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História Guerra e Paz - Capítulo CV - Melhor perguntar do que se perder - Par I e II


Escrita por: KimonohiTsuki e JonhJason

Notas do Autor


ATENÇÃO! Esse capítulo ainda não foi revisado, se algo estiver incomprensível, por favor,me faça saber nos comentários!

Eu literalmente me matei com o capítulo passado, ele não ficou com 58 mil palavras por nada, eu tive que escrever 35 mil palavras em 10 dias para tanto. Resultado? Travei minha coluna de um jeito que me deixou quatro dias de cama e outros três com muita dor.
Por isso, sinto que essa primeira parte não avançou muito, estava doente e cansada, por isso preferi não tocar nos pontos mais delicados que exigiriam muito mais de mim.
Não obstante, essa gigantesca parte II do 104 só teve dois comentários, ao contrário dos outros capítulos, o que não me ajudou a me animar a escrever o 105, pois deu a impressão que o cap anterior foi abaixo das expectativas por mais que eu tenha me esforçado e por isso o feedback caiu, entendem?
Por isso, agradeço imensamente JPMedeiros90 e AninhaAipom pelo feedback que vocês deram.

Com isso esclarecido, espero que ainda assim desfrutem desse capítulo.

Playlist parte I: https://www.youtube.com/playlist?list=PLgXkfVmip3NamFzwiLu5VWyVosRjH145s
Playlist parte II: https://www.youtube.com/playlist?list=PLgXkfVmip3Na42RTnhasc-blLGTbUpAPa

Capítulo 106 - Capítulo CV - Melhor perguntar do que se perder - Par I e II


Capítulo CV - Melhor perguntar do que se perder - Parte I

O deus da guerra caminhava por uma planície rochosa, semelhante a vulcânica, mesmo de onde estava podia ouvir o som do mar quebrando contra as rochas das costas, contudo, o que mais chamava a atenção nesse lugar de aparência desolada e eruptiva era o céu.

Era como observar uma enorme concha de retalhos, haviam partes escuras e sem estrelas que permeavam uma sensação fria que gelaria seus ossos se fosse realmente físico nesse plano, era como o céu permeado de miasma e Érebo que pintavam o submundo pela eternidade.

Ao lado desses, numa transição por vezes suave, por vezes afastado por imensas rachaduras, arrastava-se um céu claro com poucas nuvens, e embora estivesse ensolarado, não havia qualquer sinal do astro rei em nenhuma parte.

E por último nesse firmamento caótico, estava um cenário noturno, porém diferente daquele que remetia ao mundo dos mortos, pois estava apinhado de estrelas, reconheceu facilmente a constelação de Peixes, junto com Áries era uma das poucas que sabia reconhecer. Havia uma, porém, que brilhava com mais intensidade que as demais, entretanto, não sabia identificar qual ela era.

A observação de estrelas não o interessava realmente, mesmo sua mãe sendo a deusa que as representava, sequer sabia usá-las para navegar, afinal, suas campanhas de guerra em suma eram terrestres, sua única utilidade, segundo sua visão de mundo, era não deixar as noites muito escuras, o que não estava funcionando muito bem nesse subconsciente caótico.

Seguiu observando o recortado horizonte, localizando também Marte, vermelha e brilhante, obviamente sabia encontrá-la também, pois a ‘grande estrela’ foi nomeada assim por seu genro Cadmo na esperança de aplacar sua ira quanto ao casamento arranjado por Zeus com sua filha Harmonia, e o assassinato de seu único filho não humanoide, o dragão-serpente ismeniano, sob orientação de Athena, é claro.

Logicamente não o perdoou, ter seu nome numa ‘estrela’ não mudaria o fato de que o maldito o fez perder dois filhos. O rei mortal ainda havia tentado trabalhar oito anos em seu nome por expiação a esse crime, mesmo assim até hoje o odiava com todo seu ser. Quando já estava praticamente em seu leito de morte, Cadmos foi o único que fez questão de amaldiçoar, transformando-o em uma simples serpente, muito inferior ao que seu filho ismeniano foi um dia.

Infelizmente sua maldição saiu pela culatra, Harmonia se lamentou muito com o destino de seu marido e implorou segui-lo nessa nova forma, e não teve muita escolha a não ser ouvir o último pedido de sua filha, permitindo assim que ela também se transfigurasse, abdicando de sua posição de imortal.

O eterno casal permaneceu na Terra alguns anos docilmente na presença apenas um do outro, até que seus corpos animalescos perecessem e suas almas partiram para o submundo, essa, aliás, tinha sido a última vez que havia conversado com seu tio Hades antes das guerras com Athena, pedindo para que seu tio permitisse que os espíritos do casal pudessem permanecer nos Campos Elísios. Isso foi feito, e por essa razão nunca mais os viu, mesmo que soubesse que principalmente Fobos e Daimos sentiam muita falta da irmã, ela decidiu por conta própria ser um réptil ao invés de uma deusa, com fim de acompanhar para sempre seu amado.

O casal teve cinco filhos, mas realmente não pôde conhecê-los, nenhum teve a sorte de viver tanto quanto seus pais, provavelmente por fruto do presente amaldiçoado que Hefesto deu a Harmonia quando jovem, que amaldiçoou seu destino e de sua linhagem, e de todos aqueles que portassem seu colar.

Desses, porém, havia Sêmele, que deu à luz a Dionísio ao comer o coração palpitante de Zegreu, e pelo deus dos vinhos posteriormente foi trazida do submundo ao Olimpo tornando-se uma deusa menor, e mesmo assim não se haviam encontrado jamais, pois não havia nada que unisse seus caminhos a essa altura dos milênios.

Entre esses filhos amaldiçoados também se destacava Polidoro, seu neto que havia se tornado o primeiro cavaleiro de ouro do signo de Touro.

Enquanto essa velha história se repassava em sua mente, com o cenho franzido, havia acabado de se lembrar de porque não gostava de ver as estrelas em primeiro lugar.

Sempre o faziam lembrar de Polidoro, Cadmo e Athena, e da filha imortal que havia perdido.       

- Idiota sentimental - Resmungou para si mesmo, forçando-se a esquecer esses pensamentos, provavelmente o recente momento com Eros havia facilitado a lembrança de sua filha mais velha, eles sequer haviam se conhecido direito, ela sempre foi mais apegada aos gêmeos sendo a única no mundo capaz de diferenciá-los, mas ainda eram todos irmãos divinos do mesmo pai e mãe. Sentia uma pontada de tristeza quando pensava que, mesmo que Eros quisesse se reaproximar, e mesmo que recuperasse a sanidade de Enyo, nunca mais poderia reunir todos seus filhos imortais.

Repentinamente bateu com ambas as mãos em seu rosto, tentando despertar a si mesmo desses pensamentos melancólicos, a idade e desgastante termino com Aphrodite depois de tantos anos turbulentos cada vez mais faziam esse tipo de ideias rondar sua cabeça quando estava sozinho. Não gostava disso, mas quase nunca conseguia evitar.

- Foco, tens uma missão aqui, não estrague tudo – Disse a si mesmo seguindo a caminhar pelo terreno pouco convidativo, e estranhamente sem qualquer presença de vegetação, seja seca como a que a imperatriz havia usado para atacá-los, ou verde e cheia de vida. – Tu tens que achar a tal deusa que Eros falou e depois...Depois o quê? – Parou, piscando para si mesmo -  DEPOIS O QUÊ! – Gritou repentinamente, seus olhos brilhando em amarelo quando a raiva o tomava – Idiota! Eu deveria ter pedido mais instruções antes de sair correndo e possuí-la! – Bateu uma vez mais em sua cabeça, dessa vez com o punho fechado – Por uma vez eu gostaria de pensar antes de agir, o que vou fazer agora?! – Disse olhando para todas as direções – Como eu vou achar uma deusa na memória de uma mortal?! E mesmo se eu achar, o que eu digo para ela confiar em mim se eu nem a conheço?! Eu sou o deus da Guerra não da oratória! Merda Eros, tu não achaste mesmo que eu saberia sozinho o que fazer depois, achaste?! EU DISSE QUE NÃO ERA O HOMEM DOS PLANOS!

Sua voz ecoou por todo o terreno, contudo, sem retornar qualquer resposta, porém a pequena explosão foi suficiente para fazer a divindade tornar a se acalmar depois de seu pequeno surto, seus olhos voltando ao vermelho habitual.

- Não deve ser tão difícil montar um plano – Pensou consigo mesmo, cruzando os braços – Athena faz isso o tempo todo! Eu só tenho que pensar no meu objetivo e como alcançá-lo, é como organizar os soldados em uma batalha.

Parou alguns segundos, fechando seus olhos e meditando suas opções, até que:

- DEEEEEUSAAAAA, RESPONDA SE TU ESTIVERES AÍ EM ALGUUM LUGAAAR! – Berrou a plenos pulmões, sua voz ecoando por todo o horizonte, e mesmo assim, novamente não conseguiu retorno – É, não funcionou. Pelos dentes Ismenianos, isso é mais difícil do que eu pensei...

Resolveu então simplesmente buscar com a vista, não podia procurar pela alma como os ctônicos faziam, e era inútil usar o cosmo no subconsciente de alguém.

Se ao menos soubesse um pouco sobre essa jovem, sua busca seria mais fácil, contudo, mal lembrava qual era seu nome.

- Juno? Não, June...Sim, acho que era isso que Eros havia dito. – Pensou consigo mesmo. Respirou fundo e... – JUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUNEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEE!

Seu brado foi alto e retumbante, como um grito de guerra dado por mil homens marchando para a batalha. O eco fez seu trabalho, e levou alguns segundos para deixar de ouvi-lo ressoando por todos os lados.

Manteve-se quieto, atento a qualquer fenômeno acústico em seus entornos que denunciasse a presença de outro ser nas redondezas. Estava acostumado a identificar sons mesmo no furor de grandes enfrentamentos, portanto, escutar mesmo um sussurro em uma região de completo silêncio não era exatamente um desafio.

Não se decepcionou, aparentemente do lado oposto de onde estava, ouviu um barulho seco, como de um corpo pequeno batendo no chão.

Começou a correr para essa direção, podendo confirmar por seus entornos que aparentemente estava numa terra que rodeava um grande vulcão, podia ver agora o mar batendo com violência contra a terra escura, conforme se aproximava da costa. A poucos passos de um penhasco íngreme que dava para o oceano, deparou-se com uma pequena menina, caída de costas, olhando assustada para todos os lados, provavelmente tentando entender de onde o grito tinha vindo.

Parou antes de alcançá-la, pensando se deveria se apresentar com sua aparência real ou utilizar uma mais “amigável” que não gritasse deus da guerra, estava cogitando entre assumir a forma de Dionísio ou Eros quando, antes que pudesse tomar uma decisão, o rosto da jovem virou em sua direção.

Ela tinha cabelos loiros que iam até seus ombros, grandes e inocentes olhos azuis, usava um vestido florido, sujo de terra, que chegava aos seus joelhos. Numa visão geral não parecia ter mais que seis anos.

- Quem é você?! – Mas já era suficiente valente como para confrontá-lo, sentando-se rapidamente e o encarando com o cenho franzindo.

- Eu me chamo Chalceus – Respondeu com simpleza, o epiteto que significava “bronze” era o mais suave de seus outros nomes, não contendo sinais de assassinato, brutalidade ou devassidão, por tal era o que costumava usar quando tentava se infiltrar entre os mortais, algo que realmente não fazia há muitos anos.  

- Que nome engraçado – Disse a menina sem deixar de encará-lo – Era você que estava me chamando aos berros...?

- Tu és June? – A jovem na qual usou sua Possessão era ruiva, porém tinha quase certeza que quando a viu nos braços de Órion pela primeira vez ela era loira, seja como for, apesar da diferença de idade ambas eram muito parecidas.

Enquanto a menina calculava se devia responder ou não, a analisava de cima a baixo. Sempre que lutava com Athena, possuía o corpo de alguém razoavelmente próximo a ela que suportasse seu poder físico, e o modificava para ser semelhante a sua forma divina, desse modo, a deusa nunca soube que usava de receptáculos ou que era capaz de possuir as pessoas, e quando o selava a prisão não o prendia realmente, apenas libertava o mortal de seu domínio, enquanto sua alma divina retornava ao seu corpo original no Olimpo ao final de sua grande batalha, assim não perdia seu corpo original, e não precisava esperar o selo se romper como acontecia com Hades e Poseidon. A simples ideia de ficar preso por duzentos anos como os outros dois era simplesmente aterradora, evocando lembranças que preferia esquecer.

 Essa estratégia claramente não havia partido de si, o deus da medicina que havia mentalizado depois de conhecer suas habilidades únicas, para que assim pudesse determinar os momentos dos ataques a deusa.

 Sabia que o filho de Apolo sempre escolheria que sua guerra santa com Athena fosse na data que mais o prejudicasse, mas isso não o importava, na verdade, apenas o animava mais, além do que era útil tê-lo não apenas como Médico, mas também como intermediário com Apolo, que sempre sabia informar-lhes através de seus poderes proféticos em qual lugar Athena cresceria e quando, mesmo que várias vezes não tivesse paciência para esperá-la nascer para iniciar sua guerra, como na última batalha, que possuiu o irmão do guardião de sua futura família no Japão, décadas antes de Athena sequer ser concebida.

Essa complexa estratégia do filho do Sol havia lhe ensinado muito sobre diferentes subconscientes, devido aos seus anos de Possessões. O eu interior, que ironicamente havia ficado conhecido com o nome da esposa de seu filho, Psiquê, poderia ter muitas formas e tamanhos, que o dessa “June” fosse uma criança não era algo que já não tivesse visto antes, ainda assim, era incomum.

Poderia indicar a natureza de sua alma, ou que sua essência era ainda como a de uma donzela que ainda não havia florescido, mostrado toda a sua capacidade, podia dizer isso apenas com um olhar, avaliar potenciais e forças era natural vindo de um senhor da guerra. Ainda assim tinha que admitir que estava surpreso com a visão inocente, era uma contrastante bem grande em relação a pura destruição e morte que havia ocasionando em seu templo no mundo real.

Eros tinha razão em uma coisa, essa jovem não era uma qualquer.

- Sim, sou eu. – Respondeu a menina simplesmente, ignorante dos pensamentos contrários, embora o encarasse com desconfiança. – O que tu queres de mim?!

Ela era definitivamente atrevida para uma menina tão jovem, mesmo que soubesse que era apenas uma projeção, ainda era uma parte real da mulher destrutiva que se tornaria a imperatriz dos mortos.

- Eu estou procurando uma deusa do submundo, me disseram que ela poderia estar por aqui – Foi direto ao ponto, já que não havia chegado a nenhum plano por si só – Te chamei porque sabia que tu também estarias aqui e poderia conhecê-la e me ajudar a achá-la – Deu de ombros vendo a expressão descrente que o observava como se tivesse repentinamente lhe crescido uma segunda cabeça – Como dizem, melhor perguntar do que se perder.

- Uma deusa, aqui?! – Repetiu a jovem com descrença. – Quem te disse isso?!

- Meu filho – Respondeu com a sinceridade de um Ómma. – Tu a viste? Pode estar selada em algum lugar dessa ilha, eu quero ajudá-la a sair.

- Não tem nenhuma deusa aqui, se tivesse, eu saberia – Disse levantando-se e cruzando os braços sobre o peito reto e minúsculo, numa tentativa de parecer maior e mais perigosa, que apenas fez Ares sorrir internamente, essa garota tinha quase tanta atitude quanto Enyo quando criança.

Um tremor então assolou a ínsula, não era muito intenso, mas o suficiente para fazer a menina loira ter que abrir os braços para se equilibrar. E com esse movimento sísmico pôde ver como ela olhava preocupada para o oceano.

- Tem algo lá embaixo? – Questionou, seguindo sua visão, pois não parecia que ela estava preocupada com uma onda gigante, o tremor era pequeno demais para tanto.

Entretanto, a menina abandonou sua expressão preocupada para voltar a sua anterior autossuficiente, cruzando os braços novamente como se nada tivesse acontecido.

- Não vou responder. – Decretou com a maior firmeza que a voz de uma criança permitia. – Minha avó sempre me disse para não falar com estranhos, e você é estranho.

- Tu estavas falando comigo até agora. – Isso fez a menina se sobressaltar em choque, percebendo que o adulto tinha razão, e Ares teve que se segurar para não rir da expressão de orgulho ferido que ela fez com isso – Além do mais, se eu já me apresentei, eu não deveria ser mais um estranho.

A menina não baixou a guarda com essa lógica, ao contrário, seguiu encarando-o de mal grado.

- Eu posso me aproximar? – Perguntou, porque ainda falavam a uma certa distância um do outro.

- Se você não gritar de novo, pode, mas se fizer qualquer coisa estranha, eu vou chamar o monstro para te atacar! – Ameaçou, franzindo a expressão.

- Então ao menos tem um monstro aqui - Concluiu, olhando novamente para o oceano, porém, ao voltar-se a menina notou que a expressão dela seguia irredutível sobre dar-lhe mais informações.

Ainda assim aproximou-se a passou lentos, deixando-a encará-lo por todo o caminho, e quando estavam a apenas um passo um do outro, agachou-se de cócoras à sua frente, apoiando as mãos sobre seus joelhos, estando assim o mais próximo que podia de sua altura.

- O que tu estavas fazendo? – Perguntou o deus apontando com a cabeça a terra revirada atrás da criança, interessado em algumas sementes espalhadas sobre a terra de forma claramente amadora, junto a um pequeno narciso que crescia de forma torta, quase deitada, em relação ao solo, incapaz de florescer devidamente por isso. Além disso havia um pequeno graveto seco que provavelmente estava sendo usado para delimitar a terra, afinal, havia um retângulo torto circulando a tentativa de trabalho floral. 

Não era um bom orador, e sem dúvida era um desastre em organizar planos ou estratégias, mas se uma coisa havia aprendido em sua longa vida que ia além da agricultura, guerra e sexo, era como lidar com crianças teimosas, primeiro era preciso ganhar a confiança delas, o que geralmente gerava hematomas e perfurações, ao menos quando se tratava de seus filhos. Estava curioso para saber se acabaria ferido lidando com essa garota também.  

Ela fez um biquinho, mostrando que não estava disposta a responder tão facilmente.

- Tu estás fazendo errado – Apontou a divindade menor da agricultura – A terra vulcânica é uma das mais férteis do mundo, mas tu ainda precisas arar a terra para plantar, ela está muito rígida para as plantas conseguirem adentrar nela, além disso tu tens que enterrar as sementes.

E sem esperar resposta da menor, deu um passo para a frente, ainda agachado, e começou a arar o solo escuro usando a ponta de seus dedos separados, que entraram sem dificuldade na superfície rígida até chegar em sua palma, quando deu-se por satisfeito, pegou algumas das sementes espalhadas e começou a afundá-las com o indicador, para então cobri-las com a outra mão, a jovem June observava todo o processo sem desviar o olhar. Por último tomou o graveto e o fincou na terra, ao lado do Narciso.

- Tu tens algo para amarrá-lo? Isso permitirá que a flor cresça corretamente, aparentemente essa ilha tem ventos muito fortes – A garota apenas negou com a cabeça – Muito bem então – Levou as mãos, mesmo sem ver, ao coque samurai no topo de sua cabeça e o desfez, retirando assim uma fita avermelhada que o mantinha preso, enquanto suas madeixas caiam lisas e livres por seus ombros até o meio de sua cintura, brancas e prateadas contra a pele morena, June soltou uma exclamação impressionada com a cena.

Usando a fita ele amarrou a pequena flor em sua improvisada estaca.

 - Pronto – Disse quando se deu por satisfeito – Isso deve ser o suficiente.

- O senhor é bom nisso! – Admirou, caindo de joelhos próximo dele, sem se importar de arrastar seu vestido no chão. – Mas eu queria que o Narciso fosse livre para crescer do jeito que quisesse... – Findou com um pouco de decepção.

- É preciso força e habilidade para lidar mesmo com uma pequena lavoura – Explicou com simpleza. – Por vezes até mais do que é necessário para brandir uma espada e escudo. No campo de batalha tu necessitas dar algumas ordens para que os soldados ataquem de forma mais eficiente, é o mesmo com as plantas, se tu a deixares crescer sem norte algum, podem ou não florescer como tu desejavas e assim tu se afastaria da vitória da colheita.

Essa provavelmente era uma analogia muito estranha, mas sinceramente estava orgulhoso dela. Qual foi sua surpresa então quando viu os olhos radiantes dela o encarando.

- Sim! Isso faz sentido! – Colocou com satisfação.

Essa menina definitivamente era louca.

Gostava cada vez mais dela.

- Então – Disse sentando finalmente no chão sobre as próprias pernas – Vai me contar sobre o monstro agora?

- Você vai acabar com ele? – Colocou ela esperançosa.

- Não – Respondeu taxativo.

- Mas ele mata tudo que eu tento plantar aqui! – Defendeu-se.

- Ao meu ver as plantas só morriam porque tu as estavas plantando errado. – Rebateu, apreciando a expressão irritada dela.

- Eu pensei que você fosse uma espécie de herói, mas é só um convencido. – Acusou ela. – Os heróis matam monstros! Como Perseu.

- Perseu, é? O semideus que ficou famoso por ter matado uma sacerdotisa cujo pior erro foi deixar-se seduzir por Poseidon? – Provocou apoiando o rosto em suas mãos – Não, eu definitivamente não sou um desses boçais – O rosto dela apenas ficava mais vermelho de raiva, o que o divertia mais - Escute criança, o que os humanos chamam de monstros, em sua maioria são: Filhos de deuses, amantes amaldiçoados, principalmente amantes de Zeus – Pensou em como sua mãe podia chegar a ser criativa quanto a isso – E os filhos de Tifão. Matar os primeiros é um despropósito, o segundo não é algo a ser comemorado, quanto ao terceiro, bem, isso só dará mais motivos para Tifão nos atacar novamente, mesmo eu posso dizer que não é um caminho inteligente. “Herói” é um jeito bem estúpido de chamar aqueles idiotas o bastante para bater de frente com algum desses.

– Mas monstros são maus, eles matavam e devoravam os mais fracos. – Desafiou ela, como se seu argumento fosse irrefutável.

- Sem dúvida um leão deve ser visto com horror aos olhos de uma formiga, mas ambos se alimentam de seres inferiores do que eles. Para muitas espécies os humanos são os verdadeiros monstros, da mesma forma que os deuses podem ser os monstros dos homens, e os titãs dos deuses. Ao menos para mim, lutar contra algo que tu tenhas medo não te faz um herói, te faz um sobrevivente. – A menina apenas o observava, seu cenho franzido diminuindo. – Tu deverias saber melhor que ninguém, o maior medo dos homens é a morte, mas justamente por temê-la que eles se esforçam para viver ao máximo.

A pequena June apenas o encarava frente a esses comentários, o que o fez o deus se perguntar se ela tinha entendido alguma coisa do que tinha dito.

- O que eu quis dizer é que tu tens que aprender a conviver com o medo, ao invés de simplesmente tentar eliminá-lo – Resumiu. – Ou fantasiar que alguém vai aparecer magicamente e resolver todos os problemas por ti.

- Eu entendi o que você disse – Ela respondeu numa voz séria e mais velha do que sua aparência dava crédito, na verdade, agora que olhava bem a jovem até mesmo parecia mais alta, parecendo-se mais a uma criança de dez anos agora do que a inocente de seis. 

- Ainda que diga isso, eu ainda sou a favor do direito a vingança – Acrescentou com um sorriso perverso em sua face - Ao invés de ficar esperando um “herói” aparecer e resolver esse assunto por ti, eu posso estar do seu lado enquanto tu enfrentas o monstro. O que achas?

- Eu?! – Colocou alarmada, e ao invés de responder o deus da guerra começou a caminhar em direção ao penhasco. - Aonde você vai, Chalceus?! – Questionou seguindo-o enquanto ele pegava distraidamente seu cabelo e dava um nó nele para refazer seu coque.

- Para o mar, o monstro está lá, não? – Respondeu como se fosse óbvio sem deixar seu caminho.

- Você não pode simplesmente ir lá! Não é assim que funciona! – Exclamou ela correndo como podia e parando na frente dele com os braços abertos.

- Então como funciona? É preciso invocá-lo ou fazer alguma oferenda?

- Sim! Precisamos invocá-lo – Ela confirmou com veemência – Primeiro precisamos de uma princesa.

-...Pode ser um príncipe? – Questionou dando de ombros. – Eu meio que sou um.

- Sério?!

- Isso não é tão emocionante quanto parece. – Acrescentou com indiferença – O que mais?

- Está vendo aquele rochedo ali? – Apontou para um grande pedregulho que se destacava entre o oceano.

- Aham.

- Precisamos te acorrentar ali e esperar o monstro aparecer para te devorar, daí podemos, hãa, eu posso...- Acrescentou com insegurança – Enfrentá-lo.

Silêncio.

- DE FORMA NENHUMA! – Berrou o deus com tal intensidade que a menina caiu no chão, os olhos dele brilharam em amarelo vivo. – Ninguém vai me acorrentar a lugar nenhum, muito menos para servir de sacrifício!

- M-mas...- A jovem tentou argumentar, surpresa com a mudança de atitude contrária – Andrômeda se voluntariou para fazer isso! E você disse que ia me ajudar, Chalceus!

- Não assim! – Colocou entre dentes, tentando ignorar o arrepio que percorria sua espinha ao recordar-se a si mesmo, acorrentado e preso pelos gigantes em sua infância, a ponto de perecer se não fosse pela intervenção de Arthemis e Hermes.

- O monstro não vai aparecer se não fizermos isso! – Seguia tentando argumentar – Foi o que Andrômeda fez, se sacrificou em nome de todo seu povo dando sua própria vida para apaziguar a ira de Ceto!

- E por que ela não pegou uma espada e simplesmente decapitou Ceto?! – Contra-argumentou cruzando os braços.

- Você não tinha dito que matar monstros era errado?! – Acusou ela.

- Eu não disse que era errado, eu disse que era idiotice, mas sem dúvida se oferecer como sacrifício ao invés de lutar é muito mais idiota. – Contestou franzindo o cenho.

- Não é não! – Tornou a defender – É muito nobre fazer isso pelos outros! Andrômeda simboliza a constelação do sacrifício, aquela que sempre viverá pensando nos outros acima de si mesmo. 

 -  Essa é uma constelação idiota então, ainda mais que Touro – Rosnou Ares em resposta – Alguém que se sacrifica por todos o tempo inteiro, é claramente alguém suicida, que não acha que sua vida valha o suficiente, sinto muito donzela, mas eu não considero isso algo viável. Eu vou arrancar esse monstro a força do fundo do oceano sem toda essa bobagem.

A jovem ponderou suas palavras, parecia uma adolescente agora, sua altura agora chegava na metade da estatura do deus, que agora tinha certeza que ela estava definitivamente crescendo.

- E se você me acorrentar àquele rochedo? – Tentou ela novamente. – Eu só quero que tudo acabe de uma vez...

- É a primeira vez que eu vejo alguém tentar se matar em seu próprio mundo – Resmungou ele, negando com a cabeça – Garota, eu vou falar de outra forma para ver se tu entendes. Essa Andrômeda deveria ter pego uma espada e lutado pela própria liberdade ao invés de se submeter a esse destino e se sacrificar pelos demais, deixando-se acorrentar a uma pedra, e o mesmo serve para ti – Acrescentou com firmeza. – É o que eu faria, nem que para isso precisasse iniciar um levante – Sorriu com satisfação com a mera ideia.

- Lutar pela liberdade? – June era quase uma adulta quando abraçou seus próprios braços, como se sentisse frio. –E se ela apenas aceitava seu destino, pensando que seria melhor para todo mundo se...?

-  Definitivamente não seria melhor para ela.- Deu de ombros.

- Não seria! – Ares piscou confuso com a repentina concordância – Você está certo, como eu, Andrômeda nunca pensou em si mesmo, só no que era melhor para todos, mesmo que para isso tivesse que se acorrentar a uma rocha ou um reino inteiro, sem questionar, apenas aceitando seu destino, sua maldição, sem discutir ou esperar ajuda. – A ex-amazona desviou seu olhar para o rochedo do oceano – Sempre pensei que a princesa fez isso esperando que alguém a resgatasse, mas não tinha como ela saber que Perseu apareceria, não, ela realmente achou que morreria, ela só aceitou seu fim, como ele sempre fez. Como está fazendo agora...Como eu também estou fazendo, e nada surgirá desse sacrifício, além de dor.

-...Acho que eu me perdi, de quem estamos falando? – Questionou o senhor da guerra coçando o queixo confuso.

- Ainda assim nós precisamos ir até aquele rochedo, então você- Dizia com decisão, até ser interrompida bruscamente.

- Se a deusa do amor jamais conseguiu me convencer a permitir-me acorrentar, não és tu que farás isso!

– Quem está com medo agora, heim? – June acrescentou com um ligeira presunção

Os olhos do mais velho imediatamente brilharam em amarelo vivo com a afronta, até mesmo chegou a abrir a boca para discutir a respeito, mas tornou a fechá-la, apesar do gosto amargo que sentia com isso.

- Certo, eu tenho medo de ser acorrentado e deixado a mercê numa rocha enquanto um mostro vem me devorar, e? – Desafiou o pai do deus do medo e do pavor – Qualquer ser sensato teria medo disso, pergunte a Prometeu como se sente e tu entenderás.

- Você tem razão, mas na verdade eu ia sugerir a sua ideia. Vamos alterar o mito um pouquinho – Ela sorriu, apontando para o rochedo – Agora eu também quero ver esse monstro, mas se vamos mergulhar, temos que partir dali, temos mais chance de encontrá-lo dali, eu só não sei como vamos chegar até lá sem um barco...– E ao se virar, ao invés de se encontrar com o deus moreno de cabelos prateados, deparou-se com um falcão de plumagem branca e marrom, muito maior do que uma ave convencional, possuindo o tamanho de um homem  -...Como você?! Quem ou o que é você?! – Ela surpreendeu-se.

A criatura apenas guinchou enquanto erguia suas grandiosas asas e iniciava seu voo, com as garras na direção da jovem para que pudesse levá-la com ele. Ela confirmou com a cabeça, agarrando-se em suas pernas e sentindo uma enorme euforia dominando-a quando alcançou os céus, sentindo o vento batendo contra o seu rosto.

O voo, contudo, durou pouco, e logo estavam pairando próximo ao grande rochedo.

-...Alguma chance de você se tornar um peixe também? – Um novo som agudo foi sua única confirmação quando o bico do pássaro a puxou pelas roupas com violência no ar, e antes que ela pudesse dizer algo, o pássaro havia dado um rodopio permitindo que ela caísse sobre suas costas, tentou se agarrar em suas penas para não cair, mas elas começaram a rapidamente desaparecer conforme mergulhavam em queda livre em direção ao mar.

Ao invés de plumas, o corpo da divindade assumia uma textura lisa, que estava dificultando muito que pudesse se segurar, ainda assim, como seu o próprio vento indomável daquela ilha tivesse se curvado à sua vontade, ela se manteve firme nas novas costas do deus, envolvendo então as pernas ao redor do que parecia ser a cabeça do corpo que tomava a forma de um losango, uma cauda longa sem espinho se abrindo atrás de si, revelando uma colossal manta, tão como uma arraia gigante.

Sequer teve tempo de fechar os olhos e se preparar, e já haviam quebrado a superfície do oceano. Sentia todo o corpo doer pela pressão do mar contra sua pele, ainda assim conseguia manter os olhos abertos, talvez por efeito da adrenalina em seu corpo, sequer sentia qualquer irritação em seus globos oculares enquanto o mergulho seguia.

Tampava o nariz como podia, sentia um zumbido incomodo passar por seu ouvido, mas uma de suas mãos ainda se mantinha forte segurando o deus.

Então começaram a avistar o monstro.

Que não parecia realmente um monstro.

Ao invés disso era um grande domo, como aquele que protegia o submundo do resto do oceano, sua superfície era negra, e ainda assim translucida.

Ares parou de nadar quando estava a poucos centímetros da terra e dos corais que cobriam o fundo do oceano, permitindo que June desmontasse dele antes de reassumir sua forma humanoide, seus cabelos logo soltando de seu amarre e se espalhando ao seu redor tremulando como algas.  

June se aproximou com passos de astronauta, até tocar a superfície com ambas as mãos, um pouco mais atrás o senhor da guerra podia ver que havia um grande jardim de plantas mortas dentro do domo, entretanto, sua atenção foi atraída principalmente a uma pessoa, sentada no meio da destruição e morte.

Uma mulher de longos cabelos compridos, ruivo sangue, sua pele pouco visível era pálida, além disso usava uma longa toga grega de cor negra.

Enquanto ainda processava a visão do “monstro”, a jovem que o acompanhava falou em sua mente, claramente não sabendo que em sua subconsciência poderia desabilitar as leis da física se quisesse.

“Esse é o monstro, a Voz da Alma, que fica sussurrando coisas para mim.” -Ela disse, franzindo a expressão, parecia uma mulher completamente adulta e madura agora, enquanto manifestava com cosmo um longo chicote e com ele açoitava a parede que parecia ser feita de vidro.

Em resposta, o rosto da criatura se virou, erguendo-se lentamente, seus olhos eram completamente brancos, sem pupilas ou íris, sequer parecia ter consciência quando uma enorme foice se materializou em suas mãos, facilmente tendo o dobro de seu tamanho, e mesmo sem uma expressão em seu rosto, estava claro que ela estava disposta a trazer a morte a qualquer um que se atrevesse a profanar seu descanso, mostrando-se como Aquela que Destrói a Luz e vive na escuridão.

E mesmo que assim fosse, ao encarar o homem atrás da Donzela que tentava abrir passagem pela cúpula, um pouco de reconhecimento pareceu atingir os olhos da criatura.

Mesmo Ares sentia algo estrangeiro a respeito, uma estranha sensação de agonia o invadindo por não reconhecê-la, mesmo quando tinha certeza que já tinha visto seu rosto antes.

Não soube dizer por quanto tempo ficaram assim, segundos, minutos, pareciam se arrastar enquanto June sozinha tentava abrir aquela barreira, ao tempo que monstro e deus seguiam a se encarar tentando compreender o que os tornava familiares um para o outro.

Como se ouvisse suas preces, um cosmo rubro começou a envolvê-lo, ao mesmo tempo que avançava até o domo e o corroía como se fosse ácido, desfazendo a proteção que desaparecia com um tom esverdeado.

“Eros?!” – Questionou surpreso, entretanto, seu questionamento passou para outro plano quando várias recordações o bombardearam fazendo-o perder o ar, como se estivesse recebido um potente soco no estomago, abrindo a boca devido a isso e involuntariamente engolindo água do mar.

Sequer processou quando June o tomou pelo braço e o levou com ela pela abertura feita pelo cosmo do deus do amor. Assim que a ultrapassaram, caíram no chão seco e morto, respirando com profundidade ao notar que, contra qualquer lógica, mesmo estando rompido, o domo ainda mantinha oxigênio em seu interior.

- Ares...És tu...? – A foice havia desaparecido, e agora os olhos do monstro eram de um azul profundo, em sua expressão havia reconhecimento, dor, alegria, tristeza, tudo misturado em um único elemento.

O príncipe do Olimpo, de joelhos no chão devido a sua aterrissagem brusca, ergueu o rosto, embora sua cabeça ainda girasse e doesse e seu estomago se revirasse. Não sabia ou entendia o que Eros havia feito, mas agora podia reconhecê-la em seu completo esplendor.

E simplesmente não podia acreditar que a tinha esquecido em primeiro lugar.              

    - ...Perséfone...?

-.-.-.-

Os marinas observavam descrentes a figura animada de seu deus, enquanto a cor na face de Sorento sumia em uma velocidade surpreendente.

- Ela é tão linda, tão doce, tão amável! – Seus olhos transbordavam de felicidade, completamente diferente da postura exasperada que possuía quando havia ido até a Fonte apenas alguns instantes atrás. – Nós até mesmo dividimos a mesma água, foi como um beijo indireto! – Indicou com emoção o copo de plástico que ainda em sua mão, que logo desapareceu tornando-se água para ressurgir próximo a sua estátua-fonte na longínqua Atlântida, fincado entre os dentes de seu tridente de mármore.

- Eca – Não pôde deixar de mencionar Havok, sendo o primeiro a se recuperar da nova aventura do deus, afinal, antes de ser seu senhor era seu amigo, e já conhecia seu jeito espontâneo de ser. – Vocês dividiram baba! Que nojo.

- Você entenderá quando for mais velho – Balançou a mão na direção de seu Dragão Marinho com arrogância – Por enquanto você ainda é muito criança para algo tão profundo como o amor!

-...Você também, é só três anos a mais do que eu – Rebateu o menino inflando as bochechas sem perceber – É uma diferença mínima.

- Um garoto pode se tornar um homem em apenas três anos, meu caro amigo!

Em meio a essa interação, de forma não tão discreta como normalmente atuava, Sorento arrastou Io, Kasa e Bian consigo, Krishna apenas ficou observando a interação de canto de olho.

- Ele só tem treze anos! – Exclamou com clara exasperação – Eu tinha expectativas que ele não entrasse em relacionamentos até os dezesseis!

- Por que está falando isso para a gente? – Defendeu-se Lymnades. – Não é como se nós tivéssemos influenciado ele de alguma forma.

- Dezesseis anos é uma expectativa muito alta, Astrapí nasceu quando Julian tinha só dezessete, lembra? E ele começou a ‘namorar’ aos meros catorze anos – Io recitava com um sorriso engraçado no rosto – Talvez seja influência de Poseidon, não sei, mas isso só reforça o quanto você estava sendo otimista achando que poderia segurá-lo até essa idade.

- Eu simplesmente não queria uma manada de semideuses, deuses humanos, ou seja lá como poderemos denominá-los, antes que ele ao menos tivesse barba! – Pontuou, levando as mãos ao rosto, enquanto seu senhor seguia descrevendo seu amor com devoção a Kiki e Havok, o segundo seguindo com uma expressão de nojo.

- Simplesmente temos que explicar os métodos contraceptivos mais cedo do que o planejado, e podemos evitar essa situação por enquanto – Opinou Krishna aproximando-se do grupo, recebendo sobrancelhas erguidas de todos, com exceção de Sorento que seguia com uma expressão miserável - ...O que foi?

- É que é estranho falar de sexo com você, cara – Pontuou Kasa dando de ombros, ao que o srilankês revirou os olhos. – Foi mal, mas é verdade, é estranho vindo de alguém que passa a maior parte do dia meditando e fazendo essas coisas pagãs que você faz.

- Isso não me faz automaticamente um ignorante sobre o assunto – Acrescentou com um deixe de impaciência – Seja como for, estamos perdendo o objetivo aqui.

- Eu duvido que ele seja um ignorante sobre o assunto em primeiro lugar – Bian comentou, recebendo um olhar fulminante pouco comum do músico – Você sabe bem que Senhor Julian sempre fez questão de ele ter uma educação modelo, eu duvido que na escola já não tenham tocado nesse assunto, pelo menos de onde eu venho as crianças começam a aprender sobre isso bem jovens, mesmo que de forma lúdica.

- Escola? Ora pois, que mundo vocês vivem, ele tem acesso a internet, esqueceram? -  Acrescentou Kasa franzindo a expressão – Mesmo eu sei dizer que aquilo é o verdadeiro submundo na Terra! Sem duvida ele sabe, seja de forma lúdica ou...Pornô, não tem como ele não saber.

- Sinceramente – Seguiu novamente Krishna - Levando-se em conta o “histórico” de nosso deus, creio que seria mais sábio termos certeza que ele tem ótimas noções de consentimento e respeito ao corpo alheio, acima de nos preocuparmos se ele terá filhos em tenra idade ou não – Isso fez um arrepio percorrer a espinha de todos os presentes, lembrando-se de todos os estupros que seu senhor foi capaz de realizar no passado, alguns excessivamente violentos como o da ninfa Caenis.  – É o ideal a ser feito, sendo Neroda, nosso senhor tem a chance de ser um novo deus, mas o antigo Poseidon ainda habita dentro dele, por isso cabe a nós não permiti-lo cair nos mesmos erros de outrora.

- Além disso, o fato de Neroda ser Poseidon nos dá a impressão de termos que fazer tudo por ele, mas não podemos esquecer de seus pais nesse assunto.– Juntou-se Bian –Vamos ter certeza de falar sobre isso com o senhor Julian e a senhora Hanate quando tudo acabar, ainda temos uma guerra que enfrentar, podemos nos preocupar com isso depois.

Frente a isso Sorento respirou profundamente, massageando suas pálpebras fechadas. 

- É justamente por seu “histórico” e de seus filhos que o assunto me inquietou tanto. Mesmo sendo seu tutor eu não me sinto confortável de falar sobre isso com ele, mas sendo o melhor amigo de Havok, não vou me safar dessa conversa por muito tempo, também tenho que falar com Thetis depois – Voltou-se ao seu senhor que seguia conversando animado com o trio que o cercava, mesmo Épios escutava suas divagações com um vago sorriso no rosto, deveria ser realmente afável escutar sobre um primeiro amor depois do dia que o ex médico tinha tido – Contudo, você tem razão Bian, um passo de cada vez, temos uma guerra que enfrentar antes disso – Engoliu em seco – Mas se eu morrer lutando...

- A gente fala com eles, relaxa – Brincou Io dando uma ‘ombrada’ amigável no companheiro – Apenas temos que nos certificarmos de não morrermos todos, porque alguém vai ter que ter essa conversa. Eu sou a favor de colocarmos isso na conta do Kiki, ele é o novato que tem que se provar aqui.

- Não falem de morrer com tanta tranquilidade! – Exclamou Kasa com um arrepio.

- Se está com medo, Lagarto, pode ir embora, ninguém está te segurando.

- Eu n-não estou com medo.

- Hombre, suas pernas estão tremendo desde que falaram de Ares! – Provocou o chileno.

- Ah, cale sua boca! Mesmo que esteja com medo, não vou trair meu senhor.

- Assim que se fala!

- Não preciso de suas palavras de animo, Mulher-Monstro.

- O que você disse...?!

Sorento ignorou a recente briga de seus companheiros, vendo como Isaak começava a se aproximar do grupo, seus olhos ainda avermelhados.

- Soleil já voltou ao submundo – Informou simplesmente com a voz ligeiramente cansada – Eu ouvi a situação atual da boca de Athena, então o Hecatônquiros e os olimpianos estão vindo para cá? – O músico apenas confirmou com a cabeça – Vocês estão conversando sobre algum plano para a batalha iminente, eu espero, porque muito em breve esse lugar vai se tornar um caos se Ares e Dionísio estão vindo para cá.

- Na verdade a gente estava falando da vida sexual de Poseidon – Colocou Io com um sorriso. – Nosso senhor está apaixonado.   

Silêncio.

-...Espera...O quê?! – Exclamou Kraken completamente perdido. – Como assim...?! Ele só tem treze anos!

- É uma longa história...- Confessou Sirene – Porém, realmente devemos nos focar na guerra em primeiro lugar – Seu olhar se desviou para a Fonte de Athena – Diga-me, qual a situação lá dentro? Talvez seja melhor realocarmos aqueles que não tem mais condição de lutar em Atlântida e começarmos a preparar a região para o que está por vir. 

Embora ainda confuso, o aquariano confirmou com a cabeça e passou a explicar o que sabia da situação dos feridos e mortos do Santuário.

-.-

- Então você vai mesmo nos apresentar devidamente? – Neroda questionava com verdadeira emoção, depois de dar o nome da jovem e o médico confirmar que a conhecia, passando informações valiosas sobre sua história de vida, como sua idade e como havia parado no santuário aos seis anos, estranhamente trazida por seus pais, algo muito incomum de acontecer naquelas terras.

