Capítulo CIV - O destino de Serpentário - Parte I
Abriu os olhos devagar tentando se acostumar com a luminosidade do Sol que entrava pela enorme janela ao lado de sua cama de dossel. Tal claridade, contudo, não se sentia incômoda, muito pelo contrário, era reconfortante e familiar.
Uma sensação revigorante tomava todo o seu ser, além de uma calma que não lembrava a última vez que havia sentido percorrendo cada veia de seu ser.
- Então finalmente acordaste - Passos suaves se aproximaram, não precisou inclinar muito o pescoço para reconhecer a figura grácil de sua tia aproximando-se, sua longa vestimenta arrastando-se aos seus pés seguindo seu caminhar, trazia consigo uma ânfora e um cântaro* pequeno, ambos negros e luxuosamente ornados.
Seu olhar imediatamente desviou para a ânfora, sentindo seu coração apertar imediatamente, em sua pintura com fundo vermelho era possível ver a figura de Aquiles guiando seus companheiros na Guerra de Troia.
- Seu pai me contou o que tu fizeste. – Seguiu a jovem ignorante do tormento do menor - Um deus voltado a arte das curas, Apolo está tão orgulhoso que chega a ser até irritante - A figura jovial de longos cabelos loiros, olhar sereno e uma testeira confeccionada de ouro em formato de lua, cuja correia era feita com dentes de urso, adornavam o topo de sua cabeça, dando-lhe um tom tão delicado quanto selvagem, além disso, trajava uma túnica branca que ia até além de seus pés, de dois ombros. Ela sentou-se numa ponta da colossal cama e encarou o rapaz que acomodou-se no leito também para acompanhá-la - Como eu deveria chamar-te agora?
- Esculápio - Recitou quase em automático encarando as mãos sobre seu colo - Mas pode continuar me chamando de Épios, se tu quiseres tia Arthemis.
A jovem deusa franziu a expressão sutilmente, levando sua mão gélida até a bochecha direita de seu sobrinho.
- Eu também soube como foi sua deserção do exército de minha irmã, e os companheiros que perdeu na última guerra dela contra Hades. - Frente a essas palavras fechou seus olhos, apertando os punhos sobre suas pernas com força - Eu verdadeiramente sinto muito, sabes bem que se pudesse, eu mesma entraria no submundo e traria seus amados companheiros de volta, como fizeste por mim e logo foste castigado. – Acrescentou com um deixe de culpa - É injusto tu teres podido ressuscitar humanos sob o pedido dos outros, mas não poder fazer o mesmo quando Thanatos levou consigo aqueles que tu amas.
Não respondeu, mantendo os olhos fechados, aceitando o suave carinho de sua tia sobre as maçãs do seu rosto, sentindo a sinceridade das palavras dela.
- Além disso...- Ela seguiu um pouco hesitante – Fiquei muito aliviada quando meu irmão me contou que Hécate e Moros te trariam de volta, em agradecimento até mesmo ofereci minha morada a conselheira do Olimpo, mesmo sendo ctônica meu templo parece ser suficiente sombrio para seu agrado agora que o imperador dos mortos impediu a entrada de qualquer divindade em seu reino. Quanto a Moros pedi que Hermes lhe desse uma aljava de minha parte, não há muito que se possa oferecer a um deus como ele.* – Deu de ombros.
-Obrigado, tia – Disse suavemente, o carinho dela passando agora a seus largos cabelos, porém logo sua expressão se franziu – Então Hades não foi destruído?
- Não, sequer tenho certeza se isso é possível. – Comentou com simpleza – Porém parece que seu reino quase caiu em declive, tremores formaram maremotos nos oceanos de Poseidon e o Etna entrou em erupção, Hefesto até teve que reforçar as correntes para que Tifão não escapasse. Contudo, pouco depois que meu irmão te trouxe de volta tudo cessou e as entradas da terra dos mortos se fecharam, segundo Hermes nos disse. Parece que depois de ser arrastado ao conflito pela Terra o imperador das trevas preferiu manter todos distantes – Um longo suspiro incômodo deixou os lábios da divindade - Me preocupo com o caminho que minha irmã Athena está tomando. Uma Guerra com o tio Poseidon não é realmente algo difícil de se conseguir, muito menos contra Ares, agora...Hades? Eu nunca vi meu tio pessoalmente*, porém, mesmo inflexível quanto ao seu trabalho, sempre me pareceu entre os seus irmãos o mais ponderado, tens que sê-lo para não ter trancafiado Herácles em seus domínios depois do episódio de Cérbero.
- Eu não vejo nada de “ponderado” no Guardião das Larvas* - Rebateu desgostoso enquanto a deusa lunar servia o liquido da ânfora no cântaro e oferecia ao menor.
- Sei que deves de estar enfadado com teu tio-avô, mas deves saber que a razão de tua morte recaí a Zeus, não a ele. Meu irmão ficou verdadeiramente furioso com Zeus quando soube, esteve desejoso de atentar contra nosso pai de novo em cega vingança. – Seu semblante passou a preocupação – Não foi nada fácil convencê-lo de não fazer isso.
- Meu pai esteve a ponto de atacar Zeus por minha causa? – Repetiu com voz aguda, empalidecendo, pânico em seus olhos enquanto seu coração acelerava, o que logo levou Arthemis a acrescentar.
- Não se preocupe, como eu disse, eu pude convencê-lo de não atentar contra o imperador dos céus – E com esses dizeres Épios respirou fundo, francamente aliviado -...Pelo menos isso ele não fez. – Seguiu mais baixo a jovem, apenada, mas aparentemente seu sobrinho não ouviu, focando-se no líquido dourado enquanto as batidas de seu peito se recuperavam da tensão repentina.
– O que é isso? - Perguntou.
- Ambrosia – Ela disse com um sorriso misterioso – Gostaria que houvesse uma cerimônia formal para comemorar sua promoção a divindade, mas teu corpo já está tão fraco do tempo que ficaste desacordado que temo que a qualquer cerrar dos olhos volte ao reino do teu tio-avô.
- Quanto tempo eu...Dormi? – Perguntou inseguro, vendo seu reflexo na superfície brilhante. Seus cabelos estavam desgrenhados e mais longos do que se lembrava, além disso, suas bochechas possuíam entradas que delineavam seu maxilar, contudo, apesar de claramente desnutrido, não sentia fome ou sede.
- O Sol de Apolo te manteve vivo – Disse indicando o astro que radiava através da janela tão ampla que mesmo um titã poderia atravessá-la sem ter que baixar-se – Mas um humano, mesmo sendo um semideus, não pode viver só de Sol, afinal, tu não és uma planta, quem dirá depois de manter-se dormindo por três ciclos lunares.
- Aah...É bastante tempo. - Não fazia a menor ideia de quanto eram três ciclos lunares, mas achava muito ofensivo perguntar. – Eu pensei que Moros já tivesse me feito um imortal.
- Ele não tem essa capacidade – Explicou com simpleza – Ele pode até preparar sua alma, mas não teu corpo, e o submundo e sua escuridão drenou todas as tuas forças. Agora beba, tua fraqueza me desola.
Com um sorriso fraco confirmou com a cabeça.
- Obrigado, tia. – Repetiu novamente, e então bebeu de um único sorvo, não fazia ideia do gosto e em sua ignorância esperava algo realmente ruim, por isso optou por tratá-lo como um remédio amargo.
Qual não foi sua surpresa então quando sentiu o líquido quente e doce descer por sua garganta tal qual mel, sentia-o percorrendo todo o seu organismo, como se de algum modo tivesse atingido sua corrente sanguínea. Logo uma sensação de ardência fez com que largasse o cântaro adornado com imagens de Dionísio a festejar, seu corpo tremeu com sensações que não conseguia processar com exatidão, até ser envolvido por um calor tão prazeroso que podia facilmente ser confundido com os prazeres da carne, por isso forçou a si mesmo a reassumir o controle de seu corpo e tampar sua boca antes que algum som desrespeitoso saísse frente a uma deusa virgem.
Esse movimento apenas fez a deusa rir.
- É bom, não crês? – Disse apoiando o rosto nas costas de sua mão e vendo o constrangimento contrário com graça – Seja bem-vindo aos imortais, Esculápio, deus da arte das curas.
-Eu... -Hesitou encarando suas mãos – Sinceramente esperava algo mais espetacular, pois não me sinto diferente, só...- Retirou suas cobertas da mais fina tela e observou curioso o resto de seu corpo - Aquecido.
- Tu já eras um semideus, a mudança não é tão grande. – Explicou com simpleza vendo como seu sobrinho ainda buscava qualquer alteração física em sua figura. – Mas agora poderá tornar-se invisível aos mortais, e brindar outros com tua capacidade e benção, mas isso só funcionará contra aqueles incapazes de usar cosmo. Além de, claro, poder amaldiçoar humanos se desejar. – Isso fez Épios apenas franzir a expressão – Embora imagino que isso vá contra quem és agora, pois se jurar curar, não deverias matar.
- Sim...- Disse simplesmente – Nunca gostei de ser um assassino, se matei no passado foi porque precisei. Me absterei ao máximo de ter que fazê-lo novamente. *
- Agora, se buscas algo diferente em tua aparência, aconselho-te a ver teus olhos. - Então Arthemis invocou em suas mãos uma de suas flechas, tão lustrosa que era possível ver seu reflexo, mesmo que diminuto, em sua ponta triangular. Pôde assim testemunhar como suas íris brilhavam em amarelo vivo, e logo suas pupilas se afinavam como de serpentes, para logo retornarem a circunferência habitual, porém ainda amareladas.
- Assustador... – Frente a isso a jovem apenas riu mais.
- Não te preocupes, tu te acostumas. – Tranquilizou-o - Isso te passa por tua afinidade com as serpentes, provavelmente poderá transformar-se em uma delas se treinares para tal. É algo bem útil para interagir com humanos ou mesmo transmitir-lhes mensagens.
Antes que pudesse afastar o pensamento, ocorreu-lhe que esta transformação poderia permiti-lo sempre estar a par do que aconteceria ao redor dos cavaleiros de Athena sem ter que manifestar-se e ferir com sua palavra, sendo uma mera serpente eles não poderiam identificar seu cosmo. Essa realização fez um pequeno calor esperançoso crescer em seu peito. Talvez assim poderia acompanhar as reencarnações de Astéria e Eri, enquanto encontrava um modo de quebrar a maldição sobre a alma da amazona.
Como se pudesse ler seus pensamentos a expressão de Arthemis tornou-se séria.
- Épios, eu gostaria de entender, no entanto, porque esse seu desejo súbito de ascender a divindade e apagar seu passado. Tão dura foi tua discussão com Athena? Ou talvez o luto tenha te corroído mais do que eu e meu irmão imaginávamos.
- Meus ideais e os de Athena eram completamente diferentes, eu, como curandeiro, não sirvo para servo de uma deusa que existe apenas para a guerra – Colocou com desgosto – Eu me orgulho de nossa vitória contra Poseidon, mas aquilo tratou-se de necessidade, todo o demais após minha partida se limita a disputa de egos.
- Pois bem, e disputa de egos é um resumo tão curto quanto preciso sobre o teor da maioria de nossas guerras. - Ponderou ela. – Principalmente quanto envolvem Athena, Ares e Apolo.
- Eu não quero participar disso – Foi sua única resposta – Eu não sou um víndice que se oculta atrás de palavras tão doces quanto falsas. Não acredito completamente que Athena deseje de coração salvar os homens, ela apenas quer manter o espólio que Zeus deu-lhe sem consultar a ninguém. – Percebendo tardiamente o teor de suas palavras, apressou-se a desculpar-se - Desculpe-me, sei que muito prezas tua meia-irmã.
Quanto a isso a divindade lunar negou com a cabeça, uma expressão triste em sua face.
- Como eu já disse, eu agora só vejo trevas no caminho de minha irmã, contudo, não falemos disso, já estavas a muito afastado dela para que este fosse o motivo de tua ascensão. – Retomou para si o cântaro agora vazio, alocando-o junto a ânfora em um pilar de mármore ao lado da grande cama - Foram tuas perdas que te motivaram a subir o Olimpo?
- As perdas dos meus antigos companheiros agora são irrelevantes, uma vez que não há nada mais que pode ser feito para salvar suas almas – Mentiu em tom áspero sem encarar a outra divindade diretamente - Seja como for, agora que eu sou um deus e tenho coisas maiores com que devo me preocupar.
- O teu pai até pode engolir essa tua nova filosofia de vida, mas crês mesmo, Épios, que tu podes convencer-me, ou pior, convencer a si mesmo do que estás dizendo? – Acusou a caçadora. – Eu te conheço desde que Apolo te aconchegou em seus braços após o parto, depois de tomá-lo do corpo de sua mãe através de um corte na carne dela.*
Frente a isso levantou o rosto, e pela forma dolorosa que a deusa encarava, sua expressão devia ser lamentável.
- Por que tu realmente escolheste tornar-te um deus? - Repetiu sua pergunta num tom suave, doce e ainda autoritário, tão típico da deusa virgem da natureza selvagem. Antes que pudesse conter, lágrimas escaparam de seus olhos.
- Eu quero me redimir, de alguma modo, por tê-los abandonado dessa forma – As palavras começaram a sair, incapaz de detê-las mais - Quero ser alguém capaz de dedicar a minha vida a outra pessoa com tanto amor e paixão quanto Astéria dedicava, eu quero um dia ter a mesma devoção pelos meus iguais e pelos meus diferentes que o perdido príncipe de Atenas possuía. Se eu não os tivesse conhecido, eu seria uma pessoa completamente diferente, eu seria arrogante, soberbo, apenas interessado em mostrar a minhas habilidades para o mundo e me vingar de quem duvidasse de minhas capacidades.
- Basicamente seria uma cópia exata de seu pai e seu avô - Brincou sua tia, fazendo um diminuto sorriso surgir na face chorosa do novo deus. – Isso seria um verdadeiro pesadelo.
- Sim – Concordou sem pensar, logo se ruborizando - Por favor, não diga a ele que eu concordei! - Acrescentou um apenado.
Frente a isso ela deu uma piscadela.
- O teu segredo está bem guardado comigo. Também pedirei para minhas satélites prestar homenagens fúnebres a teus amigos por poupar-nos desse tormento. – Então abriu os braços, oferecendo-lhe seu conforto – Agora não venha convencer-me que tua lamúria acabou, eu posso não ser Eros, mas só de ver-te posso sentir a tristeza emanando de ti. Deixe-me retribuir o carinho que dedicou-me quando da morte de meu amado Órion.*
As lágrimas que não haviam deixado seu rosto apenas se intensificaram, e sem fazer-se de rogado lançou-se contra os braços contrários e deixou-se consolar por ela.
Levaram largos minutos até que conseguisse se acalmar de seu doloroso pranto, ainda recostado sobre o tronco de sua tia, e pudesse voltar a falar, mesmo que numa voz cansada.
- Tia Arthemis, onde está meu pai? – Voltou a falar timidamente, sentindo-se pequeno contra ela, como se tivesse voltado a ser criança. – Eu gostaria de agradecê-lo.
Entretanto, a proximidade permitiu-o notar como o corpo dela se mostrou tenso com a pergunta, preocupando-o imediatamente.
-...O que aconteceu...?- Questionou hesitante erguendo o rosto para ver sua face.
A senhora da caça suspirou longamente, e então começou a contar.
- Seu pai não está no Olimpo – Isso fez o ex cavaleiro afastar-se da mais velha – Eu pude conter a fúria dele contra nosso pai Zeus, mas ainda assim as negativas sobre te trazer de volta subiram a cabeça dele – Ela negou com a cabeça – Tu bem sabes como és teu pai, age passionalmente primeiro e se detém para pensar só depois, muitas vezes arrependendo-se quando já tem sangue em suas mãos.
Isso só fez a preocupação de Asclépio crescer ainda mais, junto com sua culpa.
-...O que ele fez? – Perguntou, engolindo em seco – Quem ele matou? Quem ele amaldiçoou?
- Os ciclopes. – Declarou diretamente – Ele os exterminou para que Zeus não pudesse mais ter seus preciosos raios forjados, pois foi com um deles que Zeus te matou.
A boca do curandeiro estava aberta em um perfeito O. Um dos aliados mais antigos dos deuses, responsáveis por criar os três grandes tesouros, o raio mestre, o tridente, e o elmo de invisibilidade, tão úteis na guerra contra os titãs, simplesmente haviam sido mortos por sua culpa. Não sabia realmente como se sentir quanto a isso, por isso se limitou a levar ambas as mãos ao rosto e gemer de frustração.
-...E que castigo meu pai recebeu...? – Questionou sentindo um peso em seu estômago.
- Ele foi desterrado, reduzido a um humano e convertido em servo de um rei mortal – Imediatamente as mãos de Esculápio baixaram de seu rosto para encarar a mais velha completamente descrente – Porém só por um ano, se quer minha opinião foi uma pena bem branda. Ele deveria ter sido mandado para o Tártaro por esse crime, mas Hades tornou-se incomunicável depois de sua guerra contra Athena, e sem seu guardião é impossível acessar a prisão dos titãs, dando tempo para que nossa mãe pudesse convencer Zeus de uma pena mais suave.
- Eu preciso achá-lo! – Exclamou exasperado tentando afastar a imagem de seu pai no Tártaro por sua causa, dessa forma ergueu-se de qualquer jeito e como resultado estatelou-se no chão quando suas pernas não obedeceram seus comandos.
- Eu poderia ter te segurado – Comentou Arthemis sem mover-se, cruzando os braços de cenho franzido – Mas uma criança só aprende a andar se a deixamos cair. Eu já tinha te dito que tu estavas em recuperação, então não sejas teimoso e volte para a cama, teu pai está bem, o rei que o tomou como servo está tão encantado de sua presença em sua corte que eu duvido que ele esteja passando qualquer dificuldade.
- M-mas...! – Tentou argumentar ainda com o rosto contra o piso de mármore numa pose pouco gloriosa.
- Volte para tua cama agora ou eu lançarei uma flecha nesse seu traseiro erguido – A ameaça era verdadeiramente factível, ainda mais quando um arco se materializou nas mãos da caçadora.
Não querendo apostar sua nova imortalidade com a natureza selvagem de sua tia, ergueu-se com dificuldade e voltou para a cama sob a vigia estrita dela.
- Tem certeza que ele está bem...? – Perguntou aflito para a mulher que desde a morte de sua mãe havia se tornado o mais próximo de uma figura materna.
Tal questionamento fez a expressão da deusa suavizar-se novamente.
- Eu te garanto, assim que tu melhorares te emprestarei minha montaria e tu poderás comprová-lo com teus próprios olhos. Por ora, descansa Esculápio – Disse colocando a mão sobre sua testa – Recorda-te que agora tens a eternidade pela frente.
Aquelas palavras e tudo que significavam ecoaram pesadamente em sua mente.
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Esculápio estava de joelhos, sua mente completamente divagante no passado enquanto observava as cinzas de quem vigiou por milênios sendo levadas de suas mãos pelo vento, a cobra com o fragmento de alma de seu último assassinato serpenteou em seu pescoço, não tendo sido afetada pelo calor ou chamas que irradiou.
Não sabia dizer quando suas pernas cederam ou quando deixou de escutar as vozes ao seu redor.
-...Senhor Esculápio – A figura chorosa de Kiki surgiu à sua frente, mas não o viu realmente, mesmo quando este o abraçou com força, soluçando em seu ombro. A serpente agitou-se com a aproximação e esteve a ponto de atacar o lemuriano, mas o soluço do deus da medicina a deteve, voltando a enrolar-se obedientemente como se o lamento fosse uma espécie de ordem sem palavras. – Eu sinto tanto, me perdoe por não cumprir minha palavra e cuidar deles como eu disse que faria...
As palavras não chegaram ao seu cérebro, da mesma forma que seu organismo não reagiu para retribuir o gesto de consolo.
Mais afastado, Shion se limitou a baixar a cabeça, mas não teve muito tempo de pesar quando sentiu o pulso agarrado com força por Dohko, que sem encarar seu amigo diretamente o arrastou dali. O ex Grande Mestre tentou livrar-se do agarre, vendo preocupado sua deusa, mas essa, a igual que o deus da medicina, parecia completamente desligada da realidade seguindo a encarar os braceletes, não dando assim a mínima atenção para seu afastamento, enquanto Shura havia se aproximado novamente dela e tentava trazê-la educadamente conversar com ele, por isso então deixou-se fazer e arrastar.
Aiacos esteve tentado de segui-los, preocupado com o estranho agir de seus mestres, mas não o fez, claramente Dohko queria falar a sós com seu velho amigo, e devia respeitar sua vontade. Ao invés disso, caminhou a passos firmes até Poseidon.
O imperador dos mares parecia muito mais velho do que realmente era enquanto observava a interação do filho de Apolo junto a Kiki, ao seu lado Isaak também abraçava de joelhos seu autoproclamado irmão, tentando convencê-lo em meio a suas intermináveis lágrimas a entrar para a Fonte e descansar. Havok também não estava em melhor estado, fungando seu nariz, junto a Kasa, depois de todos os desenlaces. Este último sendo provocado por Io pela demonstração de coração mole, tentando, de seu modo, desfazer aquele clima pesado ocasionado pela morte do aquariano.
Entretanto, quando Neroda sentiu a aproximação do cavaleiro de prata, voltou-se para ele, Sorento e Krishna encarando atentos os movimentos contrários, apenas por se acaso, afinal, os nervos de todos ainda estavam exaltados depois do suposto julgamento.
- Senhor Poseidon – Inclinou a cabeça em respeito.
- Neroda- Corrigiu o menino, cruzando os braços agora que estava sem tridente – Apenas Neroda, não tenho nem quinze anos para ser chamado de senhor, deixo essa formalidade apenas aos meus homens.
-...Neroda – Repetiu, mesmo que incomodo com a pouca formalidade frente ao irmão de seu antigo deus – Eu sou o cavaleiro de prata de Taça – Inclinou-se ligeiramente em respeito novamente – Humildemente gostaria de pedir sua ajuda.
O grego ergueu a sobrancelha interessado, não imaginou que os cavaleiros confiariam nele tão rapidamente dado seu histórico, por isso não podia deixar de se perguntar se era a presença de Kiki ao seu lado que transmitia mais confiança aos servos da deusa, ou se este em particular era mais audaz e valente.
- Muito bem, no que seria? – Perguntou – Apenas quando souber o teor da ajuda que estarei apto para aceitar ou negá-la, mesmo sendo aliados nessa guerra, há limites para as coisas que eu estou disposto a fazer.
Havia falado com tanta pompa e propriedade que pôde até mesmo sentir o orgulho de seu músico dirigido a sua ações, o que o deixava bem satisfeito, afinal, nesses últimos treze anos, mais do que um de seus marinas, o austríaco também era algo como seu mentor e segunda figura paterna, por isso era sempre gratificante senti-lo orgulhoso de si.
Ao invés de responder a sua pergunta, o cavaleiro ordenou que sua armadura se retirasse, a qual formou uma taça perfeita ao seu lado, sentia como cada um de seus movimentos eram analiticamente seguidos pela dupla de marinas mais desconfiados, da mesma forma que sentia o olhar de Ikki viajando de suas costas a figura abalada de Athena, como se buscasse saber de onde viria o próximo movimento.
- Minha armadura tem características muito especiais – Anunciou – Uma vez que preenchida com água pode prever o futuro ou curar feridas ao ser ingerida, sua eficácia pode até mesmo se ampliar segundo a pureza da água nela depositada.
A compreensão então atingiu o senhor dos mares.
- Ah, entendi o que você quer, uma fonte de água pura, isso é fácil de fazer – Sorriu aproximando-se da mesma e esticando a mão direita com a palma aberta sobre a boca da grande taça prateada que batia em sua cintura – Até farei água doce dessa vez!
Seus olhos então brilharam no característico amarelo vivo divino, e em poucos segundos um líquido transparente preencheu da base até o topo. Imediatamente depois Neroda encarou a superfície da vestimenta, querendo saber seu futuro.
- Senhor, eu não sei se é uma boa ideia- Tentou orientar Sorento, mas já era tarde, seu jovem mestre já havia aberto um enorme sorriso depois de testemunhar a visão.
- Legal! Um rapaz loiro vai jogar vídeo game comigo! – Exclamou feliz, voltando a mostrar-se como a criança animada que era antes de toda essa história de guerra começar – Eu não sei quem ele é, mas já estou animado!
-...Eu pensei que previsões fossem sobre coisas mais sérias – Não pôde deixar de espetar Io.
- Elas mostram acontecimentos importantes, de fato – Confirmou Suikyo levemente desconcertado com a visão que sua armadura deu para o deus do mar, imaginando como isso poderia ser importante suficiente para ser revelado por Taça – Mesmo que na maioria das vezes não possamos entender como isso nos afetará.
- Me afetará que eu terei um parceiro de jogo – Findou a divindade com convicção – Eu só queria saber quem é, me parece familiar.
- Hmm...-Hesitou Aiacos – Fico feliz pelo senhor e obrigado pela ajuda – Em resposta simplesmente foi dispensado pela divindade com um gesto de mão impaciente, ocupado em descrever para Sorento como a pessoa era, e seu músico também franzia a expressão, alegando que os traços também pareciam-lhe familiares.
Com o objetivo cumprido, Suikyo tomou a taça com as duas mãos e a levou a passos rápidos até a Fonte, sem em nenhum momento encarar suas águas. Ainda que ligeiro, seu caminhar deu tempo suficiente para Ikki sussurrar uma mensagem ao guerreiro.
“Quanto tempo mais vai manter esse teatro?”
Aiacos não respondeu, franzindo a expressão, convicto em não dedicar sua visão nem a Benu, nem a visão do futuro que tentava fugir, e dessa forma entrou na ala hospitalar como Muh instantes antes, ajudar os que ali estavam, enquanto tanto Kiki quanto o suposto deus da medicina estavam ocupados.
Haviam limites para os poderes curativos de Taça, não podiam trazer nenhum ferido mortal de volta dos portões da morte, mas ao menos se sentiria mais útil aos seus atuais companheiros do que simplesmente mantendo-se parado.
Por sua vez, o agora ex cavaleiro de Áries havia tomado o rosto frio do ex cavaleiro de Serpentário entre suas mãos quentes, o olhar dele continuava sendo distante e sem foco, se fosse humano já o teria diagnosticado como estando em Estado de choque.
Porém, isso deveria ser impossível, afinal, o deus da medicina não deveria ser capaz de ficar doente, mesmo que fosse psicologicamente doente, Esculápio havia confessado isso a ele na ocasião que se conheceram na África, alegando que por seu corpo divino ser incapaz de adoecer, nunca desenvolveu depressão por seu passado, embora pudesse realmente se sentir triste e melancólico por mais tempo do que gostaria, seu corpo não podia ir além disso.
Limpou as lágrimas dos olhos dele com o polegar, sem obter qualquer reação em retorno, fazendo-o duvidar cada vez mais dessa certeza imunológica ao sentir um estranho frio desprendendo de sua pele e uma sensação pegajosa em seu suor.
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Uma biga dourada cruzou os céus, sendo conduzida por duas corças cuja pelagem loura era tão brilhante que pareciam ser feitas de ouro também. Com uma graça simplesmente inacreditável, elas pousaram no que parecia ser uma trilha de terra sem estrada, criada a partir do pisar de muitos homens e animais que circulavam por aquele caminho, o que deveria indicar civilização próxima.
-...Eu acredito que nunca vou me acostumar com isso – Resmungou Esculápio descendo da estrutura com cuidado – É muita grandeza para mim, seria muito mais fácil se houvesse simplesmente uma escada para o Olimpo – Então voltou-se para os animais, se alguma coisa acontecesse com eles estaria morto, novamente – Hãa...Vós podeis voltar ao Olimpo agora, eu vou ficar aqui na Terra.
Os animais o encararam por um longo momento no qual sentiu-se um verdadeiro idiota.
- Por Arthemis, eu ordeno que vós retorneis ao Olimpo...!- Tentou numa voz mais autoritária, e novamente, não obteve nenhum resultado além do bufo impaciente dos animais – Vaaamos, vós não podeis quedar-se.
Nada aconteceu.
- Parabéns Esculápio, és tu o primeiro deus que não consegue dar ordens sequer a montarias! – Gemeu com desgosto tomando da correia deles – Onde eu estava com a cabeça quando pensei em me tornar uma divindade?
Seguiu resmungando em autodepreciação, quando uma ideia lhe ocorreu.
- Espero que tia Arthemis não fique irritada por isso. – Assim fechou os olhos, e ao tornar a abri-los eles eram como os de serpentes, a igual que sua língua que agora era bifurcada e cumprida.
Os animais bramaram, voltando a galopar apavorados, fazendo uma curva entre a terra e o ar e assim retornando para o céu e desaparecendo entre as nuvens.
Frente a isso o curandeiro respirou aliviado, retornando às suas feições humanas e voltando-se para o caminho de terra, agora sozinho.
- Como é que eu vou achar um deus desterrado e com o cosmo selado? Feras é um reino enorme! – Ponderou começando a caminhar – Ele nem deve ter a mesma aparência, e para melhorar tia Arthemis nem me disse no que ele está trabalhando! “Um caçador deve sempre conseguir encontrar sua presa sozinho.” - Recitou numa voz falsamente fina - “Procurar por conta própria vai fortalecer seu caráter”. Eu nem sou um caçador para começo de conversa! Ela até mesmo parece o Sólon falando assim...- Engoliu em seco, sentindo um gosto amargo na boca ao se recordar de seu amigo ariano que como os demais devia ter esquecido de sua existência.*
Bateu ambas as mãos no rosto, respirando fundo para se acalmar, se continuasse maldizendo sua tia seria castigado, por mais que ela o amasse, não podia brincar com o orgulho dos gêmeos divinos. Além de apenas prejudicar a si mesmo estando a cada segundo lembrando do passado que deixou para trás.
Foi então que viu dois rapazes se aproximando, conversando animadamente, usando roupas tradicionais como si mesmo.
Não podia simplesmente chegar para eles e questionar se haviam visto o grande deus Apolo pelas redondezas, mas ao menos poderia conseguir mais informação sobre Admeto, o mortal a qual seu pai agora tinha que servir.
- Com licença – Aproximou-se – Será que vós sabeis dizer-me se- Deteve a frase em sua garganta, vendo como ambos seguiam conversando e rindo, sem dar a mínima atenção a sua pessoa, mesmo ao passarem do seu lado.- ...Invisível, Épios, tu és invisível – Disse a si mesmo batendo ambas as mãos contra suas bochechas novamente, como se tentasse acordar-se – Tem que aprender a controlar isso também...!
Ser um deus era muito mais difícil e muito menos retribuidor do que pensava. Tudo era muito novo, e sinceramente, tinha que admitir com vergonha que não estava se saindo muito bem.
Queria perguntar tantas coisas para seu pai, tinha tanto a aprender que chegava a ser assustador, ao mesmo tempo que uma parte de si apenas queria correr de volta ao casebre que se reuniram antes e durante a Guerra contra Poseidon e ficar ali, melancolicamente escondido, lembrando de seus companheiros caídos e de todos os seus erros, que em sua cabeça, os levaram a morte.
