando eu disse o quanto éramos íntimos e eu soube o que isso significava. E também sabia que logo você iria descobrir. — disse, estreitando as pálpebras brancas. — Mas não fui eu que coloquei esse sentimento em você. Não houve flecha encantada, poção afrodisíaca ou nada do tipo. O desejo é seu. A paixão é sua. E o amor é seu. Não é uma vingança. Não é uma catástrofe. Não é o fim do mundo. É só...

— Amor? — Apolo perguntou, perecia quase topado.

— Sim... — Eros respondeu, achando que aquilo enfim o tranquilizaria.

Mas não.

— Então a culpa é apenas minha... — foi o que saiu dos lábios do deus do sol.

— O quê? — o Cupido estranhou, afastando o rosto dele.

— Me diga que você não teve nada... NADA... a ver com isso! — ele pediu, apertando os tentes com tanta força que Eros podia ouvi-los. — Diga que não causou, influenciou, nem incentivou nada disso...

Eros abriu a boca para responder, mas fechou logo depois.

— Eu sabia... — Apolo murmurou. Se suas palavras tivessem gosto, seriam de bordo amargo e fel. Ele deu dois passos para trás, como se não suportasse mais estar ali.

— Apolo, espera! Eu posso explicar.

Mas ele estava indo embora." Ah, céus..." Eros pensou, se metendo no caminho dele. "Que isso não me custe uns dentes."

— Eros... — Apolo rosnou, devagar. — Saia da minha frente.

— Não até você me escutar!

— Eu não quero nem olhar para a sua cara.

— Então não devia ter vindo até a minha casa! Agora o problema é seu! — ele exasperou, perdendo a paciência. — Eu não fui diretamente responsável, mas também não posso dizer que não incentivei! — disse rápido, sem dar ao outro mais tempo para pensar. — Por que eu incentivei sim! — "Eu lhe devia isso..." — Vi o quanto você estava inibido e perdido, tropeçando às cegas no que você mesmo sentia. Ao mesmo tempo em que também percebia a curiosidade de Dionísio se transformando cada vez mais em afeição e atração. Tudo o que eu fiz foi colocá-los juntos aquele dia na ceia. Depois, quando ele me contou sobre a festa, eu sugeri que o convidasse pessoalmente. E só! Não passou disso! — Eros puxou o ar esquecido, baixando timidamente o tom. — Dísi é doce e gentil, achei que faria bem a você...

— Mas não considerou o qual mal eu faria a ele... — Apolo murmurou, fechando os olhos agressivamente.

— O quê?

— Acabou? — ele perguntou, entre os dentes.

— Ah, pelas almas... — Eros praguejou, erguendo as mãos, já sem saber o que fazer.

— Muito bem. — o Sol decretou, contornando o deus do amor, a poucos passos da saída.

— Apolo... — Eros chamou. O outro já estava de costas, a mão pairando sobre a maçaneta da porta, e não teria parado, se o tom dele não soasse tão sério e desesperado. — Não precisa ser assim. — ele murmurou, na última tentativa de aplacar o pressentimento terrível que o estava acometendo. — Você não precisa fugir disso. Não precisa lutar contra isso. Ele pode fazê-lo bem. Pode fazê-lo feliz! — e finalizou entre um suspiro cansado. — O amor não precisa ser sempre destrutivo, dolorido e ruim.

Apolo ficou calado. Agoniante e cruelmente calado. Mas antes de finalmente sair porta a fora, deixou para o Cupido uma pergunta que ele não teria coragem de responder:

— E como é que eu saberia?

 


Notas Finais


Como ele saberia, de fato...?

Beijos angustiantes e até o próximo.


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