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História Bells of Notre-Dame - Entre dúvida e Fé


Escrita por: ElvishSong

Notas do Autor


Olá, gente! Bem, aqui, mais um pouco de nosso Aaron. E para quem queria reencontro dele com a Esmeralda, bem... Não vou dar spoiler. Vejam só o que vai rolar, ok?
Boa leitura!

Capítulo 3 - Entre dúvida e Fé


           

                Aaron entrou em seus aposentos com ódio, batendo a porta com força. Sentia ódio da Igreja, dos hereges, de si mesmo! Aquele fora mais um dia nos calabouços do Palácio da Justiça, como tantos outros, mas, por algum motivo, ele fora mais afetado do que de costume. Desta vez o haviam chamado para conseguir obter a confissão de uma mulher especialmente dura, que respondia às piores torturas com palavrões e pragas, amaldiçoando e blasfemando. E, como o cão obediente que Frollo o treinara para ser, ele fora até lá! Maldita hora! Maldita hora em que obedecera! Pois jamais conseguiria esquecer a imagem da mulher – pouco mais que uma menina – nua e horrivelmente mutilada, com ossos quebrados e dedos esmagados. Foi impossível, para ele, não pensar na jovem cigana que vira há poucos dias... Ela devia ter a mesma idade da prisioneira, e a ideia de que, um dia, poderia ser a cigana ali, naquele calabouço, o incomodou de modo inexplicável.

Mas mesmo quebrada e torturada, ela tivera forças de encará-lo e cuspir em seu rosto! Então, ele assistira à tortura, usando de sua tão afamada oratória para fazer a moça crer que merecia tudo aquilo, que a culpa por sua condição era apenas dela, e de mais ninguém. E ante suas palavras persuasivas, a mulher que não cedera a dor alguma – talvez agora exausta demais para manter-se lúcida – enfim confessara. Confessara sem saber sequer quais eram as acusações, mas confirmara tudo o que diziam. E aquilo perturbara e revoltara o homem. Como podia tal horror ser a vontade de Deus?! Se aquilo era a vontade d’Ele, então Ele não era melhor do que o diabo! Ah, mas o que estava pensando?! Como podia crer em tais blasfêmias?! Como podia sequer pensar nelas?!

                Torturado pela dúvida, tendo horror a si mesmo e ao que fazia, mas também repudiando o próprio ceticismo e questionamentos que fazia – coisa de herege, de infiel, de pagão! – ele arrancou a máscara negra e fitou a si mesmo, no espelho. E odiou também o que via, ali: pois seu rosto era o reflexo de sua alma! Metade perfeito, imaculado. Metade retorcido, hediondo, bestial! Mas, se tinha plena certeza de qual lado de seu rosto era o certo, não podia dizer o mesmo de sua mente, ou de sua alma. Com um urro de raiva contra si, contra o mundo, contra seu trabalho – contra o próprio fato de estar vivo – ele esmurrou o espelho de prata, que se amassou ante a força do golpe. A dor nos dedos o ajudou a refrear um pouco toda a insanidade, mas não era o suficiente. Voltando-se para o altar junto a seu leito, ele pegou o chicote com que fustigava a si mesmo, e se despiu; sentia latejar seus ombros desproporcionalmente grandes - o direito maior que o esquerdo – que o deixavam quase corcunda, embora isso fosse algo que passava por despercebido, com sua altura. O trabalho com os sinos só contribuíra para acentuar essa característica, e havia ainda a pele... Ah, aquela pele horrível que cobria seu flanco direito até abaixo dos quadris, vermelha e enrugada, como se fosse uma queimadura velha. Ele se odiava, e foi com todo o ódio que tinha por si mesmo que desferiu o primeiro golpe contra o próprio corpo.

                Ah, dor! Como a dor era algo abençoado! Sim! Pois a dor era sua única certeza! Ele podia não saber o que era certo ou errado, mas sabia que, de um modo ou de outro, merecia ser punido. Fustigando as próprias costas com o chicote de pontas de ferro, conseguia se redimir da culpa e da dor do espírito. Conseguia purgar-se de seus pecados – quer fossem eles obedecer à Igreja, ou questioná-la – e obter algum alívio.