“Tu és mais parecido com teu pai do que eu gostaria, principalmente no quesito lamúria” – As palavras de Arthemis dançaram novamente em sua mente enquanto seguiu a caminhar sozinho, mais sozinho do que se sentiu em muito tempo.
Sabia que ela tinha razão, já havia perdido a conta de quantas vezes enquanto crescia havia visto seu pai chorando enquanto abraçava folhas de loureiro que um dia foram a ninfa Daphne, pela qual ele havia se apaixonado perdidamente depois de ter a insensatez de ofender a mira de um filho de Ares, no caso Eros, alegando soberbamente que o, na época, jovem deus do amor, não era suficientemente habilidoso na arte do arco e flecha como ele. Pois bem, como resultado o primordial, além de fazer seu pai se apaixonar, ainda tinha tido o despeito de acertar a ninfa com uma flecha de chumbo, fazendo-a desprezar Apolo acima de todas as coisas, ao ponto de preferir se tornar o loureiro a ser tocada pelo amor da radiante divindade.
Isso sem mencionar todas as vezes que tocava sua lira por horas ou mesmo dias sem parar num frenesi de autopiedade, submergido em absoluta tristeza na companhia de uma única flor de Jacinto, flor originaria do pobre jovem morto pelos ciúmes do deus Zéfiro que também o desejava.
A verdade é que também havia puxado a mesma sorte amarga no amor que a solitária divindade astral.
Não podia deixar de se perguntar se daqui a séculos ainda se sentiria esmagado pela perda de Astéria e Eri com tanta dor como a que seu pai sentia com a perda dos dois grandes amores de sua vida, se perguntava se algum dia conseguiria seguir em frente e apenas sorrir com a lembrança daqueles que mais tocaram seu coração.
No fundo, já sabia a resposta.
Para deuses o luto poderia ser ainda mais corrosivo, pois não havia a esperança de que um dia voltariam a nascer ao lado daqueles que amaram, pois por mais que as almas deles reencarnassem e pudessem ser presenteados com existências melhores, de forma natural não poderiam voltar a fazer parte de suas vidas como antes.
Sempre teve muitas ressalvas quanto a faceta explosiva, assassina, cruel e vingativa que seu pai possuía, tão diferente e discrepante da carinhosa e amoroso que sempre apresentava nos anos que participou de sua criação ao lado do centauro Quirón.
Porém, agora, graças a tudo que passou, conseguia compreender como nunca antes essa divindade tantas vezes dita como egoísta.
O mesmo Sol que possibilitava a vida, era o Sol que queimava os desertos.
Apolo nasceu com a ajuda de sua tia, que ofereceu uma ilha segura para que sua mãe Leto pudesse dar a luz, e mesmo sendo um bebê seu cosmo foi forte o suficiente para matar a serpente Python, salvando a si mesmo, sua irmã e mãe. Desde então foi coberto de atributos e adoração. Havia sido transportado a um pedestal tão alto, que tornava impossível que ele pudesse ver as pessoas lá de cima, como um verdadeiro astro rei.
Desde sua tenra idade sempre foi tratado como se fosse o verdadeiro príncipe do Olimpo, em detrimento de Ares, que era desprezado por seus pais por suas atitudes, fracassos e relacionamento adulteroso com Aphrodite em pleno Olimpo. Isso obviamente teve um forte impacto em sua atitude soberba e ególatra.
Apolo possibilitava a vida, mas não a entendia, mergulhado completamente em sua imortalidade superior. Os humanos não eram mais que formigas aos seus olhos e isso era assustador.
O assombrava pensar nas almas dos catorze filhos de Niobe, executados por seu pai e tia por ofenderem sua avó Leto, ou mesmo pensar que as mãos que o embalaram quando criança eram as mesmas que esfolaram vivo Marsyas depois de derrotá-lo em sua competição musical.
Talvez por isso Moros ou algum outro deus da morte o havia castigado a solidão, a amores findados das mais cruéis formas, por suas mãos em atos cegos que logo o corroíam em arrependimento, ou pela mão de outros, ciumentos de suas conquistas e posses.
Afinal, como Ícaro havia descoberto a custas de sua vida, qualquer um que se aproximasse demais do Sol, em pouco tempo iria do céu a morte.
E mesmo que tudo isso fosse verdade, esse temível e solitário Sol era seu pai, e o amava. O mesmo deus considerado por seus iguais e inferiores como egoísta, era aquele que havia arriscado parar no temível Tártaro por sua causa.
Por isso precisa encontrá-lo, precisava saber se estava bem, precisava saber se havia adoecido, precisava agradecê-lo, precisava abraçá-lo como a constrição digna de uma serpente.
Precisava pedir desculpas por tê-lo preocupado tanto, ao mesmo tempo que precisava, como uma criança, ser consolado por alguém que sabia que entenderia seus sentimentos ainda mais que sua tia.
Por isso caminhou por estradas e mais estradas de terra por pelo menos nove horas, sem qualquer descanso, e mesmo assim não encontrou nenhum sinal do paradeiro de Senhor da Lira.
Era, de fato, uma grande vantagem que não tivesse que parar para se alimentar ou mesmo dormir, tampouco sentir o cansaço flagelando seu corpo, mas isso não tornava essa busca menos enfadonha ou desesperante.
E se estivesse sendo prisioneiro do homem que era obrigado a servir? Talvez até mesmo estivesse passando fome!
Teve que controlar seu pânico quando já entrava a noite, para tanto decidiu recorrer a sua transformação como serpente, usando as narinas e sua língua, iria triplicar as suas chances de encontrar seu pai pelo cheiro. Tinha certeza que isso ao menos não havia mudado, mesmo Apolo sendo agora um mortal, o deus sempre teve um cheiro similar a girassóis e ervas medicinais que poderia reconhecer a distância.
Três horas se passaram em que seguiu pelos campos alvejados de flores e pastagens em sua forma animalesca, deslizar pelo chão rochoso era desconfortável e até mesmo doloroso, mas não se importou, era um imortal agora, precisaria de muito mais para causar-lhe um dano real, por isso seguiu focado em seu objetivo. Contudo, seu olfato ofídio se viu muito prejudicado e ludibriado quando foi se aproximando de um enorme rebanho de vacas e ovelhas particularmente fedorento, e tão absurdamente extenso que cobria três colinas inteiras. Com um tamanho assim só podia pertencer a um rei.
Teria que mudar seu caminho, se acabasse assustando uma parte desse gado como havia feito com a montaria de sua tia, acabaria gerando um efeito em manada que com certeza o pisotearia e sem dúvida também mataria qualquer mortal que tivesse o azar de estar por perto.
Estava para se arrastar entre a relva e se afastar quando o familiar cheiro que gritava “casa” chegou as suas narinas. Sem pensar a respeito, ergueu-se o máximo que pôde para poder olhar entre os animais, num movimento bem pouco natural para uma serpente, assemelhando-se mais a um cetro fincado no chão. Assim pôde ver uma figura curvada, quase corcunda, de cabelos negros espetados e pele morena conduzindo uma parte do gado para outra região onde os gramíneos ainda não haviam sido devorados.
Porém, como temia antes, suas ações impulsivas foram suficientes para começar um pequeno tumulto entre o gado, então antes que isso tomasse proporções perigosas, decidiu transformar-se novamente em humano, no entanto, sua transformação não aconteceu com imaginou.
Ao invés de um deus de feições jovens e longos cabelos negros, tornou-se uma visão no mínimo grotesca, um corpo coberto de escamas, com olhos de serpente, narinas de cobra, e roupas que pareciam se fundir em sua pele em algumas partes enquanto em outras parecia apenas um tecido normal.
- Sspera, calma! Eu não sou um monstro - Tentou dizer aos animais inutilmente, numa tentativa de acalmar os ânimos, olhando exasperado para o ignorante mortal na linha de fogo, ele teria uma morte dolorosa se isso saísse do controle. Isso seria mais uma história de um deus ocasionando a morte de um inocente movido por motivos banais. - POR FAVOR, PROTEJÁ-SE! – Gritou quando o os animais começaram a trotar e correr em direções diferentes, fazendo-o perder o moreno de vista, ainda assim, correu às cegas tentando achá-lo, tentando protegê-lo de qualquer forma jogando sua própria segurança para o espaço, pois sabia que sobreviveria.
Entretanto, tão rapidamente quanto se assustaram e começaram a correr, os animais se acalmaram sob uma melodiosa e hipnotizante voz a cantar, os sons que soavam como magia, paralisou os mamíferos, que voltaram a comer como se nada tivesse acontecido, eles provinham do jovem de antes que se aproximou com passos firmes, expressando-se com uma voz altiva e irritada, tão discrepantes ao seu canto anterior.
- Hermes, se estiver tentando roubar meu gado novamente, dessa vez com certeza eu vou- Ele parou sua frase na metade ao se deparar com a quimera humana e ofídia. Mesmo assim, contra todo o prognóstico, o mortal não se assustou, ao invés disso apenas se aproximou calmamente, ajoelhando de cócoras na frente da aberração. - É complicado se transformar nas primeiras vezes, tu precisarás se concentrar muito para esse tipo de coisa não acontecer. – Os cabelos eram diferentes, não eram ruivos e tampouco tremularam como chamas, mas seus olhos ainda eram azuis como a manhã mais limpa, além disso, ironicamente, haviam sardas e pequenas marcas de queimadura solar em sua face morena, causando um pequeno descascamento em sua pele.
Sem qualquer dúvida era Apolo, mesmo misturado ao odor do gado, ainda podia reconhecer aquele aroma tão familiar e confortável.
- Uma vez sua tia ficou com galhadas por uma semana, eu nunca ri tanto na minha vida estando sóbrio – Gracejou com um sorriso - Mas não a deixe saber que eu te contei ou nós dois seremos castigados, isso era para ser um segredo entre nós e Hefesto, que teve que cortá-las.
Sem pensar duas vezes, abrindo uma enorme expressão de alívio, o deus da Medicina apenas se lançou nos braços do recém-chegado, sem tecer comentários sobre o que havia dito.
- Pai, eu finalmente te encontrei, eu estava tão preocupado! - Lamentou, sem se importar que parecia uma criança falando assim.
- Espera, Épios...! -Não tendo forças para segurar o homem adulto que mais parecia uma górgona, simplesmente foi esmagado por seu peso, batendo com tudo seu corpo humano contra o chão duro e a cabeça contra uma rocha.
- POR ZEUS, PAI!! – Exclamou em pânico vendo a expressão dolorosa do pastor, e tal sensação só piorou ao tentar levantá-lo e sentir sangue decorrente do ferimento em sua nuca – O QUE EU FIZ?! Eu vou cuidar disso, não se preocupe! – Disse atropeladamente ajudando-o a se sentar e acumulando cosmo em suas mãos para assim poder fechar o ferimento devidamente.
-...Esculápio – Nomeou em uma peculiar voz que misturava dor e graça – Pare de gritar, estás assustando o gado de novo, vamos acabar sendo pisoteados, saiba que é realmente difícil cantar com uma concussão, e eu definitivamente não quero morrer assim – O mencionado parou seu escândalo, mordendo o lábio inferior sem deixar de medicar o ex-deus – Ou será que por acaso está tentando me matar? Porque está fazendo um bom trabalho
- N-não, eu-! – Tentou dizer para se justificar, receio crescendo em seu interior com a “acusação”.
- Deixa eu adivinhar, isso é ideia de Arthemis? – E ao ver o pânico e incomodo crescente em seu filho, onde suas mãos até mesmo começaram a tremer, apressou-se a acrescentar - Calma, Épios, eu só estava brincando, eu também estou feliz em te ver, já estava começando a pensar que tu havias esquecido teu velho pai.
Quanto a isso, serpentário negou com veemência, um enorme alívio o invadindo.
- Eu jamais abandonaria o senhor – Decretou com firmeza – Eu não estaria vivo se não fosse pelo que fez por mim... – Novamente lágrimas brotaram em seus olhos enquanto seguia com sua cura. – Perdão por demorar tanto em procurá-lo, eu tardei mais tempo do que gostaria me recuperando da escuridão do mundo inferior.
- Era esperado, um reino sem o brilho de Hélio é verdadeiramente um tormento, mesmo o sol falso dos Elísios não é suficiente para suprimir as necessidades de deuses como nós – Chegava a ser constrangedor como seu pai naturalmente já o tratava como divindade, mesmo que fosse algo tão sumamente recente. Quando terminou os primeiros socorros, foi a vez de Apolo o tomar para um apertado abraço, deixando deslizar por seus braços os dois casacos de pele de caça que usava e que o deixavam corcunda – E falando em calor do Sol, meu filho parece uma pequena fogueira em formato de górgona, quem poderia ter produzido divindade tão perfeita? Ah claro, fui eu – E riu de seu próprio gracejo, aconchegando o menor como se não passasse de uma pequena criança - Dessa forma eu não vou conseguir te deixar ir até o inverno de Despina passar!
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Como uma divindade filha de um deus do Sol poderia estar tão gelada?! Kiki não pôde deixar de perguntar-se com exasperação encarando o olhar sem foco do grego.
Buscou cegamente e agradeceu ao encontrar o estetoscópio que estava usando com os feridos da Fonte ainda preso ao seu pescoço, sinceramente havia esquecido que ele estava ali com tudo que havia acontecido naquela maldita madrugada.
Colocando o equipamento, seus receios se tornaram ainda mais palpáveis, o coração do grego estava sem dúvidas descompassado numa evidente taquicardia, tentou estralar os dedos na sua frente ou mesmo chamá-lo e, como antes, nada adiantava, estava inconsciente para o mundo mesmo que de olhos abertos. As mãos que antes seguravam o corpo caído de Camus estavam trêmulas e agitadas, fazendo as dúvidas de Kiki caírem por Terra.
Olhou aos arredores buscando opções, seu novo senhor conversava com seus novos companheiros depois da saída de Taça, considerou dar ao mais velho um pouco da água da armadura prateada, mas logo descartou a ideia, não havia sentido usá-la se os ferimentos não eram físicos.
Se seu corpo era capaz de padecer, um sedativo poderia funcionar, de fato, um sono reparador era a melhor forma de atuar quando as palavras já não o atingiam, no entanto, havia um sério empecilho para isso.
O olhar do ruivo voltou-se a Athena, a qual seguia ensimesmada encarando os braceletes, depois de toda a cena de Camus e das palavras do próprio Asclépio sobre sua verdadeira identidade, era uma questão de tempo para que ele fosse alvejado por perguntas, isso só não havia acontecido ainda por causa do impacto da morte de Camus e da pira improvisada que dissipou seu corpo, não havia qualquer possibilidade do ex cavaleiro de Serpentário ganhar o direito de descansar na Fonte da deusa depois de todas as suas acusações.
Seu olhar então encontrou o cego de Shiryu, que não havia se movido ainda de seu lugar próximo a Saori, como se fosse uma estátua. Mesmo sem a luz de seus olhos, ele pôde notar que era observado e ainda por quem, por isso fez um sutil gesto com a cabeça em direção a Athena que o lemuriano compreendeu tão bem quanto se palavras tivessem sido usadas, afinal, tinha, infelizmente, conhecimento de que a deusa o havia destituído do cargo de Grande Mestre e colocado Hyoga em seu lugar, sem saber que havia simplesmente nomeado para a liderança seu atual inimigo.
Ele estava em maus termos com a divindade da guerra depois de tudo que aconteceu e não queria precipitar-se em fazer qualquer movimento que fosse mal interpretado, por isso, se mantinha ao lado dela como um Golem.
Não que estivesse em melhor situação, sua lista de atos de traição era bem extensa, por Camus haver assumido toda a culpa de seus crimes, havia expiando assim a si e Afrodite de possíveis punições por serem cúmplices de suas ações, ao menos até segunda ordem. E ainda que fosse assim, em seu contra ainda pesava o cetro falso e sua repentina mudança de exército. Sabia que com Poseidon presente se oferecendo como aliado, Athena não atentaria contra nenhum dos marinas, isso o incluía, por ora então poderia seguir ajudando sem temer repreensões severas.
Era realmente constrangedor perceber que já estava dependendo da proteção de seu novo senhor, mas não era o momento de colocar o dedo nesse assunto.
Com isso em mente, resolveu pedir sua ajuda para levar Esculápio de volta a Atlântida, lá o divino doutor estaria seguro e poderia descansar. A descida ao reino do senhor dos mares provavelmente levaria a uma piora física significativa, mas era a melhor opção que tinham no momento.
Com dificuldade, acomodou o homem apenas um centímetro mais alto, mas sem dúvida bem mais pesado, como podia em seus braços e foi até Neroda.
Pôde assistir com peso na consciência como Suite, que depois da saída de Suikyo havia ido até Soleil e Isaak, estava agora de joelhos no chão abraçando seu amigo de infância, que embora tivesse deixado de chorar, ainda parecia frágil e prestes a quebrar. Agora não podia fazer mais nada além de observar, com um enorme peso na consciência e sentimento de culpa, como Marina e Amazona levavam com cuidado e zelo o Espectro para dentro da fonte com a autorização de Neroda, enquanto Athena não parecia prestar-lhes atenção.
Já estava há poucos passos do mesmo quando recordou-se de outra pessoa presente, cuja ajuda seria menos danosa ao filho de Apolo do que um mergulho forçado a Atlântida.
- “Ikki” – Chamou mentalmente a atenção do antigo Fênix, que imediatamente descruzou os braços e virou em sua direção. – “Eu preciso da sua ajuda.”
Mesmo com o cenho franzido o servo da morte foi em sua direção.
- Vai me dizer que não tem força para carregar ele sozinho? – Ironizou assim que se aproximou – Achei que você tivesse evoluído mais do que isso, pivete. – E tornou a cruzar os braços com arrogância ao invés de oferecê-los para ajudar.
- Não – Kiki ignorou rotundamente a provocação, fazendo a expressão contrária se contrair - Preciso que me ajude a aquecer o corpo de Esculápio com seu cosmo – Sem esperar que o outro respondesse levou o deus aos braços do mais velho, que o segurou por reflexo, e esteve ao ponto de soltá-lo no chão sem qualquer consideração quando a serpente no pescoço de Épios se enrolou também em seu pescoço, como se fosse uma corda - ...Hãaa, obrigado, hmmm...Tônio – O marina resolveu por nomear, apesar do animal ainda lhe encarar ameaçante, e logo voltou-se novamente a Ikki – Escute, Esculápio tem nos ajudando muito...
- E por que VOCÊ não o aquece com o SEU cosmo? – Acusou extremamente irritado.
- Ele é filho do deus do Sol e você ainda é um pássaro de fogo – Colocou exasperado. – Eu já tentei aquecer alguém com o cosmo antes e...- Ruborizou-se ligeiramente lembrando-se com tristeza de quando, junto a Camus, resgataram Milo na Sibéria – ...E não funcionou, mas se Shun pôde fazer isso por Hyoga, você sendo um guerreiro de fogo eeee irmão do imperador do submundo deve conseguir fazer a mesma coisa! Então faça.
- Quem você pensa que é para me ordenar alguma coisa?! Nem fudendo que eu vou ficar abraçado com esse cara que eu nem conheço – Bramou irritado sem pensar, e ao ver a expressão do contrário azedar-se percebeu que havia provocado Anfisbena com uma lança curta.
- Deixa eu falar em um idioma que você entenda então. – Colocou numa voz frigida e ameaçante, sentindo-se uma pilha de nervos devido ao cansaço e as perdas da noite – Em primeiro lugar ele não é um “cara” é o deus da medicina, em segundo, esse homem arriscou TUDO para nos ajudar, mesmo sendo considerado um inimigo de Athena, como você, ele não hesitou em vir conosco de Atlântida. Tudo que eu peço então é que você o aqueça até pelo menos 37,5 graus, porque ele está em Estado de Choque depois de perder as duas pessoas mais importantes da vida dele em UMA FUDIDA NOITE. Shun não se tornou menos homem por fazer isso por Hyoga, e ainda usava uma armadura rosa com peitos, então você seria tão amável de obedecer uma maldita ordem na vida, colocar esse orgulho masculino NO CARALHO e fazer isso por mim até que ele recupera a consciência e possamos continuar trabalhando para que a PORRA do reino de seu irmão não fique lotado com os amigos dele?! – Exclamou soltando fogo pelas ventas. Tentou se acalmar, para logo acrescentar com em um sorriso no mínimo tétrico – Conseguiu me entender agora?
Ikki não respondeu, sinceramente não sabia como responder a essa explosão tão fora do personagem, ou ao menos, bem contrastante em comparação ao Kiki de 12 anos que conhecia. Claramente o marina esteve, durante toda a noite, a um passo de explodir, seus gritos constantes dentro da Fonte eram prova disso, exaustão, raiva e frustração estavam impressos em sua face, mesmo irritado com suas palavras não era estupido e podia perceber que não era o momento de provocá-lo mais do que já havia feito.
Por isso se limitou a crispar com a boca e sentar-se no chão, Tônio agora permitindo-o mover-se, como se tivesse entendido tudo, voltando ao pescoço de seu dono. Assim posicionou o tronco do deus contra seus braços e parte de seu dorso sobre seu colo, começando a emanar sua cosmo energia, sem deixar de encarar de mal grado o lemuriano, embora no fundo sentia-se gratamente surpreso pela imposição e presença que havia desenvolvido.
- Obrigado – Disse simplesmente, bagunçando seus cabelos cansado, sentando-se também, sentindo a dor pulsante de sua perna perdida com esse ato impensado. Com amargura percebia que não conseguiria mais se levantar sem ajuda devido a isso. Agradecia internamente a ajuda de Suikyo e sua armadura, pois depois de perder diretamente Milo, Camus e Máscara da Morte, estava francamente chegando ao seu limite.
Tudo que mais queria agora era adormecer também, e que sob a luz do Sol de um dia com novas esperanças, alguém lhe dissesse que os dias 25 e 26 de janeiro nunca tinham acontecido, e tudo que viveu não passava de um horrendo pesadelo originado por um vingativo Hypnos.
Uma voz infantil, contudo, o trouxe de volta a realidade tão amarga.
- Por que você tampou meus ouvidos? Eu queria ter escutado! – Choramingou Neroda alguns passos do trio. – Eu adoro ver o surto dos outros!
Kiki ruborizou-se completamente ao recordar que estava a poucos passos do seu recém senhor, que teve seus ouvidos destapados por um Sorento que o observava com reprovação, enquanto Krishna tinha feito o mesmo com um confuso Havok, enquanto Io, e especialmente Kasa, riam da situação.
Irritadíssimo, Ikki lançou uma nova ameaça de morte ao marina que matou no passado, recebendo ainda mais risadas em troca e um dedo do meio.
- Pare com isso Kasa, tenha alguma educação – Recriminou o músico ainda vendo o novato de soslaio que sussurrava um envergonhado “desculpa”.
- Não seja chato Sorento, deixe-o extravasar, um ataque de raiva não faz mal a ninguém! – Resmungou Poseidon, sem deixar de sorrir provocador para um colérico espectro, então parou, como se ponderasse por alguns segundos, voltando-se a Kiki – Não, provavelmente faz sim, mas tem vezes que não tem como evitar.
- Como o senhor pode estar tão tranquilo...? -As palavras saíram de sua boca antes que pudesse detê-las, mas para seu grande alívio Neroda não pareceu ofendido com elas.
- A vida de Aquário realmente não foi das melhores – Explicou, aproximando-se do ruivo – Mas no fim, ele pôde expressar tudo que queria, morreu mais entre amigos do que inimigos, e o mais importante – Frisou o senhor dos mares com convicção – Ele foi guiado para o reino do meu irmão, eu pude sentir, mesmo que fraca, sua proteção o resguardando. Então não se preocupe, ele ficará bem.
Ao fim de seus dizeres, o adolescente tocou a cabeça do jovem adulto. Por um segundo, como se seus desejos tivessem sido atendidos, sentia como se não estivesse mais no Santuário devastado, ao invés disso, por seu corpo passava uma sensação tão reconfortante que o fez fechar os olhos. Havia um formigar passando por seu pé, muito semelhante ao que se experimentava ao pisar a areia úmida, sentia pequenas marolas mornas o atingindo como o banho de mar mais agradável que já havia experimentado, quase até podia sentir o salgado do mar contra suas narinas. A sensação era familiar, a mesma que havia conhecido ainda em Atlântida antes de ser posto para dormir.
Então esse era o cosmo de Poseidon? Não parecia em nada aquele assustador que sentiu na batalha do templo submarino.
“Mas é claro que não”, sua mente respondeu sua própria pergunta tola. Essa era a energia do deus dos mares sentida por um marina.
Ela era muito mais intensa e bem mais reconfortante do que lembrava no reino dos Atlantes, principalmente em comparação ao cosmo de Athena, pois com os anos a energia de sua antiga deusa havia perdido muito de sua sensação cálida de outrora.
Quem sabe isso fosse sua culpa em primeiro lugar, talvez sua desconfiança para com Athena o impedisse de sentir a reconfortante energia como antes? Suas decepções com a atitude de afastamento da deusa, sua curiosidade constante sobre Atlântida e Sólon, e sua lista de traições contra a autoridade de Saori Kido fossem respostas mais do que suficientes.
Ao reabrir os olhos, Anfisbena sorriu muito mais calmo e disposto ao seu senhor que retribuiu o sorriso, para logo voltar-se a Serpentário.
- Eu imaginei que os acontecimentos aqui fossem perturbar profundamente o filho de Apolo, porém não pensei que isso pudesse apagá-lo assim. – Comentou caminhando até Ikki, mais uma vez mostrando uma atitude que parecia bem mais velha do que aquela que seu corpo mortal indicava – A melhor forma de atingir Apolo sempre foi no coração, mais precisamente em seus sentimentos, sempre foi seu ponto fraco, e aparentemente de seu filho favorito também, mas não posso realmente culpá-lo, está sendo uma noite realmente desgastante. – O pequeno deus mortal não pôde deixar de pensar em seu pai Julian, e o quão difícil foi deixá-lo para trás.
- Eu espero que ele fique bem – Confessou Kiki, sentindo-se estranhamento confortável de falar com o mais jovem, enquanto Benu não prestava mais atenção a dupla, como se estivesse focado em algo mais importante, seguindo a emanar sua energia. - Eu não entendo o que está havendo, quando nos conhecemos ele me contou que era imune a qualquer tipo de mal que pudesse afligir seu corpo – Porém, parou ao ver que a expressão do ex Fênix se franzia cada vez mais, olhando diretamente para o deus em seus braços.
- Há algo de errado – Disse, e o lemuriano engoliu em seco vendo como os olhos do irmão do senhor dos mortos se tornavam amarelos vivos enquanto dizia isso – Você disse que ele é o deus da medicina, certo?
- Sim – Disse simplesmente – O que tem isso?
- Bem, ele não é um deus – Foi direto ao ponto, seus olhos retornando a cor normal, um suspiro cansado escapando de seus lábios pela manifestação, ao tempo que Neroda e Kiki abriam expressões surpresas - Pelo menos sua alma não é mais a de um.
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- Então a tia Arthemis realmente sabia onde o senhor estava – Colocou com uma ponta de rancor enquanto adentravam a um pequeno, porém extremamente confortável, casebre de madeira, em muito superior àquele que se escondia com seus companheiros cavaleiros no passado. Nesse lugar o móvel que mais se destacava era uma cama extremamente grande, forradas de peles de animais e retângulos de tecido fofos que chamaram a atenção de Asclépio.
- É claro que ela sabia, sua tia age como se fosse minha esposa – Disse revirando os olhos – Pendente de todos os meus passos, chega a ser irritante.
-O senhor não age de forma muito diferente...– Sussurrou recordando-se imediatamente de Órion e a história do escorpião gigante. Então seguiu, apontando para ditos objetos retangulares - O que é isso?
- É uma espécie de coxim - Disse o deus pegando um e afofando-o – Alguns tem penas o preenchendo, outros tem palha, são realmente deliciosos para se deitar em cima. As classes mais nobres os usam em seus leitos, são verdadeiramente reconfortantes depois de um longo dia de trabalho, eu já tinha visto antes quando visitava alguns de meus amantes, mas nunca realmente parei para dormir sobre um deles, afinal, minhas visitas não eram exatameeente para recorrer a Hypnos. – Então passou o item ao seu filho com um sorriso de maliciosa nostalgia, que fez Épios lamentar internamente, sempre era desconfortável saber da vida amorosa ou sexual de seu pai, ainda assim deixou isso de lado focado na almofada, ficando impressionado com sua maciez – Quando retornar ao Olimpo irei levar algumas comigo, é mais confortável do que dormir apenas sobre peles, e sem dúvida pinica menos. Os humanos às vezes criam coisas bem uteis, Prometeu no fim realmente fez um bom trabalho dando o fogo a eles. O rei que tu servias não tinha essas invenções?
Imediatamente sua expressão decaiu.
- Erisictão era um príncipe meu pai, não um rei, e eu realmente nunca vi nada disso nos aposentos dele, por vias ele costumava ter uma cama apenas de pedra não forrada pelo que me lembro, segundo seu pai era parte de seu treinamento, para fortalecer o corpo e o espírito. – Explicou numa voz quase morta.
- E Athena realmente estava de acordo com isso? Que um príncipe da cidade que a honre tenha a vida de um mendigo? Ou melhor, tivesse. – A correção que indicava a morte do quase monarca apenas fez a expressão de Asclépio decair mais, enquanto Apolo apenas observava suas reações de soslaio.
- Sim... – Seguiu ligeiramente trêmulo – Athena parecia satisfeita com isso, não tenho certeza se a ideia partiu dela ou se o rei Cécrope que a engenhou, seja como for, creio que o santuário que seus cavaleiros planejam criar será da mesma forma.
- Isso parece deveras desconfortável - Então o mortal jogou-se na cama, espalhando almofadas para todas as direções, para logo bater em um lugar ao seu lado para que seu filho, agora novamente humano e não ofídio, deitasse consigo. - Athena tem um jeito peculiarmente espartano de gerenciar a monarquia de sua cidade, nisso ela se parece muito com sua tia, ela também dorme numa dessas. Por outro lado, mesmo sendo um incivil, nem Ares é tão bruto, por algo ele é o deus da luxúria, e tu não podes ser o deus da luxuria com uma cama ruim. – Quando notou o olhar assustado de seu filho, questionou – Por que estás me olhando assim?
- Como o SENHOR sabe como é a cama de Ares? – Questionou com assombro. E para aumentar seu choque, Apolo apenas se dispôs a rir – Paaai! – Chamou como uma criança enquanto o olimpiano seguia em sua gargalhada.