A ideia de apresentar a pequena ao mesmíssimo Poseidon não lhe agradava nada, por maior que fosse a emoção demonstrada pelo mais jovem, os devastadores mitos sobre seus catastróficos casos amorosos rodavam sua consciência, por isso, engoliu em seco antes de responder ao olhar de expectativa. Em sua mente podia imaginar seu deus argumentando “Kiki! Eu te fiz uma esposa! Como você pode se negar a ajudar-me a arranjar uma namorada!?”* e por mais que a situação onde isso aconteceu era verdadeiramente discutível e completamente diferente, ele teria completa razão se dissesse isso.

- Sim... – Por fim respondeu com menos firmeza do que gostaria - Mas o senhor tem que me prometer que vai tratá-la com respeito! – Pontuou o lemuriano, tinha a impressão que estava passando dos limites exigindo algo de seu novo senhor, contudo, seu lado protetor falou mais alto.

- Mas é claro! Por que eu não faria isso? – Não pôde deixar de sentir-se aliviado quando a divindade humana, talvez por seu estado de ânimo enamorado, não notou ou se importou com a incisão das palavras de seu novo marina. – Eu quero convidá-la para meu aniversário e apresentá-la aos meus pais!

-...Você não está indo um pouco rápido? – Esculápio se intrometeu para comentar, embora sorrisse. – Você mal a conhece.

- Foram poucos instantes, mas eu tive certeza de conhecê-la por séculos  - Rebateu o deus com firmeza – Estar com ela é...- Parou, como se ponderasse - Eu não sei explicar...Simplesmente parece certo!

- Talvez ela seja sua alma gêmea? – Perguntou Havok.

- Naaaah, eu não acredito nesse tipo de bobagem – Retou importância com a mão. – Quer dizer, todo mundo sabe que “alma gêmea” se refere só aos Andróginos, que tinham cabeças redondas com dois rostos virados para lados diferentes, caminhavam para todas as direções e ainda rolavam como o Sonic! Eles eram tão legais e poderosos que Zeus, invejoso como ele era, os cortou pela metade com a ajuda de Apolo, e os condenou a procurar sua outra metade por todo o tempo de suas curtas vidas, ou morrer tentando achá-las. Não, eu sou o deus dos mares, não tenho nada a ver com essa história!   

- O romantismo perde um pouco de graça quando você tem milênios ao que parece – Sussurrou Kiki para o antigo deus da medicina. – Seu pai fez mesmo isso?

- Concordo. Creio que o maior inimigo do amor é o tempo – Colocou com um suspiro Épios – E...É, meu pai fez muita coisa estranha, você tinha que ver nossos almoços em família, eu preferia não saber metade do que eu sei sobre as atitudes dele no passado, só posso agradecer a Grande Hera de colocar uma rédea firme nos olimpianos desde que Zeus desapareceu, a saber o que mais os deuses poderiam fazer aos humanos, eu realmente amo meu pai, mas “ponderação” não é uma palavra presente no vocabulário dele.  

Anfisbena apenas deu um sorrisinho compreensivo para o maior, dando um tapinha de apoio em seu ombro.

- Mas eu preciso que mantenham meu quase-namoro em segredo de Athena! – Neroda estalou de repente, retomando a atenção da dupla. – Eu não lembro dos detalhes, mas a última companheira que tive vinculada a Athena, acabou sendo muito amaldiçoada ou coisa parecida, e eu não quero repetir esse cenário!

Isso fez Kiki engolir em seco, sua preocupação de antes voltando com força total, sentindo como se uma bola de ferro caísse pesadamente em seu estômago. Sabia perfeitamente quem era essa mulher. Medusa, a sacerdotisa de Athena que foi pega em um santuário da deusa tendo relações com Poseidon. Tinha tido o desprazer de enfrentá-la diretamente, pensou tê-la vencido, apenas para perder sua perna para ela, enquanto Milo perdeu sua vida e armadura, sequer teve tempo de contar aos demais quanto a essa segunda perda, só podia imaginar como Shion e seu mestre reagiriam, mesmo Jabu que sempre a desejou.

Não obstante apesar de tudo isso, a górgona ainda havia sobrevivido e lutado contra Afrodite de Peixes, e havia lhe custado o braço poder enfim matá-la.

 De forma alguma permitiria que Ailá tivesse um destino desses. Se dependesse de si, e confiava nos outros marinas para isso também, Athena não saberia de nada disso. E, caso algo realmente acontecesse, manteria um olho sobre Ailá e Neroda, como um pai que vigia o namorado de sua jovem filha.   

- Não se preocupe – Disse por fim - Manteremos segredo, certo? – Buscou apoio do filho do Sol.

- Quanto menos eu tiver que falar com Athena, melhor – Respondeu Épios simplesmente.

O assunto, contudo, teve fim quando os marinas, agora junto a Isaak, retornaram de sua conversa paralela.

- Meu senhor – Sorento tomou a frente – Fico feliz com seu...Descobrimento – Acrescentou ainda incomodado, mas se esforçando a mostrar-se simpático aos sentimentos do deus – Contudo, precisamos nos focar no que está inevitavelmente próximo de acontecer, é possível o senhor saber quanto tempo o Hecatônquiros levará para chegar até aqui?

Isso fez o menor franzir a expressão, como se por alguns instantes realmente tivesse esquecido do titã gigantesco que se aproximava, inevitavelmente lançando um olhar de preocupação para a Fonte.

- Não – Confessou – Há um cosmo o envolvendo, talvez de Chronos, eu não consigo ter certeza. Ele está dificultando definir a velocidade, provavelmente para que nós e os mortais não o sintam chegando, mas eu posso dizer que ele está passando agora pelo Estreito de Gibraltar.

Isso imediatamente assustou Sorento.

- Isso é muito rápido! Em poucos minutos ele já passou por toda a costa norte da França e da Espanha, e toda a costeira portuguesa – Engoliu em seco, imaginando o mapa mundi em sua cabeça - Faltam apenas o litoral sul desses dois primeiros países, e ele já estará no mar Tirreno da Itália, e com isso faltará muito pouco para alcançar nosso mar mediterrâneo e nossa própria costa. Como uma criatura tão grande pode estar nadando assim tão rápido?!

-  Eu estou tão surpreso quanto você – Admitiu o jovem – Apenas os deuses marinhos deveriam ser capazes de se locomover com essa velocidade pelo oceano. Isso me lembra – Voltou-se a Épios – Você conseguiu falar com Ares? - Um pequeno silêncio desconfortável assomou a todos, fazendo o menor franzir a expressão – O que foi? Eu perdi alguma coisa?

- Na verdade sim, e por isso eu ainda não falei com o Senhor da Guerra – Confessou o grande médico. – Estava pensando em como abordá-lo quando o senhor retornou.

- Estivemos conversando entre nós enquanto o senhor se retirou – Juntou-se novamente seu músico – Sobre algo que Kasa e Krishna testemunharam ao ajudar os cavaleiros de Athena. Haviam estranhos ramos de planta atacando a tudo e a todos, e ao confrontá-los, Kasa percebeu que havia uma consciência por trás dessas plantas, mas não apenas isso, ao enfrentar essa consciência ele assumiu a forma do deus Ares – Frente a isso Neroda franziu a expressão confuso. – Isso significa que existe uma grande possibilidade de Aphrodite ser aliada de Chronos, e ser aquela que atacou o santuário.

- Aphrodite?! – O deus dos mares repetiu com descrença – Aquela mulher não se dá ao trabalho de entrar numa guerra desde Troia! O que ela ia querer com Chronos... – E antes que alguém pudesse responder a sua pergunta, a divindade seguiu – Mas faz sentido, ela costumava ser uma divindade marinha, e como uma deusa da fertilidade também é bem habilidosa em gerar vidas como plantas, além do que ela e Ares tem um caso muito longo - Então seu olhar voltou-se imediatamente para a Fonte, por um segundo esquecendo de todos os presentes, tentando localizar Ailá pelo cosmo, tinha sentido muito pouco dele nos poucos instantes em que estiveram juntos, mas ainda era capaz de encontrá-la na enfermaria lotada, como se fosse um farol em meio a escuridão de uma tempestade.

 Por alguma razão que fugia a sua compreensão, a simples possibilidade de Aphrodite encontrar Ailá simplesmente o apavorou, talvez porque a deusa do amor era conhecida por suas maldições dirigidas a outras mulheres que ousavam ser mais bonitas do que ela, e Ailá, mesmo tão jovem, ao seu ver estava nessa lista sem qualquer dificuldade. Seja qual fosse o motivo, um desejo realmente feroz de protegê-la cresceu em seu peito sem que pudesse detê-lo.

- Sorento – Antes que qualquer um interrompesse a linha de raciocínio do imperador, este nomeou seu músico com severidade – Avise Athena que eu criarei uma estrutura protetora ao redor de toda a Fonte, e que para isso eu terei que mudar MUITO todo o cenário daqui. Se eu tiver que discutir isso com ela vou perder a pouca paciência que me resta, então é melhor que você faça isso por mim, ela parece simpatizar contigo por alguma razão.

- Sim, senhor eu o farei – Confirmou lealmente o músico – Entretanto, mesmo com esse reforço na proteção, creio que seria sábio alocarmos os mais feridos e as crianças para Atlântida, e manter apenas aqueles que podem e querem lutar aqui conosco, pois Isaak me passou o quadro atual da Fonte, e eles tem um número realmente preocupante de pessoas lá dentro.

- Essa é uma excelente ideia Sorento – Confirmou com a cabeça – Tem a minha autorização, pode negociar a possibilidade com Athena também e...- Pensou em pedi-lo para dizer que Ailá fosse também enquanto o via se afastar para cumprir suas ordens, mas Sirene não a conhecia, e seria sem dúvida um pedido muito suspeito se queria manter sua paixão em segredo, ainda assim, voltou-se suplicante para seu novo servo.

- Eu duvido que Ailá aceitará ir – Respondeu Kiki como se fosse capaz de ler seus pensamentos – Ela é bastante corajosa, e leva sua função de curandeira bem a sério, mesmo sendo jovem, não receberá facilmente a ideia de abandonar o campo de batalha, ainda mais depois das mortes que presenciou – Recordou-se que Logam havia lhe contado que ela assistiu toda a batalha contra Aiolos enquanto protegia Suisho – Ela é o tipo de pessoa que ao ver uma cidade em chamas, corre em sua direção ao invés de fugir do perigo.

- Um típico médico disposto a morrer na linha de frente, se for necessário – Comentou num sussurro Esculápio com um sorriso triste em seus lábios – Eu e meu pai sempre abençoamos esse tipo de coragem.

As palavras do velho grego não tranquilizaram em nada o nervosismo do deus do mar, enquanto assistia Sorento trocar palavras com os outros marinas, e ir cumprir sua missão de negociação ao lado de Krishna e Bian, enquanto Io, Isaak, Kasa e Havok permaneciam com seu senhor.

 - Mesmo que levemos os feridos embora, numa guerra, inevitavelmente novos surgirão, eu entendo que precisamos manter uma força médica aqui para isso, nem todos poderão partir para Atlântida para seguir cuidando dos feridos, mas...Eu não quero que ela se machuque, você tinha que vê-la, estava tão... – Hesitou, franzindo a expressão – Quebrada, chorando os mortos sozinha no escuro – Seu corpo tremeu ligeiramente agora que processava com calma as nuances da postura dela frente aos caídos, sendo ela uma curandeira – Eu já vivi guerras o bastante para saber o peso que ela tem sobre as pessoas, tenho certeza que mesmo Ares e Athena concordariam comigo que o pós-guerra é a pior merda de todas. E há um ditado no Olimpo que diz “Se Ares e Athena concordam em um parecer, mesmo a deusa da justiça tirará sua venda”.

Kiki buscou surpreso a vista do médico para confirmar a existência dessa frase, o mesmo apenas concordou com a cabeça.

- Você pode imaginar quantas vezes isso aconteceu para termos uma frase dessas. – Ele disse.

- Acredite – Seguiu Poseidon - Nem Hades gosta de contar os mortos de um conflito desses, o conhecendo, tenho certeza que a guerra de Troia revirou o estômago dele de muitas formas. Você é o chefe dela. Se fosse uma ordem diretamente sua ela escutaria, você mesmo disse, ela é jovem, diferente de mim, jovem de verdade, a batalha que nos espera é realmente brutal! Você não tem ideia do que o Hecatônquiros é capaz, no passado ele pôde confrontar eu, Hera e Apolo juntos, não quero que ela esteja aqui numa situação dessas, não quero vê-la chorando mais mortos, quando pode se dedicar aos que estão vivos e precisando de ajuda agora, e eu não quero que Aphrodite a veja...

A última frase fez Kiki franzir a sobrancelha confuso, mas logo assumiu apenas que o menor não desejava que a deusa do amor usasse os recentes sentimentos contra ele, tinha seu sentido.

- Eu era chefe dela, não acredito que, depois de tudo, Athena me permita dar mais alguma ordem na Fonte, e com a deusa lá, seria arriscado fazer isso por suas costas, já temos uma aliança muito delicada com a deusa e- As palavras morreram em sua boca vendo a expressão de seu senhor, não era raivosa, não, seria mais fácil lidar se fosse, ao invés disso era uma mistura de dor, preocupação e olhos de cachorrinho na chuva, que fez o mais velho dar um gemido interno de consternação. – Tudo bem, eu vou falar com ela.

Não podia negar aquela cara, as palavras saltaram de sua boca antes que pudesse evitar, soltando um suspiro cansado frente a expressão de vitória do menor. Agora entendia como Milo se sentia quando abusavam de sua fraqueza à crianças e suas expressões pidonas. Só podia imaginar se isso era mais algum truque dos poderes de Poseidon, ou se estava se tornando uma manteiga derretida depois dessa noite turbulenta.

Não pensou nem por um instante que essa era uma técnica secreta que o deus do mar estava desenvolvendo em segredo para lidar com certo imperador-das-trevas-super-controlador-com-complexo-de-irmão.

Seja como for, Neroda sorriu satisfeito, enquanto seu servo negava com a cabeça, Io e Kasa riam baixinho ao fundo, ao tempo que Isaak questionava o que tinha perdido pois não estava entendo o rumo daquela conversa, apiedado Havok se pôs a explicar para ele, ainda com ligeiro nojo. 

- Certo! Com isso resolvido, o que faremos com você? -  O olhar do senhor dos mares então se voltou a Asclépio que apenas observava a interação. – Eu definitivamente não vou permitir que você fique aqui sem estar na proteção de um olimpiano, mesmo que eu tenha que te nocautear para isso – Isso fez o serpentariano assumir postura ofensiva, mesmo Kiki olhou de um para o outro com preocupação – Você cuidou dos meus marinas, então eu me sinto em dívida contigo, e eu sempre pago minhas dívidas.

- O senhor já me pagou com águas de Atlântida – Respondeu, contudo, sem desfazer sua postura defensiva.

 - Isso não é mais suficiente, não quando você está arriscando sua vida para estar aqui – Então começou a caminhar na direção do médico, que sentado no chão possuía a altura do adolescente, a tensão cresceu entre todos, mas como os generais marinas não se mexeram, Anfisbena também não o fez, mesmo sentindo seu coração na boca, um olhar para Havok, contudo, fez seu coração imediatamente se acalmar. A expressão do Dragão Marinho era tranquila e denotava completa confiança nas atitudes de seu senhor. Por isso, escolheu confiar também.

- E eu não penso em ir embora, mesmo que tenha que lutar contra o senhor – Ameaçou Asclépio franzindo a expressão, sem desviar o olhar de seu tio-avô – Eu ser mortal agora não muda minha resolução como médico – O cosmo de Poseidon se intensificava mais frente ao claro desafio – Eu não deixei a linha de frente nas Grande Guerras, não recuei frente a varíola ou a peste negra, mesmo que não me atingissem diretamente, eu assisti Thanatos fazer seu trabalho milhares e milhares de vezes, fui atacado e esquartejado mais de uma vez por me expor, por armas humanas antigas e modernas, e se isso não me impediu de levantar-me novamente e seguir curando as pessoas, não é você ou suas ameaças que me fará retroceder, Poseidon! – Ergueu-se, possuindo quase o dobro da altura do menor, seu próprio cosmo emanando em aviso – Sendo ou não deus dos médicos agora, eu desonraria todos que seguem a profissão da medicina se simplesmente recuasse preocupado com a minha própria vida, eu vou ficar, eu vou seguir com o meu dever, nem que eu tenha que morrer no campo de batalha junto aos que cairão nessa batalha!

Neroda ergueu a mão, seus olhos brilhando em amarelo vivo, Isaak fez menção de se aproximar de seu senhor, mas Havok o impediu lançando a ele o mesmo olhar de confiança que havia dedicado a Kiki. Asclépio esperou pelo pior, assumindo sua própria postura de batalha, sua energia emanando em ondas, que embora não fosse mais divino, ainda era digna de respeito.

E então uma corrente de água caiu do céu, mais precisamente do mar que corria sobre suas cabeças, com tudo na cabeça do médico.

Sem força, sem agressividade, apenas como um banho inesperado no meio da noite, ao tempo que Poseidon apenas desatava a rir, satisfeito.

- De nada por te ajudar a esfriar a cabeça de novo – E vendo a expressão completamente confusa de Épios acrescentou – O quê? Eu só estava testando sua motivação, sabe, se eu vou arriscar uma dor de cabeça com Apolo por você, ao menos queria garantir que vale a pena – O único lemuriano presente nesse instante respirou fundo, soltando uma respiração que nem havia percebido que estava contendo – E você passou. Você não era o deus dos médicos à toa, afinal.

Esculápio apenas lhe lançou um olhar zangado, enquanto seu cosmo se elevava de forma diferente, emitindo um calor que chegava a ser sufocante, secando-o quase que imediatamente.

- Aaaah, assim não tem graça – Resmungou o deus dos mares – Como você ainda pode fazer isso de qualquer forma?!

- Eu ainda sou filho de Apolo, eu aprendi a manejar o calor ao meu favor ainda quando cavaleiro. – Respondeu com simpleza, cruzando os braços. – Faz parte do meu cosmo e de quem eu sou, não pode ser tirado de mim a menos que meu pai deseje.

- Faz de você um chato – Resmungou o contrário – É a mesma coisa quando eu tentava fazer isso com Héstia, ela se secava rapidamente assim também, por causa da chatice dela Hades tinha que lidar sozinho com todas as minhas brincadeiras, já que meus demais irmãos não tinham senso de humor.

- E Hades tinha senso de humor? – Kiki não pôde deixar de perguntar.

- Não, definitivamente não, mas era sumamente engraçado vê-lo encharcado, principalmente porque ele não conseguia ficar realmente furioso comigo por causa disso, então era só, sabe, divertido. – Deu de ombros - Sem maldições, plantas assassinas, ou raios e trovões como consequência.

Jamais imaginou Hades como um bom irmão, apesar das descobertas de Shiryu com os escritos de Câncer, por isso anotou mentalmente esse como outros de seus descobrimentos dessa noite, conseguia entender agora a emoção de Soleil com suas listas, pois em uma única noite estava aprendendo mais sobre os deuses do Olimpo e do submundo do que em duas décadas de estudo.

Era como diziam, nada como a prática além da teoria, e ter como “professor” um deus antigo que havia vivenciado tudo isso e não tinha nenhum problema de contar suas façanhas aos quatro ventos, sem dúvida contava como uma espécie de prática, mesmo que não fosse sua.

- Ainda que eu aceite sua permanência, insisto que deve buscar a proteção de um olimpiano, justamente para continuar ajudando os demais como você deseja e ter um julgamento justo, ao invés de simplesmente se tornar uma flor ou árvore, porque a menos que te transformem em uma planta medicinal, você não seria nada útil assim para nós – Declarou com um sorriso - Realmente pode ser uma espada de dois gumes lidar com Ares tendo Aphrodite como inimiga, mas de qualquer forma ele já está vindo para cá, então teremos que contornar isso de qualquer forma.

- Sim...- Esculápio confirmou, voltando a se sentar no chão, que também estava seco, próximo a Kiki,– Já havíamos discutido isso, meu pai sem dúvida o chamará, então realmente é melhor entrar em contato com ele antes disso.  

- Mesmo se Apolo não o chamar, ele vai acabar farejando nossa guerra, as barreiras de Athena e seus antigos cavaleiros não o impedirão de sentir uma grande batalha envolvendo olimpianos e um titã.

- Por que meu pai não o avisaria? Se ele disse que informaria os olimpianos e ele e meu pai são razoáveis aliados.

- Porque eu duvido que a deusa do amor possa ter atacado diretamente do castelo de Heinsteim o santuário sem ninguém a notar fazendo isso, apostaria o que você quisesse que era justamente isso que seu pai ia falar sobre minha irmã Héstia, ela simplesmente detesta Aphrodite, e se alguém não desperdiçaria a chance de arrancar o sorriso da cara da deusa do amor, sem dúvida seria ela. – O senhor dos mares sorriu com o mero pensamento -  Sabia que Héstia derrotou quase tantos titãs quanto eu, Hades, Zeus e Démeter? E ela nem usou as mãos! Eu jamais subestimaria a fúria dela, e se Apolo tiver conhecimento que Aphrodite está com Chronos, ele não arriscaria meter Ares no assunto, e quem sabe o que Hera decidiria sobre o assunto, afinal, ela já foi traída pelo filho em Troia justamente por causa da deusa do amor e pode tentar impedi-lo de participar, mas nada disso impediria Ares de aparecer gritando quando a batalha estourar, acredite.

- Não existe nenhuma possibilidade de Ares JÁ estar no assunto, sabe, como aliado de Chronos e tudo mais? – Meteu-se na conversa Kasa com desgosto.

- Não, é um plano muito extenso e elaborado para Ares aceitar – Épios refutou com um gesto de mão – Foi CUSTOSO convencê-lo a aceitar minha estratégia sobre como enfrentar Athena, eu tive que lutar com ele por SEMANAS, e não foi até ter uma vitória plena e convencer seu filho Anteros que consegui sua aprovação. Anteros pode ter uma personalidade fácil de irritar, mas sem dúvida é o mais inteligente e Ares confia a ele as decisões importantes. Tenho certeza que o deus do amor correspondido jamais aceitaria um plano tão rebuscado que colocasse o pai contra todo o resto do panteão, mesmo que partisse de sua mãe, eles não tem uma relação muito boa desde que ela o expulsou de seu templo milênios atrás quando ele era adolescente. Então realmente é melhor tentar trazê-lo para nosso lado antes que toda a guerra estoure, e tudo que ele tenha que fazer é escolher um lado de uma batalha

– Embora ainda me sinta aflito de ter um deus tão antagonista a Athena como aliado, depois de tudo que vocês disseram, estou genuinamente curioso para conhecê-lo. – Comentou o lemuriano, frente a isso Kasa soltou um grunhido de incomodo, mas não recebeu muita atenção com o gesto - Como podemos chamá-lo?

 Ao invés de responder, o antigo deus levou as mãos ao focinho de Tônio, apertando-o de modo que abrisse sua boca revelando suas grandes presas, sem sequer hesitar usou-as para cortar o próprio pulso, e logo soltou o réptil que silvou em protesto.

Então o senhor da medicina levou o punho para frente, numa posição similar aos cavaleiros doando sangue para uma armadura, que Kiki conhecia tão bem.

Quando o sangue já formava uma circunferência expressiva e o incomodo assumia a face do serpentariano, este começou a dizer com profundidade.

- Oh rei destruidor de mortais, contaminado com sangue seco, satisfeito com o rugido terrível e tumultuoso da guerra. Receba esse sangue humano como oferenda e se manifeste nessa prece – A superfície rubra começou a se agitar, escurecendo rapidamente, como se estivesse oxidando numa velocidade anormal, um forte cheiro de carne crua sendo emanada, fazendo Anfisbena, sendo vegetariano, enjoar rapidamente -  Senhor que com suas espadas e lanças se deleita, seja para nós a terrível ruína da luta selvagem e louca, nos digne com tua presença e mesmo aqueles que vivem da terra cederão ao teu nome, para trocar por armas os trabalhos do campo, encorajar a paz, conquistadas por suas próprias mãos, dê abundância àqueles de mente benigna dispostos a lutar.*

Um longo grunhido escapou dos lábios de Lymnades, quebrando o silêncio.

- COMO vocês podem REALMENTE achar isso uma boa ideia?! – Resmungou.

E desse modo uma imagem surgiu na superfície escura.

-.-

Eros deu um sobressaltou em seu lugar quando sentiu um cosmo que não pertencia ao seu pai, seus irmãos, ou os servos de Dionísio. Imediatamente voltou-se a June se perguntando se a energia emanava dela, apenas para se surpreender com a lança-divina de seu pai, que começou a flutuar sozinha, e então sua lâmina se voltou a chão e o tocou, e para completo choque e nojo do primordial, de sua ponta começou a escorrer sangue.

- O que é isso agora?! – Questionou com receio franzindo a expressão, vendo com genuína preocupação a figura de Ares enquanto a poça de sangue apenas se ampliava.

O corpo do deus estava tombado para a frente, seus olhos eram vazios e sem expressão, como um verdadeiro cadáver, o que fez um arrepio correr a espinha do deus do amor. A jovem quase-imperatriz em seu colo, por outro lado, não estava em melhor situação, parecia tão morta para o mundo quanto o mais velho.

- Se eu estivesse no mundo mortal, sem dúvida essa seria uma cena perfeita de um assassinato das séries que Psiquê gosta– Disse para si mesmo, vendo da dupla para o sangue que se ampliava e começava a empapar as pernas dos dois,  ao tempo que estava armado com um arco e flecha branco firme em suas mãos.

Voltou sua vista para a entrada do coliseu ainda bloqueada pelas plantas secas, seus irmãos seriam capazes de entender essa caótica cena ou o acusariam como mortais faziam quando encontravam alguém suspeito numa cena de crime segurando uma arma?

Não pôde evitar engolir em seco só de pensar em ter que enfrentá-los até que pudesse se explicar, ao mesmo tempo que queria correr até eles perguntar se era normal a arma de seu pai se comportar dessa forma, ou se era um sinal de que seu estupido plano perigoso estava fracassando terrivelmente e tinha conseguido a proeza de colocar o deus da guerra em perigo.

- Ares?

- AAAAAAAAAAAAAH! – Uma voz vinda do mesmíssimo sangue, contudo, fez um grito pouco másculo escapar de sua garganta, quase fazendo seu arco ir ao chão e quebrar em mil pedaços.

-.-

-...Hãaa – Esculápio piscou do outro lado da poça, usando seu cosmo para curar seu pulso ferido, todos os olhares sobre si.

- Isso foi Ares? Diz que foi, diz que foi, por favor! Eu amaria jogar isso na cara dele pelo resto da vida! – Comentou com graça Neroda aproximando-se do sangue para ver a face sem expressão do deus, seus olhos vagos – Olha, ele parece meio morto...Soooobriiiinhoooo?

-.-

- Ele não está morto! – Respondeu exasperadamente, fazendo sua arma desaparecer como se isso fosse realmente incriminá-lo, confiando que os ramos que havia domado já eram suficientes para protegê-los agora, ao menos, por enquanto. Ainda assim, manteve a guarda alta, não era exatamente um guerreiro, mas como essas plantas se tratavam de emoções condensadas, conseguia senti-las chegando sem problema uma vez que mantivesse alguma atenção. – Ele está só...Quem é de qualquer forma?! Você que está fazendo....Isso – Apontou para a poça de sangue, sem saber se quem falava com ele podia vê-lo ou não.

-...Eu me chamo Esculápio eu sou...- Hesitou por alguns instantes – O deus da medicina.

- Não, você não é – Disse com suspeita, franzindo a expressão, aparentemente essa era uma forma de comunicação de muito mal gosto, de onde estava conseguia ver um rosto pálido, longíssimos cabelos negros emoldurando uma face cansada que não se recordava de conhecer, e por alguma bizarra razão havia uma serpente enrolada no pescoço desse homem. A imagem não era clara o suficiente para ver mais detalhes, entretanto havia algo na figura que se destacava muito mais que sua aparência  – Posso sentir daqui a hesitação em seus sentimentos quando você diz isso, claramente indica que está mentindo para mim.

-.-

O filho do Sol engasgou com sua própria saliva, tentando disfarçar com uma tosse.

-...Eros...? – Questionou, sentindo uma sensação de pânico o invadir e controlando-a o mais rápido que podia, se fosse mesmo o deus do amor, ele poderia ler suas emoções como um livro, e era tudo que não precisava numa noite como essa, não depois de ter até mesmo colapsado em estado de choque.

- ...Eros é filho de Aphrodite e Ares, certo? – Kiki comentou em um sussurro distante da projeção.

“MUITO mais filho de Aphrodite do que de Ares” – Respondeu Épios na mente dos presentes, o que consumia sua energia, pois não era um lemuriano e falar com tantas pessoas ao mesmo tempo consumia um considerável cosmo – “-Isso não é bom, ele é muito ligado a mãe, ele é inteligente e mais forte do que parece, talvez sua mãe o esteja usando como intermediário entre ela e Ares. Pelo menos até ele se casar e ir viver na Terra a maior parte do tempo, ele fazia cada uma de suas vontades, como um verdadeiro servo da deusa do amor.”

- Ou seja – Seguiu a linha de raciocínio Anfisbena – Precisamos de um plano para contorná-lo ou saber quanto sucesso ele teve em sua missão...

-.-

O primordial seguia a encarar a mancha que, para seu alívio, havia parado de se expandir, numa distância segura, como se esperasse que algum monstro saltasse dela e o atacasse.

Podia sentir o nervosismo desse tal Esculápio como se fosse seu, aparentemente o homem estava pensando em suas seguintes palavras, e a julgar a voz infantil que escutara antes, diferente da voz firme e com “ésses” destacados de forma quase ofídia, não estava planejando sozinho.

   - Tem razão, me perdoe – Disse depois de uma longa pausa – Eu disse uma meia mentira, meu nome realmente é Esculápio, eu sou filho de Apolo, eu era deus da medicina até alguns minutos atrás, mas aparentemente perdi meu direito divino...

Não parecia uma mentira agora, embora o mortal ainda parecia apreensivo enquanto falava, mas não foi as emoções dele que chamou sua atenção dessa vez, não, o nome finalmente fez sentido em sua mente.

 Realmente o deus dos médicos se chamava assim e era filho do estúpido deus do Sol, havia tantos semideuses por aí, alguns como o médico e Herácles que haviam ascendido a divindade, que dificilmente lembrava do nome de cada um e de sua função de cabeça.

-.-

- Agora parece que estamos chegando em algum lugar – Seguiu a voz do primordial, e como não o conhecia, não sabia se estava sendo intimidante, desconfiado ou se o mais velho simplesmente estava incomodado com a conversa, sequer podia vê-lo para deduzir por suas expressões, embora fosse muita pretensão tentar algo assim com a divindade que reinava sobre as mesmíssimas emoções – E sim, eu sou Eros, se não se importa eu gostaria de saber o porquê de seu contato repugnantemente repentino.

Isso fez Épios engolir em seco, realmente ele parecia intimidante agora, provavelmente estava mesmo do lado de sua mãe, embora não imaginasse o deus do amor por trás de uma carnificina. Talvez ele tivesse puxado mais de seu pai do que davam crédito, além do que, em sua juventude era conhecido como um ser muito travesso e com atitudes muitas vezes desmedidas e controvérsias, como a forma que amaldiçoou seu pai com o amor infrutífero por Dafne.

Precisava ter muito cuidado.

-.-

 Por sua vez, o filho mais velho do Amor e da Guerra seguia olhando com nojo para o sangue que manchava a armadura de seu pai e o vestido já ensopado de June, era realmente uma cena repugnante, pois fazia realmente parecer que ambos eram dois amantes trágicos que tinham morrido dramaticamente, isso revirava seu estômago, não gostava de finais triste como Romeo e Julieta, sempre o faziam chorar, embora Psique também adorasse séries assim.

- Vai dizer-me de uma vez, ou apenas empapou o templo de meu pai de sangue por passatempo? – A voz inquiriu com evidente impaciência.

-.-

“-Isso não está indo nada bem” – Comentou Épios vendo diretamente Kiki, tentando ao máximo controlar suas emoções, ao menos, por ser médico, conseguia manter um controle sobre seus nervos na maioria dos casos, esperava que fosse o suficiente. “-Eu acredito que ele realmente está do lado de sua mãe, isso nos coloca em um problema ainda maior, Ares sempre quis se aproximar de seu primogênito imortal, se Aphrodite o tem como lacaio, nossas chances são mínimas de conseguir convencê-lo. Creio que realmente temos que começar a cogitar Ares como um de nossos inimigos nessa batalha.”

-Eu sabiiia! – Resmungou baixinho Kasa.

“-Precisamos de um plano de ação, rápido.”

Havok franzia a expressão, Io matutava as opções que tinham, Lymnades seguia tremendo, Kiki repassava em sua cabeça todos os mitos que conhecia pensando em algo que poderiam usar para encurralar Eros, alguém que jamais pensou ter como inimigo.

Neroda parecia sumamente entediado, encarando a cara desacordada de Ares, vendo curioso como de alguma forma os cabelos do deus da guerra se soltavam sozinhos.

-.-

Talvez estivesse sendo um pouco seco com o quase deus, mas a junção da cena na qual se encontrava, sua preocupação com seu pai, mais o fato de que não gostava de Apolo e não tinha nenhum motivo de não sentir o mesmo desgosto por seus filhos, não estava ajudando a melhorar seu humor ou soar minimamente mais simpático.

Mais de uma vez Psique havia lhe dito que podia chegar a ser intimidante quando se sentia incomodado, mas sinceramente achava que ela exagerava.

Afinal, como o pacífico deus do amor, sem qualquer exército ou força real, podia assustar qualquer um? Nem Apolo devia sentir medo dele, apesar de sua “pequena vingança no passado”

“É difícil levar a sério um deus que milênios depois ainda é representado como um bebê alado usando fraldas” – Pensou em autodepreciação.

Muito embora, agora que parava para ponderar, muito de seu sentimento de inferioridade em relação ao poder de outros desses se dava ao fato de que o poderoso Ares nunca se importou em levá-lo como seu filho, mesmo Harmonia cavalgou na Guerra ao seu lado, junto ao seu marido Cadmo e ele não.

A deusa da HARMONIA era chamada para batalha e ele nunca tinha sequer sido cogitado!

Não que alguma vez desejou participar de um combate, suas habilidades não funcionavam sequer para matar alguém, a menos que fosse de prazer, e não via isso funcionando na guerra com sentimentos de ódio, fúria e desejo por sobrevivência dominando a todos, não havia muito com o que trabalhar, seria como tentar plantar grama no deserto.

Por isso, ter seu pai reconhecendo sua habilidade no arco e flecha tinha sido uma das maiores vitórias de sua vida.

Isso só fazia a raiva que sentia pelas atitudes egoístas de sua mãe aumentarem, era como se toda a sua vida tivesse sido uma mentira até agora.

Por isso, nesse momento, enquanto seus olhos brilharam em vermelho sangue, e sentia como alguns ramos rebeldes tentavam atacá-lo, pegou, sem pensar muito a respeito, a enorme lança-divina de seu pai e sentiu-a se encaixar em sua grande palma com perfeição.

Como imaginou, a longa arma não era muito diferente de seu arco, basicamente servia como um catalizador, para que pudesse acumular sua energia e disparar.

 Um sorriso maroto brincou em seus lábios, como aqueles que tinha quando era uma criança travessa e sem limites, essa lança o fazia sentir-se poderoso.

 A ergueu sem qualquer dificuldade, notando que a poça de sangue não havia se desfeito, e embora o deus do outro lado não estava mais visível, ainda era possível ouvir resmungos ininteligíveis vindo dela.

Não deu atenção a isso no momento, focando-se em um dos galhos retorcidos que vinha em sua direção com a clara intenção de atravessá-lo.

- Nós-deixe-em-paz – Disse entre dentes num sussurro áspero, acumulando seu cosmo, imaginando que fosse uma das suas flechas e atirando em seu alvo.

O resultado não podia ser mais devastador.

O ramo foi perfurado e dividido em dois, ao tempo que secava e se tornava pó, contudo, isso começou a acontecer em um efeito em cadeia, uma vez que todas as plantas possuíam uma raiz em comum, dessa forma, frente aos seus olhos elas começaram a serem consumidas por seu cosmo vermelho que percorria tudo como se fosse uma espécie de raio destruidor.

Em pouco tempo, não mais nada daquelas ramificações, apenas o cenário devastado da antiga Fonte de seu pai, pássaros aparentemente mortos voltavam a vida e fugiam a igual que uma ovelha cuja lã dourada ainda estava suja de vermelho, enquanto as antigas árvores que adornavam o lugar agora eram meros troncos cortados no chão, e o rio do Olimpo seguia seco.

- DO QUE É FEITO ESSA LANÇA?!  - Gritou. Sua mão que tremia, como se levasse pequenos choques, a raiva havendo evaporado de seu ser. Ergueu o resto, encarando a arma que parecia inofensiva, fincada no chão próximo a saída do coliseu. Era como se ela não tivesse apenas absorvido seu cosmo, e sim toda a sua frustração e cólera.

Lançou um olhar para seu pai atrás de si.

Fazia absoluto sentido ser assim, pertencente ao deus da Guerra, mas ainda era assustador.

Só então notou que o cabelo de seu pai estava agora solto.

-...Não imaginei que fosse tão grande – Comentou se distraindo.

-...E isso o que foi? – Uma voz soou da entrada quando Órion inclinou a cabeça para olhar o que havia acontecido.

- Seu idiota! – Essa era a voz de Anteros – Eros não tinha deixado claro que você não podia espiar?

- Tu estás olhando também! – Acrescentou Daimos acusatoriamente esticando o pescoço para ver também

- O que aconteceu enquanto eu estava dormindo? – A voz confusa de Himeneu questionava sonolenta.

- Tu não estavas dormindo, tu desmaiaste quando nos viu – Brincou Fobos assomando-se também, ainda usando seu elmo. – Tem uma diferença.

- Onde está nosso pai? – Porém todas as conversas paralelas morreram quando Anteros levantou-se e apareceu na porta do coliseu com a expressão franzida.

 - B-bem... – Eros gaguejou, havia invocado suas asas, e graças a elas e sua alta estatura, a dupla atrás de si não era visível. – É uma história...Engraçada...- E engolia em seco vendo a expressão de seu irmão mais novo se franzir, claramente ele não estava acreditando.

Estava definitivamente ferrado.

-.-

- Estamos definitivamente ferrados. – Kasa lamentava baixinho.

- ...Eu concordo com o seu plano Kiki, é um pouco arriscado, mas pode funcionar – Mencionava Épios ignorando o lamento do português, quase todos estavam sentados no chão em um pequeno círculo improvisado, discutindo as possibilidades, de costas para a poça que ficou silenciosa de repente, como se o deus do amor estivesse entretido com outra coisa. – O que vocês acham?

- Um pouco rebuscado – Comentou Io.

- E muito detalhado – Seguiu Isaak.

- Eu gostei – Sorriu Havok – Principalmente a parte que envolve peixes.

- Por que será, não é mesmo – Provocou ligeiramente Scylla.

- Eu já expressei minha opinião – Findou Lymnades, cruzando os braços.

Por sua vez Neroda, que não havia se juntado ao círculo, estava andando de um lado para o outro enquanto esperava, sua expressão franzida e cada vez menos paciente.

- DO QUE É FEITO ESSA LANÇA?!

Então um grito do outro lado o sobressaltou, os demais levantaram o rosto frente a isso.

-...O que foi isso? – Anfisbena foi o primeiro a perguntar.

- Talvez pai e filho tenham se desentendido? – Questionou o de cabelos rosas.

- Impossível – Rebateu Esculápio – Eu já disse que Ares não é esse tipo de deus, ironicamente, é mais difícil ofendê-lo do que a maioria dos deuses, ele prefere guardar suas energias apenas para a guerra mesmo.

- Então o que- Ia dizer Kasa, mas se silenciou ao ouvir murmúrios incompreensíveis vindo do outro lado.

- Minha paciência acabou! -Bramou Poseidon repentinamente, caminhando até o sangue e falando antes que qualquer um pudesse dizer qualquer coisa. Sua voz soava firme, mais velha e imponente, enquanto seu cosmo era irradiado de forma perigosa de sua pequena figura, o suficiente intimidante para o deus do amor sequer ter como questionar porque o deus dos mares possuía uma aparência diferente daquela que havia usado no castelo de Heinsteim mais cedo. - É o seguinte Eros, quem fala é Poseidon. Aphrodite está do lado de Chronos e ferrando com as nossas vidas aqui no santuário de Athena, chegou a atacá-lo diretamente, temos até um Hecatônquiros envolvido! – Esculápio afundou seu rosto em suas mãos juntas, Kiki fechou os olhos rezando baixinho, Isaak e Kasa viam com choque, ao tempo que Io e Havok não pareciam realmente surpresos. - Por isso eu convoquei todo o Olimpo para essa guerra. Precisamos da ajuda de seu pai, então queremos saber se você vai ficar no caminho e do lado dela, ou vai usar o bom senso e nos ajudar a lidar com essa situação, porque eu juro, se eu ou Shun colocarmos as mãos na sua mãe, não vai sobrar nada dela para contar história, sendo imortal ou não, ela vai conhecer na carne a sensação de ser devorada por um Titã! A ameaça também serve para seu pai se ele resolver se tornar nosso inimigo por causa dela de novo, então, escolha o que você quer fazer rápido, porque eu não tenho a madrugada toda e já esgotaram a minha paciência hoje – Então sua voz se tornou mais frigida - ...Você não vai querer saber o que acontece quando eu ajo sem paciência...

Findou, bufando satisfeito, voltando sua vista para os demais, percebendo o misto de emoções deles ao encará-lo.

- O quê? – Disse com impaciência cruzando os braços – É através de ameaças que eu resolvo meus assuntos. Você pode até mesmo usar estratégias e inteligência quando lida com o mar, mas se numa praia as pessoas veem a mare recuar expressivamente, fogem imediatamente, é assim que funciona.

-.-

Anteros tinha a boca completamente aberta frente aos dizeres do deus dos mares, havia entrado no coliseu enquanto Eros balbuciava, seus irmãos, Órion e Himeneu logo atrás de si, bem a tempo que todos pudessem ouvir a confissão.

- ...Forma bem direta de colocar as coisas, Poseidon – Respondeu o deus do amor sentindo seu estomago revirar.

- Ah, obrigado, eu sou muito bom com as palavras, sabe. – Respondeu simplesmente. – É um dom.

-.-.-.- 

June olhou confusa de um para o outro.

 

 

- Vocês se conhecem? – Questionou a amazona, totalmente em seu eu atual agora.

Entretanto, a pergunta não foi respondida, ao menos, não com palavras.

- AAAAAAAAAAAAAAAAAAAREEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEES!

E nada a preparou para o que veio a seguir.

A dona da voz sussurrante simplesmente jogou-se nos braços do jovem moreno ajoelhado no chão.

- E-espera um pouco! – June exaltou-se em choque – ARES?!

O deus, numa tentativa rápida de detê-la de sua mostra de afeto e emoção na posição em que estava, ajoelhado, mareado e confuso, ergueu um de seus pés conseguindo assim definitivamente detê-la de completar seu cometido, parando-a com os braços erguidos para a frente, enquanto um chute acertava sua bochecha.

- Oh, merda - Disse em um grunhido, percebendo que seu reflexo não havia conseguido exatamente um bom resultado quando os olhos da dita Perséfone começaram a se tornar amarelos vivos.

-....Seu...- Ela disse numa voz tétrica, sua foice novamente se manifestando em suas palmas erguidas que antes ofereciam o conforto de um abraço – MALDITO!

Fez um movimento fluído de corte, almejando partir o tronco do deus da guerra em dois, sem embargo, não houve resultado, pois ao invés do corpo alto e forte, sua arma passou por cima de um grande javali marrom com presas afiadas, muito embora alguns fios prateados caíram no chão pela tentativa.

- Aaah! Tu não vais a lugar nenhum! – Exclamou irritada quando o animal disparou a correr, passando por entre suas pernas antes mesmo que pudesse processar a transformação.

June se limitou a sentar no chão, tentando processar a perseguição que estava testemunhando.