                Foi só quando o sangue começou a se derramar no chão que ele, enfim, cessou a autopunição. Ergueu os olhos para o crucifixo, e perguntou à imagem de Cristo:

                - É isto o que o Senhor quer? Dor, morte e sofrimento na terra? Temos de sofrer aqui, para sermos dignos dos céus? – ele guardou o chicote, sentindo o sangue escorrer pelas costas, que ardiam terrivelmente – mas como pode a dor que sinto, agora, corrigir a dor que causei àquela moça? – ele tocou a cruz – de que modo Seu sofrimento aliviou o dos seres humanos, Senhor? Sei que são os mistérios da fé, e que eu não deveria questioná-los, mas de que me serve calar, quando Seu olhar pode ver em meu coração? Sei que pode ver a dúvida, a raiva, a inquietude. Então eu peço, Senhor: mostre-me o caminho. Diga-me o que é certo ou errado, pois não consigo imaginar que, de um homem que só preferiu palavras de amor, pudessem vir os horrores que vejo todos os dias. Então diga-me, meu Deus: estou errado em questionar? Ou os homens estão enlouquecidos em sede de poder, e cometem atrocidades usando Seu santo nome em vão? Quem está louco? Eu, ou o mundo?

                Por longos minutos ele fitou a imagem de madeira e, como sempre, nenhuma resposta obteve. Por que ainda imaginava que haveria alguma? Pois no fundo de seu coração, Aaron já não sentia a fé que possuía quando menino. No fundo de seu coração, ele já não acreditava que houvesse um Deus de amor e justiça. Se este existisse, não era em Seu nome que a Igreja agia. E se agisse, bem... Então Deus e o Diabo poderiam bem ser a mesma pessoa.

                O único modo real de se livrar daqueles pensamentos blasfemos era ocupar-se de qualquer outra coisa: assim, ele limpou a si mesmo e ao chão cheio de sangue, envolveu o próprio torso com panos grosseiros e se vestiu. Sentir dor o acalmava, amansava a fera que havia dentro de si. Bem, parecia que os médicos tinham razão: as sangrias eram eficazes no controle da ira. Talvez ele apenas tivesse sangue demais no corpo, e drená-lo provocava aquela melhora.

                Deixou seus aposentos e caminhou pelo palácio episcopal, indo até seu tutor: este lia alguns pergaminhos e os assinava, e recebeu seu afilhado com expressão preocupada:

                - Algo errado, meu filho?

                - Não posso dizer que tudo está bem, mestre, mas não saberia dizer o que há de errado.

                - Entendo – disse o juiz, deixando de lado a pena e se levantando – você é um homem brilhante, Aaron, mas a inteligência pode ser uma faca de dois gumes. Querer compreender as coisas é bom, sim... Mas existem coisas que estão além da capacidade humana. Coisas que cabem apenas a Deus decidir e compreender. Você ainda não descobriu este limite, meu jovem, e seus questionamentos incessantes é que perturbam sua alma. – mesmo sendo alto, o ancião tinha de erguer a cabeça para fitar o afilhado – Talvez alguns dias em Notre-Dame lhe façam bem. Faça jejum, ore, acalme seu espírito. Dar-lhe-ei algum tempo longe deste trabalho deveras perturbador, para que se recomponha. Pelo menos até as feridas em suas costas sararem. – o juiz conhecia seu protegido, e sabia o que ele havia feito.

                - Estou, então, dispensado?

                - Por algumas semanas. – concordou o sacerdote – todos precisamos de descanso, afinal. E seu trabalho, bem... Não é dos mais aprazíveis, eu creio.

                Aaron apenas suspirou, aliviado: algumas semanas longe das torturas e interrogatórios. Isso, sim, era um pedaço do paraíso!

                - Obrigado, padrinho.

                - Agradeça-me curando-se desta falta de fé. Eu odiaria ver meu afilhado condenado ao fogo do Inferno. – Aaron se irritou: Frollo não sabia dizer uma frase que não envolvesse a religião? Ainda assim, aquele era o modo pelo qual o juiz dizia amar o afilhado e preocupar-se com sua sorte.