- Não, não somos amantes, se é o que tu estás pensando! – Respondeu com a voz cansada, limpando pequenas lágrimas de seus olhos e acalmando a respiração – Pelo brilho de Hélio! Isso de ter que parar para respirar é horrível! Ai ai...- Exclamou levando a mão ao estômago e rindo mais um pouquinho, vendo como Esculápio achava uma nova função para a almofada: Cobrir seu rosto envergonhado. Só depois de longas aspirações o deus solar pôde seguir, com a garganta seca. – Deixe-me dizer-te uma coisa, deus novato, a vida sexual de Ares, por sua relação com Aphrodite, é praticamente nosso assunto de cada manhã no Olimpo, só as deusas virgens se esforçam em não saber. É verdade que eles foram pegos juntos pela primeira vez na cama de Hefesto, mas quando Aphrodite está irritada com seu marido, e ela a maioria das vezes está, não é difícil a escutar tecendo comentários de como é a cama de seu amante. Assim ela consegue irritar Hera e Hefesto com uma única flecha. – Isso fez o ex mortal lamentar internamente, definitivamente não queria morar no Olimpo - Quanto a mim, eu não tenho interesse de esquentar os lençóis de nenhum dos dois, tu não ganhas nada além de dores de cabeça sendo amante da deusa do amor, quanto a Ares. Bem, ele é sem dúvida muito belo e sedutor, porém é muito selvagem e violento para os meus altos padrões, não, simplesmente não daria certo. Eu prefiro continuar a tê-lo apenas como aliado de Guerra. Poréeem confesso que em nossas festas, gosto de apreciar quando ele fica bêbado e começa a-
-...Eu já tive informação suficientes, pai, obrigado -Cortou bruscamente, tentando tampar seus ouvidos com o travesseiro, o que apenas fez o mais velho rir de novo.
- Aaah, que saudade do Olimpo, as coisas no reino dos humanos não são nem de longe tão interessantes - Soltou então o filho de Zeus fechando os olhos – Minhas Musas devem estar tão desoladas sem a minha presença ao lado delas, suas melodias tão tristes. Eu amo todas as nove, mas como não me permitiram casar com todas, preferi ficar solteiro*. É bem mais digno do que ser como Zeus.
Mesmo mudando de assunto Épios ficava cada vez mais tenso, baixando o coxim.
- Quanto a isso, pai... – Começou em tom relutante desviando o olhar para o chão - Eu realmente queria te agradecer, por tudo que o fez por mim, se não fosse pelo senhor eu ainda estaria morto, e se não fosse por mim…- Mordeu o lábio inferior com culpa - O senhor não estaria passando por esse castigo.- Sentiu-se como uma criança idiota quando lágrimas novamente tingiram seus olhos, a lamúria que segurou desde que havia pisado naquelas terras. - Eu só...
Antes de poder erguer o rosto para se dirigir novamente ao mais velho, se viu preso nos braços mortais, que conduziram seu rosto ao tórax que cheirava ligeiramente a gado e girassóis.
- Chores, meu filho, sabe que eu entendo tua angústia, então apenas a deixe sair, a sinto detida em teu coração desde que te tirei das portas do submundo. - Acariciou gentilmente seus cabelos - Meu pequeno Iatrus*, desejaria poder curar tuas dores, porém mesmo eu não sou capaz de curar as dores da alma.
E pela terceira vez naquela noite chorou nos braços de seu pai, que apenas acariciou sua cabeça sem dizer nada por largos minutos, como havia feito sua tia. E como antes, de certa forma, sentia-se um pouco melhor.
Quando o lamento estava por findar, tentou se desculpar atropeladamente.
-P-perdão e-eu me exaltei muito...- Porém Apolo colocou o dedo indicador frente aos seus lábios, impedindo-o de continuar.
- Pare de pedir perdão, um deus não deve se desculpar assim. Lembre-se que tu és um ser perfeito agora.- Colocou com autoridade, de forma quase sufocante - Tu tens todo o direito de ficar triste, meu filho, a tristeza também faz parte da perfeição, principalmente em um mundo cercado de imperfeições, mas a autopiedade não deve fazer parte dessa tela. Eu e Quirón não te criamos para que tu se inferiorizes assim, nem como mortal e muito menos agora como um deus.
Engoliu suas palavras, seus olhos ainda inchados, o que conseguiu fazer seu pai suspirar e erguer-se parcialmente do leito para puxar uma lira apoiada em um pequeno móvel de madeira.
- Eu gostaria de ter conhecido a donzela que fez tanto em teu coração, mesmo sendo humana, devia ser fascinante - Tal comentário não pôde deixar de fazer Épios abrir um micro sorriso. Mesmo que tivesse partido intocada, Astéria poderia ser tudo, menos uma “donzela convencional”. Seu pai sem dúvida a reprovaria se pudesse tê-la conhecido - Por ora, deixe-me tocar um pouco para acalmar as dores de teu coração. Agora, não te preocupes por minha penitência, eu já cuido do gado divino do Olimpo, a diferença não é tão gritante, e como podes ver, o rei Admeto, a qual sirvo, vem me tratando muito bem, sua hospitalidade é tal que não permite faltar-me absolutamente nada, mesmo eu sendo um condenado em sua posse. Em retribuição estou trabalhando para duplicar seu rebanho - Um pequeno sorriso maroto se formou em seus lábios - Além do mais, todos sabemos que é uma questão de tempo até que me levem de volta para casa, o Olimpo não pode ficar sem o deus do sol, da profecia, dos oráculos, da música, do canto e poesia, do tiro com arco, das pragas e doenças, da proteção dos jovens e da cura por muito tempo. - Colocou com completo arrogância - Muito embora soube que agora surgiu um novo deus da cura que pode ocupar perfeitamente uma dessas funções. - E deu uma piscadela para o menor que ruborizou-se com orgulho, não era qualquer um que poderia gabar-se de ser elogiado pelo mesmíssimo Apolo em uma das artes que ele dominava.
Em geral a pessoa só era esfolada viva ou transformada em aranha por tentar competir com um deus, entre outras coisas piores.
E assim ele se pôs a tocar, imediatamente Asclépio sentiu como todas as suas dores e preocupações desapareciam com o soar da exuberante lira, não sabia dizer quantas horas seu pai tocou para si, sentado ao seu lado imerso em suas melodias. Foi apenas quando percebeu que os dedos dele começaram a ficar vermelhos devido ao esforço de puxar as cordas, que pediu educadamente que parasse, pois claramente seu pai ainda não entendia bem os limites do corpo humano, e assim voltaram a estar deitados lado a lado.
Conversaram sobre muitas coisas, sobre deveres de um deus, sobre como funcionavam as oferendas, a sensação prazerosa que um sacrifício proporcionava, o que, no entanto só deixou Esculápio desconfortável, pois não se imaginava recebendo sacrifícios humanos ou animais, era contraditório uma vez que sua função era justamente salvar vidas. Até mesmo tocaram no assunto de sua mãe, que sempre deixava Apolo muito desconfortável, mas como negar algo aos olhos literalmente chorosos de seu filho era uma tarefa árdua demais para o seu coração mole, o assunto finalmente veio à tona.*
Arsinoe*. esse era seu nome, e curiosamente ou por obra do destino, suas irmãs Hilaeira e Phoebe foram sequestradas justamente por Castor e Póllux de gêmeos, que queriam fazer delas suas esposas. Não sabia o que havia acontecido com os dois depois disso.
Nunca foi muito próximo dos cavaleiros de gêmeos, mas depois de saber disso acreditava que havia sido melhor assim. Sequestrar esposas era algo assustadoramente normal para os tempos em que viviam, porém isso não significava que gostava da ideia ou aprovava o ato.
Além disso, Arsinoe também era o mesmo nome da serva que salvou a vida de Mortalha Estirpe das garras de sua mãe quando ele era jovem. Não eram a mesma pessoa, mas tantas coincidências assim com seus antigos companheiros só o faziam pensar como o destino de todos já estava escrito para se entrelaçar.
A conversa foi se estendendo, em que Apolo desatava a falar todas as vantagens de ser um ser superior, era visível em seu rosto que estava exausto, e começou a lhe preocupar novamente o quanto ignorava completamente seus atuais limites humanos. Era óbvio que o deus não entendia os homens ou suas necessidades mesmo estando no corpo de um há pelo menos três meses. Isso o fazia lembrar da história de Trôfonio, o arquiteto que havia projetado o famoso templo de Delfos, como recompensa pela sua grande obra, o deus do Sol o presenteou com a morte, pois em sua cabeça, a morte era a maior recompensa e castigo que um mortal poderia ter.
Apenas esperava que o pobre Trôfonio tivesse tido mais sorte no mundo dos mortos do que teve com os vivos.
Estava a ponto de tocar no tema da fragilidade mortal, quando o mais velho fez um comentário que o deixou em choque e o fez esquecer esse assunto.
- ...O próximo passo é eu tornar-te um Olimpiano - Declarou com um olhar sonhador - Desde que Athena e Poseidon foram expulsos, ainda há um assento sobrando entre nós.
- É possível se tornar um olimpiano?! - Exclamou com descrença.
- Mas é claro que sim, temos sempre que ser doze, mas isso não significa que os membros continuam os mesmos. Veja o caso de sua tia-avó Héstia, ela deixou de ser olimpiana quando Dionísio ascendeu, mas quando Poseidon foi expulso, ela retornou. E como eu disse antes, ainda temos o lugar de Athena - Sua expressão se encheu de repugnância - Nada mais justo depois de tudo que ela te fez passar, que tomes o lugar dela no Olimpo. Ainda precisamos de quatro votos entre os doze para isso acontecer, tu já tens o meu e de Arthemis, tenho certeza que com uma festa posso convencer Dionísio, então só nos faltaria um voto.
- Eu definitivamente não tenho o que é preciso para ser um Olimpiano, pai - Colocou quase em Pânico, ainda sequer sabia ficar visível para pessoas ou se transformar ou 'destransformar' corretamente, passar de mortal, a um deus, para logo ser um olímpico era um passo grande demais.
Ironicamente, sentiu um frio na espinha com olhar gélido que Apolo dedicou-lhe por suas palavras.
- Onde tu aprendeste essa modéstia irritante?! Porque definitivamente não foi comigo! - Exclamou visivelmente irritado como poucas vezes testemunhou pessoalmente, fazendo-o encolher entre as almofadas, agradecendo que o maior agora era só um humano. - “Não tenho o que é preciso para ser um olimpiano”, só podes estar louco, Esculápio! Tu te tornaste um médico tão excepcional que foste capaz de trazer os mortos de volta à vida. OS MORTOS. Nem eu consigo fazer isso - Uma expressão de amargura tomou sua face, e Épios não tinha dúvidas de que estava pensando em Jacinto. - Nem mesmo Hades, que é o senhor dos mortos, pode fazer isso sem que uma série de tratos sejam feitos e regras sejam cumpridas, e TU FIZESTE ISSO SOZINHO! - Pegou o rosto de seu filho que quase gritou de susto – Não.Sejas.Um.Filho.Humilde - Declarou pausadamente em claro tom de ameaça - Tu tens que mostrar ao mundo o quão perfeito e habilidoso és, meu filho mais absolutamente perfeito, e qual forma melhor de fazer isso do que sendo um olimpiano?!
Quando finalmente foi libertado, massageando as bochechas, vendo a expressão ainda irritada do mais velho, percebeu que não tinha realmente opinião no assunto. Ainda assim, tentaria ao máximo não ascender, pelo menos não seria punido até que o castigo de Apolo terminasse, e havia boas chances que o deus solar já o tivesse perdoado até lá, afinal, suas punições mais cruéis eram sempre frutos do literal calor do momento.
-...E quanto a Hades? Ele não estaria na minha frente quanto a se tornar um olimpiano? - Tratou de argumentar - Afinal, ele é um dos três grandes, lutou na Titanomaquia, eu nunca entendi porque ele não é um em primeiro lugar.
A expressão de Apolo suavizou de raiva a incredulidade, como se seu filho tivesse falado a maior besteira da Terra, e reforçando esse pensamento o deus se pôs a gargalhar novamente.
-Hades?! Pelos novelos de ouro! - Dizia entre risadas - Nunca que Hades seria um olimpiano!
E seguiu gargalhando, até mais do que antes, por um lado ficou aliviado que havia se acalmado, por outro não conseguia entender o que era tão engraçado no filho mais velho de Kronos, aquele que por lógica deveria herdar o trono supremo, ser ao menos parte dos doze que comandavam o mundo divino.
-...Eu não entendo pai, qual o problema? Se fosse por ter um reino próprio Poseidon tampouco teria sido olimpiano, pelo que aprendi dele na guerra, ele sempre permaneceu na Terra ou em Atlântida e apenas visitava o Olimpo esporadicamente.
Aos poucos, com a respiração engasgada seu pai foi recuperando o fôlego, notando que a pergunta de seu filho era realmente séria.
Por isso meditou um pouco antes de responder.
- Hades nunca será um olímpico porque ele está tão preso quanto os Titãs em seu reino. A única diferença é que ele não está sendo castigado lá, ou ao menos, não diretamente, tu mesmo viste o lugar, crês mesmo que o herdeiro legitimo ao trono dos deuses escolheria em sã consciência aquele reino sombrio ao invés do topo do Olimpo? Há - Negou com a cabeça - Não, seu avô o jogou lá, usando a maior arma que ele tinha, o medo de que os Titãs escapassem.
Ao ver a expressão ainda confusa do jovem, soltou um suspiro e começou a explicar.
- Como tu deves saber Épios, a Titanomaquia foi uma guerra como nenhuma outra, afinal, foram necessários não apenas os seis primeiros, como também deuses primordiais, imortais e até mesmo alguns Titãs traidores, como é o caso de Prometeu.- Frente a isso seu filho confirmou com a cabeça, de fato essa história era bem conhecida - Ainda assim foram necessários dez anos, a ajuda dos ciclopes e suas armas divinas - A menção daqueles que havia assassinado, uma expressão malvada assumiu a face do deus solar, fazendo o menor apenas tremer - E dos Hecatônquiros, é claro - Acrescentou este último com repulsa.- Uma luta entre imortais do mesmo patamar poderia levar séculos ou até mesmo milênios.
- Foi por isso que Kronos e seus aliados foram castigados no Tártaro, certo? Para terminar a guerra, já que é uma prisão impenetrável. - Completou o ex cavaleiro.
- Não exatamente, o Tártaro não era seguro o bastante, ao menos, não sozinho, pois em meio a batalha o mesmíssimo Zeus havia invadido com sucesso a manifestação cavernosa do Titã Tártarus para poder conseguir seus mais importantes aliados. Os seis primeiros não poderiam correr o risco de que seu pai pudesse ser libertados uma vez que a guerra fosse findada, uma falha desastrosa dessas não apenas colocaria a raça dos deuses em desgraça, como sem dúvida faria Zeus perder o respeito, a liderança, e provavelmente muitos apoiadores. Quem enfim trouxe a solução foi o mesmíssimo Hades: Usar seus poderes para construir uma estrutura que cercasse o Tártaro, como uma fortaleza, que garantisse sua absoluta segurança. Zeus prontamente aceitou a ideia de seu irmão, e assim Poseidon e Hades desceram ao mais profundo de Oceano onde o sombrio Titã cavernoso repousava. Poseidon ergueu o mar e seu irmão se pôs a trabalhar, construindo com sua Dunamis cada pedaço de chão e pedra que eventualmente se tornaria o submundo.
Isso fez Esculápio abrir os olhos surpreso.
- O senhor está me dizendo que todo aquele reino é basicamente a energia de Hades que assumiu forma física como o senhor faz com seu arco e flechas? - Questionou extasiado, ao que Apolo confirmou com a cabeça. - Mas o lugar é simplesmente enorme!
- Eu imagino que seja, e com isso tu já podes começar a traçar a razão pela qual Zeus, tão conhecido por quase nunca escutar alguém, ouviu tão prontamente a ideia do filho primogênito de Kronos. Foi tanto um teste quanto uma precaução, pois de fato seria necessária uma energia absurda para manter uma estrutura dessas erguida, digo por experiência própria, não foi nada fácil construir a muralha de Tróia, mesmo eu e Poseidon trabalhando juntos, e ainda era apenas uma muralha, não sou capaz de mensurar o tamanho do cosmo de Hades para conseguir erguer algo assim sozinho. Um lugar que a luz de Hélio jamais alcançaria, uma fortaleze da qual os Titãs não poderiam se libertar, porém, não apenas eles.
Apolo parou por alguns instantes, era notável que estava muito cansado, mas a curiosidade de Épios levou a maior sobre ele, então não pediu que o mais velho detivesse seus relatos. Até então só tinha conhecimento dos acontecimentos da Titanomaquia através de textos, mesmo que deus solar não estivesse vivo ainda na ocasião da guerra, era toda uma nova experiencia ouvir essa história de um deus.
Por isso ergueu-se, foi até as ânforas do casebre, tomou um pouco de água e ofereceu ao seu pai, que com a garganta seca agradeceu, e ao ingerir o último gole seguiu.
- Pois bem, quando a guerra acabou era óbvio que era necessário escolher um Guardião para as terras que cercavam o Tártaro, então guiado por um de seus conselheiros, na repartição dos espólios da batalha, Zeus deu ao seu irmão, e seu maior concorrente ao trono do Olimpo, o dever de reinar sobre a terra que o mesmo havia criado. Uma única explosão de Dunamis, causada, por exemplo, por um surto de ira, poderia ser suficiente para colocar tudo a perder, por isso o meu pai argumentou que nem ele nem Poseidon poderiam ocupar tal tarefa. Ainda assim, Zeus poderia ter escolhido qualquer outro aliado apenas para manter-se vigilante e avisar se algo acontecesse naquela fortaleza, mas o senhor dos raios rebatia que ninguém era confiável o bastante. “Quem seria melhor para guardá-lo do que aquele que o concebeu?” - Quanto a isso Apolo fez uma expressão azeda - Seu avô, Épios, pode ser muitas coisas, mas estúpido não é uma delas. Como tudo foi criado a partir de sua energia, Hades não poderia ficar longe do submundo de qualquer forma, ao menos não por muito tempo, então permiti-lo criar a fortaleza ao redor do Tártaro era a solução perfeita para os dois maiores problemas do caçula de Kronos. A prisão seria inviolável e a maior ameaça a hegemonia do senhor dos raios seria completamente invalidada. Por isso eu disse que Hades foi praticamente aprisionado com os Titãs, simplesmente por ter o poder de prendê-los em primeiro lugar, tornando-se um perigo ao trono.
- Como dar ao seu maior rival acesso aos seus piores inimigos pode invalidá-lo? - Questionou o curandeiro - Hades podia simplesmente soltar os Titãs e reivindicar o trono, não podia?
Quanto a isso Apolo negou com a cabeça.
- Manter o lugar existindo eternamente consome muito da energia de seu tio-avô, e mesmo que ele deixasse tudo ruir, não há qualquer certeza de que os Titãs seguiriam ordens daquele que os aprisionou, dificultando em muito que Hades alguma vez tentasse se voltar contra o Olimpo e reivindicasse o trono que seria seu por direito. Se nem mesmo Poseidon, sendo o mais impetuoso e imprudência dos seis, não se arrisca a criar maremotos próximo de onde fica a prisão dos Titãs, Zeus então tinha certeza que o seu irmão mais prudente jamais faria nada que pudesse permitir a liberdade daquele que o devorou e o manteve prisioneiro por décadas. O medo e o senso de dever podem ser correntes mais pesadas do que tu imaginas, Épios.
O curandeiro não respondeu, jamais simpatizaria com Hades depois do ocorrido com Astéria em seu reino, mas sinceramente desprezava Zeus um pouco mais, e em parte sabia que era justamente por isso que Apolo fez questão de contar-lhe essa história.
-Como o senhor sabe de todos esses detalhes? - Não pôde deixar de se perguntar.
- Poseidon me contou - A resposta foi simples - Quando eu, ele e Hera planejávamos a queda de Zeus, ele justificou que essa era uma das razões de desejar a queda de seu irmão, por considerá-lo tão tirânico quanto Kronos, como também a explicação do porquê, mesmo o odiando a igual que nós, Hades jamais se aliaria conosco para derrubá-lo. Eu não sei o quanto da palavra do Peixe Mor pode ser verdade, mas vendo a forma que Hades administra seu reino e tenta fingir que o Olimpo simplesmente não existe, eu suponho que é a versão mais acertada dos fatos. Deve ser por essa mesma razão que o Elmo da invisibilidade não fica em sua posse, que eu me lembre acabou sendo emprestado para Perseu e agora está com algumas ninfas, apesar de ser seu tesouro, não possui-lo consigo iria garantir que simplesmente não desaparecesse e deixasse tudo desmoronar e acabar sem ter que se envolver em outra guerra titânica, sinceramente é o que eu faria - Deu de ombros – Mas não me parece o tipo dele, contudo.
- Por isso Hades jamais seria um olimpiano? - Concluiu Esculápio, novamente seu pai confirmou.
- Sob o governo de Zeus, seu irmão mais velho jamais terá qualquer possibilidade de subir sequer um passo na escadaria do poder - Negou com um gesto de mão - Por isso meu filho, a cadeira no Olimpo é claramente sua, Aphrodite quer ascender Eros, mas eu jamais vou permitir que algo assim aconteça!
Asclépio gemeu internamente recordando-se que toda essa história havia começado justamente por causa da ideia insana de promovê-lo ao Olimpo, enquanto seu pai se dispunha a sussurrar o quanto odiava Eros e que jamais deixaria suas asas tocar em um assento dos doze.
Sussurrava porque depois do episódio de Daphne, o deus solar jamais se arriscaria que Eros ouvisse seus praguejos novamente, já era de conhecimento geral na montanha dos deuses que o filho mais velho de Ares e Aphrodite era dos mais perigosos a se irritar, talvez até mais que seus pais, devido ao total controle que possuía sobre os sentimentos alheios.
Por algo as míticas flechas do destino eram originalmente pertencentes a sua aljava.
- ....Quando eu destrone Zeus, talvez eu considere oferecer um assento a Hades. Eu simplesmente detesto a forma como ele não devolve nossos queridos amantes, mas ao menos ele os envia aos Elísios, talvez se fosse eu a oferecer-lhe tal oportunidade, ele fique tão agradecido por minha grandeza de espírito que aceite finalmente devolver-me Jacinto! - O imortal piscou confuso, sem saber quando seu pai havia deixado de amaldiçoar Eros para voltar a falar de Hades e o Olimpo com um olhar sonhador, imaginando-se no trono de Zeus. – Mesmo sendo herdeiro, eu duvido que ele se interesse pelo trono, então eu só teria a ganhar!
-...Pai, tu ainda planejas destronar Zeus?! - Sussurrou exasperado - Já é a segunda vez que és castigado por atentar contra ele!
Quanto a isso o regente do signo de Leão sorriu com alternaria.
- Os castigos de teu avô não podem deter meu dever celestial de derrotar o tirano que nos governa - Exclamou erguendo o punho sobre a cabeça, e quase podia vê-lo brilhar com suas palavras, mesmo sendo um mortal.
Frente a isso se limitou a suspirar exasperado, no fim era uma coisa boa ter se tornado um deus, assim poderia manter um olho em seu pai e impedir que ele fizesse mais alguma bobagem como prender Zeus em sua cama com correntes ou matar os Ciclopes porque sim.
-...Mas eu estou desviando do assunto - Notou com um bocejo involuntário - Minha prioridade agora é tornar meu filho perfeito em um olimpiano perfeito! Talvez eu possa convencer Hermes a votar a teu favor, ele tem se mostrado bem cabisbaixo desde a guerra de Athena e Hades, não imaginei que gostasse tanto de seu trabalho como Psicopompo…Ou talvez, poderia falar com...Ares...
Esculápio não prestou atenção em como as palavras de seu pai começaram a se tornar espaçadas, novamente distraído estava em pensar uma forma de convencer seu pai a não seguir com essa ideia insana.
Fechou os olhos, engoliu em seco, tomou coragem e disse:
-Pai, e se eu não for tão perfeito como o senhor acha? - Disse com um sorriso amarelo, sem ter coragem de abrir os olhos, esperando os gritos.
Porém, eles não aconteceram, ao invés disso um ronco ecoou pelo casebre.
Ao reabrir os olhos pôde apreciar com um sorriso como o corpo mortal de seu pai não havia suportado mais o cansaço do trabalho e havia sucumbido ao sono de Hypnos. Tirou com cuidado o cântaro, com o qual havia bebido água antes, de suas mãos e o colocou no móvel ao lado do leito, fez o mesmo com a lira próxima ao seu braço direito, para ter certeza que ela não sairia ferida pelo sono de seu dono.
-O senhor também não é perfeito pai - Sussurrou quase sem abrir os lábios - O senhor ronca, e bem alto.
Em resposta o mais velho apenas resmungou, reclamando do frio pela ausência de seu filho mais próximo de si.
Ainda sorrindo Esculápio tirou as sandálias do deus, e o cobriu com várias peles. Só podia imaginar o frio que podia estar sentindo desprovido do calor natural de seu corpo. Então se deitou ao seu lado, com a cabeça sobre o coração dele, ouvindo-o bater com uma sinfonia tão agradável aos seus ouvidos quanto o tocar de sua lira.
Por mais distorcido que Apolo fosse, por mais que questionasse suas decisões e posturas diante da vida, esse por vezes vingativo, por vezes benigno deus ainda era seu pai e o amava por isso.
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-Como assim ele não é mais um deus? - A pergunta descrente saiu dos lábios de Kiki encarando o médico com suma preocupação.
- Eu posso sentir a alma das pessoas, não apenas por ser um espectro, mas justamente por ser irmão sanguíneo do imperador do submundo - Explicou o japonês ainda com expressão franzida - Sei bem reconhecer o peso da alma de uma divindade, este aqui no máximo seria um semideus.
-...É nossa culpa – Disse o lemuriano num tom sombrio chamando a atenção dos outros dois. – Ele tinha um contrato com Moros que o impedia de ajudar os cavaleiros de sua anterior deusa.
- Então ele realmente era um cavaleiro – Observou Ikki – Serpentário não é a mesma constelação que Ófiuco?
- Sim, ela foi rebaixada depois que ele desapareceu, seu acordo consistia em sua existência ser apagada, em troca tornar-se um deus, jamais voltar a ressuscitar os mortos ou ajudar diretamente os servos de Athena – Explicou ao espectro.
- Ele já está aqui há um tempo, por que agora? – Poseidon perguntou curioso. – Pelo que eu notei, ele estava ajudando bem diretamente.
-...Talvez...Seja o que ele tenha feito a Máscara da Morte, mas não faria sentido, eu que operei seus pontos mais críticos para que ele não se arriscasse, enquanto ele ficou com aprendizes e ex cavaleiros...- Mordeu o lábio inferior, seu nervosismo voltando.
- A morte na pira é uma forma muito tradicional de cumprir os rituais fúnebres para uma entrada digna ao submundo - Ikki disse recordando a morte de Camus – E tal ritual partindo de um deus é uma honra e tanto, quem dirá de um filho de Apolo.
- O deus da medicina perdeu sua divindade por causa de um ritual fúnebre?! – Exclamou descrente. – Ele não AJUDOU Camus! Ele apenas deu um fim ao seu corpo, como isso pode ser considerado?!
- Moros é um deus da morte – A resposta do espectro foi direta enquanto franzia a expressão – Não subestime a importância de um enterro, a falta de um é uma dor de cabeça para nós no mundo inferior, você não conhece o mito de Sisífo? Ou mesmo de Heitor? Foi preciso pelo menos três deuses e imortalizar o cadáver do troiano para que o ritual fosse feito. Então sim, cremar o corpo de um falecido para divindades ctônicas é um ato de auxílio tão grande quanto salvar a vida de um moribundo.
Kiki estava a ponto de soltar um novo palavrão, mas se controlou levando uma mão ao rosto, não ia cometer o mesmo erro duas vezes seguidas.
- Isso explica a história de Geki sobre Heitor, suponho – Comentou cansado. – Ele está aqui, era um dos aliados de Chronos.
- O QUÊ?! Heitor de Troia, um aliado de Chronos?! – Kiki apenas confirmou – Mas ele não é uma alma podre, ele estava nos Elísios, ao menos, ele deveria estar!
- Eu não sei dos detalhes, mas isso não importa agora – Então voltou-se a Neroda que repentinamente parecia distraído com alguma coisa. – Meu senhor, não há nada que possamos fazer?!
- Se ele quebrou um juramento com Moros, é uma questão de tempo para que as Eumênides venham por ele, mas sinceramente elas provavelmente esperarão a guerra acabar – Considerou o senhor dos mares ainda com o semblante distante, voltado para a direção onde ficava a velha oliveira e o antigo Cabo Sunion – Elas não julgam, apenas condenam. Alecto, Megaera e Tisiphone são seus nomes. Para aplacar a fúria delas seria necessário um ato de expiação, como os doze trabalhos que Herácles teve que fazer depois de matar sua esposa e filhos quando foi enlouquecido por Hera, ou pedir um julgamento, como Athena fez por Orestes. O problema é que um julgamento como o de Orestes é algo que apenas um olimpiano pode pedir, e ele ainda precisaria de quatro votos para ser absolvido, e nem eu, nem Shun ou Athena somos olimpianos.
- E quanto ao pai dele?! Apolo é um olimpiano, se ele intervisse pelo filho, teríamos uma chance de salvá-lo! – Havia lido sobre as Fúrias com Shiryu, e o castigo que enlouquecia o primeiro cavaleiro de Câncer, Mortalha Estirpe. Sabia que ele se chamava Orestes pelos textos ctônicos mais obscuros da quarta casa que haviam sido ocultos e protegidos pela casa de Libra.
- As Erinyes nasceram do ato de parricídio de Kronos sobre Uranos – Seguiu Benu com tom irônico – Elas são realmente bem sensíveis a maldições de pais sobre filhos. Ou seja, Kiki, você teria que contar a Apolo o que seu filho fez sem que ele surtasse com a traição, porque isso atrairiam as três como cães famintos sobre a carne fresca.
- Se ele está dependendo de um não surto de Apolo, considere-o condenado – Neroda não pôde deixar de acrescentar com uma expressão de pena – Meu sobrinho nunca reagiu bem a traições, ele é quase tão ruim em controlar sua raiva quanto eu era – O ex Fênix fez uma expressão sugestiva a esse comentário – Sim, ERA, é preciso muito mais para me irritar do que isso agora. – Fez uma pose de convicção com seus braços cruzados.
- Há, essa é a maior mentira que eu já ouvi, Marolinha. – Destacou o apelido, fazendo os olhos de Poseidon imediatamente tornarem-se amarelos- AI! – Até receber um soco na cabeça de Kiki.
- Respeite meu senhor, Ikki. – Resmungou Anfisbena franzindo a expressão, o que fez os olhos do adolescente voltarem ao normal ao tempo que mostrava a língua infantilmente para Benu – Definitivamente não é o momento para besteiras como essa. – Então algo ocorreu-lhe – Espera, as Eumênides não são servas do Shun?
- Sim – O leonino confirmou – Contudo ele não é isento aos seus julgamentos.
- Mas ele tem foro privilegiado – Acrescentou o senhor dos mares com ares de graça.