Finalmente estava em frente ao ser que só conhecia a voz, todas as vezes que um sentimento de tristeza profunda a tomava, pela perda de sua queria avó, pelo assassinato de seu mestre, quase um pai, Daidalos, e pelo prematuro fim de Shun, e pensava em abraçar a morte por si mesma apenas para enfim poder revê-los, era ela que a impedia, sussurrando dentro de sua alma, a instigando a viver e esperar.

No começo a interpretava como sua própria consciência atuando em sua mente, ou até mesmo o espírito de sua falecida avó tentando aconselhá-la, a ajudando a seguir em frente. Uma força benigna que só queria seu bem.

E, no entanto, havia uma parte de si que a odiava, a culpava por não poder se reunir novamente com seus entes queridos, uma parte dela se convenceu de que aquela que queria mantê-la segura, era na verdade quem mais a prejudicava. 

Afinal, se o monstro não tivesse aparecido para devorar Andrômeda, ela nunca teria conhecido Perseu. Estar pronta para morrer a fez conhecer o amor de sua vida.

Era horrível pensar assim, era confessar que flertava com um desejo suicida. Era egoísmo simplesmente abandonar tudo que havia lutado tanto para construir, abandonar todos os sonhos que tinha alcançado, abandonar tudo aquilo que havia sido arrebatado de Shun, e que ela teve o direito e o gozo de disfrutar.

 Sabia disso, se sentia envergonhada de seus próprios pensamentos, as amazonas de Athena não eram guerreiras conhecidas por desistir, e era isso que estaria fazendo caso se matasse, estaria desistindo de tudo, tentando buscar o caminho mais “curto”.

Não era justo uma pessoa buscar sua morte com a ideia de acabar com a sua existência. Isso era um completo desrespeito com a vida e com todos aqueles que lutavam com todas as suas forças para simplesmente sobreviver.

Embora morta de vergonha, anos atrás tinha confessado seus medos a Saori, havia relutando muito antes de fazer isso, pensando que a deusa a consideraria fraca ou mesmo indigna de confiança para ajudá-la a gerir os negócios Kido se conhecesse esse seu outro lado.

Felizmente se surpreendeu com a atitude compreensiva e simpática daquela que realmente considerava sua amiga.

“Quando se está perdida em si mesmo, é melhor perguntar sobre o que fazer do que esperar se perder.” – Ela a tinha aconselhado, por isso havia buscado um psicólogo, embora muito de seu mundo fantasioso jamais poderia ser contado, realmente sentiu-se melhor ao expor parte de suas preocupações.

E desde então havia feito as pazes com a “voz”, porém, muito a surpreendia perceber agora que parte de si ainda via sua psiquê como um monstro.

Uma batida súbita em sua cabeça fez com que fosse tragada de volta a realidade, sendo encarada de mal grado pelo seu outro eu.

O “monstro” possuía a forma de uma mulher muito similar a si mesma, contudo, mais alta e mais encorpada, cujos cabelos eram ruivos e levemente cacheados. 

- Tu estás com esses pensamentos de novo, pare com isso. – Disse em um tom que claramente denotava uma ordem velada, e antes que tivesse a chance de responder a jovem voltou-se ao deus que observava a distância a semelhança de ambas com o cenho franzido. – Pare de fugir e me deixe cortar-te no meio!

- Nem que eu fosse louco! – Defendeu-se Ares cruzando os braços, o que intensificava sua saltada musculatura.

- Não tem coragem de me enfrentar de frente é? – Provocou, colocando a mão que não segurava sua foice na cintura.

- Eu não sou idiota para cair em uma provocação tão primária – Rebateu franzindo a expressão. – Covarde és tu que exige enfrentar um homem desarmado.

Perséfone franziu a expressão, analisando quais seriam suas próximas palavras.

- Quer dizer que o grande deus da guerra não sabe se virar de mãos vazias? – Seguiu com pura presunção – Teus filhos devem ter vergonha de acompanhar um guerreiro tão pouco versátil na batalha.

Essas palavras fizeram os olhos da divindade da guerra queimarem em amarelo vivo, e antes mesmo que June pudesse processar seus movimentos, Perséfone havia erguido a empunhadura de sua foice para se proteger de um chute dele com a faca do pé.

- Onde tu aprendeste reflexos assim? – Questionou ele, agachando-se rapidamente e tentando dar-lhe uma rasteira, apenas para ela dar um mortal para trás com uma graça invejável. 

- Tive algumas aulinhas com Radamanthys. – Respondeu com presunção, segurando a foice com as duas mãos, para então mergulhar rápida e ferozmente na direção de seu adversário.

- Não imagino tio Hades permitindo algo assim. – Mas ela não era rápida o bastante, Ares saltou antes que pudesse atingi-lo, e não pôde aguentar o peso de sua própria arma quando ele pousou sobre ela.

- E desde quando Hades tinha que permitir a imperatriz de fazer qualquer coisa?! – Exclamou furiosa, tentando recuperar sua foice contra o peso dele, mas se isso já não era o suficiente contra a montanha de músculos que o deus era, ele ainda havia metamorfoseado seus pés como patas de um pássaro de rapina, mantendo a arma bem presa em suas garras – O que é isso? Eu pensei que tu foste um guerreiro mais honrado.

- Eu ganho o direito de usar artifícios uma vez que estou desarmado, é assim que funciona a guerra, adaptar-se de acordo com a situação – Insinuou com arrogância, sem sequer se desestabilizar quando a jovem fez sua arma desaparecer sob seus novamente pés - Eu posso te ensinar algumas coisas se tu quiseres, aparentemente o Juiz não te ensinou tudo – Então houve uma ligeira hesitação em sua face – Meio que estou em dívida contigo quanto a tudo que aconteceu...

- Eu não quero sua piedade – Ela foi seca, desviando o olhar. – Eu posso estar presa aqui, mas eu ainda sou uma imperatriz, posso resolver meus assuntos.

Isso fez Ares recuar, mostrando-se verdadeiramente incomodado, o que fazia-o soar mais jovem.

- Perséfone, tu não se lembra...- Hesitou – Tu ao menos sabe o que aconteceu contigo?

A deusa parou, recompondo sua postura, franzindo a expressão.

-  De quando me ajudaste – O deus começou a citar, sua voz menos grave do que o normal, mostrando uma insegurança que há milênios não invadia sua figura, ao menos, na presença de outros, o que fez a postura de sua meia irmã abrandar - Como Athena atacou o submundo atrás de mim? – Havia culpa real carregada em cada uma de suas palavras.

- Sim. Eu me lembro de Hades te levando para os Campos Elísios por pedido meu, ninguém podia encostar em ti pois estava completamente coberto de Ikhor...- Ela recitou quase que mecanicamente -  Lembro que eu fiquei cuidando de ti nos jardins enquanto Hades lidava com Athena. Eu e tu ficamos discutindo, apesar de tuas feridas, e quando eu senti um terremoto atingir os campos sagrados, fui verificar o que estava acontecendo. Isso é tudo que eu me recordo. – Ela olhou para o horizonte devastado – Quando eu dei por mim, estava aqui, nessa cumula fechada, não sei quanto tempo estou aqui, mas creio que já faz alguns anos – Disse olhando para June que tentava processar a conversa sem muito sucesso – Afinal, eu pude assistir essa mortal crescer enquanto Hécate nos acompanhava. – Suspirou – Eu estou sendo castigada? Não consigo imaginar Hades novamente cuidando do submundo sozinho pelas décadas que estou aqui, e minha mãe, nossa...Não consigo nem imaginar a fúria dela ao não me ver retornando na primavera, só espero que ela não tenha tentado destruir o mundo de novo. – Então finalmente voltou-se a Ares, que parecia simplesmente lívido. – Se importaria de preencher as lacunas para mim, meu irmão?

O príncipe engoliu em seco, desviando o olhar, algo que imediatamente fez a jovem tremer, conhecia seu meio-irmão o suficiente para saber que ele não era do tipo que tinha receio de encarar as pessoas nos olhos quando falava, o que apenas fez um intenso nervosismo a preencher.

-...Ares – Disse em voz lenta - ...O que aconteceu?

-...Eu definitivamente não sou a melhor pessoa para te contar – Engoliu em seco, enrolando um tucho de seu cabelo com o dedo indicador, uma mania que tinha pego de Aphrodite quando ela estava impaciente. Decidiu ir direto ao ponto. - Tu impediste que um dos guerreiros de Athena, o maldito do Aquiles, pudesse atacar Hades. – Mudou desconfortavelmente a perna com que sustentava seu peso – Tu foste atingida pelo golpe de ambos, mesmo sua alma foi atingida e...

- E O QUE ARES?! – Ela berrou, se aproximando e pegando os ombros dele, chacoalhando-o com violência.

- Tu morreste. Tu desapareceste, por milênios – Frisou – Eu não sei se é decorrente disso, não sei se Eros tem razão e alguém tente te...Apagar. Só sei que ninguém lembra de ti, eu mesmo não recordava até que a energia de meu filho me envolveu, sinceramente não sei o que ele fez, mas tudo...Simplesmente voltou.

- Todos...? – A voz dela era um mísero fio. – Tu queres dizer que...

- Tia Démeter não recorda que tu alguma vez nasceste e ela quase destruiu a Grécia para te ter de volta. – Finalmente seus olhos se encontraram, vermelhos contra amarelos. – Mesmo Tio Hades não recorda de te ter como sua imperatriz.

- O QUÊ?!

Ambos se sobressaltaram, por alguns instantes haviam esquecido completamente que June também estava ali, agora de pé.

A menção a Hades e Radamanthys a estavam preocupando, mas essa definitivamente tinha sido a gota d’água.

-.-.-.-

Tão rapidamente quanto pôde, Esculápio assumiu a frente na conversa, depois da ameaça tangente do Imperador dos Mares, disposto a conter os possíveis estragos causados, mas foi completamente ignorado.

Por um instante Eros pensou que seu irmão, sendo um deus que naturalmente correspondia sentimentos direcionados a ele, iria retrucar imediatamente a provocação do deus marinho, contudo, ou isso não funcionava numa conversa a distância, ou Anteros estava preocupado demais com o conteúdo do que tinha acabado de escutar para dar rédea a seus instintos divinos, porque quando ele falou, sua voz era séria, e mais do que uma ameaça, suava preocupada.

- Isso é verdade?- Questionou o Berserker voltando-se ao deus do amor – Tu sabias de tudo isso? Sabia que Aphrodite estava envolvida na atual guerra de Athena?! É para isso que tu vieste para cá em primeiro lugar?

- E-eu...- Hesitou, e mesmo que as palavras não soassem ameaçadoras, sentia-se realmente intimidado, pois sabia que todos estavam olhando para si nesse momento.  Não pode deixar de se perguntar qual era a expressão de Fobos e Daimos nesse momento, sob seus elmos. Lembrando-se de como sua mãe os tratou quando jovem, eles podiam estar decepcionados com ele? Talvez irritados, não podia realmente culpa-los se fosse os dois.

Em meio ao seu desespero, baixou suas asas, revelando a pose em que Ares e a senhorita June estavam, percebendo seu erro, tentou justificar.

- I-isso é...

- Possessão – Anteros respondeu rapidamente – Assistimos papai fazer isso milhões de vezes, sabemos como parece, ele está usando isso para acordá-lo, imagino. – Isso fez Eros sentir-se verdadeiramente um idiota, é lógico que seus irmãos sabiam o que estava acontecendo com apenas um olhar, ao contrário de si, eles haviam vivido com Ares praticamente toda a vida. – Meu irmão, responda a minha pergunta.

– Eu sabia parcialmente. – Resolveu por confessar – Há alguns dias eu fui convocado pelo humano que substituiu Hades, chamado Shun, num hospital na Grécia. Ele me disse que estava irritadíssimo com Aphrodite por... – Hesitou, sabendo que Poseidon estava ouvindo o que dizia, apesar do silêncio da poça de sangue agora que o ex deus da medicina percebeu que suas tentativas de contenção estavam caindo no nada. Era melhor não tocar no assunto dos halianos.  – Causa de ações dela do passado. Aparentemente ela está envolvido com a forma que um humano, Mitsumasa Kido, foi capaz de ter 101 filhos, ela e Chronos. Ela fez um acordo com o mortal, em troca da vida e beleza das quase cem mulheres que ele teve em seus braços.

- Fazer humanos terem filhos como coelhos e tomar proveito disso é típico dela, mas porque isso é relevante? – Insistiu seu irmãos mais novo sem abrandar sua postura. Nenhum dos dois notando a comoção que seus dizeres causavam àqueles presentes no santuário.

- Porque esse Shun é um deles – Disse por fim. – E ele não ficou satisfeito em saber que seu nascimento foi manipulado dessa forma, que sua mãe morreu como um sacrifício por causa disso. Por esta razão ele me chamou para...”conversar”... – Muito embora sabia que tinha sido realmente ameaçado naquele dia – Exigindo que ela desfizesse maldições do passado para compensá-lo, caso contrário, ele iria resolver o assunto com suas próprias mãos...Como Poseidon acabou de dizer que fará – Acrescentou vendo novamente o sangue.

Não era mentira, apenas havia omitido a parte que dizia que as maldições do passado eram na verdade apenas uma, a que sua mãe lançou nos filhos do mesmíssimo Poseidon, esse assunto era muito delicado para o deus marinho e preferia evitar outra explosão do mesmo.

 - Eu apenas não sabia – Seguiu baixando a cabeça – Que eles ainda estavam trabalhando juntos – Apertou os punhos com força – Eu não fazia ideia que ela tinha atacado o santuário! Quer dizer, ela estava na festa no castelo Heinsteim, eu a vi lá com Hefesto, e eu não fazia a menor ideia de que o Hecatonquiros não estava mais no submundo.

Seu irmão o encarava duramente, como se ponderando se devia acreditar em suas palavras ou não, o que era francamente doloroso, sempre teve uma relação maravilhosa com Anteros, apesar dos caminhos separados que tomaram, haviam crescido juntos e o amava demais para não sentir uma dor real ao ver a desconfiança refletida em seus olhos claros.

Por fim, o mais jovem suspirou, desviando o olhar para o pai de ambos, que seguia adormecido.

- Por que tu vieste ao Olimpo, Eros? O que realmente queria trazendo a imperatriz do submundo para cá?

Um som de engasgo pôde ser escutado do outro lado da poça de sangue, mas só Órion pareceu prestar atenção, erguendo uma sobrancelha com curiosidade para a face de Esculápio que estava virada para o lado, conversando, provavelmente mentalmente, com alguém.


- Eu...- Respirou fundo – Estava na festa falando com Hermes, e acabei sem querer colocando ideias na cabeça dele, fazendo-o abandonar a festa. Imediatamente entrei em pânico, porque como ctônico ele não tinha permissão de fazer isso sem autorização do Imperador do submundo, que com Poseidon era o anfitrião do evento. Eu estava desesperado para não me indispor mais com Shun, então pedi ajuda a Dionísio para encontrá-lo, foi uma ideia idiota. – Seu olhar ergueu-se para ver se tinha ofendido Órion ou Himeneu, o segundo apenas agora tinha notado que estava escondido atrás do meio-gigante, mas nenhum dos dois parecia ter sido minimamente afetado por suas palavras. – Então o resto da história meio que vocês já sabem, no meio do caminho eu acabei conhecendo a senhorita June, ela acabou ficando bêbada com Dionísio, e o senhor do vinho teve a brilhante ideia de a trazermos para o Olimpo para purificá-la, eu estava em pânico porque Athena estava se aproximando, e não queria que ela visse seu braço direito nesse estado, por isso...Vim.

- Como assim...Braço direito de Athena? – Questionou Anteros entre dentes, ao que Eros engoliu um gemido interno ao perceber que tinha falado demais.

- Senhorita June era uma amazona de Athena, e sua assistente pessoal no mundo humano – Não que Órion não pudesse piorar tudo. – Eros pensou que se ajudasse a futura imperatriz do submundo, poderia aplacar a fúria do senhor Shun contra Aphrodite.

Sua cara devia estar realmente lamentável frente a tudo isso, pois Himeneu surgiu com seu pesaroso rosto adolescente de trás de Órion.

- Você quer um abraço? – Questionou em um incomum sussurro. – Parece prestes a chorar.

Não estava completamente errado, principalmente depois da seguinte fala de seu irmão mais novo.

- Eu fui um idiota – Declarou lançando um olhar de verdadeiro desprezo ao mais velho, trazendo mais dor do que o ferimento em sua asa na subida ao Olimpo havia lhe causado.- Eu não devia ter permitido que tu viesse para cá e se aproximasse de nosso pai, mesmo depois de tantos anos, tu segues sendo apenas um lacaio de Aphrodite! Ajudando-a em tudo, fazendo suas vontades, não deixando que ela pague por suas ações.

Eros abriu a boca para argumentar, mas tornou a fechá-la.

-...É, você tem razão.

- ...Eu pensei que Psique tivesse te aberto os olhos, tu pareces amá-la tanto, e Aphrodite QUASE A MATOU! – Seguiu acusando, agora caminhando na direção do maior. – Ela te prendeu no templo enquanto a torturava com provas ridículas, e ainda assim tu seguiste do lado dela.

- Aparentemente sim – Respondeu apático.

Então, sentiu-se ser agarrado pela alça de sua toga, e apesar de alturas próximas, Anteros o ergueu alguns centímetros do chão, seus olhos brilhando em amarelo vivo.

- DEFENDA-SE DE ALGUMA FORMA! – Gritou.

- ...Eu realmente não tenho como justificar minhas ações – Disse simplesmente sustentando o olhar contrário – Você tem razão, eu sou apenas o lacaio de minha mãe.

Um potente soco em sua cara lançou o deus do amor longe, fazendo-o bater as costas ruidosamente contra a base cortada de um tronco que enfeitava o coliseu instantes atrás.

O general Berserker já estavam avançando para uma nova investida quando seus braços foram segurados por Fobos e Daimos que até então ouviam tudo em absoluto silêncio.

- ME SOLTEM! ME DEIXEM QUEBRAR A CARA DELE! – Vociferava.

- Tu sabes ainda melhor do que nós que depois de Rômulo e Remo, nosso pai não tolera brigas sérias entre nós. – Impôs Fobos.- Se ele acordar da possessão e ver tu fazendo isso, vai ficar tudo pior.

- Poois é! Fobos tem razão – Afirmou seu gêmeo – Não piore tudo, irmão, tu viste como nosso pai estava feliz com a presença de Eros aqui, ele até aceitou que a tia Hebe permanecesse no templo!

- E A QUE CUSTO! ESSE IMBECIL TRAIDOR SÓ VEIO AQUI POR CAUSA DE APHRODITE! TENHO CERTEZA QUE QUANDO PERCEBEU QUE NOSSO PAI AINDA A AMA, PEDIU AJUDA DELE! – Apontou para o mais velho, lágrimas correndo de seus olhos, ainda assim, ele confirmou com a cabeça – VIU O QUE EU DISSE?! ESSE TRAIDOR APENAS CONFIRMA, NÃO SE DÁ AO TRABALHO DE SE DEFENDER, É UM-

Suas palavras morreram em sua garganta quando sentiu um novo par de braços segurá-lo, teve que inclinar o rosto para baixo para ver a quem pertenciam.

Himeneu o abraçava de frente, sequer notou quando o pequeno deus do casamento havia se adiantado e parado à sua frente, mas o abraçava com a cabeça contra seu tórax.

Tremia compulsivamente, mas não o soltava.

- E-e-eros é-é-é m-m-meu a-a-a-ami-migo – Tentava dizer com seus dentes tremendo de pavor, mesmo que os gêmeos seguissem com seus elmos. – P-por fa-favor, pa-pare...

- Himeneu, você mesmo já viu que seus poderes não funcionam com os berserkes – Comentou Órion se juntando a cena com passos tranquilos apesar de todos os gritos e desentendimentos.

- M-mas e-eu nã-não posso fi-ficar pa-parado en-enquanto... – Engoliu em seco, tentando trazer mais coerência as suas palavras. – Eros, ele também está sofrendo, você não vê?!

Anteros ergueu a face, notando que o pranto do mais velho começava a mover seus ombros com pequenos soluços, e mesmo de cabeça baixa podia ver as lágrimas escorrendo pela ponta de seu nariz.

Precisou de um esforço sobredivino para não permitir que sua natureza respondesse ao sentimento de tristeza que saia de Eros em ondas que pareciam querer afogá-lo e arrancar a força todo seu ar.

- Podem me soltar, eu não vou fazer mais nada – Disse simplesmente em um tom morto, seus irmãos mais velhos simplesmente obedeceram, mas Himeneu seguiu firme onde estava – Eu estou falando sério, não vou mais bater nele.

Em resposta recebeu os vidrosos olhos infantis do deus do casamento humano, que também emanava tristeza, mais um pouquinho disso e seria o próximo chorando nesse coliseu, e definitivamente não queria isso.

Por isso, soltou um suspiro audível quando a divindade menor desapareceu para celebrar algum casamento mortal aleatório.

Afastou-se de onde estava para que o mesmo não retornasse o abraçando.

-  Vá embora assim que se recuperar, Eros – Declarou sem encarar o mais velho diretamente – Seria uma dor de cabeça se tu saísses de nosso templo chorando desse jeito, mas assim que tu se recuperar, quero que saiba que não será mais bem vindo aqui. – Apertou os punhos com força, suas unhas teriam cravado sua carne se não estivesse de armadura. - Tu tens ideia do mal que SUA mãe fez para ele? – Indicou Ares com um gesto de cabeça - Tu ouviste a história de Enyo! Como pode ser tão EGOÍSTA?!

-...O amor é egoísta, cego, e idiota – Foi tudo que respondeu com a voz fanha.

- Olha, agora eu tenho que concordar contigo. – Respondeu secamente. Então voltou-se a poça de sangue e sentou-se ao lado dela, Esculápio possuía um olhar preocupado para outra direção, mas logo retornou sua atenção para frente ao ver que o Berserker se aproximava – Esculápio, parece que tu tivestes um dia ainda pior que o meu, desculpa por ter que presenciar essa cena.

- Não se preocupe comigo – Disse o mortal para o velho conhecido – Lamento pela situação com seu irmão, juro que não queria que as coisas tivessem acabado assim.

- Eu sei, mas temos coisas mais importantes para tratar agora – Disse num maneirismo de seu pai massageando o cenho, ainda tendo que se controlar para não responder a emanação de sentimentos deploráveis que partiam de Eros – Poderia me explicar a situação?  Poseidon mencionou que havia invocado os olimpianos...O Hecatônquiros, merda, ficamos literalmente em pedaços para enfrenta-lo da última vez! Aquela maldita meretriz, como ela e Chronos puderam controlar aquela coisa?!

Então o grande médico passou a explicar ao deus toda a situação atual, vez ou outra ainda lançando olhares para o lado, detendo ligeiramente seu relato.

Não era o único distraído por algo, por isso, numa parada relativamente longa de Épios, um dos gêmeos agachou-se ao lado de Anteros.

- O que tu queres?! – Questionou num resmungo tão baixo que não pôde atingir o santuário ou chamar a atenção do filho de Apolo.

- Tu sabes bem que não tens a autoridade de expulsar Eros daqui, não sabe? - Questionou em seu tom grave, seu rosto oculto por trás de seu elmo.

- O que tu querias que eu fizesse?! – Questionou impaciente, Esculápio notando a conversa paralela aproveitou a oportunidade para soltar um “Por favor, me dê licença um instante” e desapareceu, provavelmente indo na direção de quem tanto o havia estado distraindo. – Simplesmente deixar que Eros arraste nosso pai para aquela mulher de novo?!  EU sou o amor correspondido, EU sei que ele ainda a ama, e ela ainda o retribuiu, é um amor doentio, mas ainda é uma faceta do amor – Ele engoliu em seco – E lutar contra os olimpianos?! Isso a faz a maior traidora de todos os tempos! Sério, eu simplesmente não entendo o que a levaria a tanto, nem ela nunca pareceu tão louca. Quer mesmo que Eros permita que nossa pai marche para esta guerra?! Tenho certeza que o castigo por isso será maior do que ele jamais recebeu, Fobos!

- Olha só, tu acertaste, sou eu mesmo -  Disse com um tom de graça em sua voz rouca – E justamente por ser o deus do medo, eu posso dizer sem problemas algo que tu provavelmente já sabes, o obnubilado do nosso irmão está completamente tomado pelo sentimento que eu domino, mas não da forma que eu gosto – Bufou – Não é o medo de morrer, medo do confronto, que acelera o coração dos homens e dos deuses e os fazem fugir ou lutar, não, é o tipo de medo nauseante causado pela culpa e conformismo, medo de falhar sem sequer tentar, medo de estragar tudo, os desse tipo sempre me deixam irritado. Eu sei que consegues sentir isso também, não como eu ou Daimos, ainda assim tu és muito mais amplo nesse espectro emocional, então tu sabes que-

- Sim, eu sei, eu sei BEM DEMAIS o que ele está sentindo, eu nasci apenas e exclusivamente para que ele pudesse crescer, para que ele pudesse ser o deus que é hoje, eu não sou muito diferente da ninfa Eco amaldiçoada pela Grande Hera, eu devia realmente odiá-lo por isso – Apertou os punhos com força, incapaz de seguir impedindo as emoções do mais velho de atingi-lo, seus olhos se encheram de lágrimas enquanto começava a sentir-se verdadeiramente miserável. – Mas eu nunca consegui, porque todos os anos em que vivemos juntos, enquanto ele se tornava adulto e eu ainda era útil para Aphrodite, eu só sentia amor e carinho vindo dele o tempo todo, chegava a ser irritante e cansativo.

- Então tu sabes que ele não está aqui exatamente como um subordinado de Aphrodite, e sim porque é um idiota que personifica o Amor, e está três passos de entrar em pânico porque acha que fez tudo errado.

- Dois passos para entrar em pânico – Corrigiu Daimos vendo como Órion e Himeneu conversavam com o mais velho, seu rosto encolhido entre seus joelhos. – Talvez menos.

- Eu sei, mas justamente por ele ser um idiota, por uma vez na minha vida eu tenho o direito de ficar com raiva dele por pelo menos 5 minutos! – Explodiu, enxugando suas lágrimas com violência nas costas de sua manopla. – Como Berserkers estamos numa merda de uma situação agora, e um CÍVIL ficar entre nós indeciso sobre o que fazer, não vai ajudar em NADA para evitar que nosso senhor faça a maior imbecilidade de toda a sua vida!

- Sim, tu tens razão, mas assim que nosso senhor voltar e ver essa bela cena – Indicou novamente a figura trêmula e encolhida do deus contra o cortado tronco, fazendo-o parecer mais uma criança do que um verdadeiro adulto. – Será ainda mais difícil convencê-lo de qualquer coisa, tu eras muito pequeno na época, mas eu lembro bem o medo que nosso pai irradiava quando viu Eros pela última vez, encontrá-lo em prantos vai desesperá-lo mais rápido do que aquela vez que Daimos deixou as éguas antropofágicas escaparem enquanto Enyo estava engatinhando pelo templo.

- Ele nunca correu tão rápido – Comentou seu gêmeo em apreciação – Teria deixado até Hermes na poeira.

- Ou seja, precisamos convencê-lo a ficar do nosso lado, e não o assustar mais. – Findou Fobos com simpleza – Podemos, por exemplo, levá-lo para ver Enyo – A expressão de Anteros se franziu com enjoou – Podemos amarrá-lo em uma biga e arrastá-lo só um pouquinho pela arena até ele ceder – O menor revirou os olhos, resmungando que Ares castigaria os três se fizessem isso – Ooou tu podes ir até lá e conversar com ele ao invés de ficar gritando que tudo é culpa dele, estamos falando de Eros, ele não é como nós, gritar como ele é como gritar com...Sei lá, Daimos, me diga algo fofo e frágil.

- Um pescoço humano?

- Por que isso é fofo?

 - Quando ele aperta ele é fofo!

-...É, tudo bem, faz sentido, mas não dá para gritar com um pescoço.

- Aaah! Já sei, mofo! – Exclamou com satisfação – Mofo é frágil e fofinho, e escorrega se tu pisas em cima.

- Então, como eu dizia, gritar com Eros é como gritar com mofo, não, não...Isso não faz sentido.

- Certo, eu já entendi – Resmungou Anteros levando uma mão a face enquanto seus irmãos mais velhos discutiam sobre mofo. – Eu vou resolver isso, e vou falar com Eros.

- Viu, eu não sei porque dizem que o Medo é um péssimo conselheiro, eu sinceramente me acho muito bom nisso, porque sempre sei onde as pessoas pensam que vão errar. -Colocou o Berserker com arrogância bagunçando os cabelos de seu irmão menor que grunhiu – E também o que cada um tem medo de perder, essa última sensibilidade foi a única graça que recebemos de Aphrodite.

- Como assim única graça? – Rebateu Pânico cruzando os braços - Eu não sei tu, mas eu sou lindo, com certeza puxei isso dela também.

- Somos gêmeos, seu imbécil! Como tu podes ser “lindo” e eu não?!

- Aaaah! Cala boca, vós dooooois!! – Esperneou o mais jovem com exasperação, voltando a olhar para baixo, percebendo que Épios estava de volta parecendo ainda mais cansado, mas com um sorriso lateral no rosto – Quanto disso tu ouviste...?

- Nada, eu acabei de voltar – Anteros franziu a expressão, o médico nem fazia questão de esconder seu tom divertido e claramente falso.

- Apenas termine sua maldita explicação de uma vez, temos mais o que fazer aqui! Temos uma guerra que vencer, e alguns pescoços com que gritar.

 

-.-.-.-

- DEFENDA-SE DE ALGUMA FORMA! – O berro de Anteros ecoou pela poça, sendo claramente escutado pelos marinas e Esculápio, quase chegando até a Fonte por sua intensidade.

Enquanto a briga entre os irmãos se desenrolava, o filho do Sol não parava de lançar olhares preocupados para Kiki.

- Nossa, eu queria ter trazido pipoca. – Brincava Neroda totalmente ignorante do desconforto de Anfisbena, divertindo-se com a briga alheia. – Aliás, eu lembro desse nome, June...Acho que já a conheci em algum lugar.

- Como é possível que June tenha parado no Olimpo com os Berserkes?! – Kiki tentava dizer, sua expressão era doente, pálida como papel, além de estar visivelmente suando. – A chamam de imperatriz, mas não tem como- Parou, pensando que ele mesmo tinha arranjado uma noiva nessa mesma madrugada, então não podia realmente dizer que era impossível Shun ter feito o mesmo no meio da guerra, embora ainda fosse muito improvável. – E o que Aphrodite fez com Mitsumasa Kido...Então Seika realmente é irmã de todos. – Deitou sua cabeça em suas mãos – É muita informação para absorver.

“Kiki, quando foi a última vez que você comeu?” – Ouviu a voz do ex-deus em sua mente, a simples menção a comida quando o cheiro de carne crua e sangue provenientes de um campo de batalha mortal ainda rondava o ambiente, fez o estomago do vegetariano dar um novo salto.

- Você acha mesmo que eu lembro depois de tudo que já aconteceu ontem e hoje? – Resmungou num fio de voz, por fim chamando a atenção de Poseidon a sua figura abatida.

- Eu simplesmente não posso acreditar em toda essa sujeira – Isaak também parecia enojado, embora não tanto quanto o mais jovem – Isso significa que a mãe do Hyoga morreu daquele jeito, simplesmente porque sua vida pertencia a Aphrodite?! Isso é repugnante, isso é...Quando ele souber, se ele puder saber...Ele sempre achou que foi tudo culpa dele, não posso acreditar nisso...

Um som repugnante chamou a atenção de todos, e sem mais conseguir se conter Kiki regurgitou, seu corpo completamente trêmulo e lívido. Demorou largos segundos para conseguir controlar seu estomago, e mais ainda para perceber que alguém havia se aproximado de si e segurado seus cabelos para que não se empapassem pelo episódio.

Piscou confuso notando que era o mesmíssimo Isaak que o sustentava, que lançava a ele um ligeiro olhar de simpatia apesar do passado de ambos.

-...Obrigado – Disse num fio de voz.

- Sinceramente, não posso te culpar, também me sinto doente depois de ouvir isso – Disse simplesmente o mais velho – E somos companheiros agora, então não é nada demais.

Levou um tempo para que pudesse controlar sua respiração, até que dado momento um angustiado Esculápio aproximou-se, junto a Poseidon.

-... Desculpe por isso – Confessou envergonhado o marina.

- Kiki, eu quero que você vá com os demais para Atlântida, está óbvio para mim que você não está mais em condições de ficar aqui – Apesar de seus dizeres sérios, a voz de Neroda era suave.

- Mas senhor, eu....Eu ainda posso ajudar – Tentou dizer, embora sabia que ele tinha razão, simplesmente o aterrorizava a ideia de ficar afastado de tudo novamente.

- Sim, você pode, lá, com Ailá e todos os outros.

- Ele tem razão Kiki, veja a sua perna – O lemuriano seguiu a sugestão do grande médico, percebendo que sangue escorria das juntas de sua armadura, bem na altura do membro que havia perdido. – Você teve uma amputação hoje, se fosse uma pessoa normal ainda estaria de cama. Mesmo sendo um ex-cavaleiro e usando uma escama adaptada, você ainda é humano, você já passou de seu limite aqui.

O ruivo não respondeu, baixando a cabeça, sentindo-se simplesmente miserável, sentindo-se inútil.

- Você não é inútil – Ergueu a face vidrosa, encontrando a face compreensiva de seu senhor – Você foi incrível hoje, se eu estou aqui, é por causa de suas ações e resistência, tem todo o direito de descansar agora, meu marina.

Aquele cosmo tranquilo e reconfortante o tomou de novo, drenando todas as suas forças para refutar a proposta.

-...Obrigado – Engoliu em seco - ...Eu apenas...Apenas quero me despedir de meu mestre antes de ir, sei que ele vai ficar aqui, e não quero cometer o mesmo erro duas vezes, caso nós não possamos mais...- E sinceramente não teve força para completar seu raciocínio. – Mas...Eu estou preocupada com June.

- Eu vou perguntar a Anteros sobre isso, fique tranquilo – Confortou Épios, então ergueu-se, para voltar a sua posição ao lado da poça.

-.-.-.-

O som de choro permeava o ambiente, junto ao som do vento entrando pela grande abertura na parede.

O espectro de Ceto colocou com cuidado o corpo aparentemente sem vida sobre seu respectivo leito, para tanto retirando os escombros de sua cama.

- Você ficar chorando não vai adiantar em nada, sabe – Comentou um cansadíssimo Verônica com bolsas embaixo de seus olhos ainda maiores do que antes, arrastando os pés até a outra cama daquele santuário e se jogando nela sem cerimônia, mesmo não sendo a sua.

- Deixa eu dar uma olhada nele, ver se tem algum ferimento – Ofereceu-se Iatros com um sorriso acolhedor, embora no fundo estivesse um pouco assustado, ao que o espectro de Ceto se limitou a confirmar com a cabeça, dando alguns passos para trás, permitindo que o curandeiro pudesse trabalhar.

- Eu não acho que isso seja possível de acontecer, com o Flegetonte simplesmente correndo por suas veias – Opinou Myu observando a extensão da destruição pelo buraco criado na parede, Iwan de Troll estava do lado de fora segurando a caixa com a chave de Pandora com força contra seu coração. – Eu só não sei como vamos c controlar essa coisa, para poder chamar de aliado ou coisa parecida, sinceramente acho melhor lança-lo no Tártaro como fazemos com os demais Titãs – Findou o aquariano com frieza.

Isso imediatamente fez Eri virar o rosto para o jovem de cabelos róseos com uma expressão de pavor.

-  Não vaamooos realmente fazer isso! – Resmungou Nasu sob o colchão macio – Nem que quisemos poderíamos fazer isso, ele está sob o Hiketeia, lembra?

- Mas a cerimônia não tem que ser completada por Shun antes de ser oficial? Isso foi o que nos explicaram sobre esse ritual antigo. – Contrariou o espectro de Troll – Realmente acho que seja mais seguro mantê-lo preso até lá, assim eu e Myu podemos retornar ao castelo cumprir a missão que o senhor Minos nos deu – Indicou a caixa em suas mãos – Sem nos preocupar com a fúria de um Titã destrua tudo.

- Sim. Não há possibilidade de partirmos e deixarmos uma bomba relógio assim solta no submundo – Confirmou Papillon – Desde a primeira guerra contra Athena, nossa principal missão tem sido proteger o submundo, seja de quem for.

Antes que Verônica pudesse contraria-lo novamente, várias torrentes de água surgiram como barras de ferro cercando a dupla de espectros, que apenas piscaram surpresos, percebendo que a fonte era o recente espectro de Ceto.

- Eu não vou permitir que machuquem ela! – Exclamou defensivamente, seu cosmo sendo emanado de forma arroxeada ao seu redor. – Ela não é perigosa, só estava assustada.

-...É uma mulher?! – Colocou Iwan em choque, observando o corpo deitado que um cansado Iatros vestia, focando-se em seu peito reto e claramente masculino, com uma enorme cicatriz em cima, onde deveria ficar o coração. -...Tem certeza...?

- Pare de encará-la assim, ela não gosta – Reforçou Ceto, criando mais um pilar que tampava a visão dos dois.

- Então você realmente se lembrou dela? – Perguntou Nasu desistindo de dormir e virando o rosto para o lado.

- Eu lembro de tê-la salvado na praia – Respondeu sem virar-se ela estava assustada e não queria ser vista, então eu levei um médico para ela, e ela quase o matou por isso, mas como hoje, ela só estava assustada – Avigorou antes que o interrompessem – Depois eu consegui convencê-la a ir para Atenas comigo e...- Sua expressão decaiu – Isso é tudo que eu me lembro. – Voltou-se para a face tão pálida como um cadáver que respirava e inspirava com tranquilidade enquanto se deixava vestir – Sua aparência está um pouco diferente, mesmo sua energia...

- Cosmo – Completou o loiro.

- Isso, seu cosmo, mesmo ele parece diferente, mas de algum modo eu pude reconhecê-lo. – Sua figura se encolheu um pouco, ainda assim, manteve o controle das águas. – Eu não sei explicar como, mas eu sei que é ela.

- Você deve ter reconhecido sua alma – Verônica explicou com simpleza – Agora que você é um espectro, pode fazer isso sozinho.

- Eu não me importo, sinceramente, se vocês dividiram um passado ou não, ao contrário de ti, essa coisa não parecia reconhecê-lo, quando você o salvou – Rebateu Myu com impaciência – Não há nenhuma garantia que ele ou ela deixe de estar “assustado” quando acorde novamente e tente destruir mais uma parte do submundo.

- Ele tem razão nisso Eri – Confirmou Nasu, e não pôde evitar uma leve dor no peito quando o jovem-espectro virou-se para ele com uma expressão de traição – Veja bem meu pequeno, sua amiga criou uma destruição e tanto, e não há realmente nenhuma garantia que não o faça de novo ao acordar. Eu entendo a sua preocupação, mas você não pode negar que temos um grande problemas em mãos aqui.

- Será que não teria um lado menos quente do Tártaro que poderíamos colocá-lo? – Tentou Iwan, recebendo em troca apenas três olhares irritados em sua direção – O quê? Eu estou tentando ajudar, vocês sabem que só o Tártaro segura os Titãs! Verônica disse que viu o mesmíssimo Tartarus, podíamos perguntar para ele...

- JAMAIS! – Exclamou sentando-se num sobressalto – Você nãaaao saaabeee o que eu passeeeei! – Exclamou dramaticamente. – Está fora de cogitação.

- Bem, temos que resolver essa situação de uma vez – Retomou novamente a palavra Papillon com impaciência, enquanto o olhar de Nasu se franziu na direção da entrada  – Já perdemos muito tempo tentando conseguir a caixa com a chave de Pandora.

Então uma explosão de poder deteve a fala de todos, ao tempo que conseguia desfazer todas as torrentes de água que Eri havia criado, que deslizaram pelo chão encharcando o piso de mármore.

Iatros apenas tremeu em seu lugar, erguendo o rosto como os demais na direção do salão do trono.

- O que pela escuridão do Érebo foi ISSO?! – Colocou Iwan – Não me diga que há outro titã solto por aqui?!

- Isso foi o senhor Kairos – Surpreendentemente a resposta partiu do curandeiro, tomando para si a atenção dos outros quatro – Às vezes...Quando ele ficava realmente muito irritado com o senhor Ikki ele explodia assim, nunca com tanta intensidade, mas sem dúvida assim...

- Não sabia que você era capa de sentir cosmo – Considerou o estrategista, ainda observando da entrada com preocupação para o Esqueleto.

- Eu tive vinte anos para aprender, e sinceramente não sou bom nisso – Confessou com pesar – Mas com explosões assim é difícil não sentir.

- Algo pode ter acontecido com nosso senhor? – Myu questionou apreensivo. – Mandarei uma das minhas borboletas investigar imediatamente.

- Acha mesmo que elas sobreviveriam a essa emanação? – Ironizou Nasu franzindo as sobrancelhas – Não, vão os dois pessoalmente, eu ficarei aqui com αστία.

- Astéri? – Repetiu Eri interessado. – O que isso significa?

- Estrela, astro. É uma boa forma de a chamarmos, nosso grego tem palavras de gênero neutro, e uma dessas palavras é Astéri. Além de ser muito próximo do antigo primeiro dessa alma, define bem a dualidade que ela apresenta agora. Além do que é normal para os Titãs transitarem entre os dois sexos, um nome assim é no mínimo apropriado. – Explicou com simpleza. – Enfim, eu ficarei com os dois, eu estou preocupado com o que levou Kairos a isso, mas sinceramente já estou fraco demais para enfrentar qualquer outra coisa, vou apenas atrapalhar. E antes que digam que justamente por estar fraco não deveria ficar sozinho com os dois, devo lembrar que eu controlo a terra e controlar recém-mortos? Algo que os dois eram há poucos instantes. Claro, eu não conseguiria segurar por muito tempo na situação em que estou, mas ao menos eu e Eri conseguimos segurar até que vocês vão e averiguem, não é como se estivessem muito longe caso precisássemos de aju- Então parou, desviando seu olhar agora para a parede – Além do que, se a pressa de vocês era por causa de Minos, ele acabou de retornar ao submundo, e claramente deve estar indo ao salão do Trono.

Ambos os espectros se concentraram para encontrar o cosmo do juiz, localizando-o sobrevoando o Aqueronte em grandíssima velocidade.

- Algo realmente deve ter acontecido com nosso senhor, vamos Iwan – Colocou Papillon alerta, ao que o maior confirmou com a cabeça – Nos avise se essa coisa sair do controle novamente.

- Não me dê ordens, eu sou seu superior aqui – Retrucou Verônica com um gesto de mão. – Apenas vão, estou preocupado com Kairos e nosso senhor.

E assim ambos o mais rapidamente que puderam.

 - Obrigado por mentir por mim. – As palavras de Ceto chamaram sua atenção, fazendo-se voltar para ele, que se sentava no chão, ao lado do leito, enquanto Kairos cobria Astéri com os suaves lençóis.

- Eu pensei que minha interpretação tinha sido excelente! – Guinchou jogando-se novamente no peito – Como descobriu que eu estava mentindo?

- O senhor tentou prendê-la na terra e não funcionou, se sua outra habilidade funcionasse, o senhor teria usado enquanto a estávamos enfrentando.  – Concluiu simplesmente.

- Sim, mas eles não precisam saber disso – Estava deitado de bruços, com o rosto ligeiramente inclinado para que conseguisse falar. – Mas eu tenho uma dúvida, se você só lembra que salvou Astéri do mar e cuidou dela por pouco tempo, porque está tão obstinado em protegê-la? Não acredito que seja o suficiente para nos enfrentar como enfrentou.

-...Eu não a conheci por muito tempo, realmente – Baixou a cabeça, encarando seus próprios joelhos, um cansado Iatros sentando ao seu lado – Mas quando eu a encontrei, tudo nela gritava que ela realmente, realmente parecia que precisava de ajuda, e eu senti que podia ajuda-la. Como sinto que posso ajuda-la agora. – Então ergueu o rosto, voltando-se ao estrategista – Isso não é o suficiente.

- Merda, você é muito adorável nesse contraste absurdo que é essa sua postura de bondade infantil e generosa nesse corpo adulto sexy e violável, Nix que me proteja! – Exclamou Verônica abanando a si mesmo com a mão, Eri apenas inclinou a cabeça confuso enquanto o curandeiro suspirou baixinho.

- Além do que, o senhor mesmo disse que seguirmos juntos é a razão de estarmos aqui – Seguiu Ceto voltando-se novamente ao Titã. – Então ao que se referi a mim, farei o que puder para ajudá-la, mesmo que não lembre de mim.

Um sorriso suave se formou nos lábios do loiro.

- É o que dizem, nem mesmo Lete pode apagar a Marca de Eros, embora a ligação entre vocês esteja mais entre Philia e Storge. – Confessou, fechando seus olhos cansados – Eu espero que Astéri sinta o mesmo quando acordar...

E apesar de sua enorme preocupação para com Kairos e seu senhor, mesmo estando próximo a um Titã que poderia irromper em fúria a qualquer minuto, seu corpo não suportou mais sua exaustão e adormeceu por fim.

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 Quando a voz e a imagem de Esculápio desapareceram, Anteros levantou-se, disposto a ir negociar com Eros.

O que não esperou, no entanto, fosse que o mais velho agisse primeiro.

Com os olhos completamente vermelhos e inchados, uma expressão que de denotava extrema dor, e ainda assim, uma estranha resolução, Eros caminhou até seus irmãos.

E para choque de todos eles, caiu de joelhos frente ao trio.

- Por favor...- Disse em sua voz ainda quebrada – Por favor, me permitam ir para essa guerra com vocês. – Ergueu a cabeça - Eu quero ajudar! Eu quero ajudar a impedir as ações de Aphrodite, POR FAVOR! EU QUERO PODER LUTAR AO LADO DE VOCÊS!

Nesse mesmo instante, quase como se tivesse sido ensaiado, Iris, a deusa do arco iris, apareceu aflita pela entrada do coliseu, olhando para trás como se estivesse sendo perseguida.

- Eu tenho uma mensagem para o senhor Ares!!

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Assim que a conversa entre Santuário e Olimpo finalmente acabou, Sorento retornou com a confirmação de Athena sobre levar os refugiados e reforçar as defesas, pela expressão cansada do músico não havia sido tão fácil convencê-la a tanto, mas sinceramente tudo que Neroda não queria nesse instante é saber o que Athena pensava de alguma coisa.

O deus estava se preparando para atuar, emitindo seu cosmo em ondas tão intensas quanto quando fez o mar virar céu. 

Entretanto, repentinamente parou, como se tivesse congelado em seu mesmissimo lugar.

-...Neroda...? - Havok foi o primeiro a se aproximar, preocupado, parando frente ao deus, até mesmo balançando na frente de seu rosto, e nada.

Os olhos deve haviam ficado completamente em branco.

Sorento foi o seguinte a se aproximar, seguido dos demais, mas antes que qualquer pergunta fosse feita sobre o estranho fenômeno, todo o firmamento começou a piscar em rosa e negro, uma energia avassaladora chegando a todos. 

A flecha do destino havia sido disparada.

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Capítulo CV - Melhor perguntar do que se perder - Parte II

Arthemis estava a um passo de matar seu irmão.

Ela sabia que isso era impossível, mas não a impedia de querer tentar.

A peça de Dionísio, no qual ele fazia absolutamente todos os papeis, se desenrolava lentamente, e entretinha todos no salão divino, sua ninfa de companhia, mesmo que timidamente, ajudava com os efeitos sonoros, batendo em talheres, em mesas, no chão, e mesmo fazendo som com a boca. Em dado momento duas das nove Musas de Apolo, Clio, a musa da história, e Thalia, a da comédia, se viram levadas a peça e começaram a ajudar a ninfa e o deus com suas encenações e vozes.

O deus do sol estava prestes a soltar mais um comentário lascivo sobre como era irônico suas belas noivas atuando numa peça burlesca em que as mulheres faziam uma grave de sexo para deter uma guerra, quando seus olhos claros encontraram-se com os assassinos de sua irmã gêmea.

- O que foi? – Questionou em tom baixo, sem entender a irritação contrária, apenas fazendo-a revirar os olhos – Sério, minha irmã, o que foi agora?

- Tu nem imaginas, não é mesmo? – Ironizou, apoiando o rosto sobre as costas de sua mão, ele estava a ponto de perguntar novamente quando ela resolveu puxar outro assunto, agora que finalmente tinha sua opinião, isso seria mais útil para calar a boca dele e seus comentários impertinentes e orgíacos do que simplesmente chamá-lo de idiota ou arrancar sua língua fora com uma de suas facas de caça escondidas entre suas vestes – Gostaria de saber onde Eros foi, já faz horas que ele saiu com Dionísio, e mesmo este voltando com Perseu, não há nenhum sinal de nosso sobrinho desde então.

- E desde quando tu te preocupas com o abominável do Eros? – Ironizou seu gêmeo num sussurro tão baixo que mesmo estando do seu lado Arthemis teve que se esforçar para ouvir.

- Eu não acredito que tu ainda tenhas medo dele – Provocou com um sorriso de perversa vitória.

Apolo engasgou de forma dramática, levando uma mão ao peito ofendido.

- Jamais!

- Então por que não o ofende em voz alta?

- Porque eu não quero atrapalhar a peça, ao invés de ti – Refutou, cruzando os braços – Ele simplesmente deve ter se cansado e ido embora, melhor para todos nós.

- Deixando Pisque para trás? – Questionou voltando a exuberante jovem que comia e bebia sozinha, parecendo ligeiramente triste e preocupada, mas ainda divinamente linda.

- Talvez eles tenham brigado. – Deu de ombros, tentando voltar a prestar atenção em suas musas.

- Não parece que eles brigaram, depois que Hermes saiu, ele trocou apenas meia dúzia de palavras com sua esposa e saiu com Dionísio como eu já disse.

- Tu estás espionando o que os demais deuses estão fazendo? – Perguntou com escarnio – Que pouca classe para uma donzela.

- Eu sou uma caçadora acima de tudo – Impôs com firmeza – Faz parte da minha natureza sempre estar atenta a tudo ao meu redor.

- Uhuuuum, claro intriguista, o que tu dizes. – Fingiu concordar, e o sorriso sabe-tudo no rosto do olimpiano só aumentou a vontade que ela tinha de quebrar seus lindos dentes perfeitos, mas ia se conter, como sempre fazia.

- Outro que não aparece é o sucessor de Hades, desde o conflito com Athena, mesmo Poseidon não retornou mais -Seguiu ela com seriedade – Aposto uma adaga meia-lua contigo que alguma coisa grande está acontecendo. Afinal, a função dessa festa era justamente a apresentação do novo imperador das trevas, e ele não apareceu até agora – Seu olhar esquadrilhou o salão, parando em Hefesto, que desinteressadamente remodelava um garfo com as mãos nuas para se parecer a um bidente, enquanto fingia que prestava atenção a peça. – Aphrodite também desapareceu, mas com certeza ela deve estar apenas fazendo das suas com algum servo daqui.

- Como tu pensas baixo de Aphrodite, eu pensei que tu fosses uma deusa que protegia as mulheres – Provocou seu irmão, percebendo que a deusa lunar não o deixaria mais assistir a encenação, então ao menos se vingaria irritando-a o máximo que podia sem que ofendesse Hera no processo.

- Aphrodite sabe se defender sozinha – Respondeu com voz cortante -  Por outro lado, eu suponho que nosso irmã Athena tenha ido embora.

- Sua irmã.

- NOSSA irmã. – Reforçou encarando-o de mal grado, e foi a vez de ele revirar os olhos. – O quê?!

- Tu nem a cumprimentaste, tampouco foste atrás dela depois de seu cosmo e do sucessor de Hades chegar a nós nesse salão, então não se faça a irmã preocupada agora, esse papel não encaixará contigo – Colocou áspero.- Estou mais preocupado com aquele músico, Orphée, trabalhando em um lugar tão desolador como o submundo, do que com o que aquela adoradora-de-humanos está fazendo agora.

Arthemis abriu a boca para responder, mas logo tornou a fechá-la. Se argumentasse que apenas não seguiu a deusa da guerra porque sabia que seu gênio a levaria a confrontá-la e quebrar o hospitium, Apolo apenas teria mais motivos para provocar seu sentimento de irmandade com a imperatriz da Terra.

Não que o sorriso abusado do mais novo nesse instante não a estivesse fazendo ponderar numa balança se valia a pena ou não um castigo de Hera em troca de uma flecha no joelho dele.

- Se seus questionamentos terminaram, então eu vou voltar a- Entretanto, resto de sua frase morreu em sua garganta quando Hera voltou a levantar-se.

-...Eu não acredito que mais alguém quebrou o hospitium.

- Não é possível...

- Essa noite não vai acabar bem...

- Como vamos nos proteger daquilo de novo sem aquele músico aqui?!

O sussurro aflito de deuses menores e ninfas começou a encher o salão, enquanto Dionísio, Maragdos e as musas mantinham-se quietos, como se congelados em seu lugar, esperando ordens para saber se deveriam seguir ou não com o entretenimento.

O olhar da deusa maior estava franzido, enquanto seus lábios finos e severos estavam ligeiramente entreabertos, ela engoliu em seco, e colocou-se totalmente de pé, ereta.

-...O que houve? – Deméter questionou ainda sentada, estranhando a atitude da mais nova. – Quem foi dessa vez?

- Héstia... – A voz saiu apenas como um sussurro, para que assim mais ninguém pudesse ouvir.

Não que adiantasse muito, pois...

- HÉSTIA?! – A deusa das estações gritou, fazendo todas as vozes simplesmente se calar, enquanto a imperatriz fechava os olhos e respirava fundo, amaldiçoando-se por não ter silenciado seus arredores antes de revelar sobre a quebra – Isso não é possível, ela nunca faria isso, respeita muito as regras de Zeus e as suas.

- Mas ela fez – Foi sua resposta simples, esquadrilhando o salão como Arthemis tinha feito antes, anotando mentalmente quem estava faltando.

Poseidon, Athena, Eros e Aphrodite, além do misterioso sucessor de Hades. Não, havia alguém mais, Hécate também não estava a vista desde que a comemoração começou.

- Arthemis – Anunciou em tom firme, e a mencionada imediatamente se levantou, e apesar da provocação dos irmãos instantes antes, Apolo se ergueu junto com ela com semblante preocupado.

- Minha irmã não fez nada, minha imperatriz – Defendeu antes que qualquer acusação fosse feita.

- Eu posso me defender Apolo – Rosnou entre dentes.

- Onde está Hécate? – A pergunta foi direta, ignorando as atitudes protetoras do caçula.

- Ela não gosta de grandes agitações, minha imperatriz, sempre viveu em lugares muito silenciosos como cavernas da Terra, no submundo e no meu templo. Por isso, ela me disse que estaria no jardim até que o imperador se mostrasse. – Respondeu com simpleza.

- O mesmo jardim que nossa irmã foi? – Questionou Deméter agora sim falando baixo, para a exasperação de Hera. – Não acha que-

- Não – A cortou, voltando a se sentar e ordenando com um gesto de mão que Arthemis fizesse o mesmo – Hécate é uma deusa muito tranquila e ponderada para levar nossa irmã a tanto.

- Poseidon? – Opinou, com expressão de desgosto.

- Héstia nunca ergueu a mão para nenhum de nós, quase nem nos toca diretamente, quando pediu autorização para ser uma deusa eternamente virgem apenas tocou os cabelos de meu marido. E o que eu senti foi um verdadeiro tapa perpetuado por ela.

- Mas nem com os titãs-

- Sim, eu sei, e ela tem repulsa a deuses da guerra, jamais se aproximou de meu Ares ou de Athena, e sinceramente não consigo vê-la erguendo a mão para o deus do amor.

- Não são muito que teriam coragem de bater em Eros de qualquer forma, nada me tira da cabeça que ele puxou mais seu pai do que damos crédito, é só lembrar como ele desafiou Zeus e todo o Olimpo para poder se casar com Psique - Acrescentou a mais velha – Mas se pensarmos bem, a conclusão sobre quem teria a capacidade de irritar Héstia é óbvia, alguém que não está aqui, e nossa irmã sempre detestou.

- Aphrodite – O nome mal havia saído de seus lábios e já a repulsava. Fechou os olhos, fazendo um sobre-esforço para manter sua postura altiva de imperatriz, ponderando suas opções.

- O que pretende fazer?

- Quais as chances de Aphrodite estar certa e nossa irmã precisar ser castigada? – Entretanto, não pôde impedir um sorriso simplesmente vitorioso pintar seus lábios.

E sua consanguínea entendeu imediatamente onde queria chegar, sorrindo a par.

- Nenhuma.

- Foi o que eu pensei. – Tornou a abrir os olhos, todos ainda olhando para si, esperando suas ações.

“Héstia, poderia,explicar tuas repentinas ações?” – Questionou por telepatia, esperando a resposta da mais velha.

Não demorou muito para que respondesse, sua voz parecendo contemplativa, como se estivesse muito satisfeita com algo que estivesse testemunhando.

“-Claro minha irmã, irei o mais prontamente possível a tua presença com meus motivos e argumentos. Se importaria de esperar um instante?”

“O que a impede de vir agora na presença de vossa imperatriz?” – Sua voz questionou firme e soberana.

“-Eu estou apreciando como os servos da morte estão torturando Aphrodite, juro que será breve” – Respondeu com cortesia, como se estivessem tomando um chá inglês juntas.

“Compreendo” – Seu sorriso se ampliou, fazendo um frio percorrer a espinha de mais de um presente. - “Nesse caso, leve o tempo que precisar”

“-Não diga isso, minha querida irmã, sabes que eu não sou uma deusa violenta, além do mais, eu não ousaria tirar de ti a oportunidade de castigar a cruel amante de teu filho. Retornarei ela em uma única peça para teu justo julgamento.”

“Sua imperatriz agradece” – Findou com simpleza, seus olhos voltando aos deuses, deuses e ninfas que a observavam.

- Sentem-se todos. – Ordenou, e com uma rapidez estranha para um bêbado, Dionísio tomou Maragdos do braço, e sentou-se com o pequeno Rite que havia adormecido com o rosto sobre algumas uvas, mesmo as Musas foram ágeis em fazer o mesmo - A peça está encerrada. Alguém mais quebrou o hospitium e minha irmã Héstia está a caminho com a culpada, para que eu dê meu justo julgamento e castigo.

A palavra no feminino fez os cochichos recomeçarem, o olhar da imperatriz recaiu ligeiramente em Hefesto, que apenas suspirou, entendendo a mensagem.

E assim, todos esperaram.

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- Vocês estão bem...? – Perseu questionou aflito, vendo da deusa submetida aos espectros que pareciam verdadeiras estátuas parados em seus lugares, ninguém disse nada por longos segundos.

- Nosso senhor com um pouco de raiva...? – Queen parafraseou os dizeres da deusa do fogo sobre o atual humor de seu deus, engolia em seco sentindo como seu ferimento latejava, ainda segurando Aphrodite entre suas pernas – Em toda a minha vida nunca o senti tão furioso...!

- Não podemos culpá-lo, podemos? – Seguiu a deusa com expressão e postura serena – Ele vem planejando essa batalha há vinte anos para ser afastado justamente quando ela começou, mesmo meu irmãozinho tem seus limites.

- Senhora Héstia – Valentine assumiu a palavra, vendo a mais velha com rosto franzido – Se me permite questionar, por que a senhora chama o nosso novo senhor de “irmãozinho”? – Assim que ela havia dado um tapa na face de Aphrodite, havia se referido a Shun assim, mas na ocasião, por motivos óbvios, não puderam questioná-la, porém agora com a deusa do amor imobilizada e a repetição do termo, não podia evitar o questionamento.

- Oh meu querido Sarpedão – O uso de seu nome verdadeiro fez a coluna de Harpia endireitar-se, enquanto sentia o olhar dos demais espectros em si com suas bocas abertas. – Eu conheço meu irmão mais novo muito bem, muitas de suas atitudes gritam Hades. No entanto, ele não é mais o mesmo, não quero desmerecer o pequeno Shun, ainda assim, é inegável para mim que ele representa ao menos uma parte do meu irmão. – Ela voltou curiosa para eles -Vocês não sentiram algo similar?

- Sim... – Confessou Valentine ainda com os olhares sobre si, sentindo-se cada vez mais desconfortável. – Eu não tive a oportunidade de realmente conhecê-lo, apenas de sentir a energia dele permeando o ar do mundo inferior, e ainda assim foi como sentir que o antigo senhor Hades de volta, só de estar no submundo, vendo e sentindo como o mesmo está exatamente como era há milênios,

- Pois meu querido, eis aí tua resposta – Ela sorriu com doçura – Agora meus amores, creio que é melhor vós irdes, mesmo que tenham ordem para permanecer, vejo que vós estais preocupados e quanto mais ajuda para acalmar meu irmãozinho melhor, afinal, a última vez que o vi irritado assim, ele quebrou a mandíbula de um Titã com as mãos nuas, por este ter arrancado o braço de Poseidon na sua frente – Isso fez um arrepio percorrer todos, com exceção a deusa e Perseu – Podem deixar que eu lido com Aphrodite – Ela começou a caminhar na direção da jovem caída, com a boca tapada por uma das garras de Laime. – Perseu, tu possuis alguma técnica que me ajude a levá-la? Para que nosso amigo possa ir ajudar seu senhor.

O espectro de verme ruborizou-se, sem compreender como uma donzela poderia ser tão perigosa, altiva e agradável ao mesmo tempo, mesmo sendo uma deusa virgem, ela o fazia lembrar de sua própria mãe, o que era no mínimo engraçado e contraditório, provavelmente era um efeito natural ao ser a deusa da família.

- Sim, minha senhora – Inclinou-se ligeiramente em respeito, fazendo algumas correntes surgirem das pontas de seus dedos, feitas de um cosmo translucido cuja cor era, como não, puxada para o vinho. O semideus deu um único aceno com a cabeça para os dois espectros que a mantinham encarcerada, indicando assim que podia assumir a partir dali.

Com isso, o aquariano afastou-se, e Queen desfez seu aperto, sua expressão cada vez mais pálida com a perda de sangue, Violate se adiantou para ajudá-la, erguendo-a pela cintura e a ajudando a se apoiar em si, enquanto a jovem de cabelos róseos soltava um aflito e baixo “obrigada”.

- SUA V- As palavras da deusa do amor foram bruscamente cortadas quando agilmente as correntes do fórico envolveram-se nela, erguendo-a no ar para que ficasse suspensa como um casulo de borboleta.

- Agradeço – A deusa da lareira cumprimentou com um sorriso, e sua caminhada seguiu até Queen. – Minha sobrinha, deixe-me ajudá-la, sei que vos tendes vossas próprias técnicas de cura no submundo, mas não posso simplesmente deixá-la sangrando dessa forma até chegarem lá, contudo, irá doer um pouquinho.

O grito agudo que Queen soltou, agarrando-se desesperadamente ao corpo de Violate, como se sua vida dependesse disso, quando Héstia invocou chamas em suas mãos e cauterizou a ferida, só deixou ainda mais claro o quanto a deusa podia ser eufemística.

- Pobrezinha – Deu um suave beijo no topo dos cabelos róseos como uma mãe que beija a ferida de seu pequeno filho, então se voltou aos demais enquanto a espectro lutava para não chorar com a sensação de ardência ainda em sua carne. – Por favor, quando tudo se resolver, deixem-me saber, só precisam queimar algo e evocar um cântico em meu nome, eu vou ficar aguardando com o coração na mão, então promete que não vai esquecer de avisar-me, meu sobrinho? – Seu olhar negro encontrou-se com o de Harpia.

- C-claro minha senhora – O antigo semideus confirmou, censurando-se internamente por gaguejar, sentindo novamente o olhar suspeito de seus companheiros atrás de si.

Até aquele momento, apenas Daidalos sabia de sua identidade em sua primeira vida, sendo Sarpedão, filho de Zeus, adotado por Asterion de Creta, e por consequência, irmão de sangue de Radamanthys e Minos, porém, agora não havia como esconder isso por muito mais tempo, porque a deusa da família havia deixado muito claro sua linhagem e duvidava muito que seus companheiros deixariam isso simplesmente passar em branco.

Então com uma reverencia respeitosa, os espectros se foram, deixando apenas a dupla e sua prisioneira para trás.

- Então Sarpedão é um espectro também – Comentou Perseu – Parece que a família do rei Asterion pegou gosto pelo submundo.

- Oh sim, aparentemente, mas viste a carinha dele? Acho que eu acabei falando demais – Ela levou a mão a boca para rir suavemente e com graça – Oh, erro meu, erro meu, as vezes me esqueço como alguns preferem deixar a linhagem em segredo. – Seu olhar voltou-se a Aphrodite, tornando-se mordaz numa velocidade impressionante – Mas ter o sangue de alguns correndo por nossas veias pode nos fazer querer ir por esse caminho. Vamos Perseu? – Seu tom voltou a ser suave, ignorando o olhar de ódio que a deusa do amor lhe enviou.

- Como desejar, minha senhorita.

E assim ambos seguiam pelo amplo corredor guiados pelo fórico que não baixou a guarda em nenhum momento, por isso, não pôde deixar de notar que o único quadro daquele corredor, agora tombado ao chão, estava completamente enegrecido, como se tirado de dentro de um incêndio. Seu pensamento se confirmou quando ao passarem pelo objeto, o mesmo se desfez em fuligem com o simples movimento causado por seus passos.

Nenhum dos dois comentou o acontecimento, porém Héstia estava visivelmente preocupada. E assim refizeram todo o caminho de volta ao salão-divino em silêncio.

Por sua vez Aphrodite apenas fechou os olhos, sentindo como a vida passava na sua frente enquanto seguiam para seu julgamento. Sabia que seria imediatamente culpada, Hera a detestava e o sentimento era reciproco.

Entretanto, seu objetivo no castelo era apenas ganhar tempo, e sem dúvidas todo o espetáculo que Héstia estava causando, e logo a chegada do Ómma, cumpririam essa função com primor.

O Hecatonquiros já estava a caminho do Santuário, e quando todos ficassem sabendo, sua punição poderia esperar, pois sabia muito bem que a Imperatriz dos deuses odiava muito mais a criatura que havia ajudado Zeus a escapar de sua conspiração para assumir ao poder, feita ao lado de Poseidon e Apolo, do que odiava a amante de seu filho primogênito e esposa de seu filho menor.

Apesar de sua derrota nas terras de Athena, ela havia apenas perdido uma batalha, e não a guerra.

Esse pensamento, sem embargo, fez algumas fugazes lembranças percorrerem sua mente, como um condenado que ao ser arrastado pelo corredor da morte, via sua vida e motivações passando na frente de seus olhos.

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- É claro que eu te amo Aphrodite, como pode duvidar de meus sentimentos, minha deusa?

Nerites era um belíssimo jovem, de cabelos curtos que sempre dançavam ao redor de seu rosto como se fossem os próprios raios de sol, e o vermelho intenso que eles possuíam apenas intensificava essa impressão. O deus marinho parecia ter eternamente seus vinte anos, seus olhos eram de um azul profundo como o oceano e possuía sardas por suas bochechas, nariz e pescoço.

Era lindo, juvenil, gentil e engraçado.

Ele foi seu primeiro amor.

- Então por que tu não queres ir para a superfície comigo? – Questionou, sua voz aflita.

Estavam sentados sobre algumas rochas nas profundezas do reino de Poseidon, sobre seu colo haviam um embrulho branco, que devido ao mar que os rodeava se mostrava arrepiado e feio, como se não fosse feito para aquele lugar.

- Eu te amo, mas tu não podes pedir-me para escolher entre tu e minha família – Disse ele com sua voz doce que tentava oferecer-lhe desculpas, apenas desculpas – Além disso, eu sou um deus marinho, o que eu faria em um lugar como o Olimpo?

- Por isso eu fiz essas asas! – Reforçou erguendo o desajeitado embrulho, preso com algas. – Eu usei todo o meu poder de gerar vida para isso, vão se encaixar perfeitamente em suas costas e crescerão sozinhas no tamanho que melhor sustente teu corpo. Poderá voar pelas nuvens com a mesma graça que nada no mar de Poseidon!

- Isso é realmente gentil de tua parte, meu amor – E aquele sorriso, aquele maldito sorriso que a tratava como se fosse uma criança, uma ignorante. – Mas minha negativa se mantém.

Havia nascido adulta, formada, era uma grande deusa do amor em todo o seu esplendor, e ele ainda podia negar seus favores assim?!

Seus olhos ficaram amarelos vivos, pela primeira vez desde que surgiu da espuma do mar, da semente do Titã deposto, Uranos.

Ele foi o primeiro a sofrer sua vingança, e suas rejeitadas asas, aquelas que fez com tanto amor, guardou para si, com o objetivo de dá-la àquele que seria sua cria mais poderosa.

Anos depois, Eros as recebeu e honrou.

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Seus lábios tinham um gosto salgado tão familiar que faziam seu coração doer.

Porém, não havia o amor de antes, o carinho, sequer havia rastro de qualquer consideração naquele ato demandante que roubava seu sangue além de seu ar.

Um som abafado e agudo começou a ser emitido de suas cordas vocais quando os lábios contrários saíram de sua boca para reclamar seu pescoço, um grito mudo arranhou sua garganta quando uma mordida profunda a acometeu, sem dúvida arrancando parte de sua pele no processo com violência e urgência.

- P-pare – Tentou dizer enquanto o liquido carmesim escorria por seus ombros, junto a uma dor pulsante que se tornava cada vez pior – PARE!!

Então o chutou para longe de si, seu coração batendo com adrenalina, enquanto saía daquela cama salpicada de sangue e outros fluidos, recostando-se contra a parede fria, agarrando-se com força em alguns lençóis, como se eles fossem algo mais do que tecido fino, como um verdadeiro escudo entre ela e o poderoso homem à sua frente.

- Já chega, acabamos aqui, eu já te retribuí o suficiente, Poseidon. – Alegou com voz cortante.

O deus sentou-se com petulância na cama, nenhum traço de arrependimento em seu belo rosto bronzeado enquanto sua língua saboreava o gosto enferrujado, seus cabelos eram longos e azuis escuros, caindo como verdadeiras cascatas em suas costas, seus olhos a viam com desprezo e satisfação, uma mescla tão repugnante quanto caótica.  São lábios eram firmes, porém quase da cor de sua pele, destacando-se pouco em suas feições, os seguiu lambeu sem pudor algum, limpando o rastro de sangue que ainda os manchava e os fazia reluzir de forma mais carnosa do que realmente eram.

- Que pena – Disse simplesmente, agachando-se e pegando as roupas dela no chão – Muito embora eu não tenha clamado a Hefesto que soltasse tu e Ares daquela rede vergonhosa para o teu bem, agradeço o teu “pagamento”.

Franziu a expressão, recordando-se como seu imposto-marido havia criado uma armadilha para prendê-la junto ao seu amante guerreiro, e os exibido nus para todo o Olimpo, os teria mantido naquela exibição humilhante se Poseidon não tivesse intervindo em nome de seu sobrinho, pedindo que o soltasse e que fizesse justiça de forma certa.*

- Eu não imaginei que tu e Ares fossem tão próximos – Seguiu alegando o que estava em sua mente desde a intromissão do deus – Clamando por justiça em nome dele, e se oferecendo a ser castigado em seu lugar caso ele fugisse do castigo.

- Não somos próximos – A resposta de Poseidon foi simples, enquanto ele se aproximava com passos firmes – Mesmo quando Ares está tranquilo, ele expele raiva por cada um de seus poros – Ela engoliu em seco, quando ele estava a apenas um passo dela, encurralando-a contra a parede fria de cristal escuro. – Só de estar perto dele sinto os sentimentos mais brutais dentro de mim aflorarem como se estivesse novamente na titanomaquia. Por isso ele me incomoda.

Sentiu seu ar faltar-lhe quando o homem agarrou seu pescoço, suas mãos tentaram lutar soltando os lençóis, mas seus chutes sequer o atingiam quando uma coluna de pedra se ergueu do chão, protegendo a anatomia dele de seus movimentos erráticos.

 - Eu tenho certeza que o sentimento é reciproco, ele sempre se mostra incomodado com a minha presença, porque tentar a guerra contra os poderes incontroláveis da natureza é tão inútil quanto injusto. Entretanto, Hera ainda é minha irmã e Ares meu único sobrinho não-bastardo, por isso, não me pareceu nada engraçada sua humilhação por mãos do irmão frente à sua mãe, além do que, eu sei que Ares jamais fugiria de um castigo, ele tem mais honra em sua curta idade do que Zeus jamais terá em toda a sua maldita existência. – Seu aperto se intensificou ainda mais, e sua segunda mão tampou os lábios da deusa impedindo-a de gritar – É apenas uma pena que ele tenha tão péssimo gosto para mulheres.

E assim, jogou-a contra um dos pilares de sua cama, apreciando como a deusa do amor batia ruidosamente contra os cristais para então escorregar no chão ofegante.

Apenas o som de tecido rasgando a fez reerguer a cabeça, presenciando como ele rasgava suas roupas, e mesmo seus próprios lençóis.

- O QUE TU ESTÁS FAZENDO! – Esbravejou.

- Deixando claro que eu não fiz isso por ti. – Respondeu soltando os trapos de tecido no chão, sorrindo com uma perversidade que a fez se estremecer no chão, contudo, em momento algum abaixou sua cabeça, encarando-o diretamente em seus olhos de forma desafiante. – Sinta-se livre para ir embora, só terá que atravessar todo meu reino, completamente nua, para tanto.

- SEU TRAIDOR – Ergueu-se para enfrentá-lo, mas parou quando ele invocou seu tridente e apontou para seu pescoço. 

Sua arma desceu, até apontar para o estomago dela.

 - Ou será que isso é apenas uma desculpa para conceber o filho de um imperador? – Ela protegeu seu ventre com as mãos, como se temesse que ele fosse prejudicar as sementes viajando dentro dela – Parabéns, tu conseguiste. Agora, por que não os amaldiçoa para que te estuprem quando cresçam?

Um brilho de entendimento atingiu seus olhos.

-...Então é disso que se trata – Apreendeu por fim toda a fúria e repugnância que ele havia demonstrado naquela noite – Vingança por Hália e sua prole.

- Tens muita coragem, Aphrodite, vir até aqui, oferecer teus “agradecimentos” pela minha ajuda, depois do que fizeste com A MINHA FAMÍLIA!

- É culpa deles por terem sido arrogantes e não permitido que eu embarque em suas terr- Suas palavras morreram, quando mais rápido do que pôde processar, o punho de Poseidon atingiu sua face, fazendo-a cair no chão, uma dor pungente açoitando seu nariz agora provavelmente quebrado.

- Desfaça. A. Maldição. – Sua voz era mortal, alertando todos os seus sentidos.

- Jamais – Respondeu petulante, então virou a face e cuspiu na cara do imperador, mesmo sabendo que ele ia revidar da pior forma possível. – Eu não permitirei que ninguém, jamais, pise em mim, como seus filhos fizeram.

- Tu és apenas um punhado de sêmen de um Titã, e ainda quer algum respeito? – Ele questionou com escarnio, vendo a expressão ofendida contrária – Vá embora Aphrodite, antes que eu faça mais do que te recordar o pedaço de lodo que tu és.

- Isso não vai ficar assim, eu-

- VÁ EMBORA APHRODITE, POR QUE SE NÃO EU JURO QUE TE ENTERRAREI SOB UMA MONTANHA COMO FIZ COM MEUS FILHOS DEPOIS QUE TU OS ENLOUQUECESTE!

- SENHOR POSEIDON! – Ambos se viraram para encontrar com um rosto jovem que apressou-se a ajoelhar-se no chão, cabelos brancos volumosos como de uma ovelha, e íris completamente brancas. – Perdão, mas a raiva do senhor está causando tremores em toda Atlântida, algumas casas não resistiram, e a fonte central está rachando.

O deus levou ambas as mãos ao rosto em franca exasperação.

- Sólon – Nomeou o garoto – Leve Aphrodite para longe de minha vista, não vou permitir que ela tire mais nada de mim.

-...S-sim senhor- Respondeu o lemuriano receoso, erguendo-se e dando um passo para o lado para que a deusa que se levantou o acompanhasse, sem em nenhum momento baixar a vista para ver sua nudez. – Por aqui, senhora...

Ela saiu sem olhar para trás, o resto erguido apesar da humilhação que estava prestes a sofrer.

-  Nerites manda lembranças, ele tem uma vida muito feliz aqui no mar sem ti agora – A frase de Poseidon a fez parar – Tu o transformaste em um camarão sob meu reino, HÁ, como se eu fosse deixar um castigo tão ridículo se mantivesse. Eu desfiz tua maldição, uma Esperma que se dizia deusa marinha jamais ultrapassaria meus poderes sobre o oceano.

- Se é assim, boa sorte para desfazer a maldição de teus filhos – Declarou com escarnio, sem virar-se e seguiu pelo corredor sem olhar para trás, apesar do urro de fúria que fez o mortal ao seu lado tremer.

- JAMAIS SE ATREVA A PISAR NO MAR NOVAMENTE, APHODITE, ESTÁ BANIDA PARA SEMPRE DE MEUS REINOS!

Não permitiu que essa falta de respeito e humilhação a abalassem, da mesma forma que não vacilou em seu aguçado caminhar, apesar de todos os hematomas de seu corpo levava agora.

Ela era agora completamente indesejada no mar, condenada a ser uma deusa terrestre, e ainda que assim fosse, não voltaria atrás em qualquer uma de suas maldições.

Jamais.

Era tudo uma questão de respeito, e não importava quanto tempo isso levasse, iria sem dúvida responder tamanha afronta à altura.

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- Foi uma festa muito – Um beijo, com forte gosta a vinho, a interrompeu - ...Divertida.

- Obrigado! – Um jovem de rosto corado agradeceu, seus cabelos eram cacheados, atualmente castanhos claros como de sua mãe mortal, seus olhos eram tão belos quantos os de Nerites um dia foram, porém eram preenchidos com uma vivacidade ébria ímpar, que fechavam a perfeição com seu sorriso tolo. Seu corpo era levemente formado devido a algumas campanhas de guerra que empenhava, e a forma como ainda segurava seu quadril, com força e decisão, eram mais dignas de um guerreiro do que de um bêbado. – Tu podes voltar quando quiser – Um novo beijo, ou quase, pois acabou acertando seu nariz com uma risadinha alcoolizada, para rir de seu próprio erro, e então acertar os lábios carnosos. – Sempre serás bem-vinda, Aphrodite.

- Obrigada Dionísio. – Sorriu com satisfação, levantando-se do leito com graça, mesmo tendo que desviar de duas sacerdotisas do deus, as Mainades, nuas, uma próxima as suas pernas, e outra dormindo sobre o colo dele.

O deus olímpico do vinho, da agricultura, do prazer, do teatro, da loucura e das orgias selvagens sabia reconhecer o que era ter uma deusa como ela em seus braços.

Com passos tortos ele contornou a cama, passando por cima de dois sátiros e mais algumas mainades tão agarradas umas às outras que não era possível saber onde começava uma e terminava a outra, para então estender a mão para ela numa oferta para a ajudar a se levantar.

- Deves estar cansada, deixe-me ajudá-la. – Ofereceu com seu sorriso gordo.

- Não me subestime – Disse recusando o gesto e erguendo-se sem sequer permitir que as pernas fraquejassem, a parte interna de suas coxas brilhando contra a luz fraca do amanhecer que adentrava de uma das janelas. – Necessitas de muito mais do que isso se quiseres me ver perder a forças nas pernas assim.

O mais jovem assobiou verdadeiramente impressionando, o que apenas a fez se envaidecer mais.

- Isso é impressionante! Sinceramente depois do terceiro Sátiro creio que não aguentaria andar por semanas! – E ele riu de seu próprio gracejo, enquanto empurrava mais alguns de seus servos desprovidos de roupa para abrir caminho para a deusa. – Eu jamais chegarei a tua altura assim.

- Vamos, não seja tão modesto – Entrou em seu jogo, dando uma pequena cotovelada nele, apenas fazendo-o rir mais enquanto saiam do quarto.

- Estou a ser-lhe sincero! Ah, falando em ser sério, quase havia me esquecido, queria aproveitar a oportunidade e te convidar para o meu casamento. – Disse simplesmente radiante.

Ela parou, vendo como ele abriu as grandes portas de carvalho que levavam ao seus aposentos pessoais, e sem se importar com sua nudez pediu roupas para as ninfas que se encontravam no corredor, levou meros segundos para duas se ajoelharem aos seus pés, com trajes impecáveis para ambos.

O deus nu abaixou-se sem cerimônia, parte de sua anatomia o seguindo de forma tremulante com seus movimentos erráticos, beijou o topo da cabeça de cada uma, que riram com o gesto de carinho, pegou as vestimentas em mãos e tornou a erguer-se para encarar a deusa de rosto franzido.

-...Casamento? – Repetiu ela incerta. – Tu, Dionísio, casar-te?

- Sim! – Sorriu radiante, e com seus poderes poderia sentir o amor emanando dele como ondas – Eu estou completamente e perdidamente apaixonado!

-...Por quem...?

- Ariadne de Creta, filha de Minos de Creta, um dos juízes do meu querido tio Hades. Teseu a abandonou numa ilha a própria sorte, pobrezinha, eu a encontrei e foi como se Eros estivesse lá e me acertasse com uma de suas flechas! Oh, talvez ele estivesse, faria muito sentido!

- Mas por que vais a se casar? – Questionou indicando aos seus redores – Casamento! És o deus das orgias Dionísio, mesmo sendo o senhor da loucura, isso está acima da compreensão.

- Ah minha cara Aphrodite – Apesar de seus dizeres, seu sorriso enamorado não desapareceu nunca – As orgias são maravilhosas, tu és maravilhosa, e ela jamais superara tua beleza. – Isso fez um sorriso voltar a sua face. – Mas o amor, o amor é outra história, eu a amo, e sempre amarei ela acima de tudo, e de todas as coisas – Mencionou indicando seus aposentos – Eu jamais beberia outra gota de vinho se não pudesse tê-la em meus braços e mimá-la e amá-la pela eternidade, meu coração é totalmente dela, mesmo que meu corpo não seja. Afinal, nenhum sexo, por melhor que seja, substitui o amor de verdade, tu como deusa desse sentimento, deve me entender, certo?

 Não respondeu, não tinha vontade de responder, recebendo suas roupas e cobrindo-se em silêncio, enquanto o deus tagarelava sobre enchê-la de vinho para que não esquecesse tão cedo da noite que passaram juntos.

E que valor isso tinha? Não deixava de pensar enquanto permitia que ele a conduzisse às suas plantações, ele não a amava, nunca amaria, o deus do vinho confessou que deixaria de beber se não pudesse ter seu amor, o quão absurdo isso era!

E ela seria apenas a convidada de honra de uma libertinagem.

Ainda assim não a amaldiçoou, ao menos Dionísio a travava com respeito, e seu amor honraria seus poderes e de Eros, nesse caso, devia dar-se por satisfeita.

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- Minha senhora, o senhor Ares se encontra espetando-a na entrada de vosso templo – Uma ninfa informou, sua testa tocando o chão ao se dirigir a sua deusa.

Um sorriso de vitória encheu sua face, levantando-se com graça de seus aposentos sem se dar ao trabalho de responder a serviçal que se manteve ajoelhada enquanto sua senhora passava por si.

Sabia, tinha certeza que Ares voltaria, ele sempre voltava, não importasse o quão dura pudesse ser com ele, afinal, ele era um bravo guerreiro que não temia nada.

Seu guerreiro.

Havia demorado mais tempo dessa vez, é verdade, mas isso não mudava o fato que ele havia recuado depois da acalora discussão que tiveram sobre seus filhos, onde Fobos e Daimos foram levados para morar com o pai.

Entretanto, ele ainda devia estar nervoso, afinal, não havia entrado por conta própria como sempre fazia. Para ter certeza que o provocaria ainda mais, andou com absoluta parcimônia até a entrada de seu glorioso templo coberto e elevado por ramos de rosa.

Ao começar a discerni-lo a distância, pôde perceber que algo estava errado. Ele estava apoiado contra o grande umbral de entrada, o que era uma ideia estúpida por si só, afinal, todo o arco grego estava revestido por suas roseiras, com seus espinhos salientes por todas as partes. Entretanto, o general não parecia se importar minimamente com isso, mesmo sendo possível ver os espinhos rasgando sua pele morena desprovida de armadura. Trajava uma tradicional túnica grega de dois ombros, cujo saiote ia até seus joelhos, suas sandálias estavam amarradas até quase alcançar o tecido, em padrões cruzados e bem amarrados em couro. Havia sangue em suas vestes brancas, como sempre, tanto na frente quanto provendo dos espigões das roseiras em suas costas. Seus lábios eram finos, e ao mesmo tempo carnosos em sua pouca pele disponível, seus cabelos brancos e prateados caiam desajeitados até seus ombros. Quando ele percebeu sua aproximação, permitiu que ela visse seus olhos, não eram inocentes como os de Nerites, tampouco ferozes como os de Poseidon, por mais que muitos humanos e mesmo deuses tremessem simplesmente ao estar frente aquelas orbes vermelho sangue, e sobretudo, ao vê-la não havia apenas o prazer, o desejo de saciar-se como via no olhar de Dionísio, havia algo maior, muito maior.

Antes mesmo que pudesse terminar suas comparações mentais sobre seus demais amantes, ele caminhou em sua direção, fazendo-a engolir em seco com a forma que ele não desviava a visão de si e de seus próprios olhos, suas pupilas se dilatando ao focá-la.

- Então finalmente viste que eu tinha raz- As palavras morreram em sua garganta quando seus fortes braços a tomaram para si, um contra sua nuca, outro em suas costas, trazendo-a para mais perto, dando mais contato para seus corpos e então a beijou.

Seus olhos fecharam-se, sentiu seu corpo relaxar, quase desfalecer, enquanto o beijo intenso e demandante ia abrandando, dando lugar a um mais calmo, envolvente e suave, totalmente diferentes de todos os outros.

Sequer deu por si quando suas pernas haviam perdido sua força, e tudo que o impedia de ir ao chão era seu imponente agarre.

Quando enfim soltaram-se para recobrar ar, ele apoiou sua testa contra seu ombro, e foi só então que percebeu que ele estava acompanhado por um sujeito de cabelos acinzentados.

- Eu senti sua falta – A voz dele era tão baixa e arrastada que por um momento pensou que ele estava bêbado. - ...Eu pensei que nunca mais fosse te ver...

- Não exagere Ares, nem é a primeira vez que nós brigamos – Ironizou, voltando ao seu papel costumeiro e arrogante, embora algo no tom dele aos poucos baixava suas muralhas.

E não demorou muito para descobrir o que era, pois o corpo dele repentinamente começou a pender para o lado, a forçando a usar toda a sua energia para impedi-lo de ir ao chão.

O outro visitante a ajudou, sequer se deu o trabalho de avaliar sua aparência como sempre fazia, como a deusa da beleza que era, quando suas palavras saíram com um rosnado.

- Quem és tu?! O que aconteceu com meu Ares!

-Meu nome é Thanatos – Explicou em tom suave – Ele foi ferido mortalmente em sua guerra contra Athena, ele se refugiou no submundo, mas fomos atacados também, por isso eu o trouxe para cá em segurança, meu plano era leva-lo até Apolo, mas ele insistiu em vê-la antes de qualquer coisa.

Pôde perceber, agora que estavam colados um contra o outro, que a quantidade de sangue que o empapava era muito maior do que imaginava, além disso, podia sentir como a batida de seu coração era incerta. Apesar de sua imortalidade, um verdadeiro pânico começou a se formar em seu interior, toda a sua pompa, postura e arrogância caindo por terra, sendo substituídos pelo medo e pela urgência.

-...Eu tentei me movimentar o menos que podia a caminho daqui – Sugeriu o deus de asas negras como a noite, que pareciam fortes, mas não eram tão belas quanto as de Eros. - ...Mas como sinceramente não estou acostumado a levar pessoas vivas nos meus braços, creio que não foi o suficiente.

- E O QUE TU ESTÁS ESPERANDO PARADO AÍ ME ENCARANDO?! – Seu berro foi tão repentino que o deus quase caiu em um sobressalto – VÁ ENCONTRAR APOLO AGORA MESMO SE NÃO QUER QUE EU ARRANQUE SUAS ASAS COM MINHAS MÃOS NUAS!

O deus parecia realmente afrontado com a atitude, mas teve bom senso o suficiente para não se negar a ordem nem um pouco velada.

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Pôde ver a figura de Apolo se aproximando a passos rápidos pelos corredores de seu templo, seguida de perto por Thanatos.

- Salve ele, por favor, por favor – Não esperou eles se aproximarem para ir na direção da dupla e simplesmente se jogar nos braços do deus do Sol que a segurou, surpreso, pelos ombros graças aos seus rápidos reflexos de arqueiro. – Eu faço qualquer coisa, qualquer coisa! – Sua voz era desesperada, mas nada disso importava nesses momentos enquanto pegava uma das mãos fortes do músico e a levava até a alça de sua túnica, deslizando-a por seu braço num gesto sugestivo, embora seu evidente pânico e tremor não ajudavam a dar toda a conotação sexual que desejava. – Eu serei apenas tua por noites inteiras, apenas tua, se tu o salvares.

O olimpiano engasgou com a proposta, o deus ctônico ergueu as sobrancelhas surpreso pela oferta, começando a virar-se lentamente para ir embora e evitar ser testemunha do ato.

-N-não – Tossiu, aclarando a garganta - Eu não posso aceitar – Negou ligeiramente nervoso, desviando o olhar e delicadamente subindo a alça da roupa contrária novamente, afastando-se devagar para ter certeza que a deusa se sustentaria sobre seus próprios pés sozinha – Veja, não se ofenda com minha recusa – Acrescentou ao ver a afronta em seus olhos - Eu realmente me sinto lisonjeado com tua oferta, mas eu sou um deus da cura, é meu dever olímpico, não posso aceitar tão alto pagamento por meus serviços. Ademais, o próprio Zeus me designou para cuidar de Ares quando retornasse em tal estado, então acalme teu coração, cara Áreia*, eu farei tudo ao meu alcance.

Afastou-se, confirmando ligeiramente com a cabeça, dando um passo para trás, para que o outro pudesse ir até seus aposentos, enquanto abraçava seus próprios braços. Sentia-se mais frágil do que jamais antes em sua existência, desejando que Ares a abraçasse nesse instante, se ele não fosse justamente a razão de seus temores. Percebeu então que Thanatos não havia partido depois da recusa do deus solar.

- Por que segues aqui?! – Questionou com desgosto.

- Preciso ter certeza que a alma de Ares está razoavelmente integra antes de partir – Respondeu com simpleza o deus sombrio sem se imutar pela atitude contrária. – Ele foi atingido por quatro armas com sangue divino, se não tivesse herdado a resistência de seu avô, ele-

- Mas ele herdou! – Colocou em um tom raivoso e ameaçador, caminhando até o outro como uma leoa prestes a abater sua presa – Ares é o deus mais poderoso, resistente e forte de TODO ESSE OLIMPO! NÃO SÃO AS ARMAS DA EQUIDNA DA ATHENA QUE VÃO DESTRUÍ-LO!

- Sim – Confirmou simplesmente o filho de Nix, engolindo em seco – Seu corpo se recuperará, minha preocupação é sua alma, Ares não é um deus ctônico, pode ter herdado a capacidade de Possessão de seu tio Hades, mas ele não é capaz de desvincular completamente seu espírito de seu corpo como o deus das almas é, por isso, não pôde evitar completamente os danos apesar de ter se refugiado no submundo. Eu não sou tão habilidoso curando almas quanto meu senhor, mas farei o possível para ajudar.

- SE HADES É MELHOR NISSO – Foi a vez da Morte ser agarrada pelas vestes, sendo sacudida com violência, enquanto os olhos da deusa do amor brilhavam em amarelo vivo – POR QUE ELE NÃO FEZ ISSO?! ARES É SEU MALDITO SOBRINHO! NÃO UM SOBRINHO BASTARDO COMO ATHENA, SEU VERDADEIRO SOBRINHO, SE MESMO POSEIDON FEZ ALGO PARA AJUDÁ-LO, POR QUE O APODRECIDO NÃO PODE?!

- Hades também foi ferido na guerra – Respondeu levando suas mãos as delas, apenas para vê-la soltar-se, como se estivesse com nojo -  Meu irmão e Hécate ficaram para socorrê-lo, ele não pôde ajudar seu sobrinho, mas pediu que eu o fizesse, por isso aqui estou.

- Athena, conseguiu derrotar dois dos três grandes?! – Ela repetiu com descrença – E ainda por cima meu Ares?! Como isso é possível, que artifício ela usou?!

- Seus guerreiros são simplesmente acima da média, e ela tem a benção de Zeus e Nike – Explicou com simpleza – Guerrear com ela é sempre estar em completa desvantagem.

- AQUELA HARPIAA! -Esbravejou, mas uma exclamação de dor vinda de seus aposentos minou completamente sua fúria – Ares!! – E correu desesperada aos seus aposentos, o ctônico logo atrás de si.
-.-.-.-

- Vós estais com sorte – Apolo dizia, parado ao lado do leito, limpando suas mãos ensanguentadas em um tom muito próximo ao de seus próprios cabelos tremulantes – Eu só irei para meu exílio após fazer o sol se pôr, se viessem por mim um pouco mais tarde eu já estaria destituído de meus poderes e não haveria muito que pudesse fazer.

Ares estava prostrado em sua cama, a mesma que por muitas e incontáveis vezes testemunhou o intenso sentimento de ambos, agora sentia sobre si o peso de seu sangue. Aphrodite acariciava a face estranhamente pálida com um carinho ímpar.

- Não foi sorte – Thanatos rebateu em tom tranquilo – Moros me informou que me apressasse justamente por isso.

Isso fez o deus da música revirar os olhos.

- Claro, eu posso ser o deus dos Oráculos, mas os meus servos nem de longe são tão intrusivos como o Destino pode chegar a ser quando quer – Acrescentou com impaciência entregando os panos ensanguentados para uma ninfa ao seu lado que tinha quase metade de seu tamanho – Seja como for, eu fiz tudo que pude, agora não esperem que eu vá avisar Hera sobre isso, não quero ser o único a informá-la que Athena por pouco quase matou seu filho.

- Se fizeste o que pudeste, por que ele não está acordando?! – A voz da deusa do amor era severa, sem jamais desgrudar da face palidíssima.

- Veja bem, eu já curei e cuidei de Ares outras vezes, mas nem em Troía quando Athena lançou praticamente uma montanha em cima dele, ele ficou tão mal. O mais próximo que eu já o vi desse estado foi quando minha irmã e Hermes o resgataram dos gigantes. É impressionante como, do nosso panteão, ele é aquele que mais se aproximou do fim da imortalidade por conta própria mais de uma vez, mas suponho que isso é inevitável, sendo ele o deus da guerra violenta.

O que recebeu em troca foi um olhar verdadeiramente mortal e raivoso da deusa do desejo, que apenas fez o mais jovem tossir novamente.

-...E-em suma, ele vai ficar bem, é normal demorar a acordar depois de atingir um estado tão grave. E sem dúvida o conflito com Athena foi bem mais intenso dessa vez, é isso que quero dizer.

- Eu vou destruir aquela mulher – Um brilho realmente assassino assumiu sua face.

- Eu não faria isso se fosse tu – Ponderou Apolo – Ela é a favorita de Zeus agora, atribuída como Imperatriz da Terra, conseguiu derrotar dois dos seis grandes e ainda sobrepujar Ares assim, seu poder atual não deve ser levado de animo fraco. Eu sei que tu não és do tipo que necessita conselhos sobre vingança, mas ainda assim eu te aconselho que espere.

-...Esperar? – Repetiu ela, encarando os olhos claros do deus – ELA QUASE TIROU ARES DE MIM!

- Eu entendo o sentimento – Dessa vez, o divino-gêmeo não retrocedeu frente ao olhar ferozes, seus próprios olhos claros ressoando com ressentimento – Meu filho querido envolveu-se com ela e por mais que use meus poderes proféticos, eu só vejo dor e sofrimento o corroendo por isso pelos próximos milênios. Athena deve pagar, eu concordo, mas não agora, como o deus que faz os dias passarem, eu posso dizer sem hesitar que o tempo pode ruir até o maior dos exércitos, pois, nenhum império, jamais, durará para sempre.

- Então tu estarias disposto a me ajudar a vingar-me? – Seu tom meloso havia voltado, aquele que sempre usava para conseguir de seus amantes tudo que queria.

- Não – Estava a ponto de usar seus poderes sob ao amor para convencê-lo, quando ele começou a retroceder e caminhar até a saída, aparentemente entendo as intenções dela, como Dionísio, um deus tão voltado as artes como ele podia interpretar bem emoções e linguagens corporais para antecipá-la. Isso a irritava. – Se eu me envolvesse com Athena, mesmo para vingar-me, meu filho sofreria, e eu não desejo isso. Meu conselho é a única ajuda que planejo prestar-lhe.

- Covarde.

Os olhos dele brilharam perigosamente frente a ofensa, mostrando a face mais cruel que o Sol poderia chegar a ter, aquela que queimava a terra e corroía a vida, mas logo tal emanação sumiu, frustrando-a. Apolo costumava ser um deus mais fácil de irritar do que isso, mas parecia ser que qualquer tentativa de arrastá-lo estava sendo completamente infrutífera, como se seus poderes sobre os sentimentos alheios estivessem sendo anulados.

A compreensão logo a atingiu. Ares. Sua simples presença devorava a raiva de Apolo como um cão faminto, antes mesmo que ela pudesse se manifestar propriamente, da mesma forma que seu cosmo incerto e tremulante que tentava se agarrar a vida anulava as tentativas dela de usar suas próprias habilidades.

“Por Uranos, ele é tão perfeito” – Pensou, sentindo seu baixo ventre tremer.

E sua distração foi suficiente para o deus da cura fugir de seu campo de influência, parado do outro lado do umbral que saía de seus aposentos.

-  Seja como for, devo ir agora, preciso levar a luz de Hélio para o mundo mortal, não tens ideia da quantidade de teorias conspiratórias que os humanos são capazes de criar quando eu tardo mesmo que seja alguns instantes de levar a luz até eles – Seus olhos se reviraram.

- Obrigada por sua ajuda, suponho. – Disse de mal grado.

- Eu só fiz o meu dever – Disse com simpleza dando-lhe um sorriso radiante que com certeza faria mortais caírem ao seu joelho, mas com ela já fazia sua sobrancelha erguer-se. – Mas se ainda desejas me retribuir de alguma forma...

“Claro” pensou franzido a expressão internamente, mas externamente voltando a sua postura sensual. “Deus da arte ou não, ele ainda é um homem, e o desejo dos homens sempre caminham para o mesmo fim.” – Mordeu seu lábio inferior com lascívia.

- E o que o deus da música poderia querer com a deusa do desejo? – Questionou em um sussurro libidinoso, sorrindo internamente com o novo desconforto do deus frente a sua postura conquistadora.

- Que tu, jamais, amaldiçoes uma de minhas musas. – Disse de forma aflita, como se estivesse encurralado.

Isso fez a deusa piscar, sua postura sedutora caindo por terra.

- Por que eu faria isso de qualquer forma?! – Perguntou com frustração.

- Bem...Elas representam as artes, e muitas artistas como tal as têm como inspiração por isso, ouvi dizer que seus nomes já estão por virar sinônimos do próprio entusiasmo criador, e eu não desejo que a visão lúdica dos homens sobre minhas noivas ofenda a deusa da beleza de alguma forma. – Explicou com simpleza. – És tu a maior beleza entre todas, minhas musas jamais chegarão a vossos pés, mas sabem bem como os humanos podem ser cegos, tolos e volúveis.

Aphrodite não respondeu de imediato, o deus da cura e da arte estava ocultando seus sentimentos agora, justamente para que ela não soubesse se ele estava mentindo apenas para não a ofender, ou dizendo a verdade para lhe agradar, isso apenas serviu para irritá-la mais.

Contudo, novamente, sentiu como esses sentimentos eram arrancados de si e devorados pelo homem deitado ao seu lado numa tentativa de se recuperar, na esperança de recompor suas próprias forças usando-se de sentimentos alheios como base.

- Está bem, tens a minha palavra.

Apolo brilhou, literalmente falando, e com um sutil gesto de cabeça se afastou o mais rápido que pôde, nem se deu ao trabalho de fingir que não estava fugindo, usando o nascer do sol como desculpa para escapar.

“Jamais terei um filho com este homem” – Pensou para si mesmo – “Não há de gerar nada descente, apenas ocuparia meu útero tolamente.”

Simplesmente odiava deuses como ele, enquanto alguns nasciam sobre deveres reconhecidos e idolatrados como curar, outros como Ares eram amaldiçoados com os deveres da guerra eterna, ou ter seu ventre sempre carregando sementes estrangeiras, apenas para vê-las crescer e falhar.

Se pudesse, apagaria tudo, voltaria o mundo a era do caos, e rescreveria de forma que todos esses papeis fossem invertidos, daria a liberdade aos deuses condenados aos piores labores, e daria a sina aqueles que se regurgitaram com as maiores honras.

Ares seria o imperador que merecia ser, e ela seria sua imperatriz, governando o Olimpo com muito mais competência do que Hera jamais pôde.

Desviou o olhar de Ares para encarar Thanatos, que estava de olhos fechados sentado do outro lado do leito desde que Apolo começou a se afastar. Podia sentir como ele emanava seu cosmo tentando atingir a alma de seu amado.

- Deve ser horrível – Começou a dizer, e o erguer da sobrancelha contrária era o único sinal de que ele a estava escutando – Ser o deus da morte.

- Nem sempre é agradável – Foi a resposta simples do filho de Nix, sem deixar seu labor – Mas é simplesmente o que eu sou e serei pela eternidade.

- E se pudesse não ser? – Questionou em tom ansioso – E se pudesses escolher ser qualquer outra coisa? E se pudesse ser livre?

Thanatos abriu os olhos e encarou a deusa com semblante confuso.

- Eu sou livre, meu senhor é que não é. – Sua resposta foi simples, ela entendeu que se referia a Hades, se levantou,  não antes de lançar um pouco de cosmo sobre a cabeça do deus da guerra, que franzia a expressão desgostoso com o movimento – Devo partir, há muito o que fazer agora no submundo, é normal que ele acorde confuso e não recorde bem o que aconteceu, se precisar de mim-

- Eu só preciso matar alguém? – Questionou com ironia.

- Precisamente – Confirmou com a cabeça, e sem mais despedidas sua figura se desfez numa bruma negra.

- Parece que nem todos entendem meu desejo de mudar tudo – Voltou ao seu homem, acariciando gentilmente as maçãs de seu rosto – Mas tu entenderias, não...Meu amor? Tu desistirias mesmo da guerra por mim?

- Sabes que não cabe a mim fazer isso – Seu corpo deu um grande sobressalto com a resposta repentina, embora os olhos dele ainda se mantinham fechados - É minha atribuição, meu dever olímpico, minha sina, tanto quanto a tua és procriar.

Seus olhos se abriram com uma lentidão assustadora, seu brilho era fraco e desfocado, quase como se estivesse cego, por isso aproximou-se o máximo que pôde.

- Há quanto tempo estás acordado? – Perguntou em um sussurro.

- O suficiente para ouvir seu apelo- Tentou erguer a mão para tomar a dela, agarrando-se a uma sombra, mas a deusa remediou isso indo ao seu encontro e entrelaçando seus dedos juntos. – Perdão, eu não queria preocupar-te assim, mas eu realmente tive medo que- O silenciou com um beijo, suave e lento.

- Cale a boca, sua voz está tão fraca que está me dando arrepios – Aproximou-se mais, colando ambas as testas juntas, sentindo um arrepio percorrer sua espinha ao notar como o pele dele estava fria como a de um cadáver – Eu não sei o que eu faria se te perdesse para um campo de batalha sujo e sangrento, perdido entre mortais que não te louvam o suficiente. Por que Ares, por que tem que ser assim?

Lágrimas rolaram pela face da vingativa deusa, partindo do coração que muitos duvidavam que possuía.

- Tu desistirias mesmo da guerra por mim? – Repetiu seu questionamento, e antes que ele pudesse dar a mesma resposta, acrescentou -...Desistirias se pudesse?

Ele fechou os olhos, respirando fundo, como se quisesse que seu cheiro ficasse eternamente gravado em seu cérebro.

- Sem hesitar, meu amor – Confessou por fim, um sorriso fino delineando seus preciosos lábios – Por ti, que permite que meu coração bata por algo mais do que o sangue e os uivos da batalha, por ti, que meu deu filhos que me acompanharam pela eternidade, por ti que olha para mim com teus olhos azuis mais profundos que o próprio oceano, eu quebraria minha lança e abandonaria para sempre a batalha, apenas se assim eu pudesse ver um sorriso em seus lábios e arrancar de tua face essas lágrimas que ousam defraudar tua beleza. Eu te amo, Aphrodite, e esse é um fato que jamais irá mudar, minha vinda simplesmente não faz sentido se tu não estás nela.

- ...Eu enlouqueceria com a simples ideia de te perder – Ela confessou. – Eu faria o que fosse para que isso jamais acontecesse.

- Não pensemos nisso, meu amor – Sentiu seu peito apertar ainda mais quando divisou lágrimas se formando naqueles olhos vermelhos e opacos – Apenas me beije, me beije até que esqueçamos de tudo que nos cerca, esqueçamos quem somos, e quais são nossas sinas e destinos.

E o beijou, com adoração, ferocidade, passividade e, sobretudo, amor.

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A dor em seus joelhos a trouxe de volta a realidade com uma fisgada violenta, ao chegarem na entrada do salão-divino, a dupla que a conduzia havia parado, e com um empurrar nem um pouco suave em seu ombro, Héstia a tinha forçado a se ajoelhar no chão, sob o olhar de parte do panteão, todos sentados em suas mesas, como se estivessem esperando esse momento.

“Claro que estavam” – Pensou – “A virgem já deve ter avisado suas irmãzinhas de antemão.”

Ergueu o rosto apesar da posição que estava, já havia passado por muitas humilhações em sua vida, e como nas outras vezes, não permitiria que isso ferisse seu orgulho.

Seu olhar se encontrou com o de Apolo por um fugaz instante, o deus do Sol parecia impressionado com o rol dos acontecimentos, piscando surpreso de Héstia para si, duvidava muito que ele recordasse de seu próprio conselho milênios atrás, da vingança da qual ela nunca desistiu.

Ela esperou, e esperou, até que o próprio tempo estendeu sua mão a ela.

- Imagino que saibas porque estás aqui – A voz de Hera reluzia de forma severa, saindo de sua mesa e contornando-a, ninguém dizia absolutamente nada, Deméter a seguia de perto. – Não tentará sequer se defender?

Ao invés de encará-la, buscou o olhar de Hefesto, a repulsa por ele cresceu em seu ser, mais do que havia crescido nessas duas décadas de abandono quando notou que ele encarava sua bebido ao invés de sua esposa, incapaz de atrever-se a ir contra sua mãe outra vez, mesmo tendo-a humilhado no passado, agora, na ausência de Zeus, que era a imperatriz suprema, ninguém ousava desafiá-la.

Ninguém, claro, além de Ares.

Ele arrancaria essas correntes sem pestanejar, mesmo que tivesse que enfrentar todo o panteão para isso, jamais permitiria que ela ficasse acorrentada assim, por mais que ainda estivesse com raiva dela pela maldição que colocou em Enyo, ele jamais permitiria.

Ele entendia o que era desejar a liberdade.

Seguiu esquadrilhando o salão, ignorando as palavras de Héstia sobre como todo a situação se deu, seu ataque ao santuário de Athena, o ataque a honra do imperador do submundo, muito embora notou que ela não havia citado diretamente o hecatonquiros.

Sua vista então encontrou-se com a de Dionísio.

O deus da loucura parecia aflito, vendo-a com pena, um sentimento que fervia seu sangue, não precisava da indulgência de ninguém, como se ela fosse simplesmente uma falha digna da piedade alheia, a maçã que todos sabiam que apodreceria um dia.

Ela era muito mais do que isso, e quando tudo viesse abaixo, eles saberiam.

- ...Então um Ómma testemunhará a seu favor -  Findou Héstia a explicação às suas irmãos, ainda sem mencionar o grande titã liberto.

- Ladón? – Quis saber a imperatriz.

- Não, o pequeno Mei – Respondeu com simpleza. – Sinto que o Ómma que tem laços de sangue com o submundo e o santuário já está aqui no castelo, aparentemente, ele trouxe alguém com ele e por isso ainda não veio a nossa presença.  - Ela voltou-se para o longo corredor, como se esperasse que alguém aparecesse do outro extremo, embora o castelo estivesse cheio de barreiros que tinham a intenção de impedir que o cosmo fosse sentido além dos corredores, para o caso de enfrentamos como o de Athena e Shun, a deusa ainda podia sentir os laços de sangue das pessoas, ligando umas as outras como se fossem fios vermelhos de lã que corriam pelos corredores, e Mei tinha laços muito interessantes para não ser facilmente notado  –Ele testemunhará sobre as ações de Aphrodite para que tomes teu parecer, minha irmã.

- Ou eu posso simplesmente julgá-la aqui e agora – Decretou em tom frigido a imperatriz, a deusa do amor apenas manteve seu olhar sem hesitar.

- Poderia, mas isso não seria justo – Insistiu a deusa virgem recendo um olhar zangado da mais nova – Além do que, eu gostaria que todos escutassem a extensão das atitudes dela. Creio que ainda poderá nos influenciar essa noite.

- Em outras palavras, tu estás a dizer-me que eu, a imperatriz dos deuses, tenho simplesmente que esperar um reles serviçal venha até mim para tomar a minha decisão sobre o destino de Aphrodite.

- Sim – O sorriso de Héstia era tão sincero que Deméter teve que abafar uma risadinha do olhar franzido de Hera – Mas podemos fazer isso sentadas, não é como se ela fosse a qualquer lugar, enquanto isso, será que eles ainda têm aquela coisa chamada shokoláta, aquilo é simplesmente divino!

E para a completa afronta da irmã caçula que, no entanto, havia herdado o trono, Héstia seguiu feliz para a mesa que elas dividiam antes, disposta a conseguir mais chocolate, não antes de dispensar educadamente Perseu, que sem desfazer suas correntes retornou até seu deus para explicar melhor o que havia acontecido.

- Ela não tem o menor respeito – Hera rosnou num sussurro.

- E quando ela foi diferente? – Deméter ironizou levando a mão na cintura – Se até Zeus ela tratava como se fosse uma criança, perca todas as esperanças. – Findou dando de ombros e voltando com a irmã.

- Eu clamo o direito a julgamento – Finalmente falou, chamando para si a atenção das duas – Como olimpiano, eu clamo pela justiça de Zeus.

-.-.-.-

- Eu não acredito que Hécate simplesmente a arrastou para cá, acorrentada – Apolo resmungou em um grunhido que fez a expressão de Arthemis azedar-se novamente e todas as ideias de assassinato voltaram a sua mente – Pelas mãos de Ganimedes, isso é tão...Tão.

- Uma única palavra meu irmão, uma ÚNICA mais e considere-se castrado. – Colocou em tom frigido.

Isso fez o mais novo resmungar novamente, mudando as pernas de posição, enquanto observava as três deusas filhas de Kronos reunidas, Aphrodite acorrentada e Perseu tranquilamente e fielmente de seu lado como se nada demais estivesse acontecendo. É como diziam no Olimpo, pouco realmente poderia surpreender um fórico.

- ...Eu gostaria de saber o que ela fez dessa vez – Seguiu o deus do Sol em tom mais sério, sabendo que a ameaça da de sua irmã não devia ser levada de humor leve, enquanto seguia inconformado com a postura estoica do semideus – Quer dizer, para de todas as pessoas...Não vejo Héstia fazendo algo assim, ela sempre tão elegante, bela, intocável...Como eu queria ter me casado com ela!

- Apolo... – Seu tom de aviso era assassino. – Ela é uma deusa virgem.

- Eu não estou tocando nela, estou?! Apenas deixe um homem sonhar.

- E se fosse comigo, hã? Se algum deus aqui estivesse fantasiado com sua irmã.

Seus olhos brilharam em amarelo vivo.

- Tu sabes muito bem o que eu faria – Praticamente rosnou, encontrando-se com o olhar de um deus-menor baixo e rechonchudo, de cabelos verdes cacheados. O pobre encolheu-se ao sentir o olhar do deus sobre si.

- Deixe Kyamites em paz, ele é da corte de Deméter, e ninguém estava olhando para mim, foi um exemplo – Colocou em tom exasperado, voltando ao mais novo com consternação – E mesmo se alguém estivesse, eu posso muito bem defender-se só. Nada que precise da tua incumbência, meu irmão. 

Estava a ponta de contestar e provavelmente começar outra de suas infladas brigas quando todo o castelo começou a tremer novamente.

- Poseidon ainda está aqui? – Hera questionou com desconfiança, fazendo sinal para que Hefesto vigiasse sua esposa para que ela não fugisse.

O deus manco dedicou a sua mãe uma expressão de completo desgosto pela tarefa, ainda assim levantou-se, sentindo-se humilhado.

- Não, acredito que o sucessor de Hades é o responsável, minhas irmãs – Informou a Héstia com um bombom em mãos – Afinal, este castelo tem uma ligação muito forte com o submundo.

- Ele não vem a festa que ajuda a organizar e ainda causa terremotos? – A deusa das estações bufou, cruzando os braços – Quanto cavalheirismo, parece que Hades realmente conseguiu alguém a altura.

-.-.-

- Todas as oportunidades possíveis que tu tens de me humilhar, tu fazes isso, não é mesmo? – Seu marido grunhiu, ajoelhando-se a sua altura e arrancando as correntes que cobriam sua boca – O que é agora?! O que passou pela sua cabeça doente dessa vez?

A deusa do amor o observou com completa repugnância, mas não respondeu, precisaria de ajuda se queria desequilibrar ainda mais as coisas, e segundo o que aqueles seres do submundo haviam dito, talvez devido ao seu enfrentamento no castelo, o senhor do submundo estava adormecido.

Se pudesse chegar até ele, poderia influenciá-lo com seus poderes, podia sentir pelas vibrações do castelo que suas emoções já estavam instáveis, se isso piorasse ainda mais, o submundo sem dúvida seria atingido.

E como há vinte anos, miasma escaparia dessa fissura, porém se jogasse bem o jogo, a carta na manga deles estaria posicionada para fazer-se valer dessa energia.

E quem sabe, talvez o imperador do submundo ainda pudesse gostar do que o mostraria e quem sabe decidisse mudar de lado?

- Hefesto... – Disse em seu tom mais suave e meloso – Antes de me olhar de forma tão raivosa, deveria me perguntar o que eu descobri.

- Duvido que algo que valha a pena toda essa situação. – Retrucou com sua voz grossa.

- A espada de Hades – Isso fez os olhos escuros do deus reluzirem – Eu soube como aquele cavaleiro de bronze te enganou, te fez passar décadas tentando decifrar o enigma de uma esfinge muda. A verdade é que ele banhou a lâmina com o sangue de Hades que Hécate conseguiu com Athena, como pagamento para recuperar as armaduras de ouro. O verdadeiro poder da espada do submundo reside nesse cavaleiro, ele enganou a ti e sua própria deusa, usando esse poder para tomar o trono de seu tio Hades para ele. 

-...Essa é uma acusação muito séria, Aphrodite – Sua voz era profunda e pesada.

- Meu amor, sei bem o quanto de dedicaste a resolver essa incógnita nas últimas duas décadas, tentando extrair o poder daquela arma para si, e falhando, e falhando.  – Fez um sobre-esforço para não externar os sentimentos de completo abandono que essa busca o havia causado, não era o momento para isso - És inteligente, és capaz, sei que uma parte de si suspeitava ter sido engano, estou aqui humildemente dizendo que tinhas razão em suspeitar, esse homem, Shun, enganaste a ti e Athena, mesmo sendo, na época, servo da deusa.

- E tens alguma prova disso? – Franziu o olhar com desconfiança – Como posso saber que isso não são apenas palavras para te soltar?

- Eu juro em nome do Estige que digo a verdade – Sorriu internamente ao ver os olhos dele se ampliarem – Por favor, meu marido, permita-me ajudar-te a recuperar tua honra, eu sei onde ele está, podemos fazer isso juntos.

- Como tu descobriste isso?

- Chronos, ele esteve vigiando os passos do Santuário nos últimos vinte anos, ele não podia entrar as terras do santuário sem um corpo, mas manteve-se na vila próxima e pôde ouvir Hécate, aquele cavaleiro e seu irmãos discutindo o assunto.

- E tu só me disseste isso agora?! – Fúria pura brilhava em seus olhos azuis escuros como o céu noturno, por um momento fazendo a deusa recordar-se da ferocidade de Poseidon, mas logo afastou esses pensamentos, apesar de tudo, Hefesto nunca havia levantado a mão para si, não o faria agora, frente a boa parte do panteão.

- Eu soube apenas recentemente – Confessou, o que realmente não era mentira – Esperava poder confrontar esse “imperador” essa noite antes de dizer-te, não queria correr o risco de sem que tu se desentendesse com aquele que possuí um terço do mundo, na frente de nosso panteão, sem que te dessem a devida razão que tu mereces.

Era óbvia a desconfiança em seus olhos, ele olhou para sua mãe, que ainda discutia com suas irmãs, e logo novamente para sua esposa.

- Prossiga. – Disse simplesmente, e Aphrodite teve que se conter para não beijar o homem a sua frente, talvez porque essa era a primeira vez que tinham uma conversa de verdade em vinte anos, ou porque essa maldita história da espada estava prestes a terminar.

Na verdade, tudo terminaria essa noite.

Tudo.

- Precisamos encontrá-lo e colocá-lo contra a parede, fazê-lo admitir que enganaste duas divindades, assim tu terias o item que és teu por direito, e ele seria devidamente castigado por tentar ludibriar um membro da família real do Olimpo. Um desrespeito desse poderia até causar uma guerra entre os reinos.

- Minha mãe nunca iria tão longe por mim, e sabes disso. – Diminuiu com claro desgosto.

- Talvez, mas ela ainda clamaria por justiça. Só precisamos de provas, ela nunca acreditaria na minha palavra, mesmo sobre a jura do Estige.

- Não, ainda mais depois dessa cena com Héstia – Rebateu seu marido – O que tu estavas fazendo exatamente?

- Eu queria provar o quão desonesto o imperador está sendo, ele libertou o Hecatônquiros! Foi isso que ordenei que Mei testemunhasse.

A expressão do deus ferreiro se franziu ainda mais.

- O imperador o libertou, ou Chronos o soltou? – Questionou, erguendo uma sobrancelha grossa, suas mãos delineando sua barba ruiva e cerrada que caia por seu queixo. – Todos tem conhecimento de que quando Hades caiu, Chronos invadiu o mundo inferior para conseguir um exército para si mesmo, o conflito entre ele, Poseidon e o sucessor não é exatamente um segredo.

- Que diferença isso faz? – Rebateu com astucia – É o dever primário do submundo manter os titãs presos, e Hera pessoalmente ordenou que os Hecatônquiros fossem feitos prisioneiros quando assumiu o poder do Olimpo. Se ele escapou, o submundo é responsável de qualquer forma.

- Isso é verdade, mas se foi antes do seguinte senhor assumir...

- Ele teve vinte anos para recuperá-lo e não o fez, pois estava ocupado demais enganando meu marido e conspirando com Poseidon e Athena. – Findou de forma demandante.

Novamente o ferreiro não respondeu, e realmente começava a irritá-la o quanto estava custando para que ele acreditasse nela, mesmo que em suma não estivesse realmente mentindo, apenas omitindo alguns pontos menos “relevantes”.

- E o que tu esperas que eu faça com essas informações? – Perguntou ele por fim – Não há nenhuma possibilidade que eu possa te soltar, aqui, na frente de todos.

- Não, eu vou ficar, o testemunho de Mei te dará tempo para que obtenhas tua justa vingança. – Antes que ele pudesse perguntar “como” ela acrescentou – Vá para vossa forja, meu marido, lá onde se encontra a passagem para o Tártaro, adentre o submundo e confronte o imperador.

- Estás completamente louca! Invadir o submundo pelo Tártaro?! – Esforçou-se para não exclamar, mas a ideia dela era tão chocante que não pôde evitar que o tom de sua voz se elevasse um pouco, não o suficiente para que todos ouvissem, pois os sussurros exasperados e temerosos de deuses menores, ninfas e olimpianos encobriam a conversa pessoal que estavam tendo, e ainda que fosse assim, foi o suficiente para que alguém escutasse, e encarasse ligeiramente a dupla com desconfiança – E ainda por cima quer que eu enfrente o imperador em seu próprio reino, isso é tão insano quanto desafiar Poseidon em um barco à deriva no mar, só Athena seria tão insana para tanto.

- Ninguém suspeitaria de uma invasão partindo do mesmíssimo Tártaro, tu passarás despercebido. – Insistiu, seus olhos brilhando de antecipação –Algo aconteceu com ele, veja por esses terremotos, ele está instável. Escute-me, e verás que a vantagem estará completamente contigo

- Isso só o torna mais perigoso – Rebateu.

- Isso só o torna mais fácil de controlar – O sorriso perverso na face de sua esposa fez um frio percorrer sua espinha – As emoções dele estão desordenadas, eu sinto daqui, esse é o meu terreno, como um solo recém arado esperando por sementes para germinar – Ao fim de seus dizeres ela produziu uma pequena muda de rosa entre os dedos da mão esquerda, Hefesto o tomou o mais discretamente que pôde – Eu só preciso que faça ele comer isso, e ele estará em nossas mãos.

- Em suas mãos. – Corrigiu vendo a semente – Eu vi o que aconteceu com as ninfas que tu fizeste ingerir isso. Acha mesmo que terá poder para resumir o imperador do submundo a um simples escravo teu?! – Ironizou – Não és tão poderosa, Aphrodite.

- Não, mas como eu disse, se ele estiver instável – Um novo tremor chacoalhou o castelo, fazendo Hera franzir ainda mais a expressão – Será possível, e então eu o obrigarei, se for necessário, a recompensar-te, meu marido, por tê-lo feito de tolo, por NOS fazer de tolo.

Um novo silêncio, no qual o deus ferreiro analisava a as variáveis e circunstâncias, remexendo a muda entre seus dedos.

- Mesmo que eu entre no Tártaro, não há como acessar o submundo a partir dele, é uma grande prisão inviolável, apenas Hades e seu sucessor poderiam abrir suas portas.

- Ou alguém que tenha teu sangue – Hefesto estava prestes a rebater novamente quando entendeu onde ela queria chegar – Nada mais justo, meu marido, usar a espada que mancharam de sangue para enganar-te, para realizar tua vingança, com isso em mãos, mesmo as portas do Tártaro se abrirão para ti.

- E se os prisioneiros estiverem tentando escapar, o caos será ainda maior – Concluiu o ferreiro.

- Exatamente. – E a vontade de beijá-lo surgiu novamente quando um sorriso torto se formou na face do forte homem, um olhar vingativo e sedento, tão similares ao de seu irmão mais velho que chegava a ser doloroso.

Quantas vezes se viu mergulhada naqueles olhos, imaginando que as mãos que a tocavam pertenciam a Ares.

- Agora tudo que tu precisas, meu amor – As palavras soavam amargas em sua mente depois de seu último pensamento – É de uma razão para ir a vossa forja.

-.-

Enquanto a conversa de marido e mulher se desenrolava, havia algo mais que distraía a atenção dos demais da prisioneira e de seu julgamento em espera.

Certo deus do teatro bebia e bebia em um ritmo quase frenético, alguns murmúrios diziam que era por sentir-se ofendido por ter sua peça interrompida, outros por estar apavorado com a situação, seja como fosse, ao esvaziar uma taça particularmente cheia, seus dedos vacilaram, permitindo que o vidro escapasse e se espatifasse num som que ecoou pelo salão.

- Ooooh! Me desculpe! – Um Dionísio verdadeiramente ruborizado exclamou, balançando as mãos em sinal de desculpa. – Todo esseee suspense me deixa nervoso! Não sei quanto tempo mais posso aguentar!

- Não se passaram nem cinco minutos – Hera colocou categórica, encarando com desgosto o filho bastardo de seu marido.

- Ciiiiiiiiinco?! – Um soluço ébrio interrompeu sua frase – Eu tinha certeeezaa que minha liiinda encenação tinha sido interrompida a uma hora! Eu não sei quanto tempo eu vou suuuportar maaais!

- Como ele consegue ficar bêbado tão rápido?! – Exaltou-se Deméter com repulsa.

- Estamos falando de Dionísio. – Respondeu a imperatriz revirando os olhos, vendo completo desprezo como o deus criava mais três taças de vinhos e virava as três ao mesmo tempo goela abaixo – Simplesmente repugnante, só não é pior que seus filhos.

Ninguém realmente se surpreendeu quando a divindade meio-ctônica caiu para trás de sua cadeira, sendo agilmente segurada pelas mãos de Perseu, resmungando coisas incompreensíveis e aparentemente caindo em como alcoólico em um tempo recorde.

- Peço perdão pelas ações de meu senhor, grande imperatriz – Colocou educadamente o semideus, ajeitando com cuidado o corpo de seu deus, fazendo-o dormir esparramado sobre a mesa, em resposta a deusa suprema apenas fez um gesto de impaciente e desinteresse com a mão.

- Minha paciência se esgotou – O ato desrespeitoso do deus havia feito com que ela alcançasse seu limite – Por que esse Ómma está demorando tanto?! Ele será devidamente castigado se tardar um minuto mais.

- Minha irmã, mas tu acabaste de dizer que passou-se apenas cinco minutos – Sorriu Héstia apesar da atitude irritada contrária – Há muitas proteções em volta desse castelo, mas sinto que ele está correndo para cá o mais rápido que pode.

- Se Hermes não fosse um maldito traidor, já o teria trazido para cá. – Reclamou – Os atos dessa noite estão sendo simplesmente-

Contudo, não pôde terminar sua frase.

- APHORDITE, NÃO FAÇA ISSO!!!

Novamente os olhares se voltaram ao casal, ramos surgiam ao redor da deusa e envolveram sem qualquer cuidado os pulsos do deus ferreiro, para então lança-lo do outro lado do salão.

Todo o espaço começou a tremer quando mais e mais plantas surgiram, como brocas partindo do chão.

Numa sincronia invejável, Apolo e Arthemis já estavam de pé, cada um segurando um pesado arco e flecha em mãos, o dele era longo e dourado com raios de sol feitos de ouro adornando seu contorno, enquanto a dela reluzia em prateado e possuía o relevo de pequenas estrelas em toda a sua extensão.

Ambos começaram a destruir as emanações com tiros precisos e mortais, mais de um deus tendo que se abaixar para não ser alvo.

Perseu tomou sem dificuldade seu deus nos braços quando um dos ramos atingiu o centro da mesa, Maragdos por sua vez tomou um adormecido Rite sobre os seus, as madeixas loiras tremulando com seus movimentos rápidos.

Enorme asas de borboleta se abriram nas costas de Pisquê e ela simplesmente voou com uma graça invejável escapando de uma das plantas, isso sem deixar de beber um chá que haviam lhe servido instantes antes. Simplesmente cruzou as pernas em pleno ar como se estivesse novamente em sua mesa e seguiu sua apreciação, sem se incomodar em cruzar olhares com sua sogra.

- Minha imperatriz – Hefesto nomeou, erguendo-se e aproximando-se, sentindo as costas latejar enquanto lançava um olhar realmente raivoso a sua esposa. – Me permita ir até minha forja para que possa conseguir correntes que sobrepujem seu cosmo.

- O que está esperando?! – Sua mãe exclamou irritadíssima – Vá imediatamente, mas tenha em mente que encontrará sua esposa em PEDAÇOS quando retornar!

Engolindo em seco, ele confirmou com a cabeça e desapareceu, incapaz de notar que algo, ou alguém, o seguia.

Por sua vez, mesmo com a imperatriz dos deuses se aproximando com passos mortais, mesmo vendo como seus ramos eram queimados por Héstia e desintegrados por Deméter, destruídos pelos divinos gêmeos, esquivados pelos servos de Dionísio e Psiquê, e assombrava os deuses menores do salão, ela não desviou o olhar mordaz que dava a sua sogra.

E seguiu sem desviar o olhar, quando um feroz tapa dela seu rosto virar-se em um forte estralo.

- Se planeja que eu considere teu direito a julgamento, fique QUIETA.

-.-.-

Quando Hefesto reabriu seus olhos, demorou largos segundos até que ele pudesse se acostumar com a quase escuridão de sua forja.

Era uma caverna rustica, iluminada simplesmente pelo rio de lava que corria próximo as paredes rochosas.

Pendurados por ganchos e correntes havia todo o tipo de armas, machados, maças, espadas, lanças e arcos eram a maioria, mas também haviam outros mais rebuscados como katares amontoados em um canto.

Sobre uma enorme bigorna descansava seus principais martelos de forja, reluzindo em negro.

Seus pés foram de memória até um armário feito de ferro, o abriu com um forte ruído de metal e entre facões, foices, e martelinhos, encontrou a espada do submundo, envolta de grossas correntes cheias de selos onde se lia o nome de Zeus em grego antigo. Era uma precaução, para o caso do poder se manifestasse quando a mesma não estivesse sendo manipulada.

Isso apenas fez sua expressão já rustica franzir-se e contorcer-se mais.

“Isso jamais aconteceria” – Pensou com amargura, pegando as correntes e analisando o pouco que se via do negro metal através delas “O verdadeiro poder não está aqui”

Aphrodite estava certa, há muitos anos desconfiava já que havia sido enganado na negociação que fez com Athena, mas por mais que havia pensado a respeito não tinha conseguido descobrir como.

Afinal, havia um poder latente emanando da arma, isso era inegável, era pulsante e inebriante, podia dizer sem temer errar, que a lâmina era capaz até mesmo de matar um deus e destruir sua alma se fosse manejada da forma certa.

 Entretanto, por mais que tivesse passado as últimas duas décadas tentando extrair esse poder forjado por Hades, nunca conseguiu.

E nunca conseguiria, pois essa energia provinha simplesmente do sangue do filho mais velho de Kronos, conseguir extraí-la era tão possível quanto tentar arrancar as estrelas do céu.

Aquele cavaleiro o havia feito de idiota! Ele, o deus da forja, enganado por um simples adolescente.

Não, Hécate estava envolvida nisso também, sem duvida a ideia havia partido dela, era o que fazia mais sentido, afinal, ela que havia recebido como pagamento de Athena o sangue de Hades.

“- Meu acordo com as deusas do destino foi simplesmente não destruir a espada. O que será dela depois nunca foi acordado –” Recordava-se da explicação da imperatriz, frente a surpresa da bruxa ao negociar a lendária arma em troca da reparação das armaduras de ouro que haviam sido reduzidas a pó na batalha realizada nos Campos Elísios “-Acredito que te interessa. A única arma divina que não foi forjada por tuas mãos, a concentração mais pura do poder de meu tio Hades.”

“- Eu aceito!!” – Recordava-se de sua própria voz em êxtase com a proposta, não precisava sequer pensar duas vezes antes de aceita-la.

Pois sabia que a espada, além de possuir uma força única, se tratava também de um dos pilares que sustentava a existência do mundo inferior, na época chegou até mesmo a se perguntar se Athena sabia disso, mas acabou chegando à conclusão de que ela simplesmente não se importava.

Hades havia sido seu inimigo mais terrível por milênios, provavelmente a destruição de seu reino completamente apenas traria gozo a imperatriz da Terra.

Desde então seu objetivo era simples, se empenhou em extrair a essência das trevas presente naquela lâmina, assim finalmente conseguia poder suficiente para se vingar e se livrar de uma vez por todas de Ares, que a milênios rondava ao redor de sua esposa.

Pretendia cortá-lo em pedaços e oferecer sua carne fresca aos titãs, tinha certeza que os prisioneiros do Tártaro iriam adorar exterminar o filho de Zeus, a intervenção de Poseidon o salvaria dessa vez, sua morte seria lenta e cruel.

Nunca havia expressado seu plano a Aphrodite, por razões óbvias, mesmo em suas brigas mais salgadas nas últimas décadas por ele estar tão obcecado em seu objetivo, o que sem duvida tinha sido uma decisão acertada.

A deusa que simplesmente necessitava ser adorada tanto quanto um humano precisa respirar, havia conseguido o metal que faltava para que ele pudesse forjar o destino de seu mais querido amante, simplesmente porque sentia-se devastada por perder a atenção dos principais homens que a desejavam.

Sabia muito bem que Ares a havia enxotado de sua vida quase há tanto tempo quanto trabalhava na negra lâmina, mas isso não mudava os milênios que o casal se esforçou em humilhá-lo.

Amaldiçoar a deusa Harmonia, que no começo foi enganado a pensar que era sua própria filha, e toda sua linhagem não era o bastante, Ares pagaria, e Aphrodite saberia que a queda do príncipe do Olimpo seria essencialmente sua culpa.

Um sorriso turvo se formou em sua face enquanto seguia pelo rio de lava que contornava sua forja, até parar ao lado de uma surreal cachoeira feita de magma que desaparecia num enorme poço completamente submergido em escuridão, impossibilitando que sua profundidade fosse medida.

Morria por saber o que aconteceria a seguir, se Aphrodite o odiaria pela eternidade pela execução, ou se o amaria por ter superado em força e habilidade o grande deus da guerra. Considerava sua esposa tão insana e desequilibrada que sinceramente não se surpreenderia se fosse a segunda opção.

Desenrolou parte das correntes que selavam a espada, os selos com o nome de Zeus se desfazendo ao serem arrancados, queimando no ar pelo ar quente no vulcão, então com pelo menos um metro de corrente solto, o usou para amarar firmemente a espada contra suas costas, cruzando as correntes diagonalmente em seu peito.

Com ela firmemente presa, estendeu as fortes e calejadas mãos para outras correntes, ainda mais grossas, que desprendiam do teto e as puxou com toda a sua força, até a altura de seus joelhos.

Com um rangido ensurdecedor, uma placa de ferro vulgarmente fundidas juntas, e presas por vãos nas quatro pontas desceu, uma antiga plataforma que servia de ascensor para chegar as profundezas do vulcão.

Puxou para si um dos machados disponíveis pendurados no teto cavernoso, e apoiando-se em sua base de ferro rustico o usou de apoio para sua perna ruim, como uma espécie de muleta. Então esticou sua outra mão, convocando assim sua armadura divina. Ela era rustica, sem muitos detalhes que trabalhavam sua aparência, ao invés disso pareciam ser uma sucessão de placas umas sobre as outras brilhavam em um vermelho tão intenso que parecia que as chamas do próprio Etna aos seus pés estava agora entrando em erupção por seu corpo, em suas costas haviam algo similar a asas, mas que eram na verdade dois enormes machados, ainda maiores do que aquele que usava de apoio, prontos para serem usados para uma batalha feroz se fosse necessário.* Não obstante, seu elmo possuía duas pontas que subiam retorcidas, facilmente capazes de matar alguém se por elas perfuradas, como um verdadeiro touro.

Obedecendo um comando mudo, uma placa de cristal desceu sobre sua face, como se fosse uma máscara de solda, e assim, sem qualquer leveza ou graça, pulou na plataforma que balançou violentamente frente ao embarque repentino, e sem nem mesmo esperar que ela se estabilizasse, começou a puxar duas correntes em movimentos circulares, e com um rangido forte e profundo a estrutura começou a descer.

Com toda a força que possuía, o elevador descia a uma velocidade que superava em muito qualquer equipamento humano que fizesse o mesmo, ainda assim, se seguisse dessa forma poderia levar dias até chegar ao Tártaro, e definitivamente não possuía todo esse tempo. Por isso, seu plano era percorrer apenas parte do caminho assim, e se lançaria em queda livre todo o resto do caminho até que atingisse a grande prisão.

Só precisava seguir a corrente de lava, sendo imune ao magma e capaz de nadar por ele como Poseidon percorria os mares, era uma questão de simplesmente mergulhar em uma das fontes vulcânicas, tendo o cuidado de evitar o Flegetonte, pois o rio de fogo danificaria sua alma com muito mais crueldade do que qualquer queda poderia ameaçar seu corpo.

A passagem era muito alta para que os titãs, ou mesmo os prisioneiros comuns pudessem usar para escapar, além disso, até onde tinha conhecimento Héstia e ele mesmo eram os únicos deuses capazes de percorrer um vulcão assim, e a deusa virgem, por causa de rituais antigos, jamais poderia pisar no reino inferior. Seu tio Hades sempre confiou em si o suficiente para nunca fechar a passagem entre o Etna e o Tártaro, pois era justamente na base do monte, dentro de seu vulcão, o único lugar mais próximo a superfície que o negro metal mitológico, o Adamantino, podia ser encontrado, o qual era a base para a maioria de suas forjas.

Nunca deu motivos para o imperador duvidar de si, e tinha certeza que o antigo monarca jamais sequer ponderou a possibilidade de seu sobrinho invadir seu reino usando-se dessa passagem-de-confiança, afinal, o que poderia levar alguém a invadir a prisão inviolável, se era impossível ajudar qualquer criminoso a escapar pela passagem de lava?

No fundo, sentia-se mal por seu tio que nunca deu motivos para ser odiado, mas apoiava-se no pensamento de que aquele que herdou seu trono era tão digno dele quanto Ares era do trono de Zeus, o “cavaleiro de Athena” tinha sido capaz de enganar duas divindades sem qualquer escrúpulo para conseguir seu posto, tomando para si o poder da espada do submundo, como lhe foi prometido, e mostrando a todo o panteão o quão repugnante era o ser que se atreveu a assumir o posto de um dos três grandes, era a maior honra a memória de Hades que conseguia pensar.

Já havia avançado o suficiente para ser incapaz de ver a saída que levava a sua forja, sendo apenas si mesmo, e a cachoeira de lava a poucos metros de distância as únicas coisas visíveis nesse túnel que parecia eterno.

E então começou a ver, preso as paredes feitas de rocha vulcânica e partes de Adamantino, o que indicava que estava a pelo menos um terço do caminho para a pior prisão do mundo.

Tifão.

Ele era uma mistura de homem e besta, preso as rochas e fundindo-se com elas através de milhares e milhares de correntes, o monstro era o maior e mais forte de todos os filhos de Gaia. Ele tinha a forma humana até as coxas, tão grandes que se estendia por todo o oco da montanha até o começo do Tártaro, se pudesse sair novamente para a superfície semear o caos e a discórdia, sem dúvida, com os pés firmes nas terras italianas, sua cabeça seria capaz de alcançar as estrelas. Uma de suas mãos se estendia para o oeste, enquanto a outra para o leste, presas a elas estavam cem cabeças de serpentes, todas firmemente acorrentadas e cujos olhos, diferente de outrora, pareciam cegos. Das coxas para baixo ele tinha grandes espirais de víboras no lugar de suas pernas, seu corpo era alado, e seu cabelo escuro como o ébano, pendia para baixo tampando boa parte de suas feições, estava embaraçado e sujo. Em seus olhos faiscava fogo, mesmo que estivesse adormecido, o estava de olhos bem abertos, esperando o dia que por fim seria libertado.

Durante a derradeira e épica luta do imperador dos céus contra o inimigo dos deuses, o mesmo havia sido reduzido a uma massa carbonizada e sangrenta, vitima dos poderosos raios do deus supremo, e por tal tentou escapar pelo mar, deixando assim Poseidon furiosíssimo, desafiado por tamanha afronta, o senhor das águas agarrou o monstro pelos cabelos, e carregou-o para fora do oceano, sem se deixar arrastar ou mover pelas ondas criadas pelos membros de serpente, levou-o assim até a Sicília, onde seu irmão Zeus lançou sobre sua cabeça uma montanha que explodiu ao abater a criatura, criando assim o vulcão do Etna.

 Um frio percorreu toda a espinha do rustico deus da forja, há milênios havia sido incumbido por Zeus a vigiar a saída do Etna. Hades havia se recusado a participar da batalha contra o monstro, por sentir-se traído por seus irmãos pela divisa dos reinos, o senhor dos raios nunca pôde castiga-lo por tal afronta, pois ainda precisava se seu poder para mantê-lo preso ao Etna, pois Tifão era grande demais para alojar-se no Tártaro.

Essa única desobediência de seu tio tinha lhe custado o dever de ser o guardião do monstro em seu lugar, mas não podia odiá-lo por isso, havia conseguido a forja perfeita e suprimento provavelmente infinito de adamantino em troca, era um negócio equitativo ao seu ver. Ademais, mesmo que o inimigo dos deuses o assombrasse, eram raras as vezes, como essa, em que ficava frente a frente com ele para realmente ser recordado que era seu guardião.

Ao redor do corpo da criatura, era possível ver pequenas cavernas do tamanho de um homem adulto, que, no entanto, comparado com Tifão pareciam pequenos buracos feitos com agulha. Por um desses tuneis, por volta de vinte e cinco aos atrás, Mei havia adentrado. Por sorte, havia conseguido parar o jovem que era pouco mais que uma criança na época, antes que ele pudesse romper o selo de Tifão, mesmo que seu corpo continuasse unido a montanha, isso provavelmente levaria o menino a ser possuído pelo monstro, e o destino que teria graças a isso sem dúvida seria muito pior ao que tem sendo serviçal dos deuses como Ómma.

Naquele dia, contudo, o garoto havia conseguido liberar, em sua inconsequência, a consciência do terrível Ládon. Com essa lembrança em mente, buscou uma das crateras ao direito do gigante ser, que estava vazia, mas possuía a forma de uma imensa serpente-dragão, que facilmente possuía sete metros de comprimento, e mesmo assim ainda era menor do que a cintura de seu pai monstruoso.

Ladón, o antigo guardião do jardim das Hespérides e dos pomos de ouro, possuía cem cabeças de serpente, ao ser morto por Herácles, sua alma, presa a sua cabeça central, tinha sido levado por Hera, ao céu estrelado em agradecimento ao seu esforço, formando assim a constelação de Dragão, enquanto sua consciência havia sido colocado em outra, presa no Etna com seu pai até a intromissão de Mei.

As noventa e oito cabeças restante haviam se espalhado pelo mundo, e diferente de como havia acontecido com os dentes do repugnante dragão ismeniano, filho de Ares, que ao serem plantadas por Cadmo haviam gerado os guerreiros Espartos, primeiros habitantes de Tebas, quando os restos mortais das demais cabeças de Ladón tocaram a Terra dos homens, germinou, ao invés de homens, todos os demais dragões do mundo.

 Os deuses costumavam dizer que, por causa disso, mesmo Ládon não sendo o primeiro, sem dúvida seria o último dragão da Terra.

 For força do destino ou não, como Mei, que o havia libertado, Hera decidiu, a pedido de Héstia, dar outra oportunidade ao seu querido dragão protetor, transformando-o igualmente em um Ómma ao reunir novamente sua alma e consciência, isso cerca de vinte anos atrás.

Deixou todas essas memórias mitológicas para trás quando percebeu atrás de si o segundo sinal de que havia chegado ao ponto certo para saltar, a cachoeira de lava começava a se dividir em dois, sendo separada por uma das serpentes-pernas de Tifão, de um lado a lava seguia caindo em direção ao vazio, mas do outro ela parecia estar subindo como uma queda-d'água invertida, sinal de que estava sendo influenciada pelas chamas do Flegetonte, que fluíam para cima, e ao tocar nas pernas da enorme criatura-viva condenava sua alma ao sofrimento, impedindo-o de se libertar.

Sem hesitar então, posicionou-se frente ao magma que percorria o profundo do Etna e jogou-se juntando-se a sua queda.

-.-.-.-

- Eu não estou entendendo mais nada! – June exclamou verdadeiramente escandalizada olhando de um para o outro – Você... – Apontou primeiro para o deus de pele morena – Você realmente é Ares, o deus da guerra?!

- Sim.

- Isso é tudo que tem a dizer sobre isso?!

- Sim.

June apenas o encarou com descrença, enquanto o deus dava de ombros.

- Foi por isso que eu não me apresentei antes usando meu verdadeiro nome, não é exatamente convidativo – Explicou com simpleza.

A postura tranquila daquele que deveria ser o mais sanguinário dos deuses a deixou ainda mais incerta, e ou ele era capaz de ler pensamentos, ou estava deixando isso muito óbvio, porque ele logo emendou.

- Seja lá o que tu já ouviste falar sobre mim, provavelmente é verdade – Colocou com simpleza.

- O deus sanguinário matador de homens e destruir de cidades? – Questionou assumindo aos poucos uma postura de batalha, por mais que fizesse décadas que não entrava realmente em um enfrentamento que não envolvesse vários homens de terno e egos executivos.

- Faz séculos que eu não destruo uma cidade, mas sim, a menos que o vilarejo que rodeia o santuário de Athena conte como uma cidade, então deve fazer uns trezentos anos – Seguiu com sua postura tranquila – Na última guerra eu não tive a oportunidade.

- Oportunidade?! – Repetiu exasperada.

- Sim – Seguiu o mais velho cruzando os braços, não vendo realmente o problema – O vilarejo foi evacuado, então apenas o saqueamos, é assim que as guerras funcionam, os soldados precisam ser pagos de alguma forma, e a pilhagem sempre foi um bom incentivo.

- Hmmm, Ares, não está fazendo uma boa impressão – Perséfone tentou interceder, sua mente completamente cheia de dúvidas para permitir que esse desencontro se estendesse – Olá, June – Disse voltando-se diretamente à jovem, que não desviou o olhar do deus, mas um aceno confirmou que estava a escutando - É a primeira vez que podemos falar assim, tão diretamente, por mais que eu tentasse te alcançar em seus sonhos, eu só podia assisti-los e sussurrar pequenos conselhos para ti, esperando que eles te ajudassem de algum modo em sua vida e em sua dor, mas agora eu realmente, REALMENTE, preciso entender o que aconteceu comigo, e porque estou aqui em primeiro lugar. E no momento, meu irmão é o único que pode me dar essas respostas, então confie nele, ele pode ser terrível, mas é um aliado formidável.

Isso pareceu desconcertar completamente a jovem, que se voltou em completa descrença para a imperatriz.

- Eu nem sei que é você em primeiro lugar, uma voz na minha cabeça, uma deusa ou um monstro...- Impôs, contendo sua vontade de abraçar-se a si mesmo. – Nada disso faz o menor sentido!

- Ela é...Algo como um fragmento de alma dentro de ti – A resposta partiu do guerreiro, fazendo ambas as beldades se voltarem a ele – Ao menos essa é a teoria de meu filho Eros, ele é um garoto inteligente, então ele deve estar certo, sem mencionar que agora todo o ESTRAGO que houve no meu templo faz muito sentido, árvores retorcidas dos Asfodelos nascendo do nada é bem digno de ti, Perséfone.    

- Apenas um fragmento?! – A imponente deusa questionou aflita, aos poucos perdendo a compostura. – Isso teria acontecido apenas se...Por Nix!

- O quê? Teria acontecido se o quê?! – Inqueriu a ex-amazona de forma bem semelhante a como a divindade havia feito instantes antes, o que não passou despercebido pelo senhor da guerra.

- Tu estavas ouvindo nossa conversa? – O senhor da guerra questionou, ao que a loiro se limitou a confirmar, sem deixar de vê-lo com desconfiança e uma pisca de medo – Na primeira Guerra Santa, Perséfone foi atingida por engano tanto por um golpe de Pégaso, usando-se do báculo de Athena, como do meu Tio Hades usando sua espada. Um golpe de uma arma divina pode destruir um corpo imortal, foi o que aconteceu com Poseidon, mas também é capaz de despedaçar uma alma, mesmo que divina.

Um som agudo fez June sobressaltar-se, apenas para perceber que a mulher que se dizia imperatriz caiu de joelhos frente a essa constatação.

- N-não, isso não pode – Sua voz era fraca, e lágrimas começaram a surcar sua face, por reflexo a ex amazona pensou em consolá-la, mas seu próprio coração se apertou, como se as dores que a suposta deusa sentia também eram suas.

Qual foi então sua surpresa quando Ares aproximou-se dela, sentando-se ao seu lado, e no segundo seguinte a ruiva havia se lançado novamente nos braços contrários, que dessa vez a tomaram, permitindo que chorasse sobre seu ombro.

- Eu não posso acreditar! Isso...Isso...- Sua voz era embargada, e toda a imagem de força e autoridade que havia mostrado antes começava a ruir. – Pode ter realmente...?

- ...Eu estava lá, lembro-me agora – A voz do deus da guerra havia se tornado pesada. – É o mais óbvio de ter acontecido, lembro-me do choque na face de todos, como tio Hades reagiu...- Não completou, sentindo como o corpo dela tremia, e de forma completamente desajeitada e pouquíssimo natural tentou dar tapinhas nas costas da mais jovem em sinal de apoio. -...E então Hécate...HÉCATE! Sim, ela fez alguma coisa, ela e os deuses gêmeos, eles devem ter apagado a ti nesse momento e...E depois – Levou a mão que não a apoiava a sua própria cabeça -...Thanatos me levou ao Olimpo. E as portas do submundo foram fechadas para qualquer outro deus sem que fosse considerado uma traição ao imperador, nem mesmo Hermes tinha mais autorização de pisar naquelas Terras.

- Por que Hécate faria algo assim?! Ela, Hypnos e Thanatos tinham como missão maior proteger o submundo! Como poderiam fazer isso apagando a existência da imperatriz da mente de todos?! – Sua voz falhava cada vez mais.

- Perséfone – Sua voz era tão séria que a deusa até mesmo se afastou para encarar os olhos franzidos de seu meio-irmão – Meu tio te amava acima de todas as coisas, sei que não é agradável ouvir isso nessa conjuntura, mas eu não sou um bom mentiroso, nem do tipo que diz coisas amavelmente-falsas para que os demais se sintam melhor. O amor pode levar mesmo o mais forte titã, deus, deusa, homem ou mulher, a mais completa ruína. – Um longo e pesado suspiro escapou de seus lábios – Como Kronos não duvidou em nenhum momento no amor e devoção de Reia a ele, confiante de que lhe entregava cada um de seus filhos para ser devorado. Como a perda da primeira esposa fez meu tio Poseidon enlouquecer completamente, e mesmo... – Engoliu em seco - ...Mesmo eu me encaixo nessa posição, deuses, eu não sei o que faria se Aphrodite simplesmente desaparecesse na minha frente, não sei se eu suportaria, apesar de tudo, aquela mulher tem meu coração completamente em sua mão. Mas se tio Hades perdesse o controle...

- ...Tudo que ele construiu desde a titanomaquia desabaria – Completou ela, começando a se afastar, como se finalmente percebendo sua completa perda de postura – Era eu, ou o reino... Hades sempre me disse que seu império vinha acima de tudo, mesmo de mim. Eu sempre soube que ele estava mentindo, mas...Mas... – Então tampou sua face com ambas as mãos, suas lágrimas voltando a correr, mas dessa vez, não buscou o apoio contrário para recebe-las. – Oh...Hades, meu Hades...

Ares então voltou seu olhar novamente para June, que apenas assistia, tentando juntar as peças desse complexo e insano quebra cabeças.

- Eu não sou um especialista, mas realizo possessões há alguns milênios. Vós dois, na verdade, são parecidas demais uma com a outra, para ser mera casualidade tu estar no corpo dessa June.

- O que quer dizer?! – Questionou a jovem mortal na defensiva.

- Tu me recordas a Koré, o nome que Perséfone levava quando vivia no Olimpo, nessa época ela era como uma flor de Narciso, linda e impecável, que, no entanto, só conhecia o que havia aos seus pés. O que havia além da base do Olimpo era um mundo completamente desconhecido para si, como uma completa ignorante.

- Está me dizendo que eu pareço ignorante?! – Exaltou-se, e sentiu-se verdadeiramente vingada quando Perséfone deu um soco na cabeça dele.

- ...Tu tens que fazer melhor do que isso para realmente me machucar – Ironizou, recebendo um novo golpe, dessa vez em seu quadril – Sério? Fazendo sexo eu já me machuquei mais do que isso, uma vez Aphordite foi capaz de quebrar minha espinha, sem mencionar quando ela resolvia usar um chicote, aí as coisas ficavam verdadeiramente violentas, bem mais que essa sua raivazinha aí, essa não é o suficiente nem para matar minha fome.

E num movimento ligeiro, curvou seu corpo e rolou para trás antes mesmo que a deusa pudesse manifestar sua foice novamente.

- ...O que eu quero dizer – Disse levantando-se e recobrando sua distância segura – É que vós duas podem ser dois pedaços da mesma alma, simples assim. Quero dizer, é coincidência demais o sucessor do meu tio no trono ter escolhido justo a ti – Apontou para June – Como sua imperatriz, tu que tens Perséfone, a antiga imperatriz dos mortos vivendo em tua mente.

A jovem loira mal teve tempo de corar, e a expressão da deusa havia se tornado completamente lívida.

- COMO ASSIM SUCESSOR DO MEU HADES?! – Berrou, erguendo-se imediatamente e alcançando Ares novamente, tomando seus ombros com violência, ficando suas afiadas unhas na carne do deus mais velho. – DO QUE ESTÁ FALANDO?!

- Hades foi destruído, há vinte anos – A resposta partiu de June, sua constatação soando menos contente do que geralmente soava quando lembrava desse feito – A deusa Athena o derrotou.

Primeiro houve o silêncio, onde sequer respirações eram escutadas nesse mundo ilusório proveniente da subconsciência. E então os olhos de Perséfone se tornaram brancos e tudo que June sabia era que no segundo seguinte, sem saber ter tido tempo de ver quando ou como, estava nos braços de Ares, que desviava com uma agilidade simplesmente ridícula de vários ramos retorcidos e secos que brotavam do chão com a clara intenção de matá-los.

- Parabéns – Colocou o deus com claro sarcasmo, girando com os pés, quase como se dançasse, para fugir de três ramos que focavam a cabeça de ambos – Tu és pior nisso do que eu. Tinha que falar para ela de forma tão direta?!

- Me ponha no chão! – Por mais que soasse idiota e verdadeiramente suicida, preferia ser empalada viva do que ser ajudada pelo sanguinário deus da guerra – AGORA!

- Viu? – Perguntou retoricamente abaixando-se para evitar um soco -  É o que eu disse, vós duas sois muito parecidas, ela apenas é mais poderosa e megalomaníaca, mas de resto ambas têm o mesmo jeito petulante e orgulhoso de ser da tia Deméter. Por isso eu simpatizei contigo tão rápido – Ela piscou surpresa frente a informação – Quando conheci Koré, ela não mostrou medo por mim, apenas curiosidade e vontade de aprender, como tu naquela ilha, claro, ela não tinha um desejo de morte como tu, mas em suma foi bem parecido, claro, nunca tive que ensiná-la a plantar, ela é a deusa da primavera afinal, e eu sou um deus menor nessa área, porém na segunda vez que nos vimos ao menos consegui impressioná-la quando trouxe um Narciso comigo, e tu estavas justamente tentando plantar um Narciso, coincidências demais para meu gosto, quando Moros traz jogos atrás sempre quer dizer alguma coisa.

Entretida com o que ele revelava, não percebeu o quanto haviam se afastado, Perséfone agora era um mero borrão a distância quando Ares a colocou no chão sem qualquer cuidado como se esperasse que, como um gato, simplesmente saltasse com graça sobre a terra morta, entretanto, soava mais como se ele não estivesse acostumado a carregar alguém em seus braços assim, do que meramente uma intenção de machucá-la, por sorte foi rápida o suficiente para jogar as mãos para frente para deter sua queda brusca, conseguindo manter minimamente sua dignidade. 

- Eu vou lá acalmá-la – Disse observando a direção da emanação.

- Eu não posso ajudar? – Não podia evitar de se sentir responsável, novamente as dores da “deusa” ressoavam em seu interior, numa dor ecoante que a fazia se lembrar de quando soube que Shun havia falecido, durante seu próprio enterro.

-  Não dizer mais nada idiota será de grande ajuda – Frente a sua cara inconformada o deus sorriu, um sorriso burlesco e divertido – Veja! Até a mesma cara ultrajada, Daemons, não pode ser coisa da minha cabeça, a alma de vós foste dividida, és tu Koré enquanto ela é Perséfone, é a única explicação que faz sentido em minha cabeça.

- Isso é impossível! – Tentou defender – Eu saberia se fosse uma deusa!

- Eu, meu filho, e outros deuses te reconhecemos assim que te vimos, de algum modo, mas Eros não me disse nada de tu reconhecer alguém, claramente não tinha como tu recordar.

- Eu só tenho um rosto comum, usar isso para assumir que eu sou uma divindade... – Suas palavras, contudo, não ganharam muita firmeza, recordando como Soleil e mesmo outro cavaleiro de prata também a haviam achado familiar.

A seguinte “argumentação” de seu irmão a tirou dessa linha de raciocínio.

- Humildade? Acho que nunca vi Koré usando isso, isso é novidade.

- Eu não sou Koré, ou Perséfone! Eu sou JUNE! – Exclamou irritada com a certeza que o outro possuía em sua voz, como se soubesse muito mais do ela mesma sobre sua própria vida.

Por um momento não se importou quem ele era, ou o que era capaz de fazer em comparação a ela, uma simples civil há vinte anos. Tudo que queria fazer nesse momento, por mais infantil que soasse, era simplesmente fazê-lo calar a boca.

E para seu completo assombro, ramos de plantas também surgiram ao seu redor, como para defendê-la, porém, ao contrário daqueles manifestados por Perséfone, eram troncos que emanavam vida de cada um de seus poros, alguns até coroados com orquídeas, que se entrelaçavam entre seus galhos.

O senhor da guerra desviou dos golpes sem qualquer dificuldade, executando alguns movimentos quase circenses, um sorriso de completa e marota vitória pintando seus lábios, um irritante sorriso digno de um irmão mais velho que acabava de ganhar uma discussão contra sua irmã caçula, o que apenas fazia a executiva se irritar mais contra postura petulante contrária.

E essa analogia sobre irmandade, June notava com pesar, não podia estar mais acertada no caótico cenário em que estavam agora.

-...Eu...Sou uma deusa? Como isso pode sequer ser possível...! – Ponderava, encarando suas próprias mãos, vendo que sem dizer mais nada Ares partia a passos rápidos em direção a sua “contraparte” - ...Eu era a imperatriz do submundo?! ESPOSA de Hades?!

Não sabia dizer o que lhe causava mais espanto.

Provavelmente a parte do casamento.

Levou algum tempo tentando colocar seus pensamentos em ordem, mas não parecia estar funcionando, era simplesmente coisas demais para que pudesse processar conscientemente.

Uma parte dela aparentemente era uma deusa, repetia uma e outra vez, a deusa da primavera, uma divindade que aparentemente podia manipular plantas, como Afrodite de Peixes!

Sua vida parecia empenhada em descobrir novas formas de burlar-se dela. Qual seria o próximo passo? Descobrir que tinha sido registrada na data errada e que na verdade era do signo de escorpião?!

Se forçou para afastar esses pensamentos de sua mente, havia dado sua palavra a Soleil de que perdoaria Milo assim que o visse, e provavelmente faria o mesmo por Afrodite, dar um ponto final definitivo a essa parte sombria de seu passado.

E quando finalmente pensou que deixou as trevas em seu coração para trás, um outro passado, aparentemente tão trágico quanto insano, bateu as portas de sua vida sob a figura de “Perséfone”. 

Essa deusa era casada com Hades, mas de alguma forma Hécate e os deuses gêmeos a tinham apagado da memória de todos depois que a alma dela foi...Destruída ou partida, algo do gênero, após sofreu um grave ferimento ao tentar interceder em um confronto divino.

E de alguma forma, elas estavam aqui agora, juntas, enquanto ela estava irremediavelmente apaixonada pelo mesmíssimo sucessor de Hades. Ares tinha razão, e só podia pensar na dor que essas palavras podiam causar a Saori se as ouvisse, mas ele realmente tinha.

 Tudo isso era coincidência demais.

Havia algo mais faltando, alguma peça que não estavam vendo, para completar esse estranho quebra-cabeça.

Quando os leves tremores na terra pararam, June decidiu caminhar novamente até a dupla, decidida a chegar em algum parecer de uma vez por todos, ao invés de permitir que ambos discutissem apenas entre eles o que estava acontecendo.

Esta também era sua vida, essa era sua mente.

Os encontrou não tão longe como pensava, Perséfone estava novamente no chão, novamente sendo abraçada pelo mais velho, que dessa vez parecia estar fazendo-o de forma mais apropriada, ainda de forma desajeitada com os braços posicionados de forma pouco natural, mas ao menos o guerreiro estava tentando, e realmente teve que lutar que para não sorrir para a cena, forçando-se uma e outra vez a lembrança de que Ares era um dos deuses mais perigosos de todo o panteão, e que não importa que podia chegar a se comportar como um irmão irritante, não podia realmente baixar a guarda para ele.

Ao se aproximar, começou a conseguir entreouvir a conversa que estavam tento.

-...Eu simplesmente não posso aceitar, não posso acreditar, que algo assim aconteceu. Meu Hades, Ares, meu Hades não era assim, ele era justo, calmo, completamente avesso a guerra, por Nix! Justamente por ser tão brando que precisou de Minos, Radamanthys e Aiacos para presidir os julgamentos. Ele sabia ser severo, mas acima de tudo era imparcial, o chamavam de “O Grande Anfitrião”, de “Aquele que dá bons conselhos”... Eu não consigo, não posso imaginá-lo simplesmente entrando em guerras cíclicas com Athena assim! Tentando exterminar a raça humana?! MEU HADES?! – Mesmo que tivesse o rosto oculto no ombro de seu irmão mais velho, era claro por seu tom embaçado que estava em franco pranto – Não, isso não pode ser verdade, ele não pode ter se tornado...Como seus irmãos.

- Olha minha irmã – Respondeu, começando a afastá-la o mais devagar que podia, tentando encará-la em seus olhos. – Meus tios teriam que piorar muito para serem como Zeus. Ao menos eles causavam genocídios com a ideia de renovar a humanidade, Zeus fazia isso porque não o convidaram para jantar*. E francamente, eu não tenho qualquer vontade de defender a raça dos mortais para julgá-los como corretos ou errados em suas ações, eles já estão prestes a se destruir de qualquer forma, meus tios apenas tentavam acelerar o processo.

- O que quer dizer? – Por um segundo Ares pensou que a pergunta tinha vindo de Perséfone, mas logo inclinou como podia seu pescoço para trás para ver que se tratava de June, mesmo suas vozes soavam parecidas, embora a da imperatriz fosse sem dúvida mais demandante.

- Eu posso sentir em meus ossos cada guerra e confronto que acontecem na Terra e em outros planos, claro, quando não há barreiras divinas envolvidas – Respondeu com simpleza – Não há um dia que os homens não peguem em armas, porém, por mais que eu não entenda mais os armamentos mortais, sei que houve duas grandes guerras que mataram milhares deles, e que se algo dessa magnitude acontecer de novo, eu duvido que haverá sobreviventes.

- Você quer dizer, uma terceira guerra mundial? – Engoliu em seco.

- Eu não sei como os homens a chamam – Falou com simpleza, como se não estivessem discutindo a extinção de toda uma raça – Parece um nome interessante, mas eu não diria que só houve duas guerras assim que envolveram o mundo todo, quando os gregos e os Persas lutaram, por exemplo – Um sorriso retorcido tomou sua face, fazendo um frio percorrer a espinha de June – Aquilo sem dúvida foi mundial, envolvia a parte mais habitada do mundo, ao menos. Porém, respondendo sua pergunta – Então seus olhos ficaram amarelos vivos, para então serem fechados, como se ele estivesse meditando – Não, eu não posso, as guerras dependem mais de palavras do que de ações hoje em dia, e as palavras são sem dúvidas mais imprevisíveis do que o trajeto de uma flecha. Pode acontecer a qualquer instante, amanhã, daqui cinco anos, dez, cem anos. – Então seus olhos abriram de chofre, voltando-se para sua meia irmã – As armas humanas atuais matam seus inimigos e aliados, infectam a terra e destroem o solo, isso é tão estúpido, por isso eu não posso apontar meus tios como errados. Muito embora eu não iria tão longe quanto eles, até porque, eu não sou capaz de criar novos homens e a Terra seria chata sem eles.

- Esse é o seu motivo de não tentar destruir a humanidade como eles?! – Colocou a ex amazona em completo choque – Por que a Terra seria chata?!

Ares deu de ombros.

- Eu sou um homem simples. Possivelmente os conflitos divinos acabem essa noite, os homens seriam tudo que eu teria para manter essa parte de mim viva, se não seria como pedir para Poseidon viver sem água. Simplesmente incompleto.

- Mesmo que os humanos tenham se tornado tudo isso, Hades nunca foi a favor de matá-los diretamente – Perséfone voltou a falar, afastando-se ligeiramente do agarre contrário que parecia aliviado com tal ato. – Era justamente por isso que tu eras meu campeão, Ares.

- O quê? – June questionou, vendo de um para o outro.

- Eu caçava as pessoas que davam muita dor de cabeça ao mundo dos mortos e as matava, algo como um mercenário – Resumiu o deus da guerra, virando o corpo de modo que pudesse ver ambas as mulheres enquanto falavam– Depois que eu capturei Sísifo de Corinto e matei Adonis, eu acabei sendo chamado para outros serviço, eu não sou oficialmente o deus da vingança, mas sou filho de Hera, o que é quase a mesma coisa. E como os ctônicos nãos costumavam forçar a morte, eu dava literalmente a foiçada final. – E lá estava novamente, aquele sorriso perturbador e sádico ilustrando seus dentes brancos, então simplesmente sumiu, quando uma expressão de compreensão encheu sua face, voltando-se para sua meia-irmã – Agora eu me lembro porque Adonis foi expulso do submundo!

Isso imediatamente fez a imperatriz do submundo ruborizar-se violentamente.

- Tu me convocaste para matá-lo, por que tinha se apaixonado por ele! Sim, sim, foi tu que me disseste que Aphrodite o estava amando mais do que os outros, eu fiquei furioso e o matei.

- Não coloque as coisas assim de forma tão fácil. – Abraçou a si mesma – Eu só...Eu estava irritada com Hades, muito, meus seis meses com ele estavam acabando e mal tínhamos passado uma semana juntos, ele simplesmente estava ocupado demais com o submundo, e na época eu ainda não sabia o suficiente para ajudá-lo, eu me sentia abandonada e sozinha, eu já passava metade do meu ano com minha mãe em um pedestal intocável, não queria ter que passar pelo mesmo em meu próprio reino. Eu sei que soa egoísta, mas eu só queria uma companhia que olhasse para mim como mulher, não como imperatriz ou filha de Deméter, apenas mulher. – Ela suspirou, longa e profundamente – Adonis me dava isso, mas ao mesmo tempo não, e o pior de tudo era que Hades não parecia se importar minimamente com a presença dele do meu lado o tempo todo, eu só queria que ele tivesse um pouco de ciúmes, um único ato de fúria que demostrava que ele se importava com eu descaradamente tentando substituí-lo, mas as vezes ele era só...Tão...Estoico! – Exclamou, apertando as mãos com força - No fim, Adonis realmente amava Aphrodite, e ele apenas gostava de estar comigo, eu era apenas a substituta para ele. Não o considero realmente meu amante, ele era muito jovem e nunca compartíamos muito mais do que palavras e tempo juntos, ele apenas estava lá comigo quando Hades não, mas eu não tinha seu coração  – Então um pequeno sorriso melancólico se formou em sua face – Foi apenas quando Hades tentou trazer Leuce, uma ninfa mortal, para o submundo e fazê-la “o seu Adonis” que eu percebi o quanto ele estava com ciúmes e simplesmente não dizia ou demonstrava nada porque era um idiota aprisionando suas próprias emoções com medo que qualquer uma delas pudesse abrir as portas do Tártaro em algum momento, mas é claro que ele não tinha me contato isso até então.

Voltou a vista de ambos, June não sabia como processar essa história, enquanto Ares parecia apenas desgostoso.

- Esse é o tipo de homem que Hades era, um homem prisioneiro de seu próprio reino, incapaz de se permitir qualquer coisa que colocasse o submundo sob qualquer instabilidade. Tornar Adonis imortal foi a única loucura que eu o vi fazer em milênios, e ele ainda teve que enfrentar o descontentamento de Minos por meses por quebrar as regras por mim.

- Sim, então eu tive que dar uma lição nele. Já que ele queria tanto Aphrodite, eu concedi a ele o direito de dividir o leito conosco, – Seu sorriso malicioso não deixava muita esperança ao destino do jovem grego - Mas aparentemente ele não suportou o que significava se deitar com o deus da luxuria e a deusa do desejo ao mesmo tempo. Eu nunca mais o vi depois disso, provavelmente deve ter implorado para Apolo o transformar em uma planta ou até hoje deve ser um de seus consortes.

Quanto ao rumo dessa conversa, June tossiu disposta a chamar a atenção de ambos.

- Será que...Podemos nos atentar a assuntos não sexuais a respeito de tudo isso? – Perguntava tentando não sentir seu estomago revirar com as imagens intrusivas e muito ilustrativas em sua mente – Eu ainda estou perdida sobre como tudo isso pode estar acontecendo na minha cabeça.

Um pequeno silêncio se fez, logo quebrado bruscamente pelo senhor da guerra.

- Poderia ser pior– Tentou animar sua irmã com uma tentativa de sorriso, em resposta ela virou tetricamente em sua direção, seus olhos inchados e expressão descrente.

-...Como...?- Sua voz era tão fraca que não se surpreenderia se simplesmente tivesse imaginado essa resposta, mesmo “June” o encarava com expressão descrente.

- Ele poderia perseguir uma sombra sua e, não sei, ter  se casando com Deméter? – A divindade fez uma expressão de completo horror com a mera possibilidade de sua mãe se casando com seu “ex marido” –  Ambos ficaram com um enorme vazio quando tu desapareceste, faria sentido, ao meu ver, tentar preenchê-lo um com o outro. – Vendo como ela parecia prestes a vomitar, acrescentou - Viu, eu disse que podia ser pior.

- Isso era para me sentir melhor? – Sua voz era tão afiada quanto a lâmina de sua arma. – Mesmo sendo minha mãe, eu preferia que ele estivesse casado com outra mulher do que morto!

- Eu estou tentando ajudar, mas eu sou o deus da guerra, não o deus da felicidade, esse é seu neto. – Deu de ombros – Estipular cenários catastróficos é o melhor que posso oferecer a ti. E convenhamos, Hades não ter que lidar com a pior Sogra do mundo por milênios pelo menos é um ponto positivo.

- Perdão, minha mãe, pior sogra do Olimpo? – Repetiu Perséfone com completa descrença e uma grande dose de sarcasmo. – Não tens moral para dizer-me isso, meu meio-irmão, tendo a mãe que tens.

- Estás a exagerar, minha mãe pode ter amaldiçoado dezenas e dezenas de “pretendentes” de Zeus, mas ela nunca tocou em Aphrodite enquanto estávamos juntos. A sua sim matou metade da Grécia para te ter de volta, e embora eu ache muito sexy a forma como ela deixou o miserável do meu pai de mãos completamente atadas assistindo o massacre, tens que admitir que Hades recebeu a pior benção da deusa da sorte quanto ao quesito “sogra”.

A imperatriz do submundo apenas revirou os olhos, completamente contrária a essa informação, mas sem paciência e fora para discuti-la. 

- Agora eu entendo porque as guerras de Athena e tio Hades se tornavam cada vez mais e mais destrutivas e violentas mesmo quando ele costumava ser alguém tão calmo, quero dizer, eu estou há vinte anos lidando sozinho com minhas próprias necessidades e já começo a me sentir desfalecendo, quem dirá milênios sem alguém entre meus lençóis, realmente, fica difícil julgar o humor do meu tio assim. – A amazona de lagarto cada vez se sentia ruborizar mais frente a essa discussão que limitava as temíveis guerras santas de Athenas e Hades a mera tensão sexual, mas não sabia exatamente o que fazer para interromper sua interação.

Para sua sorte, não era realmente a única que soava incomodada em algum nível.

- Obrigada pela tentativa de me animar, meu irmão, eu aprecio muito – Colocou a divindade, o mais próximo de um sorriso formando-se em sua face depois daquela cansativa conversa – Mas já podemos voltar a discutir os assuntos mais pertinentes, porque eu realmente prefiro não saber sobre a vida sexual do deus da luxúria, além do que se eu te ouvir dizendo outra vez que minha mãe é sexy, vou definitivamente perder a cabeça contigo – O mais velho deu de ombros em fingida inocência e June não pôde deixar de sorrir apesar dos pesares, era peculiar que, no pequeno período de tempo em que ficou sozinha com o senhor da guerra, sob nome de Chalceus, este possuía uma postura distinta, mais velha e razoavelmente madura, por outro lado com sua Perséfone, o deus, embora facilmente mais velho que ambas juntas, parecia muito mais jovial e espontâneo em suas interações. Com uma estranha pontada de ciúmes notou que era assim que deveria se sentir ter um irmão. E ainda que fosse assim, não podia deixar de pensar como esses dois formavam uma dupla no mínimo perigosa. – Tu gostarias que eu saísse por aí dizendo o quanto TUA mãe, minha tia Hera, é sexy?!

- Oras, nada que ela já não saiba – Deu de ombros, finalmente conseguindo fazer a deusa soturna sorrir de verdade, até mesmo rir baixinho enquanto negava com a cabeça.

- Desde quando vós dois se dão bem? – Questionou surpresa.

- Tu não foste a única que desapareceu, Zeus também o fez há milênios, digamos que isso fez milagres ao humor de minha mãe, nem recordo-me mais a última vez que a escutei gritar – A ctônica estava completamente impressionada com esta nova informação – Muita coisa mudou enquanto tu estiveste fora, Daeira, não tens ideia.

-.-.-.-.-.-

- EU VOU ARRANCAR SEUS OLHOS DE SEU CRÂNEO E COLOCAR NO TRASSEIRO DE UM TITÃ! – Hera berrava a plenos pulmões, sendo segurada, com muita dificuldade por Deméter. Héstia seguia observando entretida e Aphrodite, apesar da face ruborizada pelo tapa recente, a divindade do amor não abaixou a cabeça para sua querida sogra.

Por sua vez, Apolo engoliu em seco a igual que sua irmã frente a tal cena, e um silêncio monumental envolveu a todos quando uma trilha de sangue escorreu pela comissura dos lábios dos lábios da conserte de Ares.

- ME SOLTE AGORA, DEMÉTER, É UMA ORDEM!

- Isso está tomando um rumo cada vez pior – Sussurrou o deus do Sol baixando seu arco agora que os ramos desapareciam e voltando a se sentar como se estivesse em câmera lenta, enquanto Arthemis seguia de pé – Pelo brilho de Hélios, não posso imaginar o caos que seria se Ares estivesse aqui, seria o coas e total e absoluto, o tipo de caos ruim que os humanos pregam.

- MINHA IRMÃ, CONTROLE-SE! ELA CLAMOU JULGAMENTO!

- Provavelmente Ares teria- Tentou opinar Arthemis, porém parou ao notar que algo brilhava sob as vestes de seu irmão - Seu colar Apolo, Épios está a tentar comunicar-se contigo.

Isso fez o mais novo gemer baixinho, imperceptível em meio aos gritos.

- E SE FOSSE TUA FILHA, DESPINA, HEIM DEMÉTER?! ESSA MERETRIZ ARRUINOU A VIDA DOS MEUS DOIS FILHOS! 

- Épios não poderia me chamar em hora mais impropria – Resmungou Apolo sentindo o objeto sob suas vestes ressoar, seu brilho, suave como os primeiros raios de sol da manhã, ocultos pelo tecido branco de sua toga. - Eu disse a ele que estaria aqui hoje à noite. Se eu responder assim, provavelmente irei atrair a irá da imperatriz

- Eu duvido que ela possa te ouvir– Seguiu sua irmã em um sussurro enquanto as deusas maiores iniciavam uma conversa tensa em um grego tão antigo que mesmo ela tinha dificuldade de entender, e suspeitava que essa era justamente a intenção, Hera, em momento algum, deixando de segurar com força as correntes que prendiam sua nora. – Ainda assim confesso que é um pouco arriscado, os nervos estão bem a flor da pele aqui, talvez seja melhor ignorar o contato por enquanto.

- Mas deve ser importante! Épios nunca entra em contato assim se não é – Exclamou o mais baixo que pode, pegando o pingente sobre o tecido. – Alguma coisa pode ter acontecido consigo, ele pode estar precisando de mim...! – Antes que sua gêmea dissesse que estava exagerando, acrescentou – A última vez que ele se comunicou comigo sabendo que eu estava ocupando, ele tinha perdido as duas pernas numa vala humana de guerra!  

Uma expressão de preocupação também assumiu a face da divindade da Lua.

- Então responda da forma mais discreta que tu puderes, faça isso enquanto a imperatriz ainda está discutindo com a tia Deméter.

- Eu sou o deus do Sol, Arthemis! Não tem como ser discreto! É simplesmente impossível alguém como eu passar despercebido nem que seja por alguns instantes. – Isso fez a deusa respirar fundo uma vez mais naquela noite, sabendo que na cabeça de seu ególatra irmão, essa era uma preocupação séria.

Se houvesse uma deusa da paciência já estaria clamando sua ajuda esta noite.

Como isso não era possível, como única solução lançou um sorrisinho ardiloso para seu irmão mais novo, e antes que ele pudesse dizer algo mais, o tomou pelos ombros e então o empurrou para baixo com toda a força que possuía, compelindo-o a ir ao chão, sentado embaixo da mesa.

- O que pensa que está fazendo?! – Ele questionou extremamente inconformado, encolhendo os joelhos contra o corpo antes que ela pudesse pisar ameaçadoramente entre suas pernas – Eu te odeio tanto...! – Ele praticamente rosnou.

Antes que ela pudesse responder um homem, de longos cabelos prateados, vinha correndo pelo corredor, até derrapar e cair de joelhos a poucos passos de Hera e Aphrodite.

- Eu também te amo, meu caro irmão – Ela disse, voltando sua vista para frente - Todas as atenções estão na imperatriz e no Ómma, ninguém sequer reparou em seu pequeno “sumiço”. Então fale de uma vez com meu querido sobrinho.

Apolo soltou um bufo verdadeiramente ofendido quanto a essas palavras, mas as deixou de lado por hora, finalmente tirando seu colar e respondendo, sua preocupação com Esculápio falando mais alto do que sua frustração com a irmã.

 - Meu filho – Disse em seu tom mais melodioso – Não houve como responder teu chamado antes, as coisas se tornaram realmente caóticas na festa onde estou, e me refiro ao lado negativo de caótico, simplesmente não podes acreditar no que Héstia fez-

Entretanto, seu coração deu um tranco quando outra voz respondeu, uma voz estranhamente jovem, exalando um sentido de urgência que o fez engolir em seco.

- Apolo. Sou eu, Poseidon.

Seu estomago afundou, várias possibilidades surgindo em sua mente, afinal, o que seu garoto estava fazendo com o incontrolável e perigoso senhor dos mares?!

-....Poseidon?! O que estás fazendo com o pingente de meu filho?! Há pouco tempo tu estavas aqui conosco – Então parou, desconfiança crescendo em seu ser - Se eu souber que fizeste algo ao meu menino...!

Não pôde continuar a ameaça, pois a voz cada vez mais aflita seguiu em um único tiro.

- Apolo, eu preciso que você avise Hera, o Hecatônquiros que nos desgraçou no passado está vindo para o santuário de Athena, de alguma forma, ele está absorvendo os poderes dos prisioneiros do Tártaro, incluindo Kronos.

Seu coração parou, todo o salão pareceu ficar silencioso, por alguns instantes tudo que era capaz de ouvir era sua própria respiração e o bater da sandália impaciente de Arthemis ao seu lado.

Como isso podia ser possível?! Essa coisa deveria estar trancafiada no mais profundo do Tártaro! A Grande Hera havia se certificado disso, depois dele ter arruinado o plano deles de destronar Zeus. Além disso, como ele poderia estar absorvendo o cosmo de Kronos e outros Titãs?!

Devido a influência do poder de Hades, o Tártaro tinha se tornado impenetrável, e até então seu sucessor parecia estar seguindo sem problemas seus passos. Para algo assim estar acontecendo, o novo imperador, que tinha há algumas horas, se envolvido numa fervorosa discussão com Athena, deveria ter perecido ou permitido tal escape de acontecer.

Então os tremores vieram a sua mente, Héstia havia dito que este castelo estava de algum modo relacionado ao submundo. Talvez sua meia-irmã tivesse estendido suas brigas a esse novo senhor, talvez, como há vinte anos, o submundo estivesse ruindo.

E claro, ainda havia a possibilidade que o sucessor, que não havia aparecido em sua própria festa, estivesse na verdade conspirando contra todos.

-  Eu convocarei os olimpianos – Foram as únicas palavras que pôde produzir no momento, e o contato se desfez, mesmo que a preocupação latente por seu filho ainda estava lá, esse assunto necessitava de sua atenção imediata, ao mesmo tempo seu coração doía com a ideia de processar o que poderia significar o fato de Esculápio estar com Poseidon, agora um aliado de Athena, em seu santuário.

- Épios – Resmungou baixinho, levando as mãos a cabeça. – Onde te meteste dessa vez, meu filho?!

Sua exclamação, mesmo sibilada, havia conseguido chamar a atenção de Arthemis, que respondeu chutando-lhe nem um pouco delicadamente na região da costela, exigindo que ele se erguesse.

 Ignorou, por hora, toda a afronta do ato, principalmente ao erguer-se, numa estranha mistura de pomposidade e discrição, e notar como a mais velha estava lívida.

Só então que processou a figura de Mei, e como este ainda explicava o que havia visto em sua incursão a Inglaterra, pôde notar também o sorrisinho vitorioso no rosto de Aphrodite frente a gagueira e nervosismo do Ómma.

-...Sim – Ele dizia – Realmente o Hecatônquiros estava lá, porém não havia mais nenhum Titã com ele, como minha senhora Aphrodite havia me orientado. – Engoliu em seco, sem em nenhum momento, deixar de encarar o chão. Pelo seu posto e maldição, ninguém duvidaria de sua palavra, mesmo que sua expressão não fosse visível.

- Alguém estava junto com esse monstro? – Era a voz fria e cortante de Hera, ainda mais assustadora e perigosa do que poucos instantes atrás, o que apenas fez um frio, ironicamente, percorrer a espinha do deus do sol.

“Então eles já sabem” – Pensou consigo mesmo, tentando transmitir apenas com o olhar para Arthemis que era exatamente esse o teor da mensagem que recebeu. Por como ela havia mordido o lábio inferior e franzindo as sobrancelhas, a mensagem tinha sido satisfatoriamente entregue mesmo sem palavras.

Nesse instante, contudo, Héstia intercedeu, seu tom não soando tão amável e compreensível como geralmente era.

- Minha irmã, antes de julgar o imperador do submundo, peço que também ouça a versão de Ládon, nosso Ómma pessoal, pois ele, sob minhas ordens, esteve vigiando todos os recentes acontecimentos que cercam Athena e seu santuário. – Ela explicou-se com seriedade – E tenho certeza que essa fuga, tem algo a ver com Chronos. O deus justamente atacou o submundo de Hades há vinte anos, pouco após o fim da guerra santa de nosso irmão e Athena. Sabe-se por Hermes que ele libertou muitas almas corrompidas, Hecatônquiros pode ser mais um liberto naquela ocasião.

- Isso são apenas suposições suas – Rebateu a deusa do amor que teve os lábios destampados com a chegada do Ómma para que pudessem rebater suas versões. – Como acha que algo tão monumental como um hecatônquiros poderia ficar oculto por vinte anos? Além disso, Hermes há pouco quebrou o hospitium, e ainda por cima é um deus ctônico, seu valor como testemunho é o mesmo de um moribundo sobre o gosto da ambrosia.  

- CALADA, APHRODITE, NÃO TE CONCEDI O DIREITO DA FALA! – Rosnou Hera manifestando em sua mão direita um grandioso cetro negro com uma flor de lótus no topo* e apontando para a garganta da outra divindade, em nenhum momento voltando-se para observar sua irmã – Não darei um segundo aviso. – Dionísio – A imperatriz voltou-se a mesa da ébria figura, franzindo com desgosto ao perceber que o jovem ainda seguia em seu coma alcoólico, devidamente acomodado agora que os ataques de Aphrodite haviam cessado – Bêbado sórdido. Perseu.

- Sim, minha imperatriz – Imediatamente o semideus ajoelhou-se na cadeira ao lado de seu senhor.

- Quando teu senhor desperte, ordeno que diga a ele para ir ao submundo e trazer Hermes, devidamente castigado, a minha presença. O mensageiro é conhecidamente um covarde, veremos de quem ele tem mais medo, desse “sucessor” ou de mim – Uma expressão verdadeiramente cruel pintou a bela face da deusa casamenteira, fazendo-a soar de algum modo ao seu filho mais velho. – Não será difícil extrair dele a verdade.

- Farei isso, minha imperatriz – Garantiu o jovem, lançando um olhar preocupado ao seu senhor, sua expressão sendo oculta de todos devido a sua posição, ainda assim, manteve-se ajoelhado sem se mover, mesmo sua respiração era um movimento sutil.

Para então a deusa maior voltou-se novamente para Hera.

- Preciso repetir minha pergunta para validar sua maldição de sempre dizer a verdade, Ómma, ou dirá por tua própria conta?

- Não é necessário, minha imperatriz, eu humildemente responderei vossa pergunta – Obtemperou com prontidão – Quando eu cheguei ao local, não havia nenhum cosmo que despertasse minha atenção, usei meus poderes de Ómma para hipnotizar a mente dos humanos ao meu redor para acharem que eu era um membro daquele ambiente, então aguardei. Poucas tempo depois, duas pessoas chegaram, o juiz dos mortos Radamanthys, e a antiga general do submundo, Pandora. Entretanto, sua postura era tão amistosa quanto ignorante a ameaça do hecatônquiros.

-Como pode um dos juízes dos mortos ser ignorante a algo assim?! – Foi a vez de Deméter perguntar, numa tentativa de evitar que sua irmã se exaltasse mais – Onde isso prova que o submundo não foi incompetente em seu dever de manter esse titã preso? – Direcionou sua pergunta a Héstia, que apenas franziu a expressão com sutileza.

- Vossa pergunta, senhora Deméter, não foi dirigida a mim, contudo, eu saberia responder-lhe com base no que testemunhei – Seguiu o Kido, a tal altura dos acontecimentos estando tão inclinado que sua testa começava a bater contra o chão em um completo dogeza.

- Então o faça. – Foi seu único comentário ríspido.

- Os espectros parecem estar passando por uma reencarnação recente, depois da última guerra santa, e apenas recentemente recobraram suas memórias, de fato, o senhor Radamanthys só recobrou seu posto de juiz depois que o hecatonquitos atacou.

- Não vejo como isso refuta a culpa desse novo imperador – A deusa das estações cruzou seus braços irredutível – Se algo tão grave quanto a fuga de um hecatonquiros tinha acontecido, não há motivo para esperar vinte anos para convocar as principais forças para resolver o assunto.

- Minha querida irmã – Novamente Héstia se interpunha, sua expressão ligeiramente franzida – Agradeceria se vossa opinião sobre o submundo não sobrepujasse a verdade nesse julgamento.

 A deusa ruiva de longos e volumosos cabelos estava a ponto de rebater, quando Hera ergueu uma mão para silenciar ambas.

- Prossiga, Ómma, havia mais alguém?

- Sim, minha imperatriz, depois vieram um cavaleiro de Athena e o atual general do mundo dos mortos, ambos estavam a paisana como eu, cerca de uma hora depois da chegada deles, o hecatonquiros se manifestou, ele estava...Suas almas... – Sua voz vacilou – Perdão, minha imperatriz, ele foi alimentado com almas humanas, e se forma a partir delas, 88* ao todo, elas estavam até então ocultas como “pessoas normais” são as almas dos meus irmãos mortos.

- Oh, pobre Mei – Héstia apiedou-se, lançando um olhar de suplica a sua irmã vendo como a figura do jovem tremia ligeiramente com essa afirmação.

- Algo mais que possa confiarmos antes que te dispense a pedido de minha irmã?

- Sim, minha senhora, eu, o cavaleiro e os dois espectros lutamos contra o Titã, tentamos o possível para levá-lo de volta ao mundo dos mortos, mas falhamos. Essas almas tem influencia divina, pois um de seus irmãos, que por consequente também é meu irmão, é o mesmíssimo sucessor de Hades. – Confessou por fim – O que dificultou ainda mais nossa empreitada.

Hera voltou-se a deusa da família com expressão escandalizada.

- Tu sabias que esse Ómma tem relações de sangue com o sucessor de nosso irmão?! – Inqueriu irredutível.

- Sim, como deusa da família, eu sabia – Respondeu com simpleza.

- E por que nunca me informaste?!

- Tu nunca me questionasse sobre Mei, minha irmã – Frente a expressão de exasperação contrária, logo acrescentou – Por que haveria eu de começar uma conversa com minha imperatriz sobre um servo de tão baixo nível?

- Não se faça de desentendida, Héstia – Seu tom era mais uma ameaça que um aviso, voltando-se para a mais velha – Se ele tem o mesmo sangue daquele que sucedeu meu saudoso irmão, eu deveria ser informada.

-Creio que poderemos ter uma longa conversa sobre a linhagem de Mei muito em breve – Disse voltando a sua calma característica – Uma vez que sua tão generosa linhagem se deve a ações diretas de Aphrodite que muito irão lhe interessar.

O olhar da imperatriz se franziu, voltando-se novamente a deusa do amor, que apesar dos testemunhos do Ómma sobre a libertação do titã não ser uma ação deliberada e planejada pelo submundo, ainda mantinha uma expressão arrogante em sua face.

Entretanto, a imperatriz não teve tempo de exprimir outro parecer, pois com um brilho de luz e um belo espetáculo de cores, a deusa Iris apareceu de joelhos a poucos passos de Mei, imediatamente assombrando-se pela posição de submissão que Aphrodite estava nesse momento.

Seu estupor durou o suficiente para que sua imperatriz tivesse que chamar sua atenção.

- O que foi, Iris, tens alguma mensagem para mim? – Seu tom era ríspido e impaciente, que apenas fez a deusa do arco-íris temer mais sobre o que havia acontecido.

- S-sim, perdão minha imperatriz, venho a pedido de vosso filho, o senhor Ares – A jovem deusa engoliu em seco, fazendo um sobres forço para não olhar para a deusa do amor nesse instante, por mais que sentisse o olhar dela sobre si, e seu mover entre as correntes – Muitos dos ramos que sustentavam o templo da deusa Aphrodite ruíram, então ele me pediu para investigar se algo havia acontecido com a senhora e-

- Se algo havia acontecido com sua pérfida amante! – Concluiu a imperatriz em um tom tão mordaz que muitos naquele salão não puderam evitar de tremer – Pois sim, aconteceu, mas eu a proíbo de informar isso ao meu filho.

- Minha imperatriz – As atenções se voltaram a Apolo, que sustentou com firmeza o olhar mortal da esposa de Zeus por ser interrompida – Perdão, mas devo informá-la que recém-acabo de receber uma informação por parte de Poseidon. O Hecatônquiros está partindo para o santuário de Athena, por alguma razão, ele está absorvendo o cosmo dos prisioneiros do Tártaro, incluindo o poder de Kronos – Isso fez o olhar das três irmãs se ampliarem, um tipo de preocupação distinta na face de cada uma. – Ele clamou pela nossa ajuda dos olimpianos.

 -...Para Poseidon, orgulhoso e repugnante como é, ter clamado nossa ajuda... – Começou Deméter engolindo em seco – Mas eu não entendo, ele estava há pouco conosco, e se foi alegando que o selo que Athena pôs sobre sua alma o impedia de permanecer mais tempo, o que faz então no santuário de nossa sobrinha?

Hera, entretanto, não respondeu, manteve-se quieta por largos segundos, como se meditando algo, e então voltou-se a todos no salão.

- Ainda não está claro quem o soltou, ou porque, entretanto, posso sentir que uma guerra divina se avizinha e não pretendo dar-lhe as costas como uma covarde, já enfrentamos esse titã antes e faremos de novo. Para tal, convoco os olimpianos aqui presentes para que juntem seus exércitos e partam comigo para as Terras de Athena, até lá tratarei pessoalmente com Poseidon para entender melhor essa situação. – Seu olhar voltou-se a Apolo – E se perceber qualquer má intenção ou tentativa de motim por parte tua, Apolo, de meu irmão ou do sucessor de Hades, o meu castigo será tão profundo quanto memorável.

O deus do Sol simplesmente confirmou com a cabeça, sem dizer nada.

Para então, Hera voltou-se para Iris.

- Eu passarei a informação e localização da batalha para vosso filho, minha senhora – Colocou a jovem lealmente.

- Não – Sua resposta, sem embargo, foi tão ríspida que fez a deusa ergueu sua face, visivelmente confusa, notando como a imperatriz encarava a deusa do amor, que apesar de ainda manter sua postura petulante, estava agora ligeiramente mais pálida. – A mensagem para Ares será diferente, Irís, diga-o que ele está proibido de participar desta guerra, e caso não me escute, estará oficialmente destituído do cargo de olimpiano. E se por ventura ele lutar em nosso contra, eu não hesitarei em fazê-lo um mortal!

-.-.-.-

O som do salpicar da lava não emanou muito longe, perdendo para o som dos gritos de tormento e de dor, além dos gêiseres que explodiam em direção aos céus escuros.

Hefesto afundou alguns metros, impressionado com a profundidade da lava nesta região, como se formasse um verdadeiro rio extra no mundo dos mortos.

Como se estivesse imerso em água começou a nadar com fortes impulsos em direção ao topo, a pressão contra seu corpo era sem duvida maior do que qualquer domínio de Poseidon pudesse exercer, e não ajudava realmente que o magma aos poucos solidificava ao redor de seus braços, pernas e troncos, como numa tentativa de petrifica-lo ali mesmo, como um troféu submerso. Não que algo assim pudesse realmente impedi-lo, possuía facilmente a força de um gigante, não seria o ferreiro dos deuses se não fosse assim.

Quando alcançou a superfície, chacoalhou seus cabelos ruivos e cacheados como um cachorro, tentando livrar-se de partes rochosas presas a ele e só então pôde obter um bom olhar na prisão infernal que o cercava.

- ...Isso, sempre foi assim...? – Sua voz deixou escapar seu choque, enquanto tentava se aproximar da margem, o céu era avermelhado, o cheiro de enxofre e carne crua ao seu redor era absolutamente inebriante, era como estar perto de Ares e seu eterno cheiro a guerra, só que muito pior.

Entretanto, o cheiro, o ar denso, ou os pilares de fogo não eram o que mais se destacavam em seus olhos e sim algo ainda mais preocupante.

Rachaduras.

Enormes rachaduras simplesmente abriam o céu ensanguentado, tão colossais que seguiam até perder-se de vista, das mais próximas, exatamente abaixo do Etna, começava escorrer lava, formando estranhas estalactites numa mistura de cobre e negro, enquanto as mais distantes, quase no fim de sua linha de visão, permitiam a passagem de um liquido mais leve, cercados por um brilho escuro e azulado.

Era uma distância de aproximada de 40 quilômetros do cerne do Etna até o mar mediterrâneo, e nas baixas profundezas deste, o reino dos mortos se erguia do mar ao continente, e do continente ao mar, entretanto, em suma o Tártaro devia estar entre o vulcão da Sicília e o mar europeu, o que significava que era a lava de sua forja e a água de Poseidon que adentrava aos poucos naquela que devia ser a prisão intransponível.

“Aphorite tem razão” – Pensou, pousando seus pés, quase que completamente petrificados, sobre o solo rochoso, dando fortes pisadas para se livrar do inconveniente, como se não fossem mais do que pó sobre suas vestes, e ainda assim, seus movimentos brutos foram absolutamente eficientes em fazer as placas se descolarem de sua pele. “O sucessor realmente está perdendo o controle sobre este lugar.”

Estava tão assustado e deslumbrado com seus arredores, que não notou como algo saía de dentro de si, como uma pequena chama, e se afastava em direção ao horizonte, como se buscasse algo.

Muito embora, mesmo que o deus tomasse atenção a direção em que a flama partiu, dificilmente conseguiria vê-la de qualquer forma, era apenas uma chama a mais naquele inferno escaldante.

No entanto, quando todo o chão começou a tremer e passos monumentais passaram a ser escutados, Hefesto não pôde ignorar mais, voltando-se exasperado para aquela direção e sua boca abriu-se enormemente quando viu algo, ou alguém se aproximando.

Nunca o tinha visto antes, ninguém além de seus filhos e esposa deveriam saber com que se parecia, mas de alguma forma, sabia que era ele.

Kronos, o titã.

Sua figura estava curvada, devido as enormes correntes que arrastava em seus pés e mesmo tornozelos, correntes tão grandes que cada elo entrelaçando deveria ter ao menos um metro sozinho. Sua pele era morena, como a de Ares, queimada em muitas partes onde a carne viva estava exposta, em seus joelhos era possível ver partes de seus ossos a monstra, provavelmente reflexo de quantas vezes havia cedido frente ao próprio peso, seus cabelos eram longos, cheios de nós e embaraços, sujo e claramente descuidado, mas ainda era possível interver o brilho prateado que emanavam, como os cabelos do próprio Zeus.

Seu rosto, entretanto, era quadrado e forte como aquele que Poseidon costumava ter em seu corpo original. Seu olhar era vazio de expressão, como os olhos de Hades, porém eram negros como a região mais escura do Érebo, exatamente como os de Héstia. Seu nariz era arrebitado, e mesmo parecendo quebrado, torto e ensanguentado, estava erguido o máximo que podia sobre sua figura encurvada, orgulhoso como o de sua filha mais nova, Hera.

Por mim, o titã o observava com o mesmo franzir de sobrancelha de sua tia Deméter, que fazia seu sangue simplesmente gelar.

Era absurdo como o pai dos seis primeiros eram um perfeito caleidoscópio de seus filhos, mesmo de alguns de seus netos, Ares era sem duvida aquele cuja semelhança mais despontava, mas pudera, ele era fruto da união de dois descendentes diretos do titã, o formato retangular de seu tronco e mesmo seus músculos em blocos faziam seu avô reluzir como uma figura gigantesca e grotesca de seu irmão mais velho. A dupla sanguinidade também despontava semelhanças com Despina, a querida filha de Deméter e seu tio Poseidon, presentes nos olhos caídos e bochechas magras do titã.

Sua altura, por outro lado, fazia simples a compreensão de como o monstruoso ser poderia ter sido capaz de devorar cinco de seus filhos e mantê-los por tanto tempo em seu estômago. Mesmo sendo si mesmo um deus cuja altura estava acima da média, mesmo a distancia tinha certeza que não chegava ao tornozelo do homem.

Quando seu avô finalmente o viu, seu corpo inteiro gelou completamente, muito apesar de estar completamente cercado de fogo e lava.

Imediatamente olhou para trás, disposto a voltar a mergulhar, agarrando-se na pequena esperança de que o mais velho não deveria ser capaz de alcançá-lo.

Entretanto, apesar de seus instintos estarem gritando para isso, simplesmente não conseguia se mover, era com se Fobos e Daimos simplesmente estivessem agarrados as suas pernas, sorrindo perversamente pare ele e impedindo-o de se movimentar.

A única ação que pôde realizar foi um grande sobressaltou quando uma voz altamente grave ecoou por todo o Tártaro.

- TU ÉS FILHO DE HERA! POSSO SENTIR PELO TEU CHEIRO, DEUS!

Os olhos negros pareciam capazes de devorar sua alma, ainda assim fez um esforço para reencontrar sua voz.

- S-sim – Tossiu, forçando-se a não gaguejar – Eu sou Hefesto, grande Kronos, filho de Hera, e apenas Hera.

Ao invés de sentir-se lisonjeado, o titã franziu muito sua expressão frente ao tratamento respeitoso que recebia, aproximando-se com passos mais largos, as correntes tilintando em seu caminhar.

- HERA O ENVIASTE PARA QUE EU PUDESSE ME ALIMENTAR DE TI, COMO FIZ COM ZEGREU?! – Não pôde mais impedir seu corpo de tremer quando o rosto de seu avô se abriu em um sorriso perverso com dentes amarelos, tortos e pontiagudos.

Zegreu, o único deus capaz de adentrar sozinho na prisão do Tártaro, enganado por Hera, acabou tendo seu corpo esquartejado e devorado pelos titãs do Tártaro, aparentemente um deles sendo o próprio Kronos. Tudo que Hades pôde fazer foi resgatar seu coração pulsante, e devido a fim tão brutal, Zeus o concedeu uma nova chance, dando o órgão para que a mortal Sêmele comesse, gerando assim o deus humano, Dionísio. 

O que Hera havia dito para convencer o jovem ctônico a invadir o Tártaro e chegar aos titãs, era algo que ela jamais havia revelado, e Dionísio nunca mostrou sinais de recordar-se disso.

Mesmo ainda sendo chamado de Zegreu no mundo dos mortos, seu meio irmão jamais tocava no tortuoso assunto.

- N-não, meu avô – O homem já estava há menos de três quilômetros de si, sua voz soando como se estivesse na sua frente, e ainda não conseguia se mexer, sequer tinha certeza se ele podia ouvi-lo, como todos os ruídos e gritos produzidos naquela prisão. – E-eu vim subjugar aquele que roubou o trono de Hades.

Não adiantava tentar mentir, se o antigo ser fosse como Héstia ou Hades, poderia ver facilmente através de suas palavras.

- ARGUMENTAS QUE O MAIS FORTE DE MEUS FILHOS FOI DEPOSTO?!

Isso fez Hefesto erguer as sobrancelhas apesar de seu medo, deveria imaginar que seu tio detinha tal posto frente aos seus irmãos, mas essa afirmação possuía um peso completamente diferente quando era dita pelo mesmíssimo Kronos.

- Sim, meu avô. – Engoliu em seco, se jogasse as cartas certas, poderia escapar. Precisava escapar. Uma grave risada ecoou por toda a prisão, fazendo o chão inteiro tremer com mais facilidade do que o próprio Poseidon conseguiria. Era óbvio que o prisioneiro ficaria satisfeito com o castigo de seu carrasco, podia trabalhar com isso – E pretendo fazer o mesmo com seu sucessor, como disse, antes. Se me permitir ir, o senhor pode até mesmo conseguir escapar quando ele cair.

Essa era a maior insanidade de todas, o retorno de Kronos sem duvida levaria o mundo de volta a era do caos, mas não conseguiria fugir dele se não desse um motivo bom o suficiente para deixa-lo viver, usando armadura ou não, jamais se atreveria a enfrentá-lo, ele era um ferreiro, não um lutador.

Isso, eficazmente pareceu despertar o interesse do titã, que ajoelhou-se, mesmo sob seus ossos a mostra, fazendo um frio percorrer a espinha de Hefesto.

- E QUE PROVA EU TENHO DE TUAS PALAVRAS?! TROCAR MINHA ALIMENTAÇÃO SEGURA POR UMA VINGANÇA HIPOTÉTICA?! – Estavam a menos de um metro um do outro, mesmo seu avô estando agora ajoelhado, nunca em toda sua existência se sentiu tão pequeno e insignificante.

E o enorme ser sequer estava manifestando seu cosmo, só podia se assombrar sobre como este poderia se parecer.

- Veja o estado do Tártaro, meu avô! – Berrou com toda a força de sua garganta, sentindo suas cordas vocais repuxarem em protesto. – VEJA AO SEU REDOR, RACHADURAS, SAÍDAS, INSTABILIDADE, TU ESTAR AQUI,NA MINHA FRENTE, DESPERTO, É UMA GRANDE PROVA DISSO! O LADRÃO QUE TOMOU O TRONO DE HADES NÃO TEM SUA CAPACIDADE PARA MANTER ESSA PRISÃO DE PÉ, MEU OBJETIVO AQUI É DAR A ÚLTIMA PEÇA QUE O FARÁ CAIR! – E Então buscou entre sua armadura, tirando o pequeno broto que foi-lhe confiado por Aphrodite, que não parecia afetado pelo calor daquela prisão, estando protegido pela energia da deusa e de seu marido – USANDO ISSO, EU COLOCAREI O SENHOR DAS TREVAS SOB O MEU COMANDO.

Por um instante pensou ver preocupação passando pelos olhos do titã, o que não fazia qualquer sentido lógico, = essa impressão logo desapareceu quando uma nova risada do ser ecoou ainda mais forte e distante, fazendo-o perder o equilíbrio de seu corpo manco, caindo de costas no chão.

- TU OUVISTE ISSO, CÉRBERO? OUVISTE O QUE ELE DISSE?

- O quê...? – Não pôde fazer qualquer pergunta lógica quando um colossal cão de três cabeças saltou entre ele e o titã, chegando quase na altura de seu quadril agachado.

A cabeça do meio abriu ferozmente sua mandíbula em sua direção, conseguiu segurá-la, contudo, puxando uma parte das correntes que mantinham presa a espada do submundo sob suas costas. Ainda que fosse assim, não pôde impedir que a cabeça da esquerda tomasse seu braço e o lançasse longe.

A velocidade em que foi jogado era tanta que sequer pôde acompanhar com os olhos para onde ia, perdendo completamente de vista o guardião do submundo e seu avô.

- O QUE ELE ESTÁ FAZENDO AQUI?! ELE DEVERIA GUARDAR A ENTRADA DO MUNDO DOS MORTOS, NÃO O TÁRTARO!

Não houve tempo para reclamações, no entanto, pode sentir pela terra trêmulo como o animal se aproximava em um rápido galope.

- MALDIÇÃO! – Arrancou as correntes da espada com força, tomando a lâmina e a prendendo numa fenda em suas costas, na junção de suas falsas asas-machado, então puxou um deles e enrolou os erros de ferro em sua base, fundindo o metal com as mãos nuas para garantir que sua arma estava bem presa com sua agora corda de metal.

O ferro ainda estava vermelho em brasa quando Cérbero surgiu novamente em sua linha de visão, mas Kronos havia sumido completamente, como se nunca tivesse estado ali.

 O quão longe havia sido lançado?!

Sem tempo para questionamentos, agarrou a corrente e começou a girar o machado no ar, enquanto cão feroz se aproximava latindo.

O guardião deu um salto, como o de um leão com as patas abertas, e Hefesto usou sua abertura para jogar o machado contra a cabeça da direita, ferindo-a com um guincho terrível, o ferro ainda se enrolando ao redor de seu focinho, e com isso o ferreiro puxou com força o animal para o chão.

Entretanto, o filho de Tifão não se daria por vencido assim, mesmo com o corpo de lado no chão e a mandíbula de sua terceira cabeça ligeiramente torta, seu rabo de serpente se ergueu sobre seu corpo e tentou acertar o deus, junto com a cabeça da esquerda, enquanto a do meio tentava libertar sua companheira.

Com isso o deus manco sacou seu segundo machado, e o lançou certeiramente entre os olhos da face que o perseguia.

Sabia que era inútil tentar matar um filho do inimigo dos deuses, eles eram imunes mesmo a armas divinas e ao Iknor, tudo que precisava fazer era feri-lo para ganhar tempo.

A cabeça do meio não podia fazer muito, com suas duas companheiros invalidadas assim, por isso uivou alto, como se fosse um imenso alarme, enquanto seu rabo seguia atacando.

- DE FORMA ALGUMA, NÃO VAIS A AVISAR NINGUÉM! – Arrancou com violência um dos chifres de seu elmo, que se tratava na verdade de uma adaga de dois gumes, correu e saltou na direção do monstro, ficando-a sobre o topo de sua última resistência, entre suas orelhas, e com o peso de seu próprio corpo o levou ao chão com um enorme estrondo que sacudiu novamente a prisão.

O cão choramingou, porém, não se moveu mais, apenas sua calda, que tomando seus dois machados de volta, o cortou fora sem piedade.

- Tu me obrigaste a fazer isso – Justificou-se, enrolando a corrente que pendia de seu machado em seu ombro direito. – Eu sinto muito.

E antes que o animal pudesse se recuperar, correu dele o máximo que pôde, sem parar para ver se era seguido, se Kronos ou qualquer outro titã era visível no horizonte.

Seguiu uma estranha passagem que se erguia no verticalmente no horizonte, como a brecha de enormes portas.

Em seu caminho encontrou vários prisioneiros que ouviu falar nas histórias antigas, fazendo uma ideia cruzar sua mente, algo que já tinha ponderado antes mesmo de Cérbero aparecer.

Ao passar por um rio suntuoso de perigosas corredeiras, jogou seu machado-corrente e puxou para a superfície o homem que ali se afogava, ao passar por uma roda em chamas, matou as serpentes que prendiam o condenado em um giro eterno.

Quando localizou um homem nu afogando-se em cobras, as matou com suas chamas, porém, ao contrário dos outros prisioneiros que começaram a fugir desesperadamente para sua liberdade, esse se manteve em seu lugar, entre os corpos dos anfíbios carbonizados, apenas quieto em seu lugar.

Não deu a mínima para isso, não se importava com qualquer um deles de qualquer forma, mal sabia seus nomes.

O último que encontrou foi um senhor cuja pele já estava em carne viva, enquanto empurrava uma enorme pedra que o superava em tamanho.

- ME DÊ ISSO! – Sem cuidado algum lançou o homem longe, que logo se levantou e começou a correr com os demais.

Deixou-os ir na frente, enquanto se escondia atrás da rocha redonda, subindo-a ladeira acima no lugar do condenado que a levou por milênios, usando-a de barreira e esconderijo para ver o que havia nas portas do Tártaro e porque elas estavam abertas.

Os mortais seriam as iscas perfeitas para abrir seu caminho até o imperador.

-.-.-.-

Foram os instintos de espectro que fizeram Kairos parar repentinamente sua explosão de fúria, percebendo tardiamente que havia conseguido estourar o espelho negro e desfazer as formas humanoides dos esqueletos na sala do trono.

Acabou caindo de joelhos quando sangue escapou de seus lábios em uma tosse errática, juntando-se a dor aguda de ter seus joelhos perfurados por cacos de vidro por estar sem armadura.

Respirou fundo, tentando passar a dor para segundo plano, tentando processar o que havia detido sua emanação.

- Shun! – A realização o atingiu como um raio, e a adrenalina imediatamente passou a agir em seu corpo, fazendo-o erguer-se de um salto errático e correr para a passagem abaixo do trono.

Praticamente voou pelos degraus, derrapando quando chegou a enorme porta que levava aos aposentos reais, praticamente arrancando-a de suas antigas dobradiças.

Engoliu em seco, congelado em seu lugar quando encontrou o seu senhor de pé, ao lado de sua colossal cama, estava frente a uma cômoda de madeira negra, o móvel mais “moderno” do que o resto da habitação. Entre seus dedos estava a rosa eterna que um dia abrigou a alma de uma jovem rodoriana.

O sangue divino escorria por sua palma ao deixar-se perfurar pelos espinhos do caule, e em nenhum momento voltou-se para ver o recém chegado, mesmo que Kairos tivesse a plena consciência de que havia feito bastante barulho em sua chegada.

Havia algo errado, muito errado, Mephisto grunhia em seu interior, fazendo seu estomago revirar.

-...Shun...? – Chamou novamente, caminhando até o mais jovem, até estarem a apenas um passo um do outro, com sua altura superior podia ver a expressão perdida do deus-humano, sem foco e distante, como se estivesse em transe. – Você consegue me ouvir?

- Ele levantou quando sentiu sua energia – Uma voz feminina ecoou e imediatamente o espectro assumiu postura defensiva frente ao seu senhor,  e mesmo tendo escutado o tom poucas vezes, o reconheceu imediatamente.

- Hécate – Disse quase em um rosnado, a teria atacado, se seus olhos atentos não tivessem percebido que ela era apenas uma projeção – Então nenhum dos inúteis do castelo conseguiram te encontrar.

- Eu sou uma deusa da noite, a divindade da bruxaria – A bruxa de rosto jovem disse com expressão séria, embora houvesse uma enorme tristeza em seu olhar que despontou certa curiosidade no deus caído. – Ninguém é capaz de me encontrar se eu assim não desejar.

- Bastante petulante para uma traidora. – Não pôde deixar de acusar.

Entretanto, não mantiveram essa pequena discussão quando Shun começou a se movimentar em direção a saída de seus aposentos, desviando sutilmente de seu servo e dos moveis, mas em momento algum mudando sua expressão sem vida.

- Ele está realmente acordado?

- Sim e não, é mais complexo do que isso. – Ela suspirou longamente – Eu adormeci sua consciência quando ele tentou apagar a memória daquela mortal June. Eu estava seguindo uma antiga ordem que Hades me deu – Respondeu a pergunta antes que ela fosse dita – Então isso acelerou a unificação da consciência das duas almas que habitavam esse corpo.

- Então Hades realmente vivia dentro de Shun? – Ela confirmou com a cabeça – Isso explica muita coisa, eu tinha minhas suspeitas a respeito, mesmo Daidalos as tinha – Começou a seguir seu senhor subida acima, de volta ao trono, Hécate flutuando as suas costas – Ele possuía muitos conhecimentos e trejeitos estranhos para ser simplesmente consciência, antes mesmo de conseguir acessar os arquivos do submundo com nossa ajuda.

- Mas eles são mais do que duas almas distintas – Ela recomeçou, mas logo foi interrompida.

- São duas partes da mesma alma? – A bruxa ergueu a sobrancelha para essa afirmação, enquanto subiam as escadas atrás da figura errante – Mephisto esteve por milênios com Hades, eu já disse, há muitas similitudes entre os dois para ser mera coincidência, além de explicar como Shun pôde se sobrepor a Hades em primeiro lugar, conseguir reconstruir o submundo com tanta facilidade e manter os portões do Tártaro fechados com seu próprio poder. Era demais para um “simples cavaleiro de Athena”, nem mesmo um receptáculo perfeito permitiria tanto com autonomia própria – Levou a mão ao próprio peito – Eu sei disso muito bem, esse corpo que uso agora pertencia a reencarnação de Peleu, filho de Aiacos. E mesmo ele sendo uma alma antiga, não lhe garantia força suficiente para me permitir manejá-lo para livra-me medianamente de minha prisão, foi apenas quando a estrela de Mephisto o escolheu que isso pôde acontecer. Mephisto é especial, o único espectro que reencarna em humanos distintos a cada guerra, já que nunca teve uma forma realmente física ao ser um daemon, conseguimos entrar em um acordo para fortalecermos aquele corpo o suficiente e aqui estou eu agora. E apesar de todo a preparação do meu personagem, eu já não poderei atuar na peça absoluta chamada vida, porque mesmo com a ajuda de um demônio, esse corpo chegou ao limite. Se Shun fosse apenas Shun, mesmo sendo constantemente lavado no Estige por Ikki, eventualmente seu corpo se consumiria frente ao peso de sua alma e poder, afinal, o Estige não torna ninguém um deus. Isso nunca ter acontecido só faz sentido se você pensar que o garoto de bronze era especial desde o começo, mais do que um receptáculo com autonomia, ele era seu próprio deus.

- Então tu sabes que ter sido o pai de Pégaso na vida passada não foi apenas uma maquinação de sua cabeça -  Concluiu a bruxa surpresa, já quase estavam na sala do trono.

- Eu sei que sempre fui um fantoche nas mãos do destino – Respondeu com irreverencia teatral – Entretanto, isso não me impediu de dançar entre as páginas do livro de Moros, se ser o pai de Pégaso sempre esteve no meu destino, afinal, de outro modo eu não reconheceria sua alma em primeiro lugar, ao menos eu o seria da forma que melhor me valesse.

- E tu fizeste uma grande bagunça garantindo isso – Acrescentou, não deixando escapar a preocupação no rosto contrário. – O que houve? Eu vi Pégaso enquanto estava juntando as consciências do imperador, ele estava com Hermes...Isso de alguma forma é uma maquinação sua também?

- Tu não és a única capaz de enganar e manipular deuses, cara Hécate – Rebateu em uma linguagem mais antiga, sentido o olhar azedo dela sobre si – Argumentas que estavas sob ordens, e tudo que fizeste foste em nome dessas supostas ordens de Hades. Que conveniente para ti, não crês? Pois nesse caso saiba que tudo que fiz foi sob ordens também. Nesse quesito podemos dizer que somos iguais.

- Meu objetivo foi unicamente proteger o submundo, essa é minha maior missão – Defendeu-se ela. – E a tua?

- Cumprir minha palavra perante o Estige, e finalmente ser quem eu deveria ser novamente, Kairos, apenas Kairos, o deus do tempo oportuno. – Chegaram ao salão do trono, onde encontraram Shun sentado sobre seu lugar real, e ao fim da escadaria, confusos e preocupados, Rock e Myu encaravam seu senhor, provavelmente tentando obter alguma resposta sem sucesso.

Antes que Mephistofeles pudesse ser questionado pela dupla sobre a completa ausência de resposta de seu senhor, voltou-se uma vez mais a bruxa.

- Mas antes que isso aconteça, minha cara traidora, eu serei Peleu e Mephisto apenas por mais um ato, afinal, eu tenho um filho para salvar e um deus que louvar! – Começou a saltar os degraus de três em três, parando com graça ao lado de seus companheiros.

- Algo inesperado aconteceu quando tentei despertá-lo – A resposta de Hécate apenas causou mais confusão aos servos- Mesmo que eu tenha recolocado tudo em seu lugar, parece que ainda falta algo, eu o fiz lembrar de coisas que ele parece querer esquecer. Ele que está forçando sua própria mente a esse estado de letargia agora, como eu temia, ele ainda é capaz de processar, de aceitar, tudo que aconteceu. Não tem ideia da profundidade de sua dor Mephistofeles, se não agirmos de forma correta, corremos o risco de levar o submundo abaixo!

- Lembrar é fácil para quem tem memória. – Disse o deus caído sem se voltar a outra - Esquecer é difícil para quem tem coração. Eu não preciso saber o que você fez Hécate, porque eu sei como solucionar, eu tive uma visão sobre isso. Nosso senhor só precisa de um “empurrãozinho”, e ele voltará para nós. – Então voltou-se para a dupla que tentava acompanhar a conversa, enquanto processavam que a bruxa que tanto procuravam no castelo como traidora estava justamente ao lado de seu senhor – Parabéns Myu, você está oficialmente promovido a general do submundo, estou desertando – Invocou sua cartola e a recolocou sobre sua cabeça ocultando sua expressão dos rostos horrorizados enquanto fazia uma grande e exagerada reverência teatral que indicava o fim de um grande espetáculo – Essa é apenas uma pausa para o ato final, até lá, fechem as cortinas! O elenco precisa se preparar para essa épica conclusão que deixaria mesmo Hómero às lágrimas!

E sem esperar qualquer tipo de resposta abriu as grandes portas do salão, vestiu sua sobrepeliz e  voou em direção a entrada do Tártaro.

Levou alguns segundos para que Myu processasse o que estava acontecendo, foram as palavras de Iwan que o trouxeram de volta a realidade.

- Hãaaa...Parabéns pela promoção? – Disse o companheiro incerto, ganhando apenas uma expressão exasperada do aquariano.

No segundo seguinte, contudo, ambos se sobressaltaram com o grito de Minos que encheu o salão.

- VOOCÊEEE! – Rugiu em reconhecimento o juiz, encarando a figura translucida de Hécate – EU TENHO TORTURAS TERRÍVEIS ESPERANDO A TI!

-.-.-.-

 Já fazia alguns minutos que Iatros havia se retirado ao sentir a presença vacilante de outros dois espectros, saiu em muitas explicações deixando Eri sozinho com seus companheiros adormecidos, Vêronica e Astéri.

Quando os olhos do titã começaram a abrir lentamente.

- Ah! Tu acordaste! – Exclamou aliviado, andando de joelhou até sua cabeceira.

A figura lançou um olhar surpreso em sua direção, mas não disse nada, olhando-o de cima a baixo, com o cenho franzido.

- Sim...Talvez tu não me reconheça com este elmo – Dito isso retirou a dita peça, revelando seus longos cabelos esverdeados, deixando com cuidado o capacete sobre a cama. – Melhor assim?

Astéri novamente não emitiu nenhuma resposta, sequer estava olhando a face do espectro, ao invés disso sua atenção estava completamente voltando a peça de armadura próxima ao seu colo.

Notando o interesse, Eri a tomou.

- Tome, pode olhar. – Ofereceu com um sorriso que tal mal soava no corpo que um dia pertenceu ao décimo terceiro cavaleiro de aquário.

O homem de longos cabelos arroxeados o observou estranhado, com clara suspeita em seus olhos, ainda assim aceitou o objeto, observando-o com interesse, principalmente a longa cauda que despendia do topo e que seguia a pelo menos um metro.

Tão similar que havia na armadura de escorpião.

- Tu pareces mais calma agora, e Verônica disse que tu me entenderias, mesmo que falássemos outro idioma, se eu estivesse usando minha sobrepeliz – Disse indicando sua vestimenta – Então suponho que consiga me entender?

O jovem confirmou com a cabeça, ainda observando com desconfiança, ainda segurando a peça negra em mãos.

- Tu consegues falar?

Simplesmente negou com a cabeça.

- Oh, bem, podemos conversar por gestos então, mas...- Isso o pegou desprevenido. – Mas isso é estranho, eu não lembro de muita coisa sobre mim, ou sobre nós, mas eu podia jurar que tu sabias falar. Algo aconteceu com sua voz? – Uma nova negativa – Mas eu te ouvi gritando, então tu tens voz, talvez...Não conheça as palavras? – O jovem inclinou a cabeça para ele. – Talvez tu ainda não tenhas aprendido como falar – Uma confirmação – Mas então como consegue entender o que eu digo – O outro apenas deu de ombros.

Franziu a sobrancelha, era possível que as sobrepelizes fossem capazes de fazer isso?

- Mas tu entendes o que gestos significam...- Ponderou – Parece que sua cabeça está tão bagunçada quanto a minha! – O outro franziu a expressão – Ah, mas isso não foi uma ofensa, é só que...Eu também não lembro de muita coisa, eu nem conseguia entender o senhor Iatros antes do senhor Verônica me dar essa armadura – Apontou para a vestimenta de Ceto. – Suponho que tu tampouco se recordes de quem eu sou?

Astéri o observou por um longo tempo, até que por fim negou com a cabeça. Ceto sentiu com se uma mão apertasse seu coração com essa resposta, ainda assim não deixou de sorrir.

- Entendo... – Tentou não mostrar desapontamento, mas falhou miseravelmente, fazendo o outro fazer a expressão – Sinceramente eu estou te fazendo perguntas, mas eu também me sinto bastante perdido aqui – Disse com um sorriso tímido – Mas isso apenas significava que devemos começar de novo – Seu sorriso se tornou mais amplo e verdadeiro, sentindo um calor preencher seu peito com essa perspectiva - Olá eu me chamo Eri, ou quase isso, pelo menos é como me chamam – Disse estendendo a mão, gesto o qual o outro observou curioso, estava a ponto de explicar como funcionava, e no instante seguindo o jovem apertou sua mão com força. – Tu recordas teu nome? – Uma nova negativa – Bem, Verônica – Apontou para o loiro – Disse que podíamos te chamar de Astéri por enquanto, o que achas?

O não-tão-jovem aquariano piscou surpreso quando os olhos contrários se expandiram em reconhecimento, por um instante podia jurar que era possível até mesmo ver pequenas estrelas refletidas em seus olhos, o que não fazia sentido, já que estavam em um templo escuro iluminado por poucas arandelas de chama azul, entretanto o brilho logo se extinguiu como se nunca tivesse estado ali.

- Então – Voltou a dizer alguns segundos depois – Tu gostas?

Uma confirmação com veemência, e a figura sorriu pela primeira vez, sem o desconforto de antes, sentindo mais confiança para com seu companheiro.

 - Muito bem então, muito prazer em te conhecer, Astéri! – E então suas mãos se separaram, mas a postura mais tranquila do titã se manteve presente - Agora eu vou te explicar o que eu sei sobre nossa situação, quando Verônica acordar podemos pedir mais detalhes.

Estava terminando de esclarecer como resolveram seu surto ao despertar, que o mesmo não parecia recordar, quando a voz forte de um homem pode ser escutada se aproximando.

- Como se eu fosse permitir um titã simplesmente a solta por aqui!

- S-senhor Radamanthy, ele está dormindo! Por favor não-

Ceto só teve tempo virar o rosto, e um homem de alta estatura apareceu no grande buraco na parede.

A respiração do aquariano vacilou a vê-lo, estava simplesmente coberto de sangue, de seus cabelos loiros espetados, até seus braços, torso e pernas, simplesmente parecia que havia sido atingido por uma chuva composta pelo líquido carmesim.

 Sentindo o medo contrário, Astéri se pôs em guarda, se levantando em um golpe.

- ...Você, maldito escorpião – Inconscientemente o juiz levou a mão ao peito, lembrando-se do seu enfrentamento com Kardia de Escorpião há quase trezentos anos, era desconfortável estar frente a frente com o oitavo guardião novamente, ainda mais agora que diziam que era seu suposto aliado – Se não fosse por essa história de Hiketeia, eu te prenderia no Tártaro agora mesmo!

- S-senhor Radamanthys, por favor! – Tentava impedir o curandeiro, entrando em sua frente. – Eu ainda preciso ver seus ferimentos.

O corpo do escorpiano mais velho começou a reluzir, eclodindo seu cosmo prateado que fez a sobrancelha do loiro erguer-se, impressionado.

- Sem dúvida, esse é o cosmo de um titã – Notou – É loucura termos um solto no submundo assim.

A resposta, entretanto, partiu de Eri, que se colocou na frente do outro.

- Não somos inimigos! – Colocou com firmeza, emanando sua própria energia – E eu não vou permitir que lutem, ela ainda está se recuperando.

-...Ela? – Repetiu sem compreender.

- Por favor! Me escutem uma única veeez! – Praticamente implorava Iatros – Não estamos em condições de lutas internas no momento!

- Senhor Iatros tem razão – Firmou Ceto, tomando o braço de seu companheiro e o puxando de forma quase infantil.

Os dois escorpianos, por sua vez, seguiam se encarando com ferocidade, mas ao menos seus cosmos havia se acalmado, notando isso o curandeiro suspirou longamente.

- Senhor Radamanthys, deixe-me ver seus ferimentos agora – Insistiu novamente – Por ordem do imperador eu devo cuidar de todos e cada um de vós.

- Eu não estou ferido – Frente a descrença contrária, acrescentou de forma claramente desconfortável – Esse sangue não é meu.

-...A luta contra o hecatônquiros deve ter sido realmente terrível – Tremeu o rodoriano – Nesse caso, deixe-me ao menos me ajuda-lo a se limpar, não posso sequer imaginar a preocupação na face do imperador vendo-o nesse estado.

- Não há tempo para uma bobagem dessas – Disse com impaciência, fazendo menção de dar as costas ao civil – Irei imediatamente ao salão do trono.

- M-mas...!

- Ah! Eu posso ajudar com isso! – E antes que qualquer um pudesse dizer algo, Ceto invocou uma torrente de água bem abaixo do inglês, como um gêiser, levando consigo todo o sangue que o manchava.

E um pouco de sua dignidade também.

- Pronto – Concluiu Eri satisfeito, fazendo a água agora vermelha se desfazer, encarando sorridente a face que transpirava ódio, ao menos o que era visível sob seus cabelos encharcados.

- HAHÁ! – E seu humor não melhorou minimamente quando Astéri começou a rir, um olhar sádico enchendo seus olhos, fazendo o ódio do juiz se inflamar ainda mais.

- Você disse que ele perdeu a memória. – Praticamente rosnou para o curandeiro.

- B-bem, ele perdeu, pelo menos parte dela.

- Não parece. – Colocou entre dentes, vendo a expressão provocativa, exatamente igual a que Kardia levava em seu tempo – Depois eu cuido de vocês – Acrescentou lançando um olhar desagradável ao aquariano, e sem mais se retirou com passos pesados.

- Eu não entendi, qual o problema? – Questionou Ceto confuso, seu companheiro apenas rindo ainda mais.

- Eu preciso de um aumento – Murmurou Iatros, mas um pequeno sorriso despontou de seu rosto, voltando-se para seu perdido companheiro – Nada Eri, você fez muito bem, seu banho foi – Tossiu, evitando uma risada – Bem eficiente.

E o titã caiu no leito de tanto rir.

-.-.-.-

 Orphée não acreditava em seus olhos, todo o corredor central que dividia que levava linearmente ao templo dos espectros estava destruído, além disso, mesmo alguns dos santuários possuíam alguma avaria, como paredes inteiras que vieram abaixo e colunas faltando.

- Isso tudo é obra de Escorpião e Aquário? – Perguntou-se, enquanto Sália pisava ao lado da casarão de Troll e Golem para ganhar impulso para um novo e longo salto. – Inacreditável...

Eurídice nunca tinha lhe dado muitos detalhes sobre como foi seu próprio “despertar”, apenas que o levaram para o Tártaro para causar menos estragos, então era deduzível que tentar trazer de volta a realidade uma alma praticamente em estado Berserker não era das tarefas mais fáceis, entretanto, não dimensionava que o estrago poderia chegar a ser tanto.

Dessa vez a cachorra parou próxima ao rio Cócitos, onde ainda haviam reflexos da comoção, e com um novo impulso o músico já podia deslumbrar as grandes portas do Tártaro.

As quais estavam ligeiramente entreabertas.

Isso fez uma sensação de mal estar atingi-lo, junto a um terrível mal pressário.

- Vamos, mais rápido, Sália. – Disse num tom que tentava não soar tão exasperado, ainda assim o grande animal obedeceu, e apenas mais dois graciosos saltos ao redor do Flegetonte, para que chegassem até a ilha do Tártaro.

Praticamente todo o seu contorno era protegido pelo rio de fogo, e um enorme portão, que possuía facilmente o tamanho de um titã, feito de ferro mal soldado, se erguia sobre uma rocha vulcânica abrindo passagem para o pior lugar do mundo.

Assim que pousaram na estrutura rochoso, deixando Seiya ainda desacordado no lombo de Sália, Orphée se adiantou a passos ligeiros até a entrada entreaberta.

“Como isso pode estar assim?!” – Pensou consigo mesmo, observando pela fresta o céu vermelho escuro, e a monumental ladeira na qual Sísifo estava castigado a empurrar uma enorme rocha ao topo pela eternidade.

- Ora, ora, ora...Quem finalmente temos aqui! – Seu corpo inteiro se sobressaltou, um enorme frio passando por sua espinha quando uma voz tenebrosa falou apenas alguns passos atrás de si.

Assumiu postura de ataque e virou-se imediatamente, encontrando-se com uma figura que nunca antes tinha visto.

Era um homem alta, medindo ao menos um metro e noventa, sua pele era avermelhada, como se tivesse sofrido graves de queimaduras de sol, sua esclera era negros, enquanto suas pupilas eram vermelhas, trajava uma toga negra até seus pés descalços e de aparência descascada. Seus cabelos eram negros e espetados, chegando até sua cintura.

-...Quem é você?! – Inqueriu, engolindo em seco quando o ser o observou com aqueles olhos nem um pouco humanos.

- Os mais novos que devem se apresentar primeiro, não? – Questionou, fazendo emanar um pouco de seu cosmo negro, muito semelhante ao que no passado sentiu vindo do próprio Hades, e da energia errante de Érebo que ainda permeava a entrada do mundo dos mortos.

Sem dúvida era uma das entidades antigas do mundo dos mortos que há muito havia deixado sua forma humanoide, a questão era saber qual.

Entretanto, seja qual fosse, ainda lhe devia algum respeito, podia sentir o incomodo de Sália frente a criatura ancestral, diferente de Cérbero, ela era uma cachorra comum modificada pelo poder de Shun, não possuía a imunidade natural que o cão infernal tinha.

- Eu sou Orphée de Sátiro, espectro terrestre da música, e esse que trago comigo é- Contudo, o desconhecido não permitiu que terminasse sua frase.

- O lendário e irritante Pégaso. – Nomeou a entidade vendo o rosto pálido do moreno – Sua primeira vida Aquiles causou uma grande bagunça por aqui há uns poucos milênios. Mesmo dormindo eu pude sentir.

O músico engoliu em seco.

- Na verdade -

- Ah sim, a alma de Hermes está com ele, que curioso – Seguiu o ser, dando um peteleco na testa do cavaleiro, que soou como um golpe fraco, entretanto, deixou para trás uma marca vermelha e um pequeno filete de sangue começou a escorrer do ferimento – Mais algumas horas juntos e eles serão um único ser, é uma mistura verdadeiramente peculiar.

O guerreiro verdadeiramente não sabia o que dizer frente a isso, vendo com descrença o jovem desacordado, enquanto o desconhecido sujava seus dedos com um pouco de seu sangue e o levava para a boca.

- Uhum, já sinto um leve gosto de Iknor, não o suficiente para ser tóxico, mas já é um início.

- Como isso pode ser possível?! – Soltou por fim, mesmo que isso explicasse parte dos comportamentos do sagitariano quando o enfrentou, ainda não fazia sentido – Quem é o senhor?

- Eu sou Tártarus – Isso fez o olhar do escorpiano se ampliar ainda mais. – Melhor, uma projeção dele, afinal meu verdadeiro corpo está ali – Disse indicando a entrada da prisão – Sobre a forma de uma grande caverna. O temível poço dos condenados – Sorriu, um sorriso cheio de dentes pontiagudos e sangrentos, se perguntou se eram resquícios do sangue de Pégaso ou se eram meramente projeções do liquido arrancado dos prisioneiros dentro de si – Nós, seres soturnos, podemos nos esgueirar pelos lugares mesmo sem nosso corpo, usando nossas almas – Então seu olhar se voltou aos enormes portões, seu sorriso se ampliando mais, como se soubesse de algo que todos os demais desconheciam – Alguns são melhores nisso do que outros, mas em suma é uma habilidade transmitida pelo sangue, mesmo alguns deuses da Terra o possuem também.

Sátiro nada disse, não estava completamente errado então, pensava, se a união de ambos fosse uma realidade, e não tinha porque duvidar da palavra de Tártarus, pois a mesma fazia muito sentido uma vez que repassava toda a “luta” que tiveram, os momentos que o fizeram fraquejar, e aqueles que o fizeram ter certeza que enfrentava o mesmíssimo deus das mentiras.

Foi tirado de seus devaneios, entretanto, quando Tártarus flutuou alguns centímetros, para conseguir jogar Seiya sobre seus braços.

- O que o senhor está fazendo?

- Eu esperei séculos para finalmente ter Pégaso em meu estômago – Disse com uma satisfação doentia que revirava o apetite do humano, sabendo bem que a frase não era mera força de expressão. – É isso que desejas, certo? Estou mais do que satisfeito em cumprir essa doce petição.

- Eu – Hesitou, ponderando suas opções, o Titã não o esperando se decidir, ajeitando o cavaleiro sem qualquer cuidado sobre seu ombro e começando a caminhar até os portões. - ...Essa é uma situação complicada, senhor Tártarus, Pégaso foi a maior ameaça ao submundo, mas atualmente é irmão do nosso imperador.

- Laços sanguíneos não importam quando se está no poder – Decretou com simpleza – O que tem que ser feito, deve ser feito, para garantir a integridade do reino, não crês?

Sim, surpreendeu-se consigo mesmo ao ver que parte de si concordava plenamente com essa lógica, exigindo que Pégaso fosse levado, com tal de garantir que não voltasse a atingir seu senhor, lembrava de como Seiya reagiu quando soube dos desenlaces de seus destinos, como atacou e foi detido por Ikki e logo por Shun, evitando que o hospitium fosse quebrado.

“Ele é perigoso, e estar com Hermes só piora sua situação” – Essa conclusão simplesmente impedia seu corpo de se mexer, ao tempo que Tártarus passava com uma satisfação cruel impressa em sua face, suas pupilas tornando-se amarelas, e assim as portas da grande prisão começaram a se abrir em fortes rangidos secos com uma lentidão torturante que dificultava o escorpiano de ouvir seus próprios pensamentos. “-Prendê-lo, tortura-lo, fazê-lo se arrepender de atentar erguer a mão contra seu senhor era um castigo no mínimo digno.”

“Mas eles são irmãos” – Outra opinião latejava em sua mente – “Quando o submundo te transformou em alguém tão insensível? Shun o ama! Ele não se perdoará se Pégaso passar por tal sofrimento.” Engoliu em seco, sentindo suor escorrendo por sua face. Sabia que Shun amava seus irmãos, e sofreria enormemente se algo acontecesse a qualquer um deles, testemunhou pessoalmente sua dor quando Seiya teve aquele ataque de pânico no castelo, como o imperador reagiria então se soubesse que seu consanguíneo tivesse sido lançado na pior prisão do mundo.

Junto com Kido. Ele já tinha feito isso com Kido. Qual era a diferença? Ambos haviam destruído tanto sem mirar as consequências, ambos mereciam

Sua cabeça estava doendo, e sequer percebeu quando suas pernas cederam e foram ao chão, no processo, porém, notou como Tártarus sorria para ele, seus olhos ainda brilhando amarelos, porém em sua direção.

Entendeu tardiamente que o Titã estava usando seus poderes em si, tentando influenciar em suas decisões, estava tão absorto nas revelações que recebeu que não foi capaz de perceber o cosmo negro de antes se envolvendo ao seu redor tal qual uma fumaça tóxica, inebriando seus sentidos, tirando para fora o que havia de pior em si mesmo.

“Eu não sou melhor do que Pandora e Faraó” – Levou as mãos ao rosto cansado, seu corpo ligeiramente trêmulo quando uma risada doentia o informou que o ser, ainda por cima, provavelmente poderia ler seus pensamentos. “- Eu seria capaz das coisas mais vis possíveis em retribuição ao que Shun deu a mim e Eurídice, ele nos libertou, nos uniu, eu faria qualquer coisa por meu senhor, eu cometer um genocídio em seu nome sem hesitar se ele me ordenasse, eu condenaria a miséria mesmo o mais bom dos homens se fosse para fazer seu tormento de governar mais brando. ”

-Não, não, NÃO! – Berrou, tentando aplacar sua própria voz em sua cabeça. – Eu não...Eu não sou assim! Isso!

Era mentira, sabia que era mentira, sentia que sua lealdade fervente o levaria a coisas ainda piores, não podia evitar, devia sua existência ao seu senhor, devia sua felicidade, tudo.

Levou a cabeça ao chão, tentando acordar a si mesmo através da dor, conseguindo um vislumbre de hesitação, tentou se virar para impedir Tártarus de levar Seiya, agora que as portas já estavam totalmente abertas as suas costas.

Nenhuma voz saiu de sua garganta.

Entretanto, a voz de alguém mais se fez ouvir.

- LARGUE MEU FILHO AGORA MESMO, TÁRTARUS!

Com dificuldade viu a figura de Kairos pousar a poucos passos de Sália que estava completamente encolhida e choramingando, uma de suas cabeças vendo o músico, enquanto duas viam preocupadas a entrada do Tártaro. Por sua vez, a expressão de Mephistofeles estava ainda mais furiosa do que quando tiveram seu pequeno desentendimento no salão do trono. Seus olhos vibravam entre amarelos âmbar e vermelho sangue, seu cosmo divino parecia vazar das juntas de sua armadura, mostrando-se quase tão tóxico quando o de Tartarus.

- Sejam só, hoje é o dia dos encontros e reencontros – Ironizou sem sequer se mexer – Kairos o deus perdido, que aceitou juntar-se ao próprio demônio Mephisto a fim de tomarem para si o corpo de Peleu. Não me venha dizer que o homem que vos possuíste e engoliste, quer florescer repentinamente?

- P-peleu? – Orphée disse em voz fraca – Yohma, o jovem que foi fadado a ter o corpo possuído pela estrela de Mephistofeles, era a reencarnação de Peleu?!

- O que Peleu acha ou deixa de achar é irrelevante – Disse o deus caminhando a passos firmes na direção do Titã – Como tu mesmo disseste, Tártarus, há séculos eu e Mephisto assumimos esse corpo, aquele japonês ingênuo que sonhava ser pai não existe mais, sua promessa de reencarnar com Tétis em nome de Aquiles, se quebrou após a minha morte, agora não é mais do que passado, mitos contados ao vento.

- Estás a dizer-me isso, mas ainda exige que eu entregue “teu filho” – Seu sorriso não se perdeu em nenhum momento. – Tenho entendido que “teu filho” morreu há alguns séculos, o pai deste aqui – Ergueu ligeiramente o corpo pendente de Seiya em seu ombro – Está sendo muito bem cuidado por mim lá dentro.

- O fato de mim ter sobrepujado a existência de Peleu, que eu tomei o seu papel nessa tragédia grega, por isso, eu tenho todo o direito de reivindicar a alma de Pégaso como o MEU FILHO, o que Aphrodite fez para Seiya nascer através de Mitsumasa é totalmente irrelevante frente aos SÉCULOS que a alma que faz parte de mim deu vida a ele! – O cosmo do espectro se intensificou ainda mais, com uma ferocidade peculiar que o fez reluzir exatamente como Ikki, quando este protegia fervorosamente seu irmão menor.

O sorriso do ancestral dos deuses, sem embargo, não vacilou, enquanto seus olhos se tornavam ainda mais amarelos e vibrantes.

- KAIROS, CUIDADO, ISSO É....! – Tentou alertar Orphée, mas seu aviso morreu em sua garganta quando uma gargalhada atingiu o deus caído.

- Sério, Tártarus? Será que os milênios de sono te deixaram maluco? – Pela primeira vez, o músico viu fúria real nos olhos do Titã – EU SOU MEPHISTOFELES, O DAEMON QUE PERSONIFICA A MALDADE, CRÊS MESMO QUE EU NÃO SEI O QUE DE MAIS VIL PASSA PELA MINHA CABEÇA?! Eu te garanto, em nenhum momento eu me preocupei de esconder qualquer uma das minhas intenções por aqui, mas se insistes, eu vou dizer em voz alta. Eu faria o que fosse para me vingar dos deuses que jamais se importaram com os atos de meu irmão contra mim, eu influenciaria guerras e mais guerras até que os humanos finalmente pudessem se livrar das imundas mão divinas que os controlam como ME CONTROLARAM E ME JOGARAM NO ESQUECIMENTO! EU QUERIA PODER ARRANCAR A CABEÇA DE IKKI COM AS MINHAS MÃOS, AFOGAR DAIDALOS NO CÓCITOS, PROVOCAR SHUN ATÉ QUE ELE ME LANÇASSE NA SUA PRISÃO PORQUE É ESSA MERDA DE LUGAR QUE EU REALMENTE MEREÇO DEPOIS DO QUE FIZ A MINHA PARTITA.

- KAIROS! – Uma tosse com sangue interrompeu suas palavras, mas sua explosão foi suficiente para que Orphée pudesse se libertar de suas próprias amarras e se erguer para sustentar o companheiro antes que esse viesse ao chão.

- ...Eu causaria um genocídio em nome do meu senhor sem duvidar – O músico piscou, frente a esse pensamento verbalizado, igual o mesmo que tinha lhe cruzado – Corromperia mesmo o homem mais bom com fim de recompensá-lo, eu devo muito aquele imbecil que chamo de senhor, e mesmo se eu pudesse traí-lo, o que eu não posso pela merda do juramento que ele me enganou para fazer no Estige – E a surpresa de Sátiro apenas crescia – Eu não o faria, porque ele conquistou minha maldita e repugnante lealdade. – Soltou uma grande baforada, como se estivesse contendo ar durante toda a sua gritaria – Eu definitivamente faria um ménege à trois com esse músico, se com isso eu pudesse ter uma noite com sua esposa perfeita.

- SEU FILHO DE UMA PUTA!  - Imediatamente o mencionado o soltou, quase roxo de vergonha e raiva, mas Kairos conseguiu segurar-se em seus próprios pés.

- E acima de tudo, eu daria minha alma em troca de uma última noite de amor com minha Partira. – Colocou por fim, em um suspiro libertador – É o suficiente para ti, Tártarus.

- Sim, foi divertido – Deu de ombros, pegando Pégaso pelo quadril e o jogando para o espectro mais velho sem qualquer zelo, o mencionado teve que saltar para conseguir pegá-lo, já se preparando para uma dura colisão com o chão rochoso.

Entretanto, o que encontrou em seu lugar foi o pelo macio de Sália.

- Eu já consegui o tempo que eu queria. - Os espectros olharam para ele em confusão, mas tal sentimento durou pouco quando o ser deu um grande passo para o lado, permitindo a passagem de mais de um prisioneiro que se precipitava para a tão aguardava liberdade.

- Tu só estavas ganhando tempo, Titã maldito do caralho! – Esbravejou Mephisto, seus olhos voltando a ficar amarelos e seu cosmo divino reverberando em fúria.

- E conseguir isso de um deus do tempo, realmente é tão prazeroso quanto ter um prisioneiro mais. Obrigado pelo divertimento, e boa sorte com isso – Disse indicando os homens que ao ver o caminho bloqueado se lançavam um a um no Flegetonte, recuperando assim suas forças e intensificando assim seu escape – Ah sim, só mais uma coisa – Seu olhar voltou-se a prisão aberta, mais especificamente a enorme rocha de Sísifo que se aproximava da entrada. – Vós podeis não ceder aos vossos desejos mais viscerais, mas alguém o fará em breve.

E sem qualquer outra explicação, desapareceu.

- Por isso eu não gosto de titãs – Kairos cuspiu no chão, onde o homem havia desaparecido.

- Tenho que concordar contigo dessa vez – Colocou com irritação Sátiro – Eu vou cuidar desses imbecis – Disse indicando aqueles que tentavam escapar – Você levará Seiya até nosso senhor? Tem certeza que é seguro?

- Eu não vou permitir que nada do que tenha que acontecer passe com nosso senhor, você ouviu o que eu disse, eu jurei servi-lo em nome do Estige – Colocou cansado.

- Certo, eu confio nosso senhor a você. – Começou a dar as costas, disposto a alcançar os condenados.

- Mesmo depois do que eu disse sobre sua esposa? – Questionou provocador, sentia que essa era a última vez que se veriam, se o sangue que escorria por sua boca fosse algum sinal, então não podia deixar de se despedir com uma última provocação.

Não esperou, contudo, a expressão sádica que recebeu em troca.

- Meu caro companheiro, eu só não quero os seus dentes porque Eurídice provavelmente teria aceitado. – Isso fez os olhos do outro se abrirem de tal modo que seus orbes pareciam prestes a cair de sua cara. -  Ela é muito curiosa com esse tipo de coisa, como você nunca sugeriu, morrerá sem saber, é uma pena.

E com toda a sensualidade digna de um escorpiano, dedicou-lhe uma piscadela provocativa, e se afastou rapidamente para recomeçar sua caça.

Se o mais jovem estava mentindo apenas para provocá-lo com a eterna dúvida, nunca saberia.

- SEU GRANDESSÍSSIMO DESGRAÇADO! – Berrou aos quatro ventos.

Levou alguns segundos para recuperar o fôlego, um sorriso se formando em sua face. Sentiria falta desse imbecil, de todos eles.

- Sália – Disse para o cão – Mergulhe no Estige, aquela criatura fez um estrago e tanto no meu garoto.

A cachorra infernal lançou um último olhar preocupado para o Tártaro, mas seguiu suas ordens, saltando como um cão normal faria no rio de fogo, espalhando labaredas para todos os lados.

- Você é muito grande para eu te segurar pelo calcanhar – Disse vendo como as chamas lambiam o tronco de Pégaso, aos poucos desfazendo os ferimentos que Orphée havia lhe causado, ambos recostados sob o tronco quase submerso de Sália – Isso terá que servir, para o nossos grande reencontro familiar.

Enquanto se afastavam, não puderam ver a rocha que chegou ao fim da ladeira, revelando a figura de Hefesto, que se perguntava porque o mesmíssimo Tártarus o havia ajudado.

Seja como fosse, seguiu seu caminho, saltando pelos rios sem tocá-los, disposto a chegar ao salão do trono.

-.-.-

Aiacos e Ikki cruzaram o submundo em tempo recorde, não trocaram muitas palavras depois da pequena encenação do cavaleiro para conseguir acompanhar o comandante do submundo. Além disso, houve apenas uma pequena hesitação restante por parte do canceriano antes de vestir sua sobrepeliz para que pudessem alcançar os aposentos reais o quanto antes possíveis.

Por toda a parte dos céus do mundo dos mortos, rachaduras e mais rachaduras se formavam, o que passava qualquer duvida e hesitação para segundo plano, sentindo o peito pesado, Benu não podia deixar de fazer um paralelo da atual situação com o estado que encontrou o submundo há vinte anos, quando Shun supostamente assumiu o papel de Hades.

Quando finalmente alcançaram o salão do trono, a situação era no mínimo caótica.

Minos berrava com a figura translucida de Hécate, um encharcado Radamanthys exigia informações de um cansado Myu e um conflitivo Iwan.

- SHUN! – Mas sobretudo, o que chamava mais atenção era o fato do mesmíssimo imperador estar sentado em seu trono, olhos tão distantes e perdidos como estavam há mais de vinte anos quando Hades o havia possuído, e com completo horror percebeu que, como naquela vez, parecia que seu irmão havia desaparecido desse mundo, e alguém mais havia ocupado seu lugar. – O que houve com o cabelo dele?! O que houve com ele, por que está assim?!

- É inútil – Explicou Iwan, e pela sua expressão estava tão exausto quanto seu companheiro de ter que explicar a situação uma e outra vez para os que chegavam com os ânimos exaltados. – Ele não está reagindo a nada, é como se realmente nem estivesse aqui.

- O que aconteceu com ele? – Aiacos logo interveio, caminhando ao lado de Benu.

- Não temos certeza – Emendou Myu, ao tempo que Radamanthys tirava uma vez mais seus cabelos úmidos do rosto para encarar os recém chegados de mal grado, principalmente Ikki. – Hécate nos disse que ele simplesmente não quer voltar, como se estivesse perdido dentro de si mesmo, senhor Minos a está ameaçando há algum tempo para reverter essa situação, mas sinceramente não parece que mesmo ela saiba como fazer isso.

- Parece que a bruxa estava tentando unir as almas do senhor Shun e do Senhor Hades juntas e ele colapsou com algumas de suas lembranças – Finalizou Troll – Ao menos, foi o que conseguimos entender por entre os gritos da conversa deles – Apontou sobre os ombros para o mencionado que discutia em um grego muito antigo com a ctônica que possuía a expressão completamente franzida e desgostosa.

- Então ambos realmente fazem parte do mesmo ser? – Perguntou Aiacos sentindo seu estomago revirar-se, justamente essa possibilidade levantada por Minos havia mexido tanto com sua lealdade nas últimas horas, e provavelmente, selado seu destino de uma vez por todas de volta ao reino dos mortos.

- EU NÃO POSSO ACREDITAR EM ALGO ASSIM! – Esbravejava o escorpiano, seu cosmo emanando em fúria, suas chamas negras conseguindo aos poucos evaporar a água que ainda restava sobre si. – COMO EU NÃO PUDE PERCEBER ISSO ANTES?! Eu estive a ponto de dar as costas ao senhor Hades!

- Eu não quero saber se eles eram a mesma alma no passado ou não, meu irmão alcançou a própria autonomia através dos séculos! -Defendeu Ikki, seu próprio cosmo respondendo com fervor – Ele é sua própria pessoa!

- Ele era ao que parece, as coisas ficarão mais complicadas de agora em diante – Disse Myu – Se querem minha opinião, não é muito diferente do que acontece quando eu uso minhas fadas do submundo em alguém – Dito isso invocou uma delas, uma borboleta negra, na ponta do indicador de sua mão direita -Eu não simplesmente “controlo” minhas vitimas com ela, e sim dou luz a uma parte pouco explorada de suas personalidades, dando margem para o surgimento de um novo ser. – Seu olhar, como o dos demais se voltou ao imperador – Para mim, quem está ali não é mais o senhor Hades, da mesma forma que não será mais o senhor Shun, ele será uma nova entidade, resultante da combinação do passado e do nosso presente.

Ikki abriu a boca para questionar seu companheiro, mas nada saiu de sua garganta, o que havia dito fazia mais sentido do que gostaria de admitir, mas isso não impedia que um crescente medo crescesse em seu interior. Por mais que uma parte de si, a parte espectral que Kagaho havia despertado há vinte anos, estivesse francamente entusiasmado com o ressurgimento do imperador Hades, sua parte mais humana estava em verdadeiro pânico frente a perspectiva de perder seu irmãozinho Shun.

Muito embora, o próprio Shun havia levantado essa possibilidade há anos, uma vez que Hades vivia de qualquer forma dentro dele, era uma questão de tempo que ambos se tornassem um.

Só não esperava que fosse algo tão repentino, justamente no meio de uma guerra.

- Isso, contudo, está trazendo um enorme caos ao submundo – Coube a Aiacos transmitir os receios dos outros dois em palavras. -  Eu não sei quanto tempo mais o reino resistirá, a consciência do senhor dos mortos, mais do que apenas seu cosmo, é o que fez tudo isso que pisamos ter forma e existir em primeiro lugar, sem isso, logo estaremos pisando sobre destroços no fundo do oceano.

- Pior que eu nem sei nadar...

- Iwan, se o submundo desaparecer, não importa se você sabe nadar ou não, a pressão do oceano sobre nossas cabeças matará a todos nós imediatamente. – Respondeu exasperado o aquariano. – Estamos contra o relógio aqui – Então algo pareceu ocorrer-lhe – Falando nisso, Kairos aparentemente tinha uma ideia de como reverter essa situação.

- KAIROS?! – Esbravejou Radamanthys – ESTAMOS DEPENDENDO DESSE DESGRAÇO!?

Ao invés de uma resposta em palavras, no momento mais oportuno possível, as portas do salão do trono se abriram com violência, revelando a figura do mencionado deus caído do tempo, montado em Sália, com um inconsciente Seiya sobre seu colo.

- Meus saudoso público, todos os caminhos estão errados quando você não sabe aonde quer chegar! – Disse com sua teatralidade característica jogando sua cartola - Segure-o Ikki!

Benu não teve muito tempo para considerar suas palavras antes de ter que voar para pegar Seiya, impedindo que este, claramente inconsciente, atingisse o chão, ao tempo que, ao seu lado, Mephisto parava com perfeita graça, fazendo uma nova reverencia para seu publico invisível.

- Lamento minha demora para nosso último ato! Tivemos um imprevisto nos bastidores, mas todos sabem que o show sempre deve continuar!

- KAIROS, QUAL É O TEU PROBLEMA!? – Berrou Benu colocando seu meio-irmão no chão – E o que Seiya está fazendo aqui?! – Suikyo também estava claramente chocado com os desenlaces, a última vez que tinha visto o sagitariano ele estava desacordado no castelo de Heinsteim.

 - É uma longa, looonga história meu amigo ave, volte alguns capítulos em nossa trama e vocês descobriras. – E caminhando com graça foi até a mesa farta de banquete, e completamente esquecida frente aos calores do momento e pegou dela uma romã, abrindo-a com as mãos nuas, seus suco escorrendo por suas mãos como se fosse sangue, e sem mais explicações, comeu algumas sementes como um moribundo bebendo água no deserto, para então caminhar até Seiya e ajoelhar-se ao seu lado, disposto a fazê-lo provar do fruto também.

Radamanthys e Aiacos observavam os atos do antigo daemon sem entender, Minos havia parado de discutir com Hécate para fazer o mesmo, Ikki, por outro lado, agilmente tampou a boca de Pégaso.

- Tu tens IDEIA do que está fazendo?! – Exigiu saber vendo o outro japonês com exasperação, deixando sua mão lambuzar-se com liquido avermelhado. – Isso irá ATÁ-LO ao mundo dos mortos!

- Sim, se ele já não fosse um ctônico a essa altura, isso sem dúvida aconteceria. – Explicou cansado.

- Do que você está falando?! Isso não faz sentido.

- Ikki – Colocou entre seus dentes que assumiam sua característica bestial, seu chamado por seu nome pelo outro conseguindo que tivesse sua real atenção – Eu sei o que estou fazendo, se você quer ver seu irmão o quanto antes, terá que confiar em mim.

- Eu não gosto disso – Admitiu, ainda assim, muito a contra gosto, começou a afastar sua mão – Se você fizer alguma gracinha-

- Você me jogará no Tártaro? Me dará para as Eumênides? Eu não podia me importar menos agora com suas ameaças Benu – Ironizou sem paciência – Saiba que mesmo um relógio quebrado acerta o horário duas vezes por dia. Essa é minha segunda oportunidade.

E assim, as primeiras sementes escorregaram para os lábios fechados do cavaleiro, Mephistofeles então jogou a fruta para trás, que Iwan agilmente pegou e passou a comer, para exaspero de seu companheiro.

- O quê? – Defendeu-se – Eu como quando estou nervoso.

E dessa forma os olhos de sagitário lentamente começaram a se abrir.

Para tanto, Yohma ficou de pé, tirando a sujeito de suas vestes com alguns tapas, convocando novamente sua cartola.

-...O quê...? – Seiya começava a acordar confuso.

Minos a essa altura havia descido as escadas, olhando com completa desconfiança de Kairos para seu suposto filho. Aiacos sentindo as intenções assassinas de seu meio irmão havia se posicionado protetoramente ao lado de Ikki, para o caso do ariano tentar atacar o cavaleiro. Radamanthys, Myu e Troll, por sua vez, observavam um pouco mais afastados o despertar de Pégaso.

E o primeiro que o japonês viu foi a expressão franzida do ex Fênix.

- IKKI! – Exclamou, sentando-se rapidamente, olhando ao redor, para então Aiacos tirou seu elmo – NÃO É POSSÍVEL! SUIKYO?! – Sua vista seguiu, encontrando-se com o olhar zangado de Wyvern, e outros dois espectros dos quais não se lembrava realmente.

Até que sua vista deteve-se em uma figura particular que não desejava jamais voltar a ver, mas o destino não era tão considerado com sua pessoa.

- EU NÃO ACREDITO! – Berrou a plenos pulmões, assumindo postura de ataque ao erguer-se de um salto – VOCÊ! O QUE VOCÊ FAZ AQUII?!

- Aaaah, meu caro ex-pégaso – Disse o deus caído, fazendo uma vez mais uma profunda reverência - Sábio é o pai que conhece seu próprio filho- E então ergueu sua face, seus olhos rubros cintilando na escuridão. – É muito bom enfim poder reencontrá-lo, meu filho! – Ergueu ambas as mãos, simulando o desejo de um grande agraço – Seja bem vindo aos fins dos tempos.

O mais jovem não soube o que responder, processando o que aquele grande traidor poderia estar fazendo ali, onde era ali de qualquer forma.

“-Você está no salão do trono” – A voz de Hermes retornava em sua mente – “-Veja, Shun está sentado no topo da escadaria.”

Virou-se para aquela direção, encontrando-se com o olhar perdido de seu irmão, enquanto encarava uma rosa que ensanguentava suas palmas com seus espinhos, como se estivesse perdido em uma dimensão a parte.

-... Como eu vim parar aqui, por que todos estão aqui?!

- Eu também gostaria da saber, por qual motivo, EXATAMENTE, Kairos achou uma boa ideia trazer o matador de deuses a presença de nosso imperador estando nesse estado. Me dê um único motivo para não te matar aqui, e agora!

- Calma Minos – Aiacos intermediava, abrindo os braços de forma protetora, dando as costas ao sagitariano – O pior que podemos fazer agora é chegar a conclusões precipitadas.      

- Pois eu concordo com Minos! – Radamanthys se unia ao irmão, também assumindo postura de luta, seu cosmo ecoando ameaçadoramente,  ao tempo que Kairos também se juntava ao canceriano para proteger o ex-pégaso – Ele, de todas as pessoas, não deveria estar aqui!

Seu instinto de autopreservação o fez retroceder três passos, mentalmente conversando com Hermes sobre o que poderiam fazer, ao mesmo tempo que pedia ajuda a Ikki com um olhar silencioso, o mesmo apenas o encarou de cenho franzido, pensando sobre o que deveria saber, ou em quem deveria confiar.

Entretanto, a distração de todos para com Seiya foi fatal, logo souberam disso quando, com um enorme choro que cortou o ar, Sália, até então parada obedientemente na porta do salão do trono, disparou cegamente para dentro do salão do trono.

- Sália! – Ikki gritou preocupado, nunca a tinha visto agir assim.

- O que esse cão sarnento está fazendo – Juntou-se Kairos.

- Parece que alguém o está montando! – Juntou-se Myu.

E nenhum deles realmente acreditou em seus olhos quando divisaram um enorme homem corpulento montando a criatura enquanto sufocava com um machado a cabeça central do animal, forçando-o a disparar para a frente.

- Aquele é...- Começou Radamanthys.

- O que Hefesto, de todos os deuses, faz aqui?! – Findou Minos, que como o irmão avançou para o lado do imperador com o intuito de protege-lo – O QUE DÊMONIOS ESTÁ ACONTECENDO AQUI?! COMO ELE CHEGOU AQUI, E COMO NINGUÉM O SENTIU ENTRADO?!

Todos os questionamentos morreram quando o homem saltou do corpo do cão, caindo ao lado do imperador antes que os juízes pudessem, Myu e Iwan pudessem alcança-lo, Seiya e Kairos sendo os únicos que ficaram para trás.

Sem explicar nada a ninguém, o homem tirou o pequeno broto de suas vestes, abriu com violência a boca do imperador e o obrigou a engolir.

Tudo pareceu ficar em câmera lenta de repente, quando o corpo de Shun começou a tremer, suas mãos foram levadas até sua cabeça enquanto um grito desgarrador abandonou sua garganta.

- AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH!

“É seu momento de ser livre, imperador dos mortos, livres dessas correntes que te ligam a esse reino, destrua-as, elo por elo...E a infinidade do céu que sempre desejou, será sua.”

Então o imperador ergueu-se, seus olhos em branco, um sorriso destorcido emoldurando sua face.

Depois de milênios de contenção, por fim o senhor dos mortos havia perdido o controle sobre si mesmo.

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Notas Finais


O que é isso?
Sente esse cheiro?
É cheiro de...
PLOT TWIST


Notas finais saem algum dia...Talvez.

Playlist parte I: https://www.youtube.com/playlist?list=PLgXkfVmip3NamFzwiLu5VWyVosRjH145s
Playlist parte II: https://www.youtube.com/playlist?list=PLgXkfVmip3Na42RTnhasc-blLGTbUpAPa


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