                Sem nada dizer, o homem mais jovem virou-se e deixou o lugar, com um sentimento de enorme alívio, talvez até mesmo de alegria! Por algum tempo, estaria livre daquele tormento que era seu “ofício”. Poderia dedicar-se a suas artes, a sua música, escrita, desenhos. Poderia se refugiar em seu campanário e sonhar, protegido do mundo e de si mesmo pelos sinos e pelas gárgulas amigas, os únicos que sempre o haviam compreendido.                Subindo em seu cavalo, negro como azeviche, ele galopou para Notre-Dame, mal se importando com as dores em suas costas provocadas pelo movimento do corcel.

                Guardou seu cavalo num estábulo próximo à Catedral e encaminhou-se para lá; era início de primavera, e as primeiras plantas começavam a desabrochar em meio aos resquícios de neve. E por entre as pedras, uma planta conseguira abrir caminho, vencendo o frio e a aspereza da rocha, abrindo-se ao vento. Suas folhas recém-nascidas eram de um verde intenso, e uma única flor rubra, menor que uma unha, desabrochava aos primeiros raios de Sol. E aquela pequena flor capturou os pensamentos do mascarado que, ao vê-la, só conseguiu pensar em outra flor: uma flor humana, com olhos da mesma cor daquelas folhas, e lábios rubros como as pétalas... Uma sereia de pele morena e rosto de anjo, que cada dia mais vinha surgindo nos pensamentos de Aaron.

                Ele levou vários minutos até se libertar de tal hipnose, censurando a si mesmo: o que era aquilo? Por que pensava tanto na cigana? Mal a vira e, ainda assim, aqueles olhos límpidos não saíam de sua mente. Quando pensava tê-la esquecido, um vitral esverdeado, um lago ou – como agora – uma simples folha traziam de volta a seus pensamentos aquele olhar profundo, puro e inocente. Mil vidas vivesse, mil vidas haveria de se lembrar, ainda que nunca mais a visse. Pois ele estava certo de que nunca mais encontraria, em quaisquer outros olhos, o vasto oceano que havia nos daquela menina.

                Meneando a cabeça para se libertar dos pensamentos, ele adentrou a catedral, e deslizou como uma sombra até o campanário. Ali, isolado do mundo – seu único amigo era o jovem sineiro, um garoto de vinte e um anos que o substituíra no cargo, e só vinha ali para soar os sinos – sentia-se leve, e livre. Inspirado pela simples flor, pelos sentimentos que ela lhe trouxera – incompreensíveis, mas curiosamente agradáveis - correu para seu quarto, tão mais simples e acolhedor que seus aposentos no Palácio, e pegou pena e papel. Com um sorriso no rosto, começou a traçar as linhas. Linhas que ninguém jamais veria, mas que extravasavam todas as emoções que, no momento, o preenchiam. E quando concluiu seu trabalho, para sua surpresa, este não era um texto denso e pesado, com pensamentos sobre o pecado e as dúvidas que tanto o amarguravam, mas sim, um canto à beleza, e versos de admiração, dotados de uma beleza e simplicidade que nunca antes houvera em suas produções.

               

*

 

                Satisfeito com o que criara – estando há dias ali, em seu santuário, sua mente fora para muito longe das questões angustiantes que costumavam torturar seu espírito – Aaron caminhou até o topo de uma das torres, e ali se debruçou para ver a cidade, sob a luz do Sol da manhã. Dali ele aprendera a conhecer cada rua e beco, cada viela, cada casa e loja de Paris. Ali, debruçava-se por horas, admirando a vida das pessoas comuns, imaginando como seria ser uma delas – às vezes desejando isso, às vezes dando graças por não ser. E como sempre fazia, ele se pôs a observar.

                Mas o destino certamente estava decidido a pregar-lhe algum tipo de peça, pois, em meio ao vai-e-vem da cidade, às múltiplas vozes e barulhos, ele escutou uma música – uma música cigana – e, ao procurar por quem a tocava, divisou um trio de ciganos. Dois homens jovens tocavam e, perto deles, vestindo com um traje azul que realçava o tom de sua pele morena, a jovem cigana com quem se encontrara na Catedral! Mas ali ela não tinha seus cabelos cobertos, ou rosto assustado: estava cheia de vida e parecia uma chama bailando ao som da flauta e do alaúde, com os fios negros resplandecendo ao Sol, o corpo voluptuoso agitando-se em rodopios, meneios, ondulações...

Todo o ar escapou aos pulmões de Aaron que, por um segundo, esqueceu-se até mesmo de respirar. Deus! Como uma criatura podia ser tão bela, tão adorável?! Queria saber mais sobre ela... Queria olhar mais de perto...

Olhando para um lado e para outro, certificando-se de não haver ninguém vendo, ele se lançou por sobre o peitoril e começou a descer a Catedral pelo lado de fora, ocultando-se entre capitéis, gárgulas e imagens. Finalmente, encontrou abrigo entre as estátuas de dois anjos, de onde podia ver melhor a dança da linda mulher. O vestido colorido já tivera dias melhores, de fato, mas ainda assentava perfeitamente bem sobre as curvas femininas, contrastando com o tom dourado da pele... Os olhos verdes brilhavam, cheios de emoção enquanto ela dançava... Os pés descalços batiam no chão ao ritmo da música, mas tão leves e ligeiros que ela bem poderia estar voando! Os lábios torciam-se graciosamente num sorriso e, quando ela começou a cantar, a voz gentil – um mezzo-soprano puro e despretensioso – fez alterar a própria batida de seu coração:

 

Ma mère me parlait de l'Espagne (minha mãe falou-me da Espanha)

Comme si c'était son pays (como se fosse seu país)

Et des brigands dans les montagnes (e do ladrões lá nas montanhas)

Dans les montagnes d'Andalousie (nas montanhas d’Andaluzia)

Dans les montagnes d'Andalousie (Nas montanhas d’Andaluzia)

Ela girou as saias, que se ergueram até o joelhos, e os raios de Sol fizeram reluzir a pele úmida de suor e os fios cor de ônix; a faixa violeta em seus quadris, adornada por círculos de metal que retiniam ao menear de seu corpo, emitia o som de dezenas de guizos a cada volta, como o próprio corpo da jovem fosse um instrumento. E de seu esconderijo, Aaron se sentia mais e mais fascinado pela moça.

 

- Je n'ai plus ni père ni mère (não tenho mais pai ou mãe)

J'ai fait de Paris mon pays (e fiz de Paris meu país)

Mais quand j'imagine la mer (mas quando imagino o mar)

Elle m'emmène loin d'ici (ele me leva longe daqui)

Vers les montagnes d'Andalousie (Ver as montanhas d’Andaluzia)

 

Ela parou de girar e saltar, e começou a ondular o corpo, braços abertos, fitando os céus, como se a dança a pusesse em êxtase:

- Bohémienne (Cigana)

Nul ne sait le pays d'où je viens (Ninguém sabe o país de onde vim)

Bohémienne (Cigana)

Je suis fille de grands chemins (sou filha dos grandes caminhos)

Bohémienne (cigana)

Bohémienne (cigana)

Qui peut dire qui j'aimerai demain (quem dirá quem amarei amanhã ?)

Bohémienne (cigana)

Bohémienne (cigana)

C'est écrit dans les lignes de ma main (está escrito nas linhas de minha mão)

 

Pegando no chão um pandeiro, ela começou a dançar com ele nas mãos, batendo-o contra as próprias pernas, tamborilando nele com os dedos, sempre marcando o ritmo da música. Cada agitar ou batida do pandeiro correspondia a uma de seu próprio corpo, e o homem nas sombras encontrava-se completamente enfeitiçado. Pois enquanto a maioria dos homens via na jovem a sedução e o desejo, Aaron – uma alma muito mais pura que a da maioria – enxergava a beleza de seus movimentos, a pureza no seu olhar, o modo como a sensualidade que ela transbordava era algo natural, não intencional, e quanta pureza havia naquela dança. E a voz dela... Ah! Aquela voz! A Igreja não incentivava que mulheres cantassem, preferindo substituí-las por meninos impúberes, e agora o inquisidor entendia o porquê: voz masculina alguma poderia ser tão hipnótica, tão cheia de cor e volume, tão suave aos ouvidos, como se fosse um veludo macio... Uma voz sem qualquer treino, bela por natureza, encantadora como a sua portadora. E a cigana, alheia ao homem que a observava, apenas continuava:

- J'ai passé toute mon enfance (eu passei toda a minha infância)

Pieds nus sur les monts de Provence (descalça nos montes de Provença)

Pour les gitans la route est longue (para os ciganos a estrada é longa)

La route est longue (a estrada é longa!)

Je continuerai mon errance (eu continuarei meu vagar)

Au-delà des chemins de France (além dos caminhos da França)

Je les suivrai au bout du monde (eu os seguirei até o fim do mundo)

Au bout du monde (ao fim do mundo!)

 

Ela soltou o pandeiro e, estendendo uma das mãos, girou lentamente obre si mesma, estendendo então os braços para cima, deixando-se banhar por inteiro pela luz, reluzindo como uma safira preciosa:

- Un fleuve d'Andalousie (um rio da Andaluzia)

Coule dans mon sang (corre em meu sangue)

Coule dans mes veines (em minha veias)

Le ciel d'Andalousie (o céu da Andaluzia)

Vaut-il la peine (valerá a pena)

Qu'on y revienne? (que eu o reveja ?)

 

Ela segurou as saias junto à cintura, libertando os pés e descrevendo movimentos circulares com eles, seu corpo acompanhando os volteios com graça e entrega:

-Bohémienne (cigana)

Nul ne sait le pays d'où je viens (ninguém sabe o país de onde vim)

Bohémienne (cigana)

Je suis fille de grands chemins (sou filha dos grandes caminhos)

Bohémienne (cigana)

Bohémienne (cigana)

Qui peut dire ce que sera demain (que dirá onde estarei amanhã ?)

Bohémienne (cigana)

Bohémienne (cigana)

C'est écrit dans les lignes de ma main (está escrito nas linhas de minha mão)

C'est écrit dans les lignes de ma main (está escrito nas linahs de minha mão)Parte superior do formulário

 Parte inferior do formulário

 

 

                Ela concluiu seu canto realizando uma reverência aos que a assistiam, e sorriu feliz ao ver as moedas que brilhavam no chapéu deixado no chão. Mais que depressa ela o recolheu, e foi para junto dos amigos, falando animadamente com eles em espanhol. Quanto a Aaron, parecia-lhe ter experimentado o êxtase divino do qual só havia ouvido falar: todo o seu corpo estava trêmulo, sua alma plena de satisfação, seu coração batendo descompassado... Ela nunca se sentira tão maravilhosamente bem! Ah, céus, seria aquele algum feitiço da cigana? Mas como poderia ela tê-lo enfeitiçado, se sequer sabia que ele estava ali? Não... Ele só conseguia encontrar uma palavra para o que estava sentindo, embora não pudesse afirmar, com certeza, que se tratava disso: amor.

                Enquanto os ciganos se dispersavam, desaparecendo pelas ruas antes que alguma patrulha viesse enxotá-los ou prendê-los, o antigo sineiro começou a escalar a catedral novamente, de volta para seu campanário. Mas nem ele, nem a cigana que dançava, haviam chegado a ver que duas outras pessoas também haviam assistido à maravilhosa apresentação: o juiz eclesiástico Claudius Frollo, e um cavaleiro desconhecido – cabelos dourados, barba bem feita, rosto bonito, contando cerca de vinte e cinco ou trinta anos - que poucos teriam reconhecido como o capitão da guarda real, sem seu uniforme. E nos corações de ambos se acenderam chamas bem mais obscuras do que o amor e admiração de Aaron...

 

                                                                                             *

 

                Frollo subiu até o campanário com sua mente perturbada: sentia algo estranho dentro de si... Ao ver dançar a bruxa cigana, sentira todo o seu sangue ferver, e surgira uma intensa, insaciável necessidade de tê-la para si. Ele punira a si mesmo, em mente, sabendo que aquele seria um pecado abominável, mas ainda assim estava confuso: como uma simples cigana, uma pagã, uma mulher das ruas, pudera demovê-lo, mesmo que por instantes, de sua moral e retidão mantidas ao longo de toda uma vida?

                Foi até o quarto de seu afilhado, e o encontrou deitado no leito, um sorriso nos lábios e papéis nas mãos, nos quais escrevia uma música que só existia em sua mente. Ah, pobre garoto! Se a vida houvesse sido menos cruel, e lhe dado um rosto normal, ele poderia ser reconhecido como um verdadeiro gênio, e receber o patrocínio de nobres, homens ricos, até da própria Igreja para realizar suas composições. Porém, como um homem daqueles poderia aparecer em público, sem sua máscara? Mesmo de máscara, aqueles olhos de gato e o tamanho avantajado já o destacavam e intimidavam os demais... Mas o rosto... O rosto horrível seria eternamente uma barreira a qualquer vida sequer próxima do normal que pudesse ter. E Frollo se compadecia disso, pois amava de todo o coração aquele a quem havia criado como seu filho.

                Adentrou o quarto, que era cheio de desenhos magníficos, telas pintadas à mão com tintas preparadas pelo próprio Quasímodo, esboços em carvão e tinta, e ia dirigir-se a seu afilhado, quando seus olhos pousaram num desenho cuja tinta ainda estava fresca: uma cigana, num vestido azul, dançando sob o Sol... Mas não uma cigana qualquer! Era a mesma que havia inflamado seu coração e, vendo-a retratada pelas mãos habilidosas de seu pupilo, capaz de reproduzir uma imagem com tal fidedignidade que esta parecia viva, o bispo sentiu as mesma chamas retornarem a seu corpo e coração, e uma raiva intensa o tomou: Aaron estava atraído por aquela feiticeira?! Por aquela bruxa das ruas? Frollo teve de se conter para não agarrar o desenho e o rasgar em pedaços. Ainda assim, sua voz soou fria quando falou:

                - Bom dia, Quasímodo. – a voz cortante do mestre tirou o homem de seus devaneios, e ele se sentou bruscamente; se seu padrinho o chamara de Quasímodo, algo de errado ele certamente fizera.

                - Bom dia, mestre. – Pondo suas composições de lado, tratou de se levantar; Frollo observou que o moço trocara as costumeiras vestes negras e fechadas por uma camisa branca e calça marrom, com um colete simples, de lã sem tingir. Estava descalço e com os cabelos soltos, muito à vontade. – perdoe-me os trajes rústicos, mas não esperava que viesse aqui.

                - Não precisa se desculpar, meu caro.  – o juiz deixou o quarto e foi para a “sala”, sentando-se à mesa que o próprio Aaron entalhara à mão. Seu pupilo o seguiu de perto, mas permaneceu em pé – Eu o mandei para cá para que tivesse um repouso. – e franziu o cenho – como estão suas costas.

                - Bem, eu creio.

                - Deixe-me vê-las. – ordenou o ancião. Dando de ombros, Aaron ergueu o colete e a camisa, expondo o torso e as marcas deixadas pelo auto-suplício. Estavam secas, já, mas ainda levemente inflamadas. A preocupação com o afilhado tomou o lugar da raiva, e ele se esqueceu do assunto “cigana” – deveria ter procurado um médico, filho. Se fizer isso novamente, e não tratar as feridas, pode acabar aleijado. Não sou contra a auto-punição, mas deveria medir a própria força ao se fustigar.

                Baixando as vestes, Aaron anuiu, sem nada dizer. Sobre a mesa estavam as páginas nas quais trabalhara – sua última composição – e o juiz as observou, com um esboço de sorriso:

                - Vejo que tem se ocupado das artes.

                - Sim, mestre. Elas me dão a paz de espírito que busco.

                - Entendo... – Claudius folheou as páginas – suas composições são belas. Pena que ninguém jamais as apreciará.

                O artista rangeu os dentes: por que seu padrinho tinha de lembra-lo disso?!

                - Eu sei que não gosta quando o lembro de sua deformidade, e de como ela veta a você uma vida comum. Mas, se o faço, é porque me preocupo com você, Quasímodo. Seu espírito me parece ainda muito rebelde, e vejo em seus olhos a esperança de ser... Como diria?... Normal. Esqueça, rapaz. O mundo é cruel, e jamais o aceitaria.

                - Eu sei disso, senhor. – havia pesar na voz do mais moço, que baixou a cabeça, derrotado pelo argumento de seu preceptor. – Não foi meu rosto horrível que me vetou as ordens sacerdotais? Não foi esta deformidade que deu a mim o único propósito de atormentar e assustar às pessoas? Sei bem que jamais me veriam como um ser humano, mas sim, como um animal de circo, uma aberração ou pior.

                Frollo suspirou: pelo menos ele entendia.

                - Sabe, Quasímodo, às vezes me questiono se você realmente entende o que tento fazer por você. Se entende que tudo o que faço é para protege-lo, para tentar lhe dar um lugar no mundo. Afinal, não sou imortal, e já estou velho... Tento apenas garantir que você terá um lugar e uma proteção, quando eu me for. Mas olho seu rosto, e muitas vezes penso que você me odeia por tê-lo tornado o que é hoje...

                - Odiá-lo?! – o jovem caiu de joelhos diante de seu padrinho; nada poderia doer tanto quanto a dúvida daquele a quem amava como um filho ama seu pai! Não era Claudius a única pessoa a quem amava, a única pessoa a quem se dedicara de todo o seu ser?! – Como eu poderia odiá-lo, mestre? Eu o amo, de todo o meu coração! O senhor é meu pai, meu protetor, meu mestre! Como eu poderia ter para o senhor coisa outra que não o amor? – ele beijou as mãos do juiz, servil e humilde e, erguendo o rosto coberto pela máscara, cantou:

            - Toi qui m'as recueilli (você que me recolheu)

Adopté et nourri (adotou e alimentou)

Moi, l'enfant trouvé (eu, a criança encontrada)

L'enfant rejeté (a criança rejeitada)

Par ceux qui avaient honte (pelos que tiveram vergonha)

D'avoir mis au monde (de ter posto no mundo)

Un monstre (um monstro)

 

Como uma criança, ele abraçou seu padrinho, antes de se levantar, agigantando-se ao lado do ancião, mas tão cheio de humildade, de temor reverencial, que mais parecia um menino ao continuar:

- Toi qui m'as vu grandir (você que me viu crescer)

Toi qui m'as vu souffrir (você que me viu sofrer)

Toi qui m'as protégé (você que me protegeu)

Contre le monde entier (contra o mundo inteiro)

Tu m'as fait le bonheur (você que me deu o privilégio)

De me nommer sonneur (de me nomear tocador)

Des cloches (dos sinos)...

 

Ele tornou a se ajoelhar, tomando as mãos de seu mestre, que tocou sua cabeça numa bênção, enquanto o discípulo seguia sua canção:

- Tu m'as appris à parler (você me ensinou a falar)

À lire et à écrire (a ler e a escrever)

Mais je ne sais pas lire (mas não consigo ler)

Le fond de tes pensées (seus pensamentos mais profundos)...

 

A voz do mais jovem estava embargada quando molhou com lágrimas as mãos de seu mentor:

- Je t'appartiens (eu lhe pertenço)

De tout mon être (de todo o meu ser)

Comme jamais un chien (como sequer um cão)

N'a aimé son maître (ja amou seu mestre) ! – e erguendo os olhos, completou – o senhor é meu pai, meu mentor. E se me rebelo e enraiveço, por vezes, jamais é contra o senhor, a quem devo absolutamente tudo, mas contra as próprias regras do mundo... Contra meu próprio rosto deformado, que me impede de ser mais do que sou, e lhe dar orgulho pelo que me tornei.

O padre meneou a cabeça, suspirando: então, ele ainda tinha a reverência, obediência e amor de seu afilhado. Isso era bom: evitaria que o rapaz se perdesse nos pecados do mundo. Compreendia as dores do jovem, que passara toda uma vida isolado, saindo apenas para ver dor e horror. Mas o que havia de diferente no mundo, para ser visto? O pecado, o sofrimento, as punições e tentações. Queria muito que seu afilhado entendesse isso, mas não sabia como fazê-lo compreender. Ao mesmo tempo, gostaria de poder fazer o jovem ao menos um pouco feliz...

                - Oras, vamos, levante-se, Aaron. – ele fez o moço sentar ao seu lado – como sacerdote, eu deveria repreendê-lo e dizer-lhe que se penitenciasse por não aceitar as decisões de Deus. Mas como pai... Entendo sua revolta, filho. Infelizmente, não posso lhe dar um rosto normal, uma vida como a de todos os outros. Aonde quer que vá, terão medo do homem mais alto e forte que todos, com olhos dourados e rosto deformado. E quão longe poderia ir, com uma máscara? Não adianta, Aaron: Notre-Dame é seu santuário, sua proteção. E o Palácio da Justiça é seu ofício, sua obra perante Deus. Mas, se realmente sente-se tão melhor aqui, na Catedral... Talvez eu deva falar com o arcediago, e nomeá-lo organista de Notre-Dame.

                - Faria isso por mim, mestre? – perguntou o moço, com gratidão e esperança.

                - Seu coração não se endureceu com o tempo, como imaginei que o faria. Você tem piedade até mesmo dos pecadores... Creio que o Santo Ofício não seja para você. E se é através da música e da arte que encontra seu caminho até Deus, então... Que seja. Se sua vontade é isolar-se na Catedral, não irei mais proibir. Já é um homem, Aaron, e não posso mais fazer escolhas por você.

                O artista deu um sorriso e, agradecido, curvou-se diante de seu padrinho:

                - Obrigado, Mestre.

                - Não há pelo que agradecer, garoto. – ele se virou, e ia saindo, quando se lembrou do que vira na parede do quarto do afilhado – Ah, sim: Quasímodo... Por que há uma cigana retratada em seus desenhos?

                - Eu a vi nas ruas, e pensei que daria uma bela pintura, mestre.

                - Livre-se daquele desenho. Aquela mulher é uma tentação, e meramente pensar nela é um grande pecado. A sensualidade e sedução dessas pagãs infiéis são a porta de entrada para muitos outros pecados, Quasímodo. Livre-se da imagem dela, antes que pensamentos menos nobres tomem sua mente.

                - Sim, padrinho. – suspirou Aaron. Não compreendia os motivos de seu preceptor, que via o pecado e a maldade em tudo.

                Ao ficar sozinho, o mascarado foi até seu quarto, onde permaneceu fitando longamente aquele desenho: que mal poderia haver em algo tão belo e puro? E ele a vira rezando a Nossa Senhora... Certamente, então, não era uma pagã. E por que a beleza seria um crime, um pecado? Ah, ele e Frollo tinham visões tão diferentes sobre o mundo! Para o juiz, tudo se resumia a pecado, tentação, danação... A vida deveria ser um contínuo ato de expiação, pois a própria existência carnal era um pecado. O mais moço, por outro lado, enxergava a beleza das coisas criadas por Deus e, apreciando-as, celebrando-as em sua arte, enaltecia a Criação. Aquilo que, para Frollo, era um pecado, para ele era beleza. Não entendia bem o conceito de tentação... Pois para ser tentado, precisava-se querer cometer o pecado. E que pecado poderia haver em admirar a bela cigana? Pois isso era tudo quanto queria fazer: ouvi-la cantar, vê-la dançar... Como poderia ser errado?

                Ele retirou o desenho da parede, e ia queimá-lo, mas não teve coragem. Em vez disso, guardou-o sob uma tábua solta, sob sua cama, onde ninguém o veria. Meditativo, sentou-se no leito, lembrando-se dos belos olhos da moça, e da dança maravilhosa que presenciara. Como gostaria que aquele momento houvesse durado para sempre!

                Queria tanto revê-la! Vê-la dançar ainda uma vez... Mesmo tendo Frollo o advertido, não conseguia sentir pela cigana, ou ver na pureza e inocência dela, qualquer coisa pecaminosa! Precisava revê-la! Mas como? Como sair de Notre-Dame, sem ser temido como A Sombra? E como fazê-lo, sem decepcionar seu mentor, a quem tudo devia?

                De repente, teve a ideia: haveria o Festival dos Tolos, dentro de poucos dias! Nesse dia, ciganos, marginais e cidadão comuns participavam dos mesmos festejos, naquela louca celebração. Máscaras e fantasias por todos os lados, cores e enfeites... Ninguém notaria um mascarado, em meio a outros mascarados, por mais alto que este fosse! E quanto a encontrar a jovem cigana, bem... Ele reconheceria de longe aquelas duas esmeraldas que eram seus olhos! Sim! Iria ao Festival! Iria, pelo menos uma vez, experimentar como era ser apenas uma pessoa normal. Mesmo que por um único dia, ele seria apenas mais um na multidão.


Notas Finais


E aí? O que esperam para a continuação? Hmmm, Esmeralda atraindo tantos olhares, boa coisa não há de sair, né?
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