- Elas vivem no Tártaro e passam a eternidade se divertindo com a tortura dos imbecis que lá estão – Exclamou quase com inveja – Então é natural que o guardião do mesmíssimo Tártaro seja beneficiado sobre os demais, geralmente apenas os imbecis dos olimpianos tem vantagens sobre o resto do panteão, e por isso se acham acima das leis e fazem o que bem entendem, então esse tratamento diferenciado das Erinyes é um direito mínimo do meu senhor! – Ao fim de suas palavras Ikki ruborizou ligeiramente, notando que havia falado como um verdadeiro servo. Era completamente leal a Shun, é verdade, mas a submissão sempre teria um gosto amargo em sua boca, pois sabia no fundo que isso significava que por mais que o mais novo agisse como se não, já não eram iguais, já não eram cavaleiros da mesma ordem, agora eram simplesmente vassalo e suserano, apesar de terem o mesmo sangue, e por isso herdado parte de seus poderes.
- Então Shun realmente não pode interceder por um julgamento? – Seguiu o médico ignorante dos pensamentos do ex Fênix.
- Sim, ele até pode intervir, e com isso o julgamento seria em seu reino, e pela importância seria presidido por Minos – Isso fez Kiki suspirar de alívio – Mas isso significa que esse Esculápio sem dúvida seria considerado culpado.
- O quê...!?- Exaltou-se – Como você pode ter tanta certeza?
- Ele realmente cremou o corpo de Camus?
-...Sim, todos nós vimos.
- Então Minos diria que ele é culpado.
- Mas...!
- Não existem “mas” nos juízos de Minos – Ikki foi ríspido – Por que acha que Hades trouxe mais dois juízes? Minos é muito categórico. – Dito isso voltou seu olhar a Fonte, pois Aiacos ainda não havia retornado, notando assim que Athena agora olhava para si com desgosto, retribuiu o olhar apenas por afronta, fazendo a expressão dela franzir-se mais.
- Não se preocupe Kiki, só precisamos apelar para Arthemis ou Héstia antes que Apolo descubra ou as Eumênides cheguem – Tranquilizou Neroda – Minha irmã Héstia é a protetora da família, e Arthemis é a tia dele, não sei qual a relação que eles tem, mas é possível que ela se solidarize – Ponderou – Sinceramente até Ares intercederia.
- Ares?! – Repetiu com descrença.
- Sim – Mas não dissertou a respeito, pois seguia observando a direção do Cabo Sunion, e a possível razão disso não demorou para se manifestar.
- Mas que porra é essa?! – Kasa foi o primeiro a exclamar recebendo outra repreenda de Sorento, e conseguindo chamar a atenção de todos para o mar que corria sobre eles.
Bian de cavalo marinho vinha montado em um literal cavalo marinho. O animal era feito de água, ao invés de crinas possuía barbatanas, suas patas dianteiras eram convencionais, mas a parte traseira era uma longa cauda de peixe, enquanto seus olhos eram amarelos e vibrantes, estava sendo conduzido por rédeas aparentemente feitas de cristal.
O Hipocampo nadava de cabeça para baixo, fazendo os longos cabelos do moreno deslizarem seguindo a gravidade, então quando estava suficientemente próximo da Fonte, o animal girou com uma graça invejável voltando ao eixo correto sem que seu cavalgador sequer deslizasse sobre suas costas, e assim pousou com a cabeça gancha aos pés do senhor dos mares.
Sem perder tempo, o arrogante canadense deu um mortal no ar e também parou ajoelhado frente ao seu senhor que aplaudiu fazendo um dez com água aparecer na sua frente.
- Exibido – Resmungou novamente Lymnades, ao tempo que Io revirou os olhos.
- Senhor Neroda – Disse ignorando-os enquanto se erguia – Eu cumpri com meu dever.
Por sua vez Saori apertou os braceletes em suas mãos com força, então começou a caminhar a passos decididos até o grupo.
- Minha deusa - Tentou chamar Shura, mas a mesma não pareceu ouvir-lhe.
- Vamos Shura, sinceramente não sei do que ela é capaz agora depois de tudo que Camus disse - Manifestou-se Shiryu parando ao seu lado, e com aceno de cabeça os dois seguiram sua deusa, mantendo certa distância. A conversa seguiu mentalmente “- Embora não haja como provar o teor de suas palavras, foram acusações muito sérias as dele” - Virou seu pescoço na direção do deus da Medicina que seguia caído nos braços de Ikki, que o empurrava ligeiramente, desgostoso ao perceber que o ex Cavaleiro tentava abraçá-lo em seus devaneios, provavelmente em busca de mais calor.
“-Se ele for quem diz ser, “o cavaleiro de serpentário”, então há grandes chances de tudo que Camus disse ser verdade” - O capricorniano seguiu seu raciocínio com o olhar baixo, frente a isso o mais novo colocou uma mão de apoio em seu ombro, sabia o quanto era difícil para o espanhol ouvir todas aquelas acusações, havia sentido sua aproximação vindo da casa civil de Afrodite, mas não sabia ao certo quanto tinha escutado. Se esse “julgamento” tivesse acontecido no passado, Shura, sem pensar duas vezes, teria cortado a cabeça de Aquário antes que pudesse terminar. Agora, no entanto, não apenas havia escutado tudo em silêncio, como ainda havia ajudado seu velho amigo a erguer-se em seus últimos momentos - “- Mas sinceramente, por mais que me doa, eu realmente acredito nas palavras de Camus, ele se levou até muito além do limite, forçando sua alma naquele cadáver, apenas para poder dizer-nos o que disse, ele não se importou com sua reputação ou a honra de sua casa, ele jogou absolutamente tudo na lama em troca do momento que testemunhamos. Um homem capaz de tanto não pode, simplesmente não pode, estar só mentindo ou sendo manipulado.” - Respirou fundo, evidentemente cansado, embora não tivesse lutado diretamente, aquela madrugada estava levando todos ao limite - “- Mesmo que seja em situações completamente diferentes, a morte dele me lembrou de quando você estava disposto a virar poeira cósmica para me vencer há vinte e quatro anos. Eu tive a mesma impressão naquela ocasião, “um cavaleiro capaz de chegar a limites incomensuráveis só pode estar do lado de Athena”, por isso te salvei com a minha armadura."
Sua expressão de pesar se intensificou, e com isso o ex Grande Mestre apertou com mais força o ombro contrário.
“-Você amadureceu, Shura, se me permite dizer”.
“-A muito custo, meu amigo” – Suspirou.
Sua conversa paralela se viu interrompida quando estavam próximos o suficiente do outro grupo.
- Muito bem Bian, espero que tenha ocorrido tudo bem. – Seguia Poseidon, vendo a aproximação com ligeiro interesse.
- Sim, ele se retirou assim que o que esperava aconteceu – Explicou a partida de Verônica sem dar detalhes que Athena pudesse questionar.
- Poseidon – Nomeou a deusa, lançando um olhar descontente a Kiki e logo a Ikki que não deixou de encará-la em momento algum desde que seus olhares se cruzaram.
- Neroda – Corrigiu com um sorriso, estralando os dedos e fazendo o Hipocampo desaparecer, Bian então se juntou aos demais marinas, apenas observando a interação – Em que posso ajudá-la? Não foi uma cena nem um pouco fácil essa de agora a pouco.
- Não – Disse secamente – Gostaria de saber se você está realmente disposto a nos brindar sua ajuda. Você surge repentinamente em meu santuário, evocando a aliança que fizemos no castelo, ou melhor, que fizeram em seu nome – Mencionou com desgosto, mas o mais jovem a interrompeu.
- Como eu iria comparecer se você havia me selado, minha sobrinha? – Questionou o deus, novamente assumindo uma postura mais séria.
- ...Depois – Seguiu, ignorando o assunto do selo - Fica do lado de um claro inimigo nosso – Disse indicando Ikki com um movimento de cabeça. – Eu sinceramente não sei o que pensar de nossa “aliança”.
- Se eu sou um inimigo – Começou o espectro antes que Kiki ou mesmo Poseidon pudessem intervir – É porque VOCÊ, Athena, que declarou guerra a Shun, enquanto ele estendia a mão oferecendo paz.
- Paz? – Repetiu ela com sarcasmo – E o que seu irmão interpreta como “paz”? Enganar seus meios-irmãos por vinte anos, fazer-nos sofrer seu luto enquanto se tornava aquilo que jurou destruir?! E o pior de tudo....- Apertou os punhos com força – Ele atacou Seiya! De todas as pessoas, foi capaz de atacar justamente aquele que há vinte anos treinou para salvar! – Então sua expressão se franziu em mais desconfiança – Ou será que tudo aquilo também foi encenação? Ele apenas fingiu se sacrificar, da mesma forma que fingiu sua morte. Talvez o poder de Hades tivesse subido por sua cabeça, ou ele nunca foi quem pensávamos que era.
- COMO VOCÊ SE ATREVE! – Ikki estava a ponto de levantar-se, mas não o fez recordando do deus em seu colo, porém não pôde controlar seu cosmo de explodir numa apoteose de fúria. – SHUN FEZ TUDO QUE FEZ PENSANDO EM TODOS VOCÊS, PRINCIPALMENTE NO MALDITO DO SEIYA, SE NÃO FOSSE POR AQUELE IDIOTA QUE SE COLOCOU NA FRENTE DO GOLPE DE HADES, SE NÃO FOSSE POR SUA ESTUPIDA IMPULSIVIDADE DESTRUINDO O IMPERADOR DOS MORTOS EM VINGANÇA, NADA DISSO ESTARIA ACONTECENDO! SHUN E EU AINDA SERIAMOS SEUS LEAIS CAVALEIROS, AINDA ESTARÍAMOS AQUI AO SEU LADO COMO SEMPRE ESTIVEMOS! – Sabia que parte do que dizia era mentira, mas nesse instante apenas queria despejar toda a sua raiva.
Os novos berros fizeram uma agitação se formar dentro da Fonte, porém dessa vez quem se inclinou na porta para observar eram Suikyo, Julian e atrás de ambos, oculto em suas sombras, Shoryu.
- Euuu não sou a melhor pessoooa para dizer isso, mas vocês não acham que estão indo longe demais? – Questionou Poseidon olhando de um para o outro – Eu nunca fui a voz da razão sabe, mas temos um inimigo em comum, isso devia nos fazer aliados naturais. Pelo menos eu sou aliado dos dois lados, então vocês estão me deixando numa situação complicada aqui.
Ignorando as palavras de seu tio mitológico o cosmo de Athena se elevou a par com o de Benu que começava a tomar um tom cada vez mais escuro conforme sua raiva subia, o médico em seus braços resmungava baixinho, porém, não parecia incomodado com o cosmo infernalmente quente, na verdade, parecia bem mais confortável e seus olhos aos poucos recuperavam o foco.
- Como eu posso considerar “aliado” alguém que vem as minhas terras tentando manipular meus cavaleiros com mentiras, “décimo terceiro cavaleiro”, isso nunca existiu e você sabe muito bem disso, graças a essas calúnias Camus de Aquário está morto, e a desgraça em que ele colocou seu nome não será esquecida pelas próximas gerações! – Alegou ela com fervor – Não pense que eu vou perdoá-lo pelo que fez com um de meus cavaleiros mais leais.
Kiki apertava os punhos com força, arando a muralha de cristal sob seus pés criada pelo seu mestre para sobrepor o grande cânion que Shijima havia criado. Contudo, não dizia nada, Sorento o havia alertado mentalmente que não colocasse Poseidon em problemas envolvendo-se nessa discussão, por isso aguentava tudo em silêncio como Shura e Shiryu e os demais marinas estavam fazendo.
- Quem desmoralizou seu cavaleiro mais leal foi você Athena, e suas atitudes, você conseguiu até mesmo entrar em conflito com meu irmão! – Exclamou com uma expressão sarcástica – Meu irmão que sempre odiou conflitos acima de tudo! Você me perguntou o que ele considera paz, muito bem, eu vou te dizer! – Sua energia já queimava como um vulcão prestes a explodir, Épios despertava confuso e desorientado sem entender o que estava acontecendo. – Ele considera um acordo de paz ressuscitar os SEUS CAVALEIROS DE OURO! RETORNAR-LHE AS ALMAS DE GUERREIROS QUE PERECERAM CONTRA O SUBMUNDO EM GUERRAS PASSADAS, POR QUE ACHA HÁ TANTOS CAVALEIROS PODEROSOS EM SUAS MÃOS AGORA?! MAIS DE UM SUCESSOR PARA UMA ARMADURA DE OURO! ME DIGA QUANDO ISSO ACONTECEU ANTES?! E FOI APENAS GRAÇAS AO MEU IRMÃO E A PIEDADE DELE!
- Você não tem provas de que nada disse seja verdade. – Acusou.- É muito fácil vir aqui e nos dizer todas essas coisas, como se os vinte anos de paz fossem exclusivamente graças a Shun, como se o santuário tivesse que se ajoelhar aos pés dele e agradecer. – Franziu ainda mais a expressão – Me lembro bem de ter dito que o perdoaria se ele se ajoelhasse, mas é claro que a arrogância e soberba dele não permitiram, ele não quer ser nosso aliado, ele quer que nos submetamos a ele.
- Em parte eu concordo com Athena – Apontou Neroda, recebendo um olhar fulminante de Benu, o que o fez erguer as mãos em sinal de rendição – Eu só estava dizendo, Shun realmente tem essa mania de manter tudo sobre controle, funcionando como um relógio suíço, eu mesmo já tivesse embates com ele por coisas assim. Sou minha própria pessoa e tenho meu próprio exército, como eu já disse hoje, há limites sobre o que estou disposto a fazer, não sou bom em receber ordens, e não estou disposto a recebe-las no final das contas. Por isso entendo esse sentimento de Athena em se sentir controlada. Shun “herdou” o trono de Hades, como senhor das almas, é ele quem decide, junto as moiras, quem reencarna e aonde, ele administra a entrada de cada morto, monitora os castigos, é meio que esperado que ele tenha esse péssimo costume de manipulação e controle baseado na vida que leva, mas não sei se isso é suficiente para nos considerarmos inimigos, sabe, dê um soco na cara dele, puxe o cabelo, mande um maremoto na meio da cabeça e pronto, ele vai entender que está passando dos limites – Deu de ombros para completo horror dos dois espectros presentes que ouviam aquela sugestão.- E se desconfia tanto que ele manipulou almas ao seu favor, porque ao invés de ficarem discutindo não perguntam diretamente as Moiras que administram isso? – Virou-se a Ikki – Você é capaz de entrar no reino delas?
Ainda absorvendo as palavras de Poseidon Saori recordou-se das três deuses de aparência horrenda, as deusas do destino, elas mesmo haviam dito que sabiam todo o destino, mortal ou divino.
Seus olhos se abriram em revelação.
Sim, elas haviam refutado arrogantemente suas palavras quando tinha dito que Shun sempre seria seu leal cavaleiro, elas sabiam que era uma questão de tempo para que ele se tornasse o maior traidor da história do santuário.
- É claro que não – Colocou Ikki com desagrado como se Poseidon tivesse acabado de ofendê-lo diretamente – Apenas deuses de alto nível, e Hermes, conseguem ir aquele lugar, está completamente fora dos limites.
“Mas Shun esteve lá” – Uma voz no subconsciente de Saori dizia – “Hécate até mesmo ficou surpresa que ele conseguiu isso. Ela também sabia de tudo”.
Desde aquela época Shun já não era quem dizia ser, toda essa ideia de ir para as Moiras ao invés de Chronos tinha partido dele. O mesmo Chronos que diziam agora ser o inimigo.
Shun estaria trabalhando com Chronos? Ou havia atiçado o deus propositalmente para fazê-lo atacar o santuário? O que ganharia com isso? Esperava que implorassem por sua ajuda?
- Não Neroda, isso está muito acima de “manias de controle”, eles simplesmente desceram baixíssimo para nos ter comendo em suas mãos! – Athena dizia, sua expressão agora mostrando profunda dor, acima de seu ódio – Eu realmente confiei em vocês dois Ikki, eu confiei cegamente em seu irmão quando ele me levou até as Moiras, e agora você me diz que apenas um deus superior pode fazer isso? Eu só percebo o quão tola fui. – Ela riu, uma risada seca e amarga – Ele esteve lá, de pé, comigo, então no que eu deveria acreditar? Que a destruição de Hades não aconteceu, e era ele, no corpo de Shun, que estava do meu lado se fazendo passar por seu irmão, ou que Shun definitivamente não é quem pensávamos que ele era desde o princípio?!
- Eu diria que é meio a meio – Poseidon novamente interveio, não apenas Saori, como Kiki, Esculápio que educadamente pedia licença para levantar-se ainda sentindo-se completamente tonto, Shura e mesmo os marinas se mostraram completamente espantados. Apenas Shiryu e Sorento não pareciam surpresos, o primeiro mostrando apenas seu cenho franzido, enquanto o segundo escutava tudo com olhos fechados. – Veja bem, destruir Hades sem que você destrua os pilares que sustentam o submundo é impossível, e se você destruir os pilares o submundo ruiria e as portas do Tártaro se abririam, o que seria simplesmente catastrófico. O que você conseguiu naquela guerra foi destruir o corpo de meu irmão e danificar terrivelmente sua alma, mas isso não o extinguiu, afinal, Shun nada mais é do que uma parte do próprio Hades em primeiro lugar, o que você realmente fez então, Athena, na guerra de vinte anos atrás, foi juntar as duas peças, eeeem outras palavras, a consciência de Hades realmente vive dentro de Shun e ambos dividem o mesmo corpo, a mente Shun que está no controle, mas seu cosmo provém de ambos, por isso ele foi capaz de restaurar o submundo sozinho, por isso ele conseguiu ir até as Moiras, por isso o Tártaro se manteve imaculado e o mundo não entrou numa nova Titanomaquia.
Um silêncio se fez após essas palavras, em que Kiki buscava a confirmação de Ikki, percebendo agora que Esculápio havia despertado e estava sentado ao lado do espectro segurando sua cabeça com uma das mãos parecendo verdadeiramente cansado e a ponto de desmaiar de novo, porém agora seu olhar era vivido e possuía foco, mesmo que estivesse focando em seus próprios pés.
- Como pode saber de tudo isso?! – Bramou Benu finalmente erguendo-se, sentindo seus joelhos estralar, mas ignorando-os.
Quanto a isso Neroda olhou para trás lhe lançando um olhar de arrogância.
- Eu CONHEÇO meu irmão, Ikki de Benu, eu e Hades infelizmente nos desencontramos no meio do caminho, não...- Respirou fundo – Na verdade eu o abandonei, todos nós fizemos, porém quando eu percebi o quanto isso o marcou e definiu, já era tarde demais, mesmo que eu entregasse a cabeça de Zeus em seu colo eu sei que ele não me perdoaria. Ele deveria ter sido o senhor do Olimpo, ou como mínimo eu deveria ter dividido os oceanos com ele, mas minha soberbia me impediu de ver, como a escuridão do Érebo impediu por milênios meu irmão de enxergar a liberdade pela qual lutamos na Titanomaquia. – Apertou seus olhos com força a igual que seus punhos – Então, há vinte anos, Hades surgiu no meu subconsciente dizendo que agora dividia o corpo com um mortal, ele me convenceu a dar uma oportunidade a Athena e deter nossas guerras, ele foi piedoso com aquela que tentou destruí-lo! – E então reabriu os olhos encarando Athena, contudo, para choque da deusa havia uma dor realmente profunda em suas orbes – Eu não podia acreditar no que ouvia, mas eu aceitei o acordo, se ele me retornasse meus amados marinas – Disse olhando para os seus servos – Se ele me retornasse o meu reino. E ele o fez sem pestanejar, por isso eu aceitei até mesmo me tornar humano – Estendeu os braços indicando a si mesmo – Ele me disse que se eu vivesse como homem, eu entenderia os humanos, eu me sentiria parte deles, e não desejaria apenas dominá-los como no passado. E ele tinha razão – Encarou suas próprias mãos – Eu pude ter uma infância normal, eu pude ter pais, pais de verdade, eu tive amigos – Voltou seu olhar a Havok – Vários amigos – E seus demais marinas – Eu me senti vivo pela primeira vez em milênios! Como quando Zeus abriu o estomago de Kronos, eu senti novamente que poderia fazer o que quisesse com a minha vida, era como se eu tivesse acordado de um longo sonho e voltasse a ser quem eu era quando tudo começou. – Virou-se novamente a Athena que apenas o observava com a boca ligeiramente aberta – Shun bloqueou algumas de minhas memórias, as memórias de meus piores atos, que me impediriam de ser uma criança humana plena, entre essas lembranças ele tentou borrar a que confessava que Hades vivia em seu interior – Negou com a cabeça, com ironia – Mas isso foi inútil, mesmo que eu tenha demorado muito para recuperá-la, era tão óbvio, a forma como ele vinha falar comigo no mundo dos sonhos, a forma como se preocupava, o jeito que tentava me fazer seguir um caminho lógico e controlado, tentando me dizer o que era melhor para mim, tudo gritava indicando meu irmão mais velho, Hades, aquele que quando eu nasci e fui devorado, foi o primeiro a agarrar minha mão naquela escuridão esmagadora e me aninhou junto a Héstia.
O jovem deus parava para respirar depois de sua longa confissão, usando a manga de sua roupa para limpar suas lágrimas que não havia percebido quando caíram.
- Por isso eu reforço Athena, eu sou aliados dos dois lados, eu devo isso a Shun e Hades, e agora eu devo isso a Kiki. – Findou com firmeza – Então eu peço que não me faça ter que escolher.
- Shun então sempre foi uma parte de Hades, ao tempo que Hades sempre foi uma parte de Shun – Chegou à conclusão Shiryu dando um passo à frente ganhando assim o olhar de Poseidon. – Como duas metades de uma mesma maçã. – O imperador dos mares confirmou com a cabeça. – E Shun sabia disso?
- Não, ele só descobriu durante esses vinte anos, talvez ele até suspeitasse que não era originalmente sua própria pessoa, mas isso não é algo realmente fácil de se admitir abertamente – Virou-se para a deusa – Se fosse para chutar eu diria que quando Shun foi contigo ver as Moiras, foi este misto entre os dois que o permitiu estar ali, mas na época ele não sabia disso.
- Isso é apenas uma suposição – Firmou Athena, abraçando seus próprios braços.
- Eu tinha uma suspeita – Seguiu o ex cavaleiro de Dragão, apesar do olhar aflito de Shura sobre o que estava prestes a confessar – Eu estudei muito o reino dos mortos nessas duas décadas, principalmente as lendas e mitos antes da Primeira Guerra contra Hades, histórias que contavam quem ele era, como funcionava seu reino e suas leis, e sobretudo, o quão importante era sua existência.
- Eu ordenei que esses documentos fossem destruídos – Athena voltou-se ao ex Grande Mestre – Não passavam de loucuras da cabeça do primeiro cavaleiro de Câncer que estava enlouquecido pelas vozes das Eumênides.
Egas que também havia se aproximado da porta da Fonte junto a Albafica abriu seus olhos ainda vermelhos e inchados com essas palavras, lembrando-se o que Máscara da Morte havia dito.
- A loucura é a coroa, enquanto a sanidade é a cara de uma moeda. – Disse simplesmente – Como o primeiro capaz de ver e manipular almas, Mortalha pôde enxergar o que mais ninguém pôde, e orientou seu bisneto sobre suas suspeitas. Graças a eles, e aqueles que acreditaram em suas palavras e as defenderam, eu pude estudar sobre o reino dos mortos, a verdadeira razão da primeira Guerra Santa, e os mitos envolvendo Hades, assim pude perceber o quanto sua figura pacifista e justa se parecia com Shun. Praticamente a primeira coisa que Hades nos disse quando o enfrentamos nos Elísios é que não queria ter que lutar, isso era exatamente o mesmo tipo de pensamento que nosso irmão sempre teve.
- E por que você não me contou essas suas suspeitas, Shiryu?! – Saori voltou-se a ele completamente, raiva e traição expressas em seus olhos – Desde quando você sabia quem era Shun e que ele estava no trono do submundo?!
- Há uns 18 anos mais ou menos – Confessou sem titubear – Mas eu só tive certeza no castelo de Heisteim, quando me encontrei com ele no mundo dos sonhos antes da festa.
- Você se encontrou com ele antes de mim?! – A divindade exclamou, ao que novamente recebeu apenas uma confirmação como resposta – Então minhas suspeitas sobre você estavam certas, você apenas estava me escondendo tudo, fico feliz em saber que não retirei seu posto de Grande Mestre injustamente – Colocou com tom ferido encarando as pupilas brancas contrárias – Quando foi que você se tornou esse traidor?! Onde foi o Shiryu leal que lutou ao meu lado, ao lado de seus irmãos, há vinte e quatro anos?!
O libriano não respondeu imediatamente, ponderando suas palavras.
- Aquele Shiryu percebeu o quão cego estava, em todos os sentidos, percebeu que o mundo não é apenas branco e preto, heróis e vilões. Como o senhor Esculápio disse – Voltou-se ao médico que ainda desorientado procurou quem o nomeava – A primeira Guerra Santa foi inevitável, com todo o respeito – Seguiu mirando Neroda. – Mas as que se seguiram foram uma questão de escolha.
- Não se preocupe comigo, eu entendo agora que estava um poooouquiiinho empenhado demais em obter a Terra e desobedecer a partilha do meu irmão – Disse coçando a ponta de seu nariz – Me soava tão injusto Zeus simplesmente dar a Terra a um de seus tantos filhos bastardos sem consultar a mim ou a Hades, que lutamos na Titanomaquia ao seu lado, se ao menos a imperatriz dos humanos fosse Héstia, Deméter ou Hera – Um desgosto assumiu sua face. - Tudo acabou me subindo a cabeça muito rápido. Eu estava cansado de seguir as ordens dele, vê-lo fazer o que bem entende, ser tão tirano quanto nosso pai, que eu estava disposto a sacrificar o que fosse necessário para mostrar que ele não tinha o direito de tomar essa decisão.
- Você acha que isso justifica a chacina que cometeu há milênios?! – Acusou Athena, voltando-se novamente ao deus dos mares.
- Não, eu não sou estupido de achar isso. – Declarou com sinceridade – Sou responsável por todas as minhas ações, mesmo que ainda não me lembre de todas elas, da mesma forma que Shun é absolutamente consciente do sangue que escorre de suas mãos – Tal comentário fez Ikki baixar a cabeça com desgosto – Não podemos reparar esses erros, mas podemos mudar o nosso presente, por isso decidimos trabalhar juntos, como não fazíamos há milênios. – Então uma expressão novamente madura assumiu a face do adolescente - Mas e quanto a você Athena? É capaz de admitir os erros de seu passado? É capaz de colocar seu orgulho de lado e aceitar como aliado seus inimigos de outrora?
Isso fez a deusa engolir em seco, sentindo todos os olhares sobre si.
- E que garantia eu teria de que esses “inimigos arrependidos” não querem apenas destruir a mim e meus cavaleiros?! Tudo que eu tenho visto até agora é insubordinação – Virou-se diretamente para Shiryu – Traição – Voltou-se a Kiki – Mentiras – Viu diretamente Esculápio que franziu a expressão para a divindade – E manipulação – Fechou encarando Ikki.
- E tudo que eu vejo em você é desconfiança e medo, vamos Athena, você já foi melhor que isso. – Insistiu Neroda com um sorriso sugestivo. – Lembra há vinte e três anos? Quando seguiu Sorento até meu templo submarino para me convencer a não causar um diluvio? Aquilo foi realmente estupido – A divindade franziu a expressão com a ofensa, ao tempo que o musico mencionado rezava baixinho para que seus senhor escolhesse melhor suas palavras. – Mas você estava realmente disposta a se sacrificar pelos seus guerreiros, pela Terra, mesmo que para isso você tivesse que se jogar de cabeça numa clara armadilha. O que mudou?
Foi a vez da deusa não responder de imediato, soltando seus punhos e suavizando sua expressão.
-Aquela Athena percebeu o quão cega estava – Parafraseou – Confiando sem pensar duas vezes em cada palavras daqueles que pensavam ser seus amigos. Cega demais para ver como o poder os corroía, e os fazia pensar que sabiam mais do que a deusa da sabedoria, que os faziam pensar que eu sou a vilã dessa história. – Negou com a cabeça – Sim, eu errei, eu admito, eu não deveria ter me afastado tanto do santuário, não deveria ter confiado em quem confiei. Entretanto, agora eu acordei e não estou mais disposta a cometer os mesmos enganos. – Sua expressão mostrou-se inflexível – Eu preciso ter certeza de quem eu posso confiar agora, e quem só quer me ver pelas costas para me apunhalar.
- EIS AQUI SUA PROVA DE CONFIANÇA! – Todas as atenções então se voltaram para a Fonte de Athena, onde um ferido Shoryu estava rendido por um sossega leão, ironicamente, executado pelo cavaleiro de Leão, Julian. – Eu capturei Chronos, ele havia se infiltrado na Fonte e tentava nos enganar em um momento de fraqueza!
-...Julian. – Nomeou a deusa com desconfiança, lembrava bem como naquela mesma madrugada o cavaleiro a havia faltado completamente com respeito.
- ACHA MESMO QUE ISSO É SUFICIENTE PARA ME PARAR?! - Shoryu gritou, seus olhos fervendo de fúria, e todos puderam ver como, mesmo que por uma fração de segundos, suas orbes haviam se tornado amarelas vivas ao tempo que um cosmo completamente violento emanava de seu ser, muito diferente do convencional.
Ramos espinhosos então começaram a envolver o guerreiro de libra, ao mesmo tempo que suas pernas eram congeladas quando Albafica e Suite se aproximavam.
- Minha deusa – Tanto Egas quanto Suikyo também se adiantaram para fora, se posicionando ao lado do preso - Devemos retirar a alma dele?
Saori não respondeu, tão impressionada quanto desconfiada com a captura repentina.
Contudo, as dúvidas se tornaram menores quando um cosmo não humano começou a sair de Shoryu, destruindo uma a uma suas amarras.
- Uau, essa é uma mudança e tanto no rumo dos acontecimentos. – Exclamou Neroda com um assobio - AJUDEM-OS, MARINAS, AGORA!
“Espere, isso não faz sentido!” – Tentou intervir mentalmente Kiki, sem compreender o que acontecia com Shoryu.
- Não o matem! – Athena se adiantou para os marinas e para seus próprios cavaleiros – Ainda existe a possibilidade que ele esteja sendo controlado. Eu não quero mais morte dos meus guerreiros essa noite.
- SIM, SENHORA!
- Bem, vocês ouviram a senhorita – Esclareceu Neroda.
- SIM, SENHOR! – Exclamaram todos, avançando e usando diferentes ataques em seu alvo, que desviava de alguns e era acertado por outros, cuspindo sangue como resultado.
“-O que raios Shoryu está pensando?!”- Capricórnio questionou confuso.
“Eu acho que entendi, Shura” –Shiryu o respondeu, um sorriso em seu rosto– “Eu vou tentar fugir, você tem que me parar.”
Antes que pudesse discordar da ideia, o ex Grande Mestre cumpriu sua palavra, saindo em grande velocidade.
- SHIRYU! – Exclamou Athena com clara expressão de traição – SHURA, SEGURE-O!
- Sim, minha deusa! – Disse engolindo em seco, amaldiçoando o mais jovem e seu estupido jeito extremista de agir, preparando seu braço direito – EXCALIBUR!
- Eu te ajudo, senhor Shura – Suite veio da Fonte na direção do ex líder do santuário – PÓ DE DIAMANTE!
- COLÉEERAAA DO DRAGÃAAO! – Shiryu tentou defender-se de ambos os ataques, desestabilizando a Excalibur, contudo, tendo o braço direito congelado pelo golpe da aquariana.
- Eu não estou entendo mais nada – Confessou Esculápio – Você está entendendo? Porque eu não estou – Perguntou a Ikki – Quanto tempo eu apaguei para tudo ter virado de cabeça para baixo assim?
- Aparentemente nosso inimigo estava embaixo do nosso nariz o tempo todo – Comentou Neroda cruzando os braços – Você tinha razão Athena, há realmente traidores-lhe cercando. Tem certeza que não quer executá-los?
Kiki apertava os punhos ainda mais nervoso, pendente da resposta, embora algo em seu interior lhe dissesse que Poseidon não estava falando sério, toda aquela situação era agonizante.
A deusa não respondeu, vendo com uma profunda dor no peito como Suite prendia Shiryu em um esquife de gelo, apesar das palavras amargas trocadas, a sensação de ter razão sobre a traição de um velho e tão querido amigo era simplesmente devastadora.
-...Não, eu quero entender o que aconteceu com eles, se eu não souber onde está o erro, isso apenas se repetirá.
- Você que sabe – Deu de ombros, apreciando como Shoryu caía de joelhos devido a música de Sorento, com a lança de Krishna contra o pescoço, enquanto os fortes ventos de Bian o rondavam, Io e Kasa mantinham-se mais atrás, junto com Havok, mirando o inimigo para o caso de tentar escapar, a igual que os cavaleiros que haviam lutado com o libriano antes.
- Eu não faço a menor ideia do que está acontecendo, mas não é mais da minha conta, eu vou embora. – Ikki finalmente respondeu, seus olhos começaram a brilhar em amarelo vivo. – Se não querem a ajuda do submundo, ótimo, nos veremos de novo quando todos vocês morrerem.
- Espere! Eu ainda não terminei contigo, Ikki! - Exclamou a deusa – Agora que eu sei que Shun basicamente é Hades, só reforça para mim o quão próxima uma guerra contra o submundo está.
- Vocês têm problemas maiores do que nós agora, Athena – Disse vendo como Shoryu tomava Krishna pelos ombros e o jogava contra Sorento para parar sua música. – Não vamos atacá-la, mas não vamos nos render se você se atrever a invadir o submundo de novo.
- Aaah, esses gritos todos! Parece que eu estou de novo na Guerra de Troia! - Resmungou Poseidon – Já chega, daqui a pouco só falta Aphrodite aparecer e Ares mudar de lado, e pronto, seria a mesma bagunça da guerra de Troia. – Uma vez mais virou-se para a deusa – Por que não resolve o problema com o submundo da mesma forma que decidimos o controle de Atenas? Você não é SÓ a deusa da guerra, leve Shun ao julgamento olimpiano, se você se provar certa, poderá ter o que quiser dele! Tem adversários que não podemos derrotar diretamente, foi por isso que acorrentamos Zeus a sua cama ao invés de lutar com ele – Um sorriso se abriu em sua face – A ideia partiu de Hera, eu e Apolo não podemos deixar de rir com a sugestão e aceitamos. Não foi um dos nossos melhores planos, mas pelo menos foi divertido, e ninguém morreu lutando – Parou alguns segundos – Que eu me lembre pelo menos, sei que Hera teve uma bela dor no tornozelo de castigo, e construir a muralha de Troia com Apolo foi uma merda.
- Você tem alguma IDEIA do que está sugerindo?! – Os olhos de Ikki ainda seguiam amarelos e seus cosmo se tornava negro – De que lado você está afinal?!
Um dragão da cólera dos cem dragões de Shoryu foi na direção do grupo, antes que Ikki ou mesmo Athena pudesse reagir, Poseidon pulou na frente, seus olhos brilhante, e uma corrente de água desceu do mar que cobria o céu, enquanto a água dos encanamentos abaixo da muralha de cristal, usada como chão, abriu um buraco em sua barreira indo até seu senhor e juntos os fluxos desfizeram o dragão.
- Eu estou do lado que está FARTO de vocês brigando uns com os outros quando temos a merda de um deus do tempo para chutar o traseiro! – Exclamou irritadíssimo, o chão ligeiramente tremendo aos seus pés – Deem de uma vez um jeito nisso, ou eu serei obrigado a atacar os dois lados! – Ameaçou, suas águas tomando formas de tridentes e ameaçando deusa e o espectro.
Então, repentinamente, toda a água se desfez aos seus pés, enquanto seu corpo começou a tremer.
-Meu...Senhor? - Questionou anfisbena inseguro e temeroso, depois de todos esses desenlaces, que acabassem de uma guerra de todos contra todos. Podia ver o olhar vidrado de seu deus como se estivesse vendo algo que só ele era capaz, por isso, com suma dificuldade, sentindo sua perna perdida latejar de dor, ergueu-se e parou ao seu lado -...O que aconteceu?
- Algo...Está vindo – Disse em palavras vacilantes - Pelo mar, vindo de uma grande ilha do oeste.
- Ilha no oeste? – Repetiu sem entender, haviam muitas ilhas na Grécia.
- Muito além da Grécia, quase no fim do continente – Seguiu, como se pudesse ler os pensamentos contrários.
- A Grã-Bretanha? – Tentou Esculápio, Neroda confirmou com a cabeça – O que poderia estar vindo da Grã-Bretanha?
Sem responder diretamente o senhor dos mares correu na direção do ex cavaleiro.
- Você tem um meio de comunicar-se com Apolo?! – Disse diretamente, sem deixar de tremer.
-...Hã...Sim, mas... – Disse começando a tirar um colar solar do pescoço – O quê-
Poseidon arrancou o pingente com um puxão, ignorando as exclamações contrárias.
- Kiki, esconda Esculápio, leve-o para Atlântida. – Disse encarando o emblema.
- Eu não vou embora agora, muito menos dessa forma! – Tentou defender-se.
- Se você não quiser passar o resto de seus dias como uma flor, vai embora agora, eu estou prestes a chamar por Apolo, e se ele souber que você não é mais um deus por ter ajudado Aquário, ser uma flor é o melhor dos seus destinos.
Isso fez Serpentário piscar confuso.
- Como assim, eu não sou mais um deus?! – Disse olhando para as próprias mãos.
- Kiki te explica no caminho, a escama de Anfisbena saberá levá-lo de volta a Atlântida - Disse concentrando seu cosmo para evocar o deus do sol.
O lemuriano estava tão perdido sobre como proceder quanto o serpentariano, frente a isso foi Ikki que tomou a frente.
- O que está acontecendo? – Perguntou aflito, nunca tinha visto o deus assim.
- O que está vindo para cá – Disse engolindo em seco – É tão grande quanto um Titã, possui um cosmo tão absurdo quanto terrível, ele está usando a água para camuflar sua chegada, mas eu posso senti-lo como se estivesse do meu lado – Um arrepio percorreu seu pequeno corpo – E o pior de tudo, ele está ficando mais forte, ele está absorvendo miasma enquanto vem para cá, mas não é qualquer miasma! – Engoliu em seco – Eu não percebi, como não pude perceber?! Eu estava tão entretido com a briga estupida de vocês que não percebi que o Tártaro está rachando!
- O QUÊ?! – Berrou o espectro em choque – Isso não é possível, a menos que Shun...- Engoliu em seco.
- Você PRECISA saber o que aconteceu com ele! – Colocou exasperado.
Sem saber como reagir frente a isso, Ikki simplesmente confirmou com a cabeça.
- Espera! – Athena tentou pará-lo – Eu não vou permitir!
Um cavaleiro ouviu sua ordem e agarrou o espectro por baixo dos ombros, mas isso não impediu de uma grande rachadura aparecer no chão e ambos serem engolidos.
- SUIKYO! – Gritou, mas sem que pudesse impedir, ambos desapareceram na cratera que logo se fechou.
- Athena, o submundo não pode ser nosso foco agora – A voz do senhor dos mares era severa, fazendo se voltar a ele – O que está vindo para cá é muito maior do que você imagina, eu não vejo uma força acumulada tão esmagadora desde – Engoliu em seco, incapaz de pronunciar isso em voz alta. – Mesmo nossos poderes juntos podem não ser suficientes.
- O que você quer dizer? O que está vindo? – Impacientou-se, ficando cada vez mais tensa.
- Meu filho – Porém sua conversa ficou para outro plano quando a voz melodiosa de Apolo respondeu. – Não houve como responder teu chamado antes, as coisas se tornaram realmente caóticas na festa onde estou, e me refiro ao lado negativo de caótico, simplesmente não podes acreditar no que Héstia fez-
- Apolo – Interrompeu, mesmo que uma parte de si quisesse ouvir o que sua irmã havia feito – Sou eu, Poseidon.
-....Poseidon?! O que estás fazendo com o pingente de meu filho?! Há pouco tempo tu estavas aqui conosco – Então parou, desconfiado - Se eu souber que fizeste algo ao meu menino...!
- Apolo, eu preciso que você avise Hera, o Hecatônquiros que nos desgraçou no passado está vindo para o santuário de Athena, de alguma forma, ele está absorvendo os poderes dos prisioneiros do Tártaro, incluindo Kronos.
Um longo silêncio se fez enquanto todos absorviam suas palavras, mesmo o deus do sol não respondeu de imediato.
- Eu convocarei os olimpianos – Foram suas palavras simples, e o contato se desfez.
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Capítulo CIV - O destino de Serpentário - Parte II
O quarto estava abafado, havia água escorrendo pelas paredes como uma pequena sauna, mesmo que não houvesse vapor no ar, ao invés disso, se apresentava um clima sufocante, permeado por um ar quente, parte desse calor ainda se projetava resultante de duas respirações ofegantes.
Logo de um som escorregadio e ligeiramente agudo unido a duas expressões de desgosto, o que era um tornou-se novamente dois.
- É o suficiente por hoje – Disse uma voz feminina, melodiosa e doce, sumamente satisfeita, sentando-se em um leito suave – Eu preciso amamentar Eros e Anteros, eles devem estar famintos. – Isso fez a pessoa ao seu lado se erguer, encarando a mulher de corpo escultural e esbelto, longos cabelos loiros, olhos claros e lábios carnosos – Na verdade, foi para falar sobre nossos filhos que te chamei ao meu templo em primeiro lugar.
- Tu deverias ter dito antes! Aconteceu alguma coisa? – Resmungou em resposta uma jovem voz masculina pulando do leito, raiva transbordando de suas palavras.
- Ares, se você se atrever a ter um de seus ataques de fúria no meu templo – A ameaça foi baixa, mas extremamente factível.
- Desde que Hefesto amaldiçoou Harmonia sabes que eu não fico tranquilo com esse assunto! – Consternou-se encarando a esbelta figura, que preguiçosamente amarrava seus cabelos apesar do que havia dito antes.
- Eu não permito mais que Hefesto se aproxime de meus filhos – Exclamou em tom azedo, cruzando os braços sob seus volumosos peitos, dando a impressão de aumentá-los mais. – Que classe de mãe tu pensas que sou?
O guerreiro não respondeu, sua atenção desviada momentaneamente para os seios despidos e exuberantes, e por tal bufou quando está deu-lhe as costas.
- Não há nada de errado com Eros e Anteros, aliás – Então um sorriso suave se formou naqueles lábios volumosos enquanto caminhava na direção de uma sala lateral – Métis estava certa, desde que Anteros nasceu, Eros começou a crescer como uma criança normal.
Um longo e aliviado suspiro escapou dos lábios do homem, que acelerou o passo para segui-la, parando sob um umbral que levava a uma sala de banho, ali esticou-se ligeiramente na ponta dos pés para beijar novamente sua amante mais velha e mais alta, e assim impedir sua passagem, um beijo curto, mas intenso.
-Eu já estava começando a pensar que ele seria eternamente um bebê rechonchudo com asas – Brincou, enquanto observava ela se desviar de si com graça e sensualidade, delineando seu queixo e parte do ombro com o dedo indicador, para então deixar o quarto composto apenas por uma grande cama e várias ânforas que exalavam um cheiro doce.
- E eu já estava pensando que ele havia nascido defeituoso como tu – Soltou um longo bocejo seguindo para uma fonte de água límpida que tomava todo um cômodo, similar a uma piscina, onde ao redor de toda sua extensão escadas levavam até seu fundo – Mas graças a Uranos não! “O amor precisa ser correspondido para crescer”. Simples assim, não acredito que não havia pensado nessa lógica, por isso, quando nosso filho Anteros, deus do amor correspondido, nasceu, Eros passou a se desenvolver como deveria, já aparenta ter três anos de um mortal agora.
Contudo o príncipe havia se atentado a outra parte dos dizeres da divindade que com um andar lento submergia seu corpo nas águas.
- O que quer dizer com “defeituoso”? – Questionou também se adiantando até a banheira de mármore – Que eu saiba, defeituoso é o teu marido coxo, não eu. – Acusou venenoso, mesmo tratando-se de seu irmão mais novo.
- Sim, ele também é defeituoso, provavelmente o problema vem de Hera então, é possível – Ponderou passando a mão por seus cabelos, fazendo com que suas pontas se molhassem na água, sem se importar com o olhar cada vez mais feroz de seu amante. – Muito embora Hebe parece aceitável, para trabalhar como copeira, é claro. Poderia me passar uma das ânforas?
No momento seguinte Aphrodite estava embaixo d’água, presa contra o chão de sua própria fonte, Ares extremamente furioso a encarando, enquanto a prendia no fundo, contra o piso, os braços dela juntos em cima de sua cabeça.
“- Escolha melhor suas palavras, Hera ainda é sua imperatriz.” – Rosnou falando em sua mente – “-Muito menos permitirei que envolva minha irmã com teu veneno.”
- Me dê um único motivo para respeitar a mulher que amaldiçoou um filho meu ainda na minha barriga! – Praguejou a deusa sem fraquejar frente as ameaças do deus da guerra, sendo, ao contrário dele, capaz de falar mesmo submersa, afinal, era uma deusa de origem marinha – Hera desfigurou Priapos antes mesmo que ele pudesse conhecer o mundo. Eu até posso respeitá-la como imperatriz, mas jamais como mãe, muito menos como uma mulher! – Então seu sorriso se tornou ainda mais presunçoso – E eu simplesmente não entendo porque tu a defendes, principalmente depois da Guerra de Troia ela te detesta tanto ou mais que Zeus. E quanto a sua irmãzinha Hebe, não a vi, em nenhum momento, minimamente incomodada com essa situação ou procurando por ti nos últimos anos.
O agarre do senhor da guerra se suavizou, e Aphrodite aproveitou-se disso para soltar suas mãos e envolver assim seu rosto ainda franzido com elas.
- Tu tardaste séculos para se tornar um homem feito, isso definitivamente não é normal, meu amor, e eu definitivamente não queria o mesmo destino para nosso filho, eu quero que o mundo logo presencie a beleza do deus mais perfeito que eu já concebi. – Colocou ela com uma estranha expressão sonhadora, e antes que seu amante pudesse se afastar, puxou-o para mais perto e o beijou, fazendo-o involuntariamente engolir a água de seu banho, engasgando-o no processo.
Sem se importar em ajudá-lo, retornou a superfície, torcendo seus cabelos como se nada tivesse acontecido, e poucos segundos depois o mais jovem também emergiu, preso a uma tosse seca.
- Sabes que não estou a exagerar – Seguia ela, em meio aos sons secos de seu amante tentando tirar a água de seus pulmões – Sem um pingo de culpa Hera escolheste Priapos para te treinar e tornar-te um guerreiro depois que quedaste preso aqueles treze meses pelos gigantes, mesmo tendo sido ela que o amaldiçoou em primeiro lugar. Além de teu mestre, Priapos é teu trineto, e mesmo assim quando ele te treinou teu corpo era de apenas um jovem enquanto ele já era um adulto. Se eu fosse um homem tu serias meu pequeno eromenos.*
- Ao meu ver – Respondeu por fim o deus da guerra com a voz ainda áspera, saindo do banho sem se dar ao trabalho de encarar a deusa – Não sou eu que sou defeituoso, és tu que és demasiadamente decrepita.
Os olhos de Aphrodite se iluminaram de ódio, porém o mais jovem não se importou caminhando de volta ao quarto.
Estava agachado recolhendo sua túnica e seu elmo quando sentiu o cosmo furioso se aproximando.
- RETIRARAS AGORA MESMO O QUE DISSESTE! – Berrou, parando no umbral entre os cômodos.
- Ou o quê? O que achas que podes fazer comigo? – Desafiou o guerreiro com seu elmo já posto voltando-se a figura raivosa cujos cabelos tremulavam em compasso com sua energia – Vais a enlouquecer-me? Eu sou o deus da guerra e de seu tumulto, desordem e horrores, não és capaz de enlouquecer quem nasceu para reinar sobre o ato mais insano que castigou de titãs a homens. – Então voltou a caminhar na sua direção, parando, mais precisamente, na frente dela – Talvez deseje transformar-me em algum animal? Pois sou um metamorfo como tu, posso sem qualquer problema retornar a minha forma original, mesmo se tentares tornar-me uma planta ou árvore eu retornaria, pois eu também sou um deus da agricultura – Estavam a um passo um do outro – Tampouco podes amaldiçoar-me como fizeste com Eos a sofrer pelo desejo insaciável, pois eu sou a divindade da luxuria, já é algo que faz parte de mim. Em outras palavras, tu podes vociferar o quanto quiser, até humilhar-me, mas tu não podes livrar-se de mim, Aphrodite, tua raiva pode afligir os mortais e até os deuses, mas para mim não é NADA. Eu sou imune a qualquer uma de suas maldições e tu sabes disso melhor que ninguém.
Então os dois se beijaram, um beijo violento e disputado, em que um tentava ganhar o controle sobre o outro, mesmo a custa de sangue que escorria pela comissura de seus lábios.
- É por isso que nosso primogênito é perfeito. – Sussurrou ela sobre seus lábios feridos quando ambos se separaram arfantes - Nossos poderes se anulam e complementam perfeitamente. Oh, Ares, eu te amo tanto.
Não respondeu a princípio, estudando o rosto da deusa, para logo suspirar derrotado.
- Eu também te amo – Confessou por fim, sentindo-se como se tivesse sido vencido em uma longa e desgastante batalha quando os lábios dela mais uma vez o tomaram, dessa vez em movimentos lentos, suaves e sincronizados. – Mas creio que Eros e Anteros não poderão esperar outra sessão de sexo selvagem – Acrescentou sentindo como ela deslizava uma das alças de sua túnica recém colocada.
A deusa do amor bufou com isso, desistindo de seu plano, mas logo sorrindo enquanto ia se perfumar usando suas ânforas e alabastros, suas roupas caídas no chão vestindo seu corpo sozinhas como se fosse um conjuro, enquanto Ares sentava no leito que compartiram para esperar pacientemente esses arreglos, vê-la se aprumar e embelezar mais, se é que isso era possível, era uma das poucas atividades que não desgastavam sua paciência rapidamente, poderia esperá-la por horas se fosse preciso.
Uma vez estando arrumada e ainda mais exuberante, seus cabelos fazendo um movimento de ondas por sua costas, a divindade fez um sensual movimento com as mãos para que seu amante a seguisse, este por fim ergueu-se do leito e o fez, seguindo-a para fora de seus aposentos, ambos se envolvendo nos braços um do outro no processo.
- Seu néctar, minha senhora – Duas ninfas ajoelharam de cabeça baixa no meio do caminho deles, trazendo consigo dois cântaros negros.
Aphrodite esticou a mão que não estava atada na cintura de seu amante e Ares fez o mesmo, a serva da qual ele tomou o néctar tremia quase compulsivamente por estar na presença do senhor da guerra. Então as serventes se ergueram e se posicionaram alguns passos atrás do casal, esperando que terminassem suas bebidas para que pudessem levar as cerâmicas e se retirar. No entanto, nenhum dos dois parecia com pressa de apreciar a bebida divina.
- Eu vejo que tu estás muito satisfeita com Eros – Seguiu o príncipe do olimpo dando pequenos goles de sua taça.
- Eu sou uma deusa semeadora, minha vocação é gerar novas vidas pela carne como deuses da agricultura geram a vida pela terra – Comentou sugestivamente para ele, aconchegando-se mais em seu tronco – Então é natural que eu queira filhos poderosos e superiores, da mesma forma que um agricultor almeja plantações cada vez mais produtivas.
Ares não comentou a comparação, seguindo a caminhar no longo corredor curvo, já começando a localizar a recamara onde Eros e Anteros ficavam. O templo da deusa do amor era composto por vários aposentos separados por corredores que possuíam o formato circular de pétalas de rosas, sendo que no centro da flor ficava seus aposentos principais.
- ...Por isso tenho certo que o casamento arranjado com Hefesto foi uma forma de Hera me castigar – Resmungou a divina terminando sua bebida em um último gole e lançando seu cântaro para trás sem qualquer cerimônia, a ninfa responsável por servi-la, porém, o tomou sem problema e logo desapareceu, lançando antes um olhar de pena para sua companheira que ainda esperava assustada que Ares fizesse o mesmo.
- O casamento seria um castigo para ti, mesmo se eu fosse teu esposo? – Não pôde deixar de questionar, observando a beldade de soslaio. – Já temos cinco filhos juntos, e sinceramente eu não me importaria de te dar todos os demais que tu quisesses.
Para sua consternação a deusa começou a gargalhar.
- Quer mesmo que eu acredite que um filho divino de Zeus seria capaz de ter uma única mulher? – Disse com pequenas lágrimas em seus olhos ainda de seu ataque de risos – Mesmo que seja o único filho não bastardo de Zeus, eu teria que ser muito idiota para acreditar nesse conto.
Quanto a isso Ares finalmente parou, ser tão diretamente comparado ao seu pai e seus atos sendo o suficiente para ferver seu sangue novamente.
- Eu JAMAIS seria como ele – Colocou com ódio, se desvencilhando da bela jovem em seus braços assim que chegaram ao umbral que levava aos aposentos de seus filhos menores em tamanho. – Além disso, eu ainda sou filho de Hera, a deusa do casamento e fidelidade.
- A única coisa que você puxou de Hera foi esse seu temperamento – Disse levando a mão a ponta do nariz dele dando-lhe um pequeno peteleco. – Então nada de exclusividade, amor, tu tiveste a chance de casar-te comigo quando tua mãe foi presa por Hefesto naquele trono idiota e ofereceu minha mão para quem a libertasse, e tu falhaste miseravelmente nessa provação.
Se afastou antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa, ainda com o cenho franzido e raiva passando por seu ser, seu cosmo borbulhando e rachando o chão aos seus pés como consequência.
Os aposentos dos irmãos era tão grande quanto o de sua mãe, o par estava dormindo junto, duas crianças pequenas e rechonchudos despidas de roupas e de aparência quase gêmea, se não fosse o fato de Eros já deixava para trás sua aparência de bebê ao contrário do irmão que parecia um recém-nascido, além disso, suas asas eram brancas e cobertas de penas como as de um pássaro, e mesmo estando recolhidas ainda possuíam o dobro de seu tamanho, enquanto as asas de seu irmão eram um pouco menores do que seu corpo, iguais as de uma borboleta, porém também carregada de uma peculiar plumagem.
Haviam quatro ninfas sentadas de cada lado da cama vigiando seu sono, as quais se curvaram prontamente a entrada de sua senhora e depois de um gesto da mão dela, desapareceram.
Nessa interação Ares finalmente bebeu o último gole de seu néctar buscando com o olhar a ninfa que devia recolhê-lo, a qual apareceu trêmula aos seus pés, sem encará-lo diretamente nos olhos e mesmo assim parecia a ponto de desmaiar. Deixou o cântaro em suas mãos estendidas e a mesma desapareceu com um audível suspiro de alívio.
- O que aconteceu com a ninfa que geralmente tu designavas a servir-me? – Questionou com desconfiança não reconhecendo a figura assustadiça que havia se retirado às pressas.
- As ninfas são todas iguais – Disse dando de ombros, indo até o leito e sentando-se ao lado de seus filhos, pegando o pequeno Eros em seus braços e acordando-o lentamente, para então embalar seu corpo que quase já não cabia em seus braços de um lado para outro – A menos, é claro, que tu estivesses realmente interessado nela em particular.
O senhor da guerra pôde compreender o que havia por trás dessas palavras.
- Tu a amaldiçoaste, verdade? – Não era uma pergunta real, até mesmo porque a expressão presunçosa da deusa era uma resposta mais do que suficiente – O que aconteceu com a sua ideia de “nada de prioridade”?!
- Há limites! Eu não vou aceitar tu deitando-te com qualquer uma de minhas ninfas! – Exclamou irritada, fazendo o pequeno deus em seus braços abrir os olhos surpreso pela elevação de voz – Da mesma forma que temos um acordo tácito sobre eu jamais deitar-me com teu pai.
- Tu estás louca e paranoica, quando eu cobicei alguma de suas ninfas?! Ela apenas olhou nos meus olhos a última vez que estive aqui - Declarou com exasperação – Isso é motivo suficiente para ti?
- Sim – Decretou com firmeza, fazendo o mais jovem apenas suspirar cansado massageando suas pálpebras. – Trata-se de respeito, eu não dei autorização a nenhuma das minhas a trocar olhares contigo. Ela estava claramente me desafiando.
- Tu que tanto critica Hera está se tornando pior que ela, contudo, minha mãe ao menos tem muitos motivos para ser como é, MUITOS, já que é CASADA com Zeus – Destacou a palavra referente ao matrimônio. – Algo que tu claramente dizes rejeitar.
Aphrodite não respondeu, deixando que seu filho mamasse aninhado em seus braços, os olhinhos dele observando desconfiado a interação de seus pais.
- Eu ainda estava irritada com o que tu fizeste com Adonis - Acusou ela, fazendo-o apenas revirar os olhos. – Só isso, eu amo aquele rapaz e tu não tinhas o direito de fazer o que fez.
- Certo, eu o matei, e...? – Ironizou – Tu estavas há meses com esse maldito! E estava usando-o para me provocar, sei que estava! – Sua raiva se intensificava cada vez mais, e mais rachaduras apareciam no piso decorrentes disso.
- Taalvez – Sussurrou ela com um sorrisinho perverso – Mas o pobrezinho não merecia ser morto como foi! Tu te transformaste em um Javali e o destroçaste! – Sua expressão se encheu de desgosto – Sério, Ares!? Um javali!
O deus da guerra apenas deu de ombros.
- Eu não sou como todos os loucos aqui do Olimpo, e isso principalmente te inclui. Deuses que ficam inventando castigos mirabolantes e insanos – Exclamava gesticulando com suas mãos em sinal de impaciência – Se eu não gosto de alguém, eu simplesmente ajo como o deus poderoso que sou e mato quem provocou minha fúria, esquartejo seu corpo com as minhas próprias mãos ao invés de enlouquecer outros para fazer isso, e me divirto com suas tripas e sangue antes de dá-las para Huiós comer. É muito mais simples e direto ao ponto, além de muito mais libertador do que transformar seus antigos amantes em camarões!*
- Brutal.
- Obrigado. – Agradeceu, para então bufar com desgosto – E eu não sei do que está reclamando, Adonis foi ressuscitado depois – Cruzou os braços com insatisfação - Eu não faço a menor ideia de como tu conseguiste convencer meu tio Hades de ressuscitá-lo, se nem Apolo e seus lamentos incansáveis conseguiram trazer Jacinto de volta. – Uma expressão de horror então se formou na face do olimpiano – Espera! Tu não fizeste sexo com meu tio, fizeste?! Já não bastasse que fizesse com Poseidon “como forma de agradecimento” por ele ter conseguido convencer Hefesto a nos libertar daquela maldita rede, e agora isso?!
Uma expressão de completo nojo assumiu a face de Aphrodite.
- Eu literalmente nunca desceria tão baixo, Ares – Colocou com repulsa – Adonis apenas foi expulso do submundo, eu não precisei fazer nada.
- Quem é expulso do submundo?! – Exaltou-se com descrença – E tu já havias se vingado de mim quando enlouqueceste Eos pelo prazer, agora ela passa seu tempo sequestrando homens e os forçando a ter sexo. Ela até mesmo fez isso com Órion, e ele é um gigante! – Gesticulou grosseiramente com as mãos, mostrando qual era o problema logístico dessa união. A deusa do amor apenas parecia ficar mais satisfeita com o exaspero do jovem senhor da guerra.
Contudo, a discussão de ambos ficou para segundo plano quando Eros grunhiu mostrando-se satisfeito e Aphrodite o colocou na cama com cuidado para poder partir a alimentar Anteros.
- ...Eu posso pegar ele? – Questionou o guerreiro deixando sua raiva de lado, seu cosmo se pacificando enquanto se aproximava da cama com genuína curiosidade – Tu nunca me deixaste pegá-lo no colo. – Acusou quase infantilmente.
- É claro que não – Declarou a deusa com firmeza, esticando a perna para que o mais jovem não pudesse chegar ao grande leito – Eros é o deus do amor! Ele pode sentir o que há dentro do coração de deuses e humanos, ele pode sentir esses sentimentos como se fossem seus!
- E o que tem isso? – Questionou com impaciência sem compreender.
- Tu mesmo disseste Ares, és o deus da Guerra, de seu tumulto, desordem e horrores. Aquele que reverencia a guerra por si só, se deleita com o barulho das batalhas, se diverte com o massacre dos deuses e homens e na destruição de cidades. O que acha que um ser sensível como Eros sentirá estando em suas mãos destrutivas? Seu caráter selvagem e sanguinário só vai assustá-lo - Vendo que suas palavras não pareciam convencê-lo, assumiu novamente uma postura presunçosa. – Tudo bem, se não acredita em mim – Indicou seu filho – Vá em frente.
Teimosamente o deus da guerra confirmou com a cabeça e se adiantou ao lado aposto do leito onde sua amante não estava sentada, quando ela recolheu a perna permitindo-lhe passagem.
- Ei, Eros – Chamou, captando assim a atenção do menino que fisicamente não parecia ter mais de três ou quatro anos, embora já tivesse o triplo disso pelo menos – Ele consegue me entender?
- Levando-se em conta que ele conseguiu arruinar a vida amorosa de Apolo por criticá-lo enquanto aprendia a mexer com o arco e flecha, eu diria que sim – Declarou com um sorriso de satisfação – Mas ele não fala muitas coisas, “mamãe”, “Arco”, “fetcha” é tudo até agora.
- Tão pequeno e já não deixa passar um desaforo – Ares suspirou de orgulho – Tu realmente és um bom garoto. Acertar o deus do arco e flecha justamente com uma flecha deve ter sido hilário!
Não houve qualquer resposta, ao invés disso o menino seguiu encarando os olhos vermelhos de seu pai com seus azuis claros, atentos a todos os seus movimentos.
- E tu não ias pegá-lo? – Ironizou Aphrodite vendo que o representante do signo de Áries não se mexia, apenas trocando olhares com a criança. – O deus da coragem está com medo de um menino...?
- É claro que não! – Defendeu-se, e então avançou e pegou o jovem em seus braços com um cuidado torpe e torto, perto da cama para o caso de que caísse.
O resultado foi praticamente imediato.
O cosmo de Eros expandiu-se por todo o aposento, intenso e vermelho sangue. Lágrimas correram por seu pequeno rosto, enquanto um enorme “não” agudo escapou de sua garganta.
Antes que sequer Ares pudesse processar o que estava acontecendo, sentiu quatro pares de braços segurando a barra de sua túnica. Fobos e Daimos, ambos de tamanho adolescente e trajando um pesado elmo que escondia suas faces, tinham sido atraídos pelos gritos do irmão de seus próprios aposentos próximos, o que apenas simbolizava o quão aterrorizado Eros estava.
O príncipe buscou orientação de sua amante, apenas para receber o olhar vitorioso dela, apreciando estar certa. Engolindo essa afronta e declarando a derrota, o deus colocou a criança de volta em sua cama, afastando-se o máximo que podia depois disso, perdendo o momento que os olhos de Eros piscaram carmesins como os seus.
- Viu, eu disse – Ironizou a deusa, Anteros por sua vez parecia desinteressado em se alimentar, e muito mais interessado no que acontecia entre seu irmão mais velho e seu pai, notando isso Aphrodite aproveitou-se para devolvê-lo ao leito, para então dar a volta pelo mesmo parando ao lado de seu consorte, não sem antes fazer um gesto impaciente com a mão para que os gêmeos se afastassem e lhe dessem espaço, o que ambos fizeram, a expressão que apresentavam era impossível de ser vistas baixo o elmo. – Oh meu amor, deverias ter me escutado – Sussurrou em sua orelha enquanto delineava com lentidão sua coluna com a ponta do dedo indicador. – Ao menos essa pequena demonstração serviu para que tu penses duas vezes antes de se aproximar do nosso pequeno, outra vez. O desejo por guerra que nasceste em ti porque teu pai foi aquele que começou a Titanomaquia, é o mesmo que te faz compleeetamente desprezado por todo o Olimpo, por teus pais, mesmo por teu primeiro filho deus, isso não é triste? – Não houve resposta, ao invés disso Ares se limitou a fechar os olhos, respirando fundo, escondendo algo em suas vestes – Mas não se preocupe Theritas*, todas as outras deusas podem te desprezar, mas eu sempre estarei aqui para ti, eu vou te amar para sempre, sabes disso.
Ao que o guerreiro reabriu seus olhos, raiva emanava de suas íris amarelo vivas, porém antes que pudesse começar uma nova e violenta briga com Aphrodite, viu Anteros engatinhando na cama em sua direção, ainda parecendo muito interessado em sua presença.
Esticou a mão para que ele pudesse tocá-la, num gesto suave que a deusa nas suas costas não pôde presenciar. Ao contrário de Eros, seu irmão apenas brincou com os dedos de seu pai, de forma tão despreocupada que foi capaz de minar aos poucos a raiva de seu pai até fazê-la desaparecer como se nunca tivesse estado ali.
- Está bem, tu venceste – Resolveu por admitir afastando-se lentamente de seu filho caçula que o encarou decepcionado, então voltou-se para a deusa novamente – Eu não vou me aproximar mais de Eros, satisfeita?
- Ooown~ Estou tão orgulhosa que tu entendestes - Disse em tom adocicado fazendo menção de abraçar o mais jovem, mas este se desvencilhou de seu aperto com uma expressão de repulsa, fazendo-a ser aquela a se enfurecer.
Ele começou a se afastar, Fobos e Daimos logo passando a segui-lo, mesmo que seus rostos ocultos estivessem voltados para a mãe.
– Ótimo, vá embora. Vá para a Terra, seduza e faça sexo com alguma mortal, não me importa, porque todas elas vão morrer no final, enquanto eu vou estar aqui, apreciando como tu enterra o cadáver de cada uma de suas amantes e filhos, até que voltes para mim, a única deusa que aceita estar entre suas mãos imundas de sangue! – Não houve qualquer resposta enquanto o deus seguia em direção a saída, sem encará-la – E LEVE ESSES FILHOS IMUNDOS CONTIGO, SÃO UNS COMPLETOS INÚTEIS, SEQUER SERVIRAM PARA ASSUSTAR HEFESTO E CONVENCÊ-LO DE LIBERAR HERA PARA QUE TU FOSSE AQUELE A RECLAMAR-ME EM MATRIMÔNIO! Só me atormentam, sabe quantas ninfas se mataram ou enlouqueceram apenas por ter visto o rosto deles? Eu tive que colocar elmos de meu marido para que eles pudessem coexistir minimamente por aqui.
Finalmente isso foi suficiente para fazer Ares deter seus passos.
- Tu disseste que não permitia mais que Hefesto se aproximasse de nossos filhos, depois do colar amaldiçoado que ele deu a Harmonia – Disse simplesmente sem virar-se.
- Sim, eu disse, mas essas duas aberrações são teus filhos, não meus – Disse cruzando os braços, o senhor da guerra por fim virou-se para encará-la e despejar nela toda a raiva que novamente fervia em suas veias, mas esse enfrentamento não aconteceu, pois Anteros havia começado a chorar chamando assim a atenção de sua mãe, o pequeno Eros se aproximou para consolá-lo, vendo o último olhar de seu pai, que não tornaria a ver em milênios, um olhar de tristeza, antes de sussurrar um único “vamos” e levar os gêmeos consigo enquanto Aphrodite tentava acalmar seu filho caçula.
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Ares suspirou verdadeiramente esgotado enquanto seguia pelo corredor que levava a saída do templo de Aphrodite, a mesma sensação avassaladora de derrota de antes carcomendo seus ossos, ela tinha se tornado cada vez mais recorrente nos últimos tempos em suas visitas, o que começava com uma noite de amor e sexo sem igual, terminava em discussões acaloradas e humilhantes.
Tentou realmente não pensar nas palavras dela sobre suas amantes e filhos mortais e suas mortes eminentes, mas isso era sumamente difícil quando a execução de suas filhas Amazonas, principalmente a mãos de Herácles, ainda se sentia tão recente. Mesmo sendo o senhor da guerra violenta, aquela era uma chacina que realmente gostaria de esquecer.
Em sua caminhada, qualquer ninfa que tinha o azar de cruzar pelo caminho do trio entrava em imediato pânico e fugia assustada, algumas em suas fugas deixando para trás objetos que carregavam, como uma ‘cochleare’ de madeira, semelhante a uma pequena pá com ponta arredondada, feita para comer ovos e mariscos.
Tendo caído próxima aos pés de um dos gêmeos, este parecia pensar que ela daria uma boa espada, com a qual começou a bater em seu irmão.
- Bem, se estamos causando furor de qualquer forma, não há nenhum motivo válido para vós usareis isso – Mencionou Ares tentando distrair-se de seus próprios pensamentos, parando ainda nas propriedades de Aphrodite e voltando-se aos adolescentes que lutavam infantilmente entre si, um estando armado com sua fiel cochleare e o outro com as mãos – Eu realmente espero que isso não esteja amaldiçoado, por que se estiver eu juro que castrarei Hefesto e farei um colar com os testículos dele.
Então agachou-se na altura de ambos e soltou seus elmos demasiadamente grandes para suas pequenas cabeças, revelando suas longas cabeleiras armadas até a altura de seus queixos, de um loiro quase branco, seus olhos eram vermelhos como o de seu pai e brilhavam como o fogo. Estando finalmente libertos ambos sorriram com suas fileiras de dentes pontiagudos. Frente aos olhos impressionados Ares amassou cada um dos capacetes com as mãos nuas, transformando-as em meras bolas de ferro e as jogou sem qualquer cuidado por cima da cabeça, amassando algumas rosas que margeavam o caminho que levava a saída do templo e a subida comum do Olimpo.
- Hefesto já foi melhor nisso – Ironizou enquanto os gêmeos aplaudiam – Garotos, eu vou ser sincero com vós dois. Fobos e Daimos.
- Daimos.
- E Fobos – Corrigiram ambos, com vozes idênticas e estridentes.
-...- Ao invés de responder o mais velho olhou de um para o outro com expressão franzida, tentando buscar qualquer diferença entre eles e falhando miseravelmente – Certo, eu vou ter que acreditar na palavra de vós. A questão é, eu nunca criei crianças sozinho antes, e Eros e vós sois meus primeiros filhos imortais, então não tenham altas expectativas, eu não faço ideia de como isso vai funcionar, meu templo nem é um lugar pensado para crianças, provavelmente terei que mudar algumas coisas nele para impedir que vós, literalmente, percam a cabeça por acidente.
- Nos leve para a guerra! – Exclamou animado Fobos dando um golpe particularmente doloroso em seu irmão com sua concha antiga – Queremos ir para a guerra!
- Ai! Siiim! – Animou-se Daimos apesar do golpe.- Gueeerra!
- É, claramente vós puxais a mim, mas que guerra vós levaria se ainda nem chegais a minha cintura! – Exclamou voltando a erguer-se – Não, fora de cogitação, além do mais, me dê isso - Falou pegando o objeto de madeira e quebrando-o ao meio para infelicidade do pequeno deus do medo, mas isso logo se reverteu quando Ares entregou um pedaço para cada um – Não tem valor uma luta com um adversário desarmado. Agora vamos, quanto antes sairmos daqui melhor – Decretou voltando a caminhar enquanto seus filhos o seguiam travando um duelo entre si. Não pôde deixar de observá-los de canto de olho com um ligeiro sorriso – Pensando bem...Olha, eu ainda não gosto da ideia de levar dois pivetes para o campo de batalha, mas sinceramente é mais seguro do que deixar-vos sozinhos no templo com Hefesto rondando por aqui.
- Vamos nos empenhar mais no treinamento! – Exclamou Fobos animado.
- Siiim, estamos prontos! – Saltitou seu irmão. – Mamãe quase não nos deixava sair ou lutar!
- Eu que vou decidir quando estiverem prontos, não pulem etapas. – Alertou enquanto passavam pelo umbral de saída, deixando para trás, para satisfação do ariano, muitas ninfas desesperadas e desmaiadas por direta ação dos gêmeos – Agora, pelo bem ou pelo mal, as coisas serão do meu jeito.
Toda a subida de volta ao seu próprio templo fez perdido em seus pensamentos, sentindo as palavras de Aphrodite novamente martelando em sua cabeça, fazendo-a começar a doer.
Ordenou alguns soldados que mostrassem todo o templo a seus filhos, que só conheciam os campos de treinamento menores, e se retirou alegando que iria se banhar no coliseu, devido ao cansaço que sentia em seu corpo de sua última campanha de guerra.
Estava mentindo, sabia disso a partir do momento que percebeu que seus pés o haviam levado até um corredor específico de seu templo, os escultores que ali estavam trabalhando agilmente saíram ao avistarem sua presença, deixando-o sozinho frente a estátua de sua eterna noiva Otrera, com seus brilhantes cabelos negros, espada e escudo em punho.
- Ei, velha amiga – Começou a dizer encarando os olhos claros da figura sem vida – Eu sei que demorei para voltar dessa vez, sinceramente eu não sabia como te encarar depois que nossa Hipolita foi morta, e não apenas ela, as nossas amazonas já não existem mais, é uma longa história e eu não sou um bom orador – Sentou-se aos pés da escultura – Em resumo, Héracles é um imbecil, ainda mais que Teseu, mas minha mãe agora o perdoou e ele casou-se com minha irmã. O Olimpo se tornou ainda mais insuportável, se possível. Sem nossas guerreiras o mundo humano cada vez me interessa menos. – Fez uma pequena pausa, como se esperasse que a figura de pedra o respondesse – Sim, algumas amazonas sobreviveram, mas como eu falhei em vingar-me de seu algoz eu não tenho mais direito a sua lealdade. Soube que algumas se casaram, outras se esconderam, uma até mesmo se uniu as forças de Athena e começou a reerguer as amazonas em seu nome – Sua expressão se franziu – É, isso não me deixa nada satisfeito, mas é bom saber que a feroz chama de nossas guerreiras segue viva de alguma forma, por isso eu não chamaria essa garota de traidora, talvez atrevida fosse a melhor palavra. Subversiva? Já fui chamado disso algumas vezes e eu gosto.
Um novo silêncio se fez no qual a divindade fechou seus olhos.
- Eu fui ver Aphrodite de novo hoje, me sentia cansado depois que terminei os rituais fúnebres de Ascalaphus, mas depois de toda a luta que ele deu na Guerra de Troia era o mínimo que eu poderia fazer. No final, acabei tendo que despedir-me de meu primeiro filho deus, isso não estava nos meus planos, mas eu realmente não combino com algo tão “Frágil”. – Buscou em suas vestes, revelando duas plumas que havia retirado do pequeno deus sorrateiramente em meio ao seu pranto assustado – É complicado. Eu amo Aphrodite e sei que ela também me ama, não teríamos os deuses da Harmonia, do Amor e do amor correspondido se não fosse assim, certo? – Suas palavras seguiram-se de um longo suspiro, ergueu a face encarando o rosto da estátua de sua posição sentada – Uma vez tu me disseste que amar é sentir-se seguro e querido, mas eu não me sinto assim com ela, nem com minha mãe, hahá, muito menos com Zeus, já os tempos que passei com Hebe parecem muito distante agora para me lembrar dessa sensação. Eu não estou dizendo que tu estavas mentindo, tu eras uma mulher inteligente, bem mais do que eu, apenas creio que é diferente para cada um, quero dizer, o lugar de um deus da guerra sempre será o caos, não faz sentido querer desejar sentir-me seguro ou mesmo apreciado estando na minha posição – Ergueu sua mão, vendo a luz passar pelas plumas - Aphrodite tem razão, eu deveria dar-me por satisfeito por ter seu amor, o que mais um homem poderia querer?
Então se reergueu, invocando sua lança que surgiu veloz pelo corredor e parou obediente em sua mão direita, e assim se pôs a amarrar as penas próximas a lâmina.
- Eu realmente não posso desejar mais que isso – Bateu com satisfação sua arma no chão, fazendo-a ressoar por todo o corredor – Mas eu posso fazer mais do que isso. Posso fazer isso por meus filhos, isso já me faria bem melhor que Zeus, tu não achas? – Sorriu com afronta frente a essa ideia – Isso me faria subversivo? Eu gosto como isso soa, nada me dá mais prazer do que ir contra tudo o que Zeus representa. – Sua expressão tornou-se mais suave - Se o deus do amor é meu filho, eu possuo isso dentro de mim, é assim que filhos divinos funcionam, e é por isso que Fobos e Daimos farão parte da minha comitiva a partir de agora. Afinal, o medo faz tanto parte de um guerreiro quanto sua lança – Começou a girar a sua própria em seus dedos – E eu preencherei os meus com a guerra e a carnificina que fui treinado para proporcionar. Essa é a minha função fundamental.
- Nada como um guerreiro determinado, eu acho, mas com quem tu estás falando? – Não se surpreendeu quando uma figura flutuando apareceu às suas costas, Hermes estava parada atrás de si, as asas de suas sandálias batendo rapidamente, uma toga de um único ombro, curta, um palmo acima de seu joelho, e seu fiel elmo alado o acompanhavam. – Por acaso é alguma vítima de Medusa? Alguma madrasta que sua mãe transformou em pedra? Ou foi tu mesmo que fizeste isso por essa mulher não querer te apresentar sua irmã?*
- Por que eu deveria te responder? – Questionou áspero para o deus mensageiro voando a meio metro do chão.
- Ora, vaaamos, ainda está bravo comigo por causa da disputa pelo coração da ninfa Tanagra? – Brincou seu meio irmão, sentando com as pernas em lótus em pleno ar, deixando seu membro completamente amostra, para o qual Ares revirou os olhos e começou a caminhar pelo corredor – Tu sabes que foi uma disputa justa!
- Não Hermes, não foi, tu és o último do Olimpo a saber o que é honra ou justiça – Ao som do bufo contrário e a menção de que se defenderia, Ares acrescentou com rispidez - Apenas diga o que tu queres de uma vez, e se for uma mensagem de Zeus ou Hera, diga que eu estou na mesma maldita montanha que eles, que venham falar comigo pessoalmente.
- Não, algo um pouco mais chato eu diria, não estou aqui como mensageiro e sim como Psicopompo – Isso fez Ares parar, engolir em seco e logo voltar-se a outra divindade.
– Quem faleceu dessa vez? É algum de meus filhos? – As palavras de Aphrodite novamente assombraram sua mente.
- Não – O alívio não escapou de sua face, mas ele durou pouco – Foi uma de suas amantes. Aglauro, filha de Cécrope I, na verdade, as três filhas de Cécrope foram mortas, e seu pai se suicidou em desespero por causa disso, deixando apenas seu filho para trás, o príncipe de Atenas, Erisictão. – Um suspiro desanimado escapou dos lábios de Hermes enquanto Ares processava a informação – Eu gostava da irmã dela, Herse, tivemos até um filho sabe, mas Eos o sequestrou... – Fez uma expressão de desgosto – Queria saber o que deu nela para começar a fazer isso.
Ares não respondeu, apertando os punhos com força, a jovem meia-tritão era ousada e tinha um espírito livre, se encantou com ela assim que a conheceu, sendo resguardada para o casamento, separada de seu irmão, foi rebelde o suficiente para escapar-se de suas restrições castas e aproximar-se do maior rival da deusa que protegia sua cidade, valorizava espíritos assim, rebeldes e inconsequentes, sem dúvida era uma mulher excepcional, mesmo que seus caminhos tivessem se separado, ainda tinha isso muito claro.
-...Mas Aglauro era tão linda quanto Herse, desde que tu a deixaste por causa de Aphrodite eu estava pensando em cortejá-la também, mas é claro que eu iria perguntar antes! – Acrescentou apressadamente a última frase com as mãos em sinal de redenção – Não precisamos repetir o episódio de Tanagra, não é mesmo?
- O que aconteceu com minha filha Alcipe? – Questionou com firmeza ignorando as divagações contrárias.
- A pequena de olhos vermelhos e cabelos brancos? – O deus confirmou – Ela continua escondida em Trácia.
Simplesmente confirmou com a cabeça, teria que visitá-la mais tarde, ainda era muito jovem para viver sozinha ou se casar, e era muito perigoso trazê-la ao Olimpo, provavelmente seria melhor fazê-la sacerdotisa ou ensiná-la a lutar. Contudo, esses pensamentos passaram a outro lado de sua mente quando uma nova pergunta surgiu em sua mente antes que Hermes pudesse alegar que se retiraria.
- Tu disseste que elas foram mortas, pelo quê? – Inqueriu – Muito me estranha que as três filhas do primeiro rei de Atenas morram assim, quando a guerra de Athena e Poseidon já se findou.
Quanto a isso Hermes faz surgir entre suas mãos um longo pergaminho escuro, que reconheceu pertencer ao submundo, passou seus olhos por ele antes de responder.
- Erictônio as matou sob ordens de Athena, aparentemente elas abriram uma caixa que a deusa as proibiu de abrir e descobriram o que não deveriam, sério, eu não sei qual o problema que os humanos tem com o curiosidade, não aprenderam nada com Pandora?! – O deus da guerra, contudo, já não estava escutando, seu sangue fervia em suas veias e seus olhos passavam a brilhar em amarelo vivo.
Athena.
Claro que era Athena.
Sempre era Athena.
A maldita deusa da guerra que havia ganhado todos os favores de seu pai.
A deusa que havia nascido formada e armada enquanto ele havia tido que humilhar-se para crescer e se tornar um guerreiro. A mesma Athena que orientava e protegia Aquiles e mesmo Héracles.
A odiava com cada grama de seu ser, pois ela representava tudo que Zeus alegava que ele não tinha, e ela fazia questão de exibir seus atributos cada vez que se encontravam.
Entretanto, as seguintes palavras de Hermes foram o estopim que faltava.
- Eu não entendo Athena, Erictônio é um de seus guerreiros, mas Erisictão, cujas irmãs foram mortas, também é. Isso faz sentido para ti....? – E o mensageiro quase tragou a própria língua ao encarar a fúria nos olhos do deus da guerra, mesmo que seu cosmo ainda se mantivesse contido, como se quisesse esconder o que tinha em mente. -...Ares...?
- Esse bastardo teve suas irmãs mortas por sua deusa e simplesmente segue a servi-la?! – Suas palavras saíram como veneno. – Agora eu entendo do que Aglauro queria fugir.
- Ei, ei, A-ares, calma! Tu sabes como Athena é! – Disse recuando, e sua situação não melhorou quando Fobos e Daimos vieram correndo, sendo perseguidos por um soldado de armadura, ambos foram atraídos pelo receio do mensageiro que entrou em estado de verdadeiro horror ao ver olhos flamejantes das divindades do medo e pânico. – Por ZEUS! – Caiu no chão, e antes que pudesse se levantar, o senhor da guerra fincou a lança em sua toga, perigosamente perto demais do meio de suas coxas, e pisou com um pé em seu peito. – Ares...?! – Engoliu em seco.
- Tu vás a dizer-me, tudo, absolutamente TUDO sobre esses “guerreiros” de Athena, onde ficam, quantos são, e também levará uma mensagem minha a ela, está bem? – Questionou atroz, seus filhos rindo as suas costas enquanto o soldado havia se ajoelhado mais atrás. Hermes apenas confirmou trêmulo com a cabeça começando a falar atropeladamente tudo o que sabia sobre a questão, seus nomes, suas vitórias, seus números, e como haviam subjugado Atlântida e destruído o corpo de Poseidon.
Quando por fim terminou, ainda preso contra o chão, o mensageiro questionou, esperançoso que a resposta lhe devolvesse sua liberdade.
- Q-qual é a mensagem que desejas que eu envie a nossa irmã...? -Perguntou, mesmo que já soubesse a resposta.
O cosmo do deus finalmente explodiu, numa apoteose que fez até mesmo os ossos do outro deus tremerem, ao tempo que alertavam todo o Olimpo que algo grande aconteceria em breve.
- “Eu vou tirar tudo de ti, matarei os teus guerreiros como mataste meus filhos, como mataste suas mães, eu terei minha vingança no começo do outono, então prepare-se para a guerra!” – Finalmente ergueu seu pé, permitindo que seu meio-irmão se libertasse - Além disso, quero que envie um pedido de clemência ao tio Hades, porque sei que Athena deseja que todo aquele que a contrarie sua divina vontade seja castigado no pós mortem, e eu tampouco vou dar essa felicidade a ela!
- S-sim, eu pedi clemência para Herse também – Disse levantando-se – Algo mais....?
E a falta de resposta e olhar ameaçador foi suficiente para Hermes entender a mensagem e desaparecer dali o mais rapidamente que podia, deixando apenas um vento forte para trás.
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Um fungo fez com que abrisse os olhos, sentia-se confuso, não recordava com precisão aonde estava ou o que estava fazendo, da mesma forma que não sabia porque essa lembrança havia saltado em sua mente.
-...Pai? – O tom choroso o fez saltar, virando-se para seu lado direito para ver os olhos lagrimejantes e vidrosos de Eros o encarando. -...O senhor está bem?
Levou largos segundos para se lembrar o que o garoto fazia ali e simplesmente nenhuma explicação apareceu em sua mente, tudo que vinha em seu lugar era a imagem de como havia feito o jovem Eros colapsar milênios atrás, sua natureza tóxica para a frágil criança caindo novamente como uma pedra em seu estômago como da primeira vez. Por isso seu corpo respondeu a presença antes de sua mente processar os porquês, afastando-se imediatamente do jovem trêmulo e em prantos, recusando como se estivesse assustado, rastejando de costas.
Isso pareceu confundir o primordial do amor que segurava uma flecha sangrenta em mãos, enquanto o mais velho olhava os ramos retorcidos ao seu redor e depois para seu filho, como se estivesse se forçando muito para juntar os pedaços de um quebra cabeça com peças demais.
- Ai... – E ao invés do sucesso, tudo que conseguiu em troca foi uma latente dor de cabeça.
- Perdão! – Exclamou ruidosamente o deus alado – Eu não pude resistir a assistir, eu devo ter piorado tudo.
Suas palavras não pareciam fazer qualquer sentido para o deus ainda desorientado, por isso o menor tentou aproximar-se engatinhando pelos ramos, mas novamente seu pai retrocedeu por instinto. Era uma situação completamente bizarra, o deus da guerra recuando assim frente ao mero deus do amor.
Então algo ocorreu a Eros vendo como Ares levava ambas as mãos à cabeça devido a dor que ali sentia, ainda o olhando com receio estampado em seus olhos vermelhos.
- Pai, eu estou bem – Disse em tom suave, enxugando suas lágrimas e fazendo seu cosmo emanar em ondas, ondas suaves e que tinham como objetivo acalmar ambos – Sabe, eu não sou mais aquela criança, sou capaz de controlar meus poderes agora, estar perto de deuses alimentados por sentimentos caóticos, como deuses ctônicos, ainda me assusta e me deixa nervoso, mas eu não surto mais como quando era jovem – Sorriu o que esperava que fosse um sorriso reconfortante e reforçou – Eu estou bem, o senhor não precisa se afastar mais.
- Tu estás chorando – Acusou, sentindo a dor diminuir ligeiramente conforme o cosmo de seu filho o atingia, fazendo-o sentir uma sensação realmente reconfortante, era como se deixar mergulhar em um banho quente numa tarde de inverno – O que aconteceu e por que estamos aqui? – Resolveu por perguntar, sentido seus pensamentos mais coerentes, virando-se novamente para os galhos retorcidos – Quem é essa mulher? – Perguntou-se vendo June.
- O senhor não lembra? – Disse surpreso indicando seu próprio colo, havia sangue manchando boa parte de sua toga branca, em sua mão descansava a flecha que também pingava Ikhor, do seu lado esquerdo havia um ramo particularmente afiado igualmente coberto pelo liquido carmesim, estranhamente agora havia um pequeno broto nascendo de sua ponta seca – Qual a última coisa que o senhor recorda?
- ... Eu não sei, minha cabeça está uma bagunça, eu não me sinto tonto assim desde o casamento de Peleu e Tétis – Resmungou voltando a apertar o crânio com as mãos, seguindo a trilha do sangue que acabava em si mesmo, mais precisamente em seu peito, só então notou que suas roupas estavam erguidas e torcidas, dando acesso ao seu peito sangrento, que no entanto, não apresentava nenhum ferimento, pelo menos não mais. – Por que eu estou na forma de uma mulher? – Acrescentou vendo suas curvas pouco destacadas ao tempo que desenrolava suas vestes a sua posição normal.
-...Eu sinceramente não sei por onde começar – Disse mordendo o lábio inferior.
- Comece pelo sangue – Foi direto – Muito embora eu queria entender o que são todos esses ramos, esse sangue salta os olhos. – Havia um rastro de preocupação em sua voz, a lembrança da última vez que tinha visto Eros dançando novamente em sua mente. – Foi minha culp-
- Não! – A resposta abrupta fez o mais velho piscar – Quero dizer, em parte...Na verdade eu fui idiota – Voltou-se a June – Esses ramos, há algo muito estranho neles, estão transbordando de sentimentos, sensações e memórias, acabei me deixando atrair por isso como uma mariposa atraída pela luz, e baixei completamente a minha guarda, foi o senhor que me salvou de sofrer as consequências disso – Admitiu com um deixe de vergonha sem entrar muito em detalhes.
- Certo, isso não explica muita coisa – Seguiu vendo o rosto jovial da ex amazona, novamente o encontrando muito familiar. – Quem é ela?
- Essa mulher é a futura imperatriz do submundo – Respondeu Eros seguindo seu olhar - Ela teve um acidente com Dionísio e ficou completamente ébria, para não me indispor com o sucessor de Hades, eu a trouxe para se banhar nas fontes do Olimpo, eu encontrei Anteros no caminho e logo o senhor, Fobos e Daimos, e o senhor ofereceu sua fonte no Coliseu.
- Este é o meu coliseu?! – Colocou estupefato, vendo ao redor sem reconhecer nada, e então voltou-se a jovem – Ela fez tudo isso sozinha?!
- Sim, na verdade, ela cresceu algumas...Quaaantas árvores por todo seu templo também– Confessou com um sorriso amarelo.
Frente a isso, como da última vez, Ares não parecia irritado, na verdade parecia bem impressionado.
- Então eu a mergulhei nas águas e....Isso aconteceu – Indicou seus arredores hesitante – Viemos verificar mais de perto. Então como disse antes, eu fui um idiota descuidado e ela me atacou, o senhor me defendeu entrando na minha frente e...- Apertou a flecha em suas mãos de forma nervosa.
– Ela me perfurou no peito – Deduziu pela trilha de sangue. – E eu apaguei? – Eros confirmou, culpa emanando de seu ser, e o guerreiro tornou a assobiar impressionado – Por isso tu estavas chorando, por minha causa...?
- Eu não estou nem um pouco acostumado com esse tipo de visões – Colocou com desgosto, desviando o olhar do sangue.
- Não é como se eu não estivesse acostumado, isso – Indicou o ramo sangrento e seu próprio peito – Acontece com mais frequência do que eu gostaria de admitir, principalmente quando estou treinando com teus irmãos.
- Mas há muito poder divino nessas plantas! – Exclamou exasperado – São praticamente armas divinas, e o senhor deixou-se ser ATRAVESADO por elas! Mesmo que diga que está acostumado isso foi...- Engoliu em seco – Isso poderia ter destruído seu corpo divino, talvez até atingido sua alma!
- Isso soa exatamente como algo que eu faria. Não é difícil deduzir que eu tinha mais chances de passar por isso do que tu – Respondeu com simpleza dando de ombros – Na primeira Guerra Santa contra Athena, eu tive quatro das armas de Libra, abençoadas com o sangue dela, atravessando meu corpo, e ainda mantive meu corpo imortal e consegui ir até o submundo. Podemos dizer que eu tenho a resistência de um titã. – A falta de preocupação do deus da guerra e seu nulo instinto de autopreservação apenas exasperava mais seu filho, aparentemente notando isso resolveu seguir com o assunto - Eu só não entendi o que isso tem a ver com o apagão da minha memória. Eu não sinto essas emoções todas que tu disseste vindo dessas plantas, apenas uma sensação similar a que transmite a vegetação do submundo. Veja elas são ávidas por água – Só então Eros percebeu, com choque, que toda água da Fonte do Olimpo na qual havia mergulhado June instantes antes havia desaparecido a essa altura – E ainda assim continuam completamente secas, retorcidas e sem vida, isso porque dependem da escuridão do mundo dos mortos para viver, não da luz de Apolo, que infelizmente banha meu templo perpetuamente.
- Eu tenho uma teoria – Começou Eros e como seu pai não disse nada sobre isso, seguiu – Claramente há uma peça faltando sobre essa jovem, muitos de nós a acham familiar, ninguém sabe de onde, e ela não parece ter nenhuma ideia do porque isso está acontecendo. No começo eu achei que ela fosse uma alma antiga, mas só isso não garante que ela seja tão especial, muito menos reconhecida por tantos de nós, no máximo uma alma antiga é reconhecida por ctônicos ou deuses muito próximos a elas no passado, como suas almas gêmeos. Então talvez... – Mordeu o lábio inferior - ...Antes de que me metesse nessa confusão com a futura imperatriz eu tive uma conversa com Hermes, ele parecia ter esquecido um laço importante com alguém, no caso com Hécate, mesmo que meu poder indique que eles se amam há milênios. Logo depois eu conheci a senhorita June e seu intrigante caso, me envolvi em sua história, pois foi minha culpa atiçar a curiosidade de Hermes, o que acabou fazendo-o desobedecer as suas ordens superiores e abandonar o castelo de Heinsteim. Acontece que essa senhorita também tem um amor de milênios com o sucessor de Hades, mesmo que ambos sejam teoricamente humanos, isso não pode ser uma coincidência! – Um brilho de antecipação perpassou seus olhos, como se estivesse emocionado com suas próprias conclusões - Os laços sentimentais deles devem estar interligados de alguma forma, influenciando um ao outro!!
O albino apenas o encarava, como se não tivesse certeza de estar entendo sua linha de raciocínio.
- Eros, essa não é a minha linha de trabalho – Admitiu com um meio sorriso – Poderia simplificar essa coisa de laços, amores e....Todo o resto?
Isso fez o menor ruborizar-se sem graça por não ter percebido que estava avançando em um assunto que dizia muito a respeito de sua função como divindade, mas que era provavelmente uma área completamente cinza para Ares, ainda assim era uma sensação calorosa que o mais velho prestasse atenção suficiente para que pedisse uma explicação sobre o assunto.
Jamais imaginou que teria uma conversa sobre amores, laços e casais justamente com o temível senhor da guerra.
- O que eu quero dizer é que; a senhorita June é a peça fundamental para entender tudo. E se ela na verdade for uma deusa ctônica próxima a Hécate e Hermes? Faz sentido, ambos são ctônicos também, e o senhor mesmo disse que esse poder todo grita “Submundo” – Ares apenas confirmou com a cabeça lançando um novo olhar a deusa suspensa e rodeada por seus perigosos ramos – O problema é que se ela fosse uma deusa assim, todos nós deveríamos conhecê-la de antemão, mesmo que os ctônicos não se envolvam muito com o Olimpo. Aí que está a chave de tudo, algo que eu também meio que mencionei a Hermes e por causa disso ele foi atrás de Moros. E se ela for uma deusa cuja existência foi apagada? Isso sem dúvida colapsaria qualquer relacionamento que a tenha como intermediária! Além disso, também explicaria porque ela é familiar para alguns de nós, mas não sabemos dizer de onde a conhecemos!
Por algum motivo sua nova explicação fez o guerreiro erguer as sobrancelhas e abrir ligeiramente a boca com desgosto, quase com repulsa, o que apenas deixou seu filho inseguro sobre suas ponderações.
- E-eu sei que parece loucura, não é nada fácil apagar a existência de um deus, e existem dezenas de leis olimpianas contra isso, mas todos sabemos que já aconteceu – Reforçou – Principalmente na era mitológica, então...
O mais velho logo fechou os lábios, mas sua expressão franzida se manteve, claramente o assunto o incomodava, ou talvez fosse apenas algo complexo demais para sua mente ainda confusa. Eros, levando isso em consideração se apiedou e estava a ponto de mudar de assunto quando seu pai seguiu com seriedade, mas agora sem estar olhando para algo específico:
- Sabemos que aconteceu justamente porque não dá para apagar completamente a existência de um deus, uma vez que é impossível destruir as rocas de fiar em posse das deusas do destino, por isso “Os Apagados” não são realmente apagados, Moros e suas filhas sabem quem são, não é exatamente um segredo confidencial, os olimpianos podem solicitar saber suas identidades, o que representavam, quem eram, por isso ainda existem pequenos mitos sobre eles, mortais que os conheçam.* Hermes, por exemplo, é um deus muito curioso e intriguista, duvido que não saiba sobre alguns deles. – Eros confirmou com a cabeça, lembrando que o mesmíssimo mensageiro havia mencionado sobre Kairos, o deus irmão de Chronos, ser um dos apagados – Creio que minha tia Héstia também se interessa nesse assunto, mas sendo a deusa da família penso que é apenas para manter suas árvores genealógicas perfeitas, mas em geral ninguém se importa com os esquecidos o suficiente para tanto, pois todos eram deuses menores que dividiam suas funções com outros. Afinal, apagar uma divindade de grande importância, sem que haja outro divino ser que execute seu mesmo labor e o substitua a perfeição, levaria ao caos completo. Por isso, Eros, se ela fosse a deusa cheia de influência que tu imaginas, não seria possível simplesmente apagá-la assim, ainda mais sendo uma ctônica, pois são divindades com funções muito específicas e difíceis de serem substituídas.
Foi a vez do deus do amor fazer um longo silêncio, uma má sensação se instaurando no fundo de seu estômago com a pergunta que estava prestes a fazer, pelas palavras que o mais velho havia dito, e pelo sentimento emanando dele enquanto as dizia.
- Como... - Engoliu em seco – O senhor sabe tanto sobre esse assunto...? – O desconforto de Ares aumentou ainda mais, por isso ao invés de responder simplesmente levantou-se, dando as costas para o mais novo.
- Seja como for, não podemos ficar aqui conversando a madrugada toda e deixar essa mulher assim, se essas plantas forem um mecanismo de defesa apenas precisamos convencê-la de que não há perigo real aqui, eu definitivamente não sou o melhor para isso, então é melhor que tu... – E sobressaltou-se ao sentir as mãos de Eros sobre seus ombros, o simples fato do deus da guerra ser surpreendido com uma aproximação tão simples apenas destacava que havia algo muito errado.
- Pai – Disse em tom mais firme, mas o mencionado apenas girou os ombros para afastá-lo, dando mais alguns passos para a frente, ainda não completamente convencido sobre manter contato físico com o mais jovem. Contudo, teimosamente Eros o segurou novamente e o forçou a encará-lo, usando uma força que poucas vezes acessava, dessa vez o mais velho não mostrou resistência, ou ao menos essa foi sua impressão, quando na verdade foi justamente a força exercida sobre o guerreiro que o fez virar, mostrando-se ligeiramente impressionado enquanto encarava os claros olhos contrários. – Como o senhor sabe sobre tudo isso? Eu posso sentir os sentimentos contraditórios que isso te causa como se fossem meus, então sei que há algo muito errado acontecendo aqui, por que o senhor não me diz?
- Eros, não é a hora nem o lugar para uma conversa dessas, é apenas algo que me contaram. – Foi direto, seus olhos brilhando ameaçantes e em aviso – Eu pensei que essa futura imperatriz fosse tua prioridade, tu mesmo disseste que necessitas dela bem para que possamos convencer esse tal de Shun a poupar Aphrodite.
- Espera, o senhor lembra o que eu te contei sobre o sucessor de Hades? – Mencionou notando a citação de seu nome, o mais velho se esforçou para não se mostrar aliviado com a mudança de assunto, de modo que seu filho percebesse.
-...Sim, pelo menos parcialmente as memórias estão voltando – Afirmou ainda tentando se soltar, surpreendendo-se cada vez mais com a força do agarre que o mantinha preso – Eu não lembro de todos os detalhes ainda, mas já mais claro do que minhas manhãs de ressaca, aparentemente era um estupor temporário.
- Isso é ótimo! Eu fiquei tão preocupado quando o senhor acordou totalmente confuso – O alívio em sua voz era tão palpável e sincero que o guerreiro deixou de forçar sua escapada, que seu filho divino mais velho passasse de ter pavor dele a se preocupar com sua saúde tão abertamente em pouco mais de uma hora era algo que conseguia desarmá-lo – É justamente por isso que acredito na minha teoria sobre June ser uma deusa apagada, deuses como Chronos e Moros podem até apagar a memória de outras divindades, mas nenhum deus pode realmente apagar sentimentos de forma satisfatória – Um escalafrio percorreu a espinha do deus do amor – Morpheu é um exemplo disso, pelo que eu fiquei sabendo, Shun aparentemente teve uma discussão com o deus do sono, e “destruiu suas emoções”, mas eu duvido que ele tenha realmente feito isso, o que provavelmente aconteceu foi que o imperador manipulou a alma do filho de Hypnos para que ele fosse incapaz de acessar esses sentimentos, transformando-o em um servo sem vontade própria. Isso ainda é horrível, mas não significa que os sentimentos dele foram realmente destruídos. O mesmo princípio serve para as memórias apagadas. Hermes ainda amava Hécate, mesmo sem a conhecer, e vice versa, porque seja quem for que apagou a existência da deusa ctônica que June era, não pôde apagar seus sentimentos – Então indicou suas arredores, todos os galhos retorcidos – Os sentimentos estavam presos até o momento que eu mergulhei a senhorita June nas águas purificadoras do Olimpo, o senhor sabe muito bem que quando nós deuses nos deixamos tomar por emoções fortes, nossos sentimentos geralmente se expressam com maldições ou emanações de nossos poderes, e no caso dela, se manifestaram no formato desses ramos.
- Faz sentido, suponho. – Concordou Ares, sem adentrar muito no assunto. – Pois as águas do Olimpo limpam a mente e o corpo.
- Sim – Confirmou com veemência – E da mesma forma que o vinho de Dionísio deixou o corpo dela e suas roupas quando eu a banhei, o que mais a “maculava” também a abandonou. E sendo basicamente um monte de emoções em formato de plantas, emoções vinculadas a memórias aparentemente perdidas, faz completo sentido isso ter afetado o senhor como afetou, fazendo-o também reviver emoções fortes, e logo, memórias fortes vinculadas a elas! Se dermos um jeito nisso, podemos trazê-la de volta!
- Como tu sabes que eu revivi alguma de minhas memórias?! – Foi a vez de Ares questionar com uma expressão lívida que não parecia pertencer-lhe.
Eros engoliu em seco, sabendo que havia falado demais, mas frente ao semblante contrário sabia que não teria como escapar, por isso desviou o olhar para o chão
– Quando o senhor foi perfurado, eu o arranquei do ramo e comecei a curá-lo com uma de minhas flechas especiais*, mas eu não sou um deus da cura, o que eu faço é estimular as emoções do corpo e incentivá-lo a se curar mais eficazmente, algo como um efeito placebo conduzido pela minha Dunamis, contudo – Mordeu o lábio inferior, culpa estampada em seus olhos claros – Para isso eu tenho que me conectar aos sentimentos de quem “opero”, por isso...- Apertou com ainda mais força as mãos que ainda seguraram os ombros do mais velho, perdendo sua ligeira expressão de dor – Eu meio que...- Hesitou – ...Acabei vendo suas memórias também. Perdão! – Apressou-se a acrescentar no fim.
- Ah.... – Foi tudo que seu pai pôde dizer a princípio, repassando novamente a memória em sua cabeça, pousando-se principalmente em sua conversa sentimental com a estátua de Otrera - Aaaah....Merda.
- Perdão – Repetiu mais uma vez, vendo de canto de olho como o deus da luxuria parecia genuinamente constrangido, levemente ruborizado e definitivamente incomodado com a situação. – Sei que era algo bem...Pessoal.
Não houve resposta imediata, embora o senhor da guerra agora podia compreender porque seu filho havia entendido tão prontamente seu gesto de se afastar para evitar um colapso como quando ele era pequeno. Por isso, soltando um longo e cansado suspiro, prosseguiu:
- Tu tens que entender, Eros, eu ainda era jovem, havia acabado de passar por eventos realmente desastrosos, aquilo não foi um dos meus melhores momentos – Colocou com sinceridade encarando-o, o cansaço em sua expressão ressaltando suas feições maduras, fazendo-o parecer mais com um homem cansado próximo de seu quadragésimo aniversário, do que um jovem imortal recém chegado aos seus vinte anos, como os mitos geralmente o descreviam – Eu possuía mais duvidas do que realmente cabiam na minha cabeça, e não era como se eu simplesmente pudesse ir a alguém e falar disso, a maioria das divindades me desprezava, principalmente depois da Guerra de Troia. Já Otrera era uma boa ouvinte, além de sermos noivos ela era minha companheira.
- Então tudo meio que culminou na Guerra contra Athena? Basicamente a morte da princesa de Atenas foi o estopim – Quanto a isso a expressão de Ares apenas se franziu mais – Perdão, não devia ter tocado na ferida, Otrera parecia ser uma pessoa...Legal? – Mordeu o lábio inferior, sem saber exatamente o que dizer a seguir, provavelmente a rainha amazona era uma guerreira brutal para ser chamada de “companheira” pelo deus da guerra, o que definitivamente não caracterizava alguém “legal”, mas não era momento de questionar sobre isso – Creio que...É, não estou em posição de julgar, o senhor e a tia Athena, que eu saiba, nunca tiveram a melhor das relações de qualquer forma, sendo dois deuses da guerra - Então suas palavras morreram em sua garganta, percebendo o que elas poderiam significar, e a relação delas com o desconforto do mais velho instantes antes.
Seria possível que já tivessem tentado apagar a existência de seu pai através de sua meia irmã? Ele e Athena dividiam o mesmo atributo sobre as batalhas, mas em polaridades opostas. Athena era a deusa da sabedoria, da guerra estratégica, a defensora das cidades, dos heróis, da tecelagem, cerâmica e várias outras artes, enquanto seu pai reinava sobre a guerra violenta, a luxúria, a coragem e a ordem civil, por representar o soldado na fronte de batalha lutando por sua cidade. Eram próximos, mas não substitutos perfeitos, cada um carecia das habilidades do outro, até certa medida eram mais complementares do que opostos.
Contudo, e ponderar sobre isso fazia seu estomago retorcer-se se forma horrível, se Athena fosse uma deusa com ainda mais poder e influência, como a imperatriz da Terra, poderia absorver sem problemas o que Ares representava.
Essa era a razão pela qual Zeus havia dado a ela a Terra em primeiro lugar? Afinal, o imperador dos deuses havia tomado essa decisão sem consultar ninguém, e justamente por isso a mesma havia irritado tanto Poseidon, que logo se alçou numa guerra contra sua sobrinha para questionar a decisão.
Seu avô seria capaz de ir tão longe?
Pensando bem, ele já tinha feito algo parecido usando um deus ctônico da força. Tinha escutado uma história a respeito disso da boca de seu irmão, lembrava como Anteros contou animado, quando ainda eram jovens, como o pai deles frente a essa afronta, buscou o dito deus e o venceu em uma grande batalha, provando-se superior e merecedor de seu título de deus da guerra, arruinando os planos de Zeus de despojá-lo de seus títulos*, no fim Hades havia selado o deus para evitar represálias que eventualmente poderiam prejudicar seu reino, encerrando assim o conflito. Com essa falha Zeus poderia ter decidido um meio mais direto de desfazer-se do filho primogênito, usando do mesmo meio que Chronos usou para livrar-se de seu próprio irmão.
Pensar nessa possibilidade era simplesmente...Nojento, e por isso, percebeu que se sentia incapaz de perguntar diretamente ao seu pai se isso poderia ser verdade ou não, seria excessivamente intrusivo e desrespeitoso.
- Entretanto, eu fico feliz de ver essa memória – Confessou finalmente soltando seu pai depois de um longo silêncio, ocupando suas mãos agora na função de abraçar a si mesmo – Pude entender muito mais sobre o senhor, e porque nunca mais nos vimos. Eu não lembrava daquele dia direito, apenas que eu me assustei com a sua presença. Assumi que meu pai me achava fraco demais pela minha reação...- Hesitou – Exagerada, e simplesmente havia me abandonado, mamãe nunca se esforçou a me fazer pensar o contrário.
Imaginou que seu pai ficaria com ódio ao saber disso, talvez até explodir seu cosmo ao se sentir traído por sua amante, como fez mais de uma vez na memória que compartilharam, o que não esperou era a e expressão calma que ele demonstrava frente a sua explicação.
- Eu imaginava que tu pensavas isso de mim – Foi tudo que disse, dando de ombros, sentindo-os latejar ligeiramente pelo aperto de instantes atrás. – Um tanto Zeus para meu gosto, mas não é como se a minha reputação me ajudasse a que tu pensasses o contrário. Afinal, tu explodiste justamente por culpa do que eu represento.
Com essas palavras algo começou a queimar como fogo dentro de Eros.
- ...Minha mãe podia ter ao menos me explicado – Rebateu em um tom estranho. – Seria legal crescer sabendo que meu pai não me acha a coisa mais patética do Olimpo.
- Ela só fez o que achava que era melhor para ti, tu mesmo viu a forma que reagiste, não dá realmente para culpá-la por querer te proteger de mim – Ares respondeu com simpleza, fazendo a chama crescer ainda mais em seu filho.
- Se passaram milênios desde então – Seguiu o menor com firmeza – E toda a vez que eu tocava no assunto, ela não se esforçava nem um pouco para que o senhor saísse com uma imagem melhor, na verdade, eu recebia uma lista detalhada de todas as pessoas que o senhor já matou e como matou, me deixava enjoado e com medo. Eu nunca entendi porque Anteros nos abandonou para ficar contigo, eu assumi apenas que ele estava passando por uma fase rebelde, e quando nos visitava ele nunca tocava no assunto, por que agora eu acho que ele não fazia isso por ordens suas?! Porque com certeza ele não obedeceria nossa mãe, a menos que claro, ela tenha pedido que você o ordenasse a ficar quieto, e eu fiquei fazendo o papel de Amor Cego sem saber de nada disso.
Dessa vez Ares não respondeu, observando o menor com as sobrancelhas erguidas, reconhecendo o que estava acontecendo. Reconhecia muito bem aquele sentimento, era algo que fazia parte de seus domínios divinos.
- Tu estás com raiva.
- É claro que eu estou com raiva! – Seus olhos brilharam em vermelhos, tão similares ao de seu pai, algo que o mesmo notou imediatamente – Eu tenho todo o direito de estar com raiva! Por que VOCÊ não está com raiva?!
- Por que eu estaria com raiva? – Perguntou tentando esconder o ar de diversão que sentia ao testemunhar o surto do deus do amor.
- Como assim “Por que”!? Paai, como você pode não culpar minha mãe por nada quando claramente ela tem culpa?! – Exclamou, gesticulando com impaciência - Pelas minhas asas! Como acha que eu me sinto?! Depois de milênios descobrindo que o ‘Tifão embaixo do templo’ que sempre me assustou é provavelmente o mais ponderado dos meus pais?! O DEUS DA GUERRA O MAIS PONDERADO ENTRE MEUS PAIS?!
- Isso é um pouco triste, sinceramente, mas eu não poderia dizer que não entendo a sensação – Comentou pensando em Zeus e Hera.
- Eu me sinto um idiota manejado, eu sempre soube que ela era muito manipuladora, mas ela é minha mãe, é praticamente o papel materno usar chantagem emocional para conseguir as coisas dos filhos, ainda assim eu estou com raiva porque fui feito de idiota, agora o senhor, que é o maior prejudicado nesse teatro todo, simplesmente está bem com essa situação?!
- ... Eros- Tentou dizer Ares notando como a expansão do cosmo de seu filho estava afetando os ramos ao redor deles, que voltavam a crescer e se mexer como serpentes em espreita.
-Não, não, eu ainda não terminei! – Teimou para a surpresa do maior, que tentava focar no seu filho e nos troncos ao mesmo tempo, para o caso de um novo ataque. – Eu sempre soube que vocês tinham uma relação complicada, afinal, ela é casada com o seu irmão!
-Meio irmão – Corrigiu.
- Irmão – Impôs com teimosia. – A Grande Hera o gerou sozinho, mas a imperatriz é casada com Zeus, então ambos são os pais, não tem como ser meio-irmão.
- A sua avó ERA casada, Zeus sumiu.
- Para de me interromper, pai! – Colocou exasperado, seu cosmo perturbado emanando com mais força, os ramos secos pareciam cada vez mais agitados, ao tempo que Ares parecia mais entretido com a situação, contudo, sem em momento nenhum deixar de seguir os movimentos do inimigo, não ia facilitar um novo assalto. - Eu sabia que era um relacionamento difícil, mas isso é ridículo! Eu vi como ela tratou o senhor, esse é o pior tipo de relacionamento que existe! Diminuir o companheiro assim, fazê-lo pensar que você é o único capaz de querê-lo, o único que aceitaria seus ‘defeitos’, não, não. Isso grita tóxico para todos os lados que se olhe! A forma como ela te provocou e você a atacou? Quantas vezes isso aconteceu? Vocês são tóxicos juntos, na verdade, tóxicos e muito perigosos, claramente não fazem realmente bem um para o outro e...- Então sua expressão decaiu, seus olhos voltaram a ser azuis, e o senhor da guerra não podia deixar de se impressionar sobre como o Amor podia ser volúvel em questão de sentimentos. – É tudo minha culpa...
-Espera...Quê? – Perguntou confuso, não conseguindo acompanhar o giro dos acontecimentos. – Como isso pode ser tua culpa? Eu e sua mãe já somos assim antes mesmo de tu nascer.
- Eu sou o deus do amor! – Exclamou com voz quebrada, parecia a ponto de chorar, o que deixou seu pai decididamente perdido sobre o que fazer, mais um pouco e seus filhos farejariam seu pânico – É minha culpa porque eu negligenciei o senhor, eu falhei em resguardá-lo na área que me cabe! Eu sou um deus horrível...
- Eros, tu estás exagerando, eu sei é que complicado, nós somos complicados, mas tu, acima de qualquer um, deveria entender que apesar de tudo, nós nos amamos e-
- Só amor não é o bastante pai! – Berrou, seus olhos piscando em vermelhos mais uma vez, seu rosto contraído fazendo-o soar realmente selvagem, algumas plantas ao seu redor murchando ao entrarem em contato com seu cosmo que ganhava um quê nocivo. – Eu sou filho de vocês, e Anteros, Harmonia, mas Daimos e Fobos também, isso não te diz NADA? Por acaso eu tenho algum irmão chamado Limite, Respeito e Dignidade?! Por eu acho que não! Os últimos filhos de vocês se chamavam Medo e Pânico pai, MEDO E PÂNICO, PAI.
-...Na verdade Enyo- Mas não pôde completar a frase - Se abaixa! – Exclamou Ares, forçando a cabeça do filho para baixo, fazendo-o evitar outro ramo que tentou atacá-los, em resposta deu-lhe um chute que o partiu ao meio. – Garoto, eu agradeço a preocupação, mas de novo tu não achas que está exagerando?
- Eu sou exagerado! Faz parte de mim! – Exclamou lamentosamente, lágrimas prestes a abandonar seus olhos em um novo giro de emoções.
- Além do mais, Anteros já me disse todas essas coisas, e mais – Colocou com desgosto dando uma estrela para trás, e com um giro de pernas destroçar mais algumas plantas secas - Toda a vez que eu voltava do templo da sua mãe, ele me ignorava por semanas, e deixava de cozinhar, tu não tens dimensão do quão crítico isso pode ser aqui. O garoto estúpido age como se ele que fosse responsável por mim e não o contrário!
Eros se permitiu sorrir frente a isso, no fim seu pai acabou tendo quem o permitisse sentir-se seguro e querido, porque não precisava usar seus poderes para saber que os gêmeos também cuidavam dele, da sua maneira, os mitos sobre o trio não o deixava mentir, eram eles que sempre vinham em socorro de Ares quando este precisava.
- Anteros é muito inteligente. – E deitou-se no chão para evitar um tronco retorcido que tentou perfurá-lo. – Você devia ouvi-lo mais.
- Inteligente é um sinônimo para atrevido que eu não conhecia?! – Rosnou, levando ambas as mãos ao chão e girando com suas pernas como um pequeno ciclone, conseguindo assim afastar mais árvores.
- Bem, ele é seu filho, o que você esperava? – Questionou lágrimas enchendo seus olhos e o senhor da guerra sinceramente já não sabia mais o porquê.
- Eros, se essas coisas são sentimentos descontrolados, não tem problema eu as destruir, certo? – Seguiu sem responder, erguendo a mão para o alto e invocando assim uma lança romana de ponta triangular que possuía o dobro do seu tamanho, com duas penas amarradas em sua ponta.
-...Teoricamente não, já que são sentimentos fora do controle e-
– ÓTIMO! – Seus olhos brilharam de antecipação - Fique abaixado!
- T-tudo bem – Disse numa voz fungada, agachando-se enquanto seu pai usava suas costas curvadas de trampolim e pulava na direção que concentrava mais galhos secos, enquanto girava sua lança com as duas mãos sobre a cabeça. – Eu fui um egoísta, um idiota, completamente cego...Eu só pensei na mãe, e nenhum momento me preocupei com o senhor.
- Bem, não dizem que o amor é cego? – Ironizou trocando sua lança de uma mão a outra, sempre em movimentos giratórios e quase circenses destruindo cada vez mais ramos, o menor não podia deixar de se impressionar com o quão flexível seu pai podia chegar a ser, sem deixar de encontrar graça no fato de que ainda seguia usando sua forma feminina.
- Eu estou falando sério! – Exclamou dolorido levantando-se, e antes que seu pai pudesse recrimina-lo por isso, em seus braços se materializou um arco e flecha branco e reluzente, de formas curvas e lisas, que parecia até mesmo ser feito de mármore. E sem mais palavras, criou três flechas feitas de cosmo e as lançou para cima, acertando em cheio quatro galhos que se aproximavam por suas costas, ao serem atingidos caíram no chão imobilizados.
Ares soltou um longo assobio impressionado.
- Então tu também podes usar isso para lutar? Eu não sabia.
- Sim e não, meu arco de mármore eu uso para controlar as emoções das pessoas – Vendo a expressão confusa do mais velho, antes de dar um mortal e destruir mais dois inimigos, acrescentou – Eu disse que não é possível destruir emoções ou apagá-las, eu não disse que não é possível controlá-las. – Provando seu ponto atirou em uma que se aproximava à sua direita, e ao invés de murchar como os outros, este se ergueu, tal qual uma serpente e começou a atacar os que tentavam cerca-los.
- Assustador – Confessou, saltando para parar de costas para seu filho.
- Falando em assustador, eu pensei que o senhor só lutasse em estado Berserker – Comentou, atirando novamente para o alto e assumindo o controle de cada vez mais ramos.
- Se eu estiver em estado Berserker, eu não conseguiria prestar atenção na sua gritaria, e eu não queria perder o primeiro surto de raiva do meu garoto.
Eros virou a cabeça para trás descrente.
- Sério, pai?!
- Nada como um surto de raiva para se provar um filho meu – Declarou com orgulho, vendo como os ramos começavam a se destruir entre eles. – E nada como um campo de batalha para se ter um momento de pai e filho.
- Isso é muuuito discutível – E ainda assim sorriu, voltando sua atenção novamente para June, vendo como ela seguia exatamente igual, como se nada ao seu redor a afetasse mais.
- Vaaamos lá, eu não posso acreditar que tu não aches isso nem um pouco divertido? – Argumentou quase infantilmente indicando as árvores que começavam a arrancar galhos uma das outras de forma agressiva, como duas bestas se digladiando. – É um verdadeiro espetáculo!
-...Talvez seja um pouquinho entretido.
- Ora vaaamos! Não se faça de rogar! – Exclamou contente dando uma ‘ombrada’ no mais novo de forma amistosa, mas quase o jogando no chão por causa disso – Eu sei que tu estás se divertindo, vamos, tenta acertar aquela lá no fundo – Apontou um galho seco que havia perfurado algum pobre mamífero que vivia ali antes da futura imperatriz do submundo emergir das águas da fonte. Acertou uma flecha bem acima do animal, que contra qualquer lógica saiu correndo como se nada tivesse acontecido com um buraco no meio do peito – ISSO! Agora aquela! – Apontou bem mais longe, quase na entrada onde os demais os esperavam. Um novo acerto – ISSO É INCRÍVEL! Por algo acertou Apolo antes mesmo de aprender a falar!
Seu rosto estava ficando carmesim com a sucessão de elogios a sua pontaria, mas antes de se divertirem juntos com um pequeno massacre de plantas mortas, havia outra coisa que precisavam resolver, de nada adiantava essa destruição se a fonte continuava a emaná-las.
- Precisamos dar um jeito de acordar a senhorita June de seu estado catatônico, alguma ideia, pai?
- Eu não sou o homem das ideias – Disse enviando sua arma longe, acertando algumas plantas ainda não controladas pelo menor – Esse é o papel de Athena, eu só vou na frente, inflo o espírito do exército e destruo o que vier.
Eros seguiu atirando em cada vez mais plantas, aos poucos assumindo o controle da maioria e subjugando as resistentes, mesmo sem olhar diretamente para seus alvos, o que apenas aumentava as expressões de animo e euforia de Ares, parecia francamente uma criança em um parque de diversões. Não estava mais prestando atenção em seus alvos pois estava focando na expressão vazia da amazona, seu corpo ligeiramente pendendo para a frente, parecia mais um cadáver cuja alma já havia adentrado o submundo, do que uma deusa perdida.
Isso fez um estralo o atingir.
- Pai, o senhor disse que é capaz de possuir as pessoas, certo? Algo que herdou de Hades.
- Sim, Zeus sempre teve muita repulsa de mim por causa disso – Disse com um sorriso de satisfação, vigiando seus arredores para o caso de outro ataque de galhos menores – Se o tio Hades não fosse estéril, tenho certeza que ele o acusaria de adultério com sua avó, pode imaginar esse cenário? Eu adoraria que fosse verdade, seria simplesmente hilário Zeus sendo traído na cama por um de seus irmãos, quem dirá Hades!
- Eu prefiro não pensar nessa possibilidade – Colocou com um ligeiro arrepio – Se a minha teoria estiver certa, o senhor pode ser capaz de encontrar essa centelha divina que mencionei dentro da senhorita June, convencê-la a parar ou trazê-la para fora.
- Em outras palavras teu plano consiste em que eu use Possessão na imperatriz do submundo? – Questionou com descrença.
- Futura imperatriz. – Corrigiu.
-Há! Se esse Shun mudar de ideia, eu estou totalmente disposto a desposá-la – Cortejou, vendo da jovem a todo o estrago que ela estava causando com suas plantas. – Toda essa demonstração brutal de poder, eu gosto disso.
- Pai! – Recriminou. – Como pode querer se casar com uma mulher que acabou de te empalar?! – Exasperou-se. – O senhor precisa rever urgentemente seus níveis de masoquismo!
O senhor da guerra revirou os olhos.
- Tu te casaste com a mulher que te esfaqueou Eros, quem és para julgar-me? – Questionou com um deixe de graça.
O primordial abriu a boca para rebater a acusação, mas logo tornou a fechá-la, ele tinha um ponto.
- Eu não costumo seguir planos – Continuou o deus da guerra saindo das costas de seu filho e começando a caminhar na direção da jovem ainda suspensa. – Esse especialmente parece perigoso, imprudente, e imprevisível, gostei, então eu aceito. O que eu tenho que fazer?
- Eu vou te dar cobertura, deixar os “sentimentos” dela sobre controle, enquanto o senhor tenta despertá-la através de seu subconsciente. – Orientou, voltando a armar seu arco e flecha. – Mas acima de tudo pai, trate-a com respeito!
Ares revirou os olhos quanto a última parte.
- Quem pensa que eu sou? Hermes? – Então a poucos passos da jovem, chamou novamente sua lança fincada em alguns troncos destroçados e com ela cortou os ramos que a mantinham suspensa, tomando-a em seus braços antes que caísse, mesmo o cheiro suave dela parecia familiar, um cheiro que exalava morte e flores, uma combinação que o lembrava um pouco de Aphrodite.
- Obrigado pai, e boa sorte – Disse com sinceridade.
- Disponha, garoto – E assim, com cuidado acostou-a no leito onde costumava ficar sua fonte, sentou do seu lado e fechou os olhos, voltando a sua forma masculina original e deixando aos poucos de ouvir tudo ao seu redor.
Instantes depois uma chama negra e branca saiu de seus lábios, para avançar por entre os dela, e sumir em seu interior.
-.-.-
Demoraram largos segundos para as palavras de Apolo afundaram na mente de todos, níveis diferentes de choques se manifestando.
-...O que...Tu acabaste de fazer?! – Athena foi a primeira a se manifestar, sua face ficando pálida.
- Eu pedi reforços - Disse fechando os olhos e respirando pausadamente, seu corpo ainda ligeiramente trêmulo, porém mais do que isso, a terra aos seus pés parecia responder aos seus sentimentos, iniciando ligeiros abalos sísmicos. – Quando os humanos se sentem encurralados, eles oram aos deuses. Quando nós deuses somos encurralados, nos juntamos, por isso somos um panteão.
A deusa respirou fundo tentando aplacar seus próprios nervos, esquecendo por um instante toda a comoção que Shoryu e Shiryu causaram.
- Como exatamente você acha que isso vai funcionar? – Perguntou tentando manter a voz neutra, o terremoto na região apenas aumentando.
- Eu e Ares assumimos a frente de batalha, Apolo e Arthemis guiam os arqueiros atrás, você coordena a estratégia, Hermes tem a certeza de que suas ordens e estratégias chegam a todos os soldados, enquanto invade as frentes do inimigo com sua agilidade, Hefesto forja as armas. – Começou a citar – Minhas irmãs podem chegar a ser bem guerreiras bem violentas, na Titanomaquia conseguiam manter nossas tropas unidas e você não faz ideia como Hades pode ser furtivo, e não me refiro apenas a habilidade de seu elmo, ele se movia como uma serpente no campo de batalha, era simplesmente insano! Aphrodite, não sei, eu não sou o estrategista aqui, pode torcer pela gente? E Dionísio manter nossas taças cheias.
- Não está esquecendo de um pequeno detalhe? - Questionou com ironia.
- Sem dúvida, eu pareço para você um deus que se atém na detalhes?! – Respondeu no mesmo tom.
- Muitos desses deuses são nossos inimigos! Como pode pensar que convocar Ares é uma boa ideia?! – Inqueriu perdendo aos poucos a postura, a inconsequência de seu tio Poseidon era exasperante, podia chegar a ser mais complicado tê-lo como aliado do que como inimigo.
- Merda Athena! Por que é tão difícil trabalhar contigo mulher?! – Irritou-se, os tremores chegaram ao ponto de derrubar o fraco equilíbrio de Kiki.
- Esses tremores são por causa desse Hecatônquiros?! – Quis saber o lemuriano com preocupação.
- Não, são por minha causa – Neroda declarou sem ressalvas, voltando-se uma vez mais para Épios, o qual ainda estava em choque por saber que havia perdido sua divindade e que logo seu pai estaria no santuário – Você realmente quer ficar aqui?
- S-sim – Respondeu, mesmo que de forma trêmula – Eu já fui muito longe para voltar atrás agora, eu preciso receber meu castigo de cabeça erguida do que me escondendo.
- Belas palavras, mas existe uma diferença entre ser corajoso e ser idiota – Isso fez Épios franzir a expressão e corar – Faça o seguinte então, comunique-se com Ares, você é o médico dele há milênios, sem duvida tem um meio de fazer isso – Frente essas palavras tanto Kiki quanto Saori olharam chocados para o ex cavaleiro de Serpentário que apenas sorriu amarelo em troca – Então peça a ele sua proteção, estando sob a asa de um olimpiano você ao menos terá um julgamento, ao invés de ser diretamente condenado pelas Eumênides. Aproveite e dê um jeito de convencê-lo de não tentar arrancar a cabeça de sua meia-irmã. – Findou voltando-se impaciente para a deusa virgem, os tremores indo e voltando ao seu redor. – Porque ela seria realmente idiota em não considerar a ajuda do DEUS DA GUERRA, quando estamos indo para uma GRANDE GUERRA AQUI. Vocês dois juntos seriam imbatíveis!
- Não tem a menor possibilidade de isso funcionar! – Exclamou com irritação. – Primeiro você quer que eu aceite o submundo como aliado, e agora Ares! Todos sabem que ele é simplesmente demente e só luta por mera diversão.
- Eu não dou a mínima para a motivação dele! O que eu quero é ele arrancando as cabeças do Hecatônquiros com aquela lança enorme que ele tem, se meu sobrinho se divertir com isso ou não, que diferença faz?! Pelas profundezas de Oceano, Athena! VOCÊ PRECISA MELHORAR SUAS RELAÇÕES PÚBLICAS! – Começou a berrar, seus olhos mudando para amarelo vivo. – Me diga um deus que não é seu inimigo!
- Senhor, por favooor – Colocou Anfisbena exasperado vendo como a estrutura da Fonte começava a sofrer pelos terremotos, ao tempo que Shoryu finalmente havia sido parado por um turbilhão de água de Havok, depois de ferir Sorento, que teve Krishna lançado em sua direção, e aparentemente nocautear Albafica, que sangrava no chão, enquanto Egas tentava erguê-lo e levá-lo para dentro sem ter que tocar em seu sangue. Uma bolha de ar rodeava a cabeça do libriano, permitindo-o respirar, ainda assim parecia inconsciente depois de ser eletrocutado por Julian com a ajuda das águas do marina. – Veja, nossos companheiros estão conseguindo lutar juntos como uma única força! Não é podemos lançar tudo a perder agora. Athena, Saori, por favor – Seu tom era quase suplicante, mas tudo que recebeu em troca foi um olhar ferido de sua anterior deusa, mesmo que tivesse desertado para conseguir tecer um acordo de paz entre cavaleiros e marinas, a perda do mais jovem ainda soava como traição, principalmente quando o ruivo parecia já estar tão à vontade com o novo deus, quase como se nas sombras ele já fosse um servo do deus do mar infiltrado.
A deusa forçou-se a não nutrir esses pensamentos, já era doloroso demais ser traída por Shun e Shiryu, não queria ter que encarar o fato de que o pequeno Kiki também estivesse em seu contra há anos, preferia agarrar-se apenas na versão de que ele havia se tornado marina porque era o melhor para todos, sendo verdade ou não, era a mais confortável no momento para simplesmente não enlouquecer.
Por isso, em nome do pequeno jovem que lutou ao seu lado no passado e sua suplica, respirou fundo tratando de se acalmar.
- Eu serei mais ponderada – Disse novamente em seu tom neutro – Se Poseidon parar te inventar supostos aliados e deitar de tentar destruir o santuário com seus terremotos.
- Eu sou o deus dos terremotos! Eu FAÇO terremotos, não sou bom em pará-los! – Exasperou-se – Principalmente quando a minha sobrinha se esforça TANTO em me deixar irritado quando eu apenas estou tentando ajudar!
A terra deu uma sacudida decididamente violenta, alertando definitivamente os marinas de que deviam voltar ao seu senhor, por isso deixaram de tentar auxiliar os feridos da pequena batalha contra Shoryu para retornar a ele.
Athena se manteve em silêncio dessa vez, assistindo como seu tio aspirava e inspirava profundamente, seu corpo ainda tremendo, porém agora parecia ser de raiva, se seus olhos ainda amarelos vivos fossem algum sinal.
- Eu preciso me acalmar para isso parar, e dessa vez a contagem mental DEFINITIVAMENTE não está funcionando! – Resmungou, massageando as têmporas, enquanto Sorento questionava Kiki sobre o que havia acontecido – Eu preciso de um pouco de água. – Virou-se em direção a Fonte – Tem algo corrente lá dentro, não tem? – Perguntou a deusa.
- Você é o deus do mar, por que precisaria de água corrente? – Respondeu confusa gesticulando com a mão a água salgada que pairava sobre suas cabeças, e a doce dos encanamentos.
- Você bebe sua saliva quando está com sede? Não, pela sua cara eu diria que não, é a mesma coisa para mim, eu preciso de algo externo.
- Eu não tenho certeza se tem alguma torneira ainda funcionando, boa parte da tubulação foi rompida – Explicou-se Anfisbena tendo resumido o mais rápido que pôde o panorama atual aos seus companheiros. Estava curando o ferimento na testa de Sorento que havia se ajoelhado ao seu lado. Todos pareciam nervosos com os desenlaces, Kasa estava claramente tremendo com a perspectiva de estarem no meio de uma guerra olímpica.
- Tudo bem, eu procuro – Disse simplesmente sem encarar ninguém – Se Ares ou qualquer deus que Athena tenha problema aparecer, me convoquem que eu vou criar baias para separar todo mundo como fazemos com os cavalos!
Kiki prendeu a respiração, Épios levou as mãos ao rosto, Io riu baixinho, Krishna e Bian mantiveram-se neutros e Kasa seguiu tremendo.
Antes que Athena pudesse esbravejar pela ofensa, ou Sorento e Havok intervir, o deus dos mares tornou-se água e desapareceu pela abertura criada na muralha de cristal que servia de chão, desaparecendo nas tubulações rompidas.
Mais afastados, de modo que não podiam ser ouvidos, Suite conversava com Shura, vendo o esquife de gelo no qual Shiryu estava preso.
- ....Será que eu exagerei...? – Questionou a aquariana com inocência.
- Você acha? – Colocou retoricamente o capricorniano. – Por favor, me digam que vocês têm um plano coerente sobre tudo isso.
- Isso depende – Declarou em tom misterioso a reencarnação de Thetis. – O senhor quer participar?
Frente a pergunta simplista, como se tudo fosse uma questão simples, o espanhol grunhiu, tomando o grande esquife em seus braços, com o objetivo de levá-lo até sua deusa.
- Eu definitivamente vou desenvolver uma ulcera até o final dessa maldita madrugada – Resmungou o capricorniano – Ya sé que me voy a meter la pata.
-.-.-
Haviam dois encanamentos que ainda nutriam a Fonte, e que não haviam sido danificados pelos conflitos, mas Poseidon se viu atraído principalmente pelo segundo.
Não sabia o porquê disso, apenas sentia algo reconfortante partindo daquela direção, e como não era um deus que negava seus instintos, simplesmente seguiu nessa direção sem grandes questionamentos.
Quando retornou a sua forma física, não demorou para notar três coisas.
A primeira: A pia da qual saiu estava localizada em uma sala completamente escura, por sorte, justamente por ser o deus dos mares, conseguia se adaptar bem para enxergar na ausência do sol, não tão bem quanto Hades, já que habitava principalmente nas regiões marinhas ainda sobre alguma luz do irritando do Hélio, mas já era o suficiente para perceber que estava em um cômodo pequeno, com algumas camas amontoadas, todas ocupadas por pessoas de diferentes tamanhos. Além disso haviam várias estantes empoeiradas apilhadas com diferentes tipos de itens, semelhantes a uma dispensa.
Segundo: Ao se aproximar de um homem adulto de cabelos azuis espetados, expressão serena e um sorriso nos lábios, pôde perceber que eram cadáveres, alguns, como esse rapaz, ainda emanavam um pouco de calor, indicando que não haviam morrido há muito tempo, sem dúvida então eram os caídos da guerra e não alguma prisão medieval sinistra ou um laboratório secreto para experiencias bizarras que Athena mantinha em segredo.
Sentia um misto de sentimentos ao perceber que estava basicamente em uma sala-velório. Sua parte criança se sentia um pouco assustada, sua parte divina achava a situação curiosa.
Imediatamente se perguntou se foram os corpos que o atraíram a essa sala em primeiro lugar, talvez o suave miasma benigno expelindo por eles o lembrou da energia de Shun? Era uma possibilidade, estava tão preocupado com seu irmão mais velho que algo assim podia persuadi-lo, afinal, sempre foi uma divindade muito instintiva.
Entretanto, essa possibilidade caiu completamente no esquecimento quando notou a terceira coisa.
Não estava sozinho, alguém estava chorando dentro dessa pequena ala.
- T-tem alguém aí? – Era uma voz simplesmente angelical, claramente feminina e jovem, estava debruçada do lado oposto do leito do homem sorridente.
- Ah, sim, eu estava procurando por uma torneira que funcionasse – Se limitou a verdade, e um fungo por parte dela fez seu coração se apertar.
“Simpátia, Neroda, Empátia” – Dizia para si mesmo – “Seu pai,Sorento e Shun te ensinaram isso para alguma coisa, então use, idiota!”
- Eu não queria interromper seu luto, eu só queria um pouco de água – Isso tinha sido simpático o bastante? – Eu não conheço esse lugar, então entrei ao azar. Não achei que fosse aqui que...Bem...
- Eu não ouvi a porta abrindo – Respondeu ela em sua voz lamentosa, estava a ponto de dizer que não havia usado a porta precisamente quando a menina se ergueu, e passou a se concentrar em vê-la, mas seu rosto estava abaixado enquanto limpava as lágrimas de seus olhos. - Mas não é como se eu tivesse prestando atenção de qualquer forma. - Ela deu a volta na cama ainda com a face baixa - Sua voz não me é familiar, qual é o seu nome?
- Meu nome é Neroda - Disse simplesmente - Na verdade eu não sou daqui, eu sou-
Os abalos sísmicos ainda não haviam parado, e embora estivessem mais fracos, eram suficientes para chacoalhar alguns dos objetos acumulados naquela ala.
- É um nome muito bonito. – Ela disse fracamente.
- É, não é? - Colocou com orgulho - Significa “Águas da Terra” fui eu mesmo que escolhi!
- Você? - A jovem parecia desconcertada - Como?
- Eu falei com Sorento nos sonhos dele, e pedi que avisasse meu pai sobre a minha vontade - Explicou com simpleza, também dando a volta ao redor do leito, na esperança de conseguir finalmente vê-la.
- Que bonito, você com certeza é um rapaz muito especial então - Isso fez Poseidon se encher de orgulho sem considerar sequer por um instante que a jovem não estava realmente levando-o a sério.
-E qual é o seu nome? - Pergunta animado quando já estavam a poucos passos um do outro.
- Ailá.
- Ah, é um nome legal também, não tanto quanto o meu, mas é bonitinho - Isso fez ela rir sutilmente, o que soou engasgado devido ao seu pranto recente.
- Você é bem sincero, obrigada por me fazer rir, eu estava precisando - Disse ela finalmente descobrindo sua face - Significa algo como “O ar que se respira”, um pouco redundante, mas eu gosto. Foi a minha mãe que deu.
Era uma adolescente, longos cabelos castanhos ondulados, perfeitamente ondulados, como se as próprias ondas do mar tivessem moldado com cuidado os fios de suas madeixas, sua pele era bronzeada, o que significava que provavelmente o Sol a beijava com seus raios com certa frequência. E seus olhos, seus olhos eram impossíveis de descrever com palavras, como pequenas e preciosas pepitas do mais puro Oricalco. Seu coração simplesmente deu um solavanco com essa visão simplesmente estonteante, e logo começou a bater desenfreado e dolorosamente contra sua caixa torácica, tinha que agradecer ao escuro, porque sua face devia estar mais vermelha do que um morango-do-mar.
- Cuidado! – E como resposta a terra sob seus pés deu uma chacoalhada violenta, suficientes para soltar algumas tábuas soltas do teto, mas as mesmas nunca chegaram a atingi-lo, pois a curandeira o abraçou para protegê-lo, usando seu corpo de escudo.
E para desespero do deus, as madeiras a atingiram em cheio na cabeça, mas ela não recuou muito menos o soltou de seu gentil agarre enquanto os tremores não se detiveram.
- Desculpa! – Foi tudo que ocorreu ao grego, concentrando-se o máximo que podia para que a terra parece de responder aos seus sentimentos, mas isso era especialmente difícil sendo um adolescente com hormônios em ebulição! – Você não precisava ter me protegido, eu sou muito resistente e- Não pôde continuar, notando como um pouco de sangue escorria da testa da jovem onde as tábuas a tinham acertado. – Você está ferida!
- Não é nada, como boa aprendiz do senhor Kiki, não é um arranhãozinho desses que vai me parar. – Sorriu como podia apesar da clara dor do hematoma.
“Então Kiki a conhece!” – Gritou em sua cabeça, uma felicidade intensa o invadindo. Podia questionar tudo que quisesse para Anfisbena sobre essa sereia que havia fugido do mar.
- Espera, eu vou acender a luz, assim posso te ajudar melhor.
- Cuidado! Essa luz não é acesa há anos, e os terremotos podem ter complicado a situação – E ainda assim o menino se desvencilhou de seus braços e correu para um velho interruptor perto da porta.
- Há, se eu tivesse medo de eletricidade, não teria enfrentado meu irmão tantas vezes como enfrentei! – A frase não fez o menor sentido para a jovem, mas isso não importou quando as luzes se acenderam, ou quase, uma delas piscou e apagou num estralo pouco depois, mas era o suficiente para que ambos pudessem se ver melhor na meia luz.
Os olhos de Ailá piscaram agora que enxergava a figura do menino, as faíscas que caíram da lâmpada venha pareciam pequenas estrelas emolduradas pelo céu que eram seus longos cabelos azuis, sua pele era tostada de tal forma que indicava, mesmo que não fosse estudando de medicina, quantas horas esse rapaz gostava de se banhar sob o astro rei, e quanto a se banhar, haviam seus olhos, profundos e intensos, era como se o oceano tivesse sido pintado inteiro em suas pequenas orbes.
- Nós já nos conhecemos antes? – Perguntou ela sentindo-se ligeiramente mareada, imediatamente culpando os malditos hormônios da adolescência. Não é como se nunca tivesse visto um rapaz bonito antes.
Mas esse era fora de sério, simplesmente parecia estar diante de um pequeno deus.
- Eu tive a mesma sensação – Disse voltando-se para perto dela com um sorriso idiota no rosto, mas esse logo vacilou ao ver novamente o sangue escorrendo – Eu vou ver se tem algum curativo aqui, não morra até eu conseguir um!
Ela não pôde deixar de sorrir com o exagero dele, soava tão fofo.
- Não precisa se preocupar, eu posso usar meus poderes nisso – Disse sentando-se pois estava completamente exausta, depois de uma madrugada tão difícil e recheada de perdas, sentia-se genuinamente comovida pelo gesto do outro, que correu até a estante e começou a dar saltinhos para tentar alcançar algumas caixas.
Algo nesse garoto que mal conhecia a fazia se sentir tão bem, como se o conhecesse de toda a vida.
- Consegui!! Aah, vou pegar isso aqui também! – Disse abrindo uma embalagem de copos descartáveis – E isso aqui são saches de sal? – Apontou para uma prateleira mais baixa.
- Sim, temos algumas coisas da copa aqui também, porque o senhor Kiki tem o péssimo costumo de esquecer de comer, é uma tentativa nossa para fazê-lo se lembrar, uma prateleira de condimentos e salgadinhos – Notou como o grego pegava doze saquinhos de sal - ...Você tem pressão baixa? Porque beber água é mais eficaz do que isso...
- Não – Respondeu indo até a pia da qual havia surgido em primeiro lugar – Isso apenas ajuda a me acalmar. – Encheu seu copo para então voltar ao lado da confusa curandeira, ofereceu para ela um pouco de algodão e gaze.
Ailá apenas ficou observando como o jovem mais bonito que já tinha visto em sua curta vida rasgava embalagem por embalagem e vertia seu conteúdo dentro do copo com água, quando finalizada sua tarefa, olhou ao redor procurando uma lixeira, e como não encontrou fez uma bolinha com os papeis e os colocou no bolso. Sequer teve tempo de apreciar a sutil atitude ecológica quando em seguida ele começou a beber sua mistura com uma expressão de completo alívio.
- Ah – Poseidon parou ao ver que ela o observava religiosamente, quase com fascínio, fazendo-o ruborizar-se – Desculpa, eu ainda esqueço isso de oferecer as coisas, você quer um pouco?
Ele tinha bebido o liquido extremamente salgado com tanta satisfação que não pôde evitar aceitar, tomando o objeto ofertado com a mão que não segurava o algodão contra seu ferimento, a mão de ambos se tocando no ato, deixando ambos adolescentes inocentemente sem graça. E assim sorveu um pequeno gole.
- E então? Sem sal é bom, mas com fica muito melhor, ainda bem que encontrei isso aqui! Você gostou? – Questionou animado – Quando eu fico nervoso e a contagem mental não funciona para me acalmar, isso ajuda, pois me lembra de casa, isso me faz sentir...- Engoliu em seco ruborizando-se ligeiramente, fazendo Ailá amassar ligeiramente o copo de plástica incapaz de acreditar como ele podia ser tão adorável - ...Seguro, sabe? Eu sei que soa idiota, mas...Digamos que eu tenho um passado complicado que me deixou com manias estranhas.
- Não é idiota! – Disse quando terminou de beber – É muito sensível da sua parte, e o gosto realmente não é tão ruim quanto eu achava que fosse. – Pensou no que ele disse – Quantos anos você tem?
- Treze.
- É um pouco jovem para um passado complicado, mas no santuário não podemos julgar esse tipo de coisa.
- Imagino que não.
Ambos ficaram se encarando bobamente sem saber mais o que dizer um ao outro, até Neroda perceber que ela seguia com o copo erguido, na intenção de devolver-lhe.
Nenhum dos dois notou em que momento os tremores simplesmente haviam parado.
Ao voltar a beber a água salgada o adolescente deus do mar não pôde deixar de pensar que bebendo do mesmo copo era como se estivessem dando um beijo indireto na garota mais bonita que já havia conhecido, e sentia-se simplesmente derretendo só de pensar na possibilidade.
Não, literalmente, estava usando todo o seu esforço para não acabar derreter sua forma física e escorrer pelo chão como uma poça, isso daria uma péssima primeira impressão.
- Acho, acho melhor eu voltar – Disse ela repentinamente colocando o cabelo atrás da orelha, timidamente. – Podem estar precisando de mim, sabe, curandeira e essas coisas, vamos? – Mecanicamente Poseidon se levantou junto com ela - Foi muito bom te conhecer, Neroda.
Ela ficou esperando uma resposta, e o senhor dos mares também esperou sua própria resposta, mas ela não veio. Sinceramente sua mente estava em branco, que ela o estivesse encarando nos olhos o deixava simplesmente sem fala.
Ironicamente ela tirava seu ar ao invés de dá-lo.
“Diga alguma coisa legal” – Dizia a si mesmo enquanto sorria como idiota, o que apenas fazia Ailá o achar cada vez mais lindo – “Diga algo que vai impressioná-la! Vamos...O que Bian diria, o que ele faria?” – Seus marinas sempre se queixavam do jeito que o Cavalo Marinho lidava com seus interesses amorosos, mas gostava de seu estilo.
Tossiu, limpando a garganta, para então pegar a mão dela com a sua e depositar um beijo cavalheirescamente em sua pele e dizer:
- Se é preciso lutar em uma guerra para te ver, então valeu a pena.
Haviam gritos histéricos na cabeça de Ailá agora enquanto sentia suas pernas fraquejar, Neroda não estava em melhor situação, pois quando ergueu a face encontrou-se com uma expressão tão encantadora que parecia simplesmente impossível descrevê-la em palavras.
Então alguém abriu a porta.
- Ailá, está tudo bem? – A voz preocupada de Aldebaran questionou.
- Q-quê? A-ah, sim! Eu só – E quando se voltou a Poseidon, chocou-se completamente ao perceber que ele havia simplesmente sumido – Onde ele foi?!
No chão, novamente em sua forma de água, o deus-humano voltava para o cano pelo qual havia chego, precisava de instruções para saber quais deveriam ser seus próximos passos a seguir, além de não gostar da ideia de deixar seus marinas sozinhos por muito tempo na presença de Athena.
Sua retirada não tinha nada a ver com o fato de ter, de forma completamente literal, havia se derretido frente ao seu rubor encantador.
Não, claro que não.
-.-.-
- Não se sinta ofendida pela comparação dele – Havok comentou em seu tom doce assim que seu deus desapareceu frente a todos deixando para trás um silêncio no mínimo incomodo. – Ele gosta muito de cavalos, então eu consideraria um elogio.
A deusa abriu a boca para refutar, mas logo tornou a fechá-la, a sinceridade escorria de cada centímetro do pequeno marina, chegava a ser difícil acreditar que levava a mesma escama usada por Kanon no passado, não podiam ser mais diferentes.
- Tudo bem, eu irei relevar – Declarou, mesmo a contragosto, e teve que se esforçar para não sorrir também para a expressão iluminada do garoto.
O olhar da deusa então se voltou ao turbilhão que ele havia criado, sem conseguir compreender como uma criança podia fazer tanto.
- Eu sei que não é situação ideal, mas somos aliados agora – Sorento assumiu a frente ao lado de seu filho, bagunçando ligeiramente seus cabelos com carinho – A senhora conhece seu tio, o senhor Poseidon sempre foi um espírito livre difícil de controlar ou antecipar, mas eu posso garantir que ele é sincero quando diz que está tentando ajudar.
Athena não respondeu, vendo da face do austríaco, para a do pequeno Dragão marinho, e então Kiki, que ainda a observava com exasperação.
Definitivamente gostaria que Hyoga estivesse aqui para poder se aconselhar com ele, mas como ainda não havia tido tempo para localizá-lo, teria que tomar tudo em suas mãos.
Portanto respirou fundo e confirmou com a cabeça, sentindo os ânimos se aliviarem ao seu redor pelo seu simples gesto.
- Tudo bem Sorento, eu aceito que a ajuda de meu tio é muito bem vinda, mesmo que...Aparentemente – Disse vendo de Shura que trazia Shiryu em sua direção junto a Suite, para Shoryu. – Chronos tenha sido imobilizado por enquanto. Ainda temos que enfrentar essa história do Hecatônquiros.
Não havia muita confiança em suas palavras, era inútil esconder que havia algo muito errado sobre as atitudes da dupla de librianos, apesar de todos os conflitos que teve com Shiryu, que ele tivesse tentado escapar ao invés de ajudar seu filho, cercado por todos os lados, era simplesmente absurdo.
Se tinha uma coisa que sabia, mesmo apesar de sua distância do santuário, era o quanto seu velho amigo amava sua família. Talvez, apenas talvez, Shiryu realmente não estivesse agindo por vontade própria, e possivelmente isso podia abranger seu filho, afinal,
Por isso não permitiu que nenhum dos dois fosse executado, precisava chegar ao fundo disso, não poderia baixar a guarda, ao mesmo tempo que teria que se esforçar para confiar naqueles que o cercavam.
Um pé para frente e dois para trás.
- Mas insisto que não confio no submundo, e muito menos em Ares – Defendeu-se – Então mesmo que Poseidon seja aliado dos dois, não espere que eu os aceite, ou abaixe minimamente a guarda para suas tropas, qualquer movimento em falso e nós os consideraremos inimigos também. – Colocou com firmeza, ao tempo que Shura e Suite paravam ao seu lado – Isso é tudo que eu posso oferecer no momento.
- Suponho que é justo – Conformou-se Sorento – Mas posso pedir ao menos que, se não houver uma ofensa direta da parte deles, a senhora também não os ataque? Podemos estabelecer um hospitium para deixar tudo mais limpo entre nós.
- Se isso está prestes a se tornar um campo de batalha, não vejo como conseguiríamos estabelecer um hospitium – Negou sendo segurada por Suite quando a terra deu uma sacudida particularmente violenta. – O que Poseidon está fazendo para os tremores ainda não terem parado?
- Eu não posso prometer sobre manter o submundo sob controle, e depois do modo que aquele espectro saiu daqui, nem posso afirmar se isso seria possível, mas ao menos eu me comprometo a falar com Ares – Esculápio retomou a fala, chamando atenção daqueles que estavam ao seu redor – Temos uma espécie de acordo tácito, e se há um inimigo particularmente desafiador no meio, não será exatamente difícil convencê-lo, no fim você não está realmente errada sobre as motivações dele, ele não é pai do deus do amor por nada, chega a ser uma bomba de emoções até maior que Poseidon – Notando o que havia dito, voltou-se agoniado para Kiki e os demais marinas. – Ah, sem ofensas.
- Não se preocupe com isso – Tranquilizou Sorento – Conhecemos nosso senhor, seus pontos negativos e positivos.
- Eu só quis dizer que todo o sentimento de medo, dor e desespero que essa guerra permeou no coração de todos aqui sem dúvida deixaria Ares em extasse, ele é tão movido por isso quanto seu filho é por sentimentos opostos relacionados ao amor e a paixão. E acredite, um Ares feliz é mais fácil de convencer que um Ares irritado. E em algo Poseidon tem razão, ele pode se mostrar um aliado formidável, devorando esses sentimentos catatônicos de derrota dos soldados que perderam tanto essa noite e convertendo isso em furor e espírito de batalha, retornando a força e a coragem àqueles que ainda podem se levantar e lutar. Você mesmo faz isso com seu cosmo, não é Athena? Nos momentos difíceis da batalha, erguendo o espírito dos seus cavaleiros, permitindo-o alcançar milagres. A diferente é que essa á uma habilidade tão natural nele quanto respirar, apenas de estar aqui isso naturalmente aconteceria.
Athena não respondeu a isso, enquanto usava seu cosmo para aquecer de algum modo Shiryu dentro do esquife e mantê-lo o mais distancia possível das portas da morte enquanto pensava o que fazer com ele a seguir.
- ...É justamente por isso que ele assume a frente de batalha, ele é como...- Tentou encontrar palavras.
- Uma árvore – Sugeriu o pequeno Havok, chamando a atenção de mais de um.
- Como Ares seria uma árvore, pivete?! – Inqueriu Io com expressão franzida, mas o menor não pareceu se importar com a provocação, simplesmente seguindo com sua explicação.
- As árvores absorvem o gás carbônico e liberam oxigênio em troca – Disse com simpleza – Se ele suga sentimentos de derrota e libera o desejo por continuar lutando, ele seria como uma árvore – Findou dando de ombros.
E pela primeira vez naquela noite Esculápio riu genuinamente com a comparação da criança.
- Sabe o que é pior? A definição de árvore combina muito bem com ele. – Disse com um sorriso na face – Afinal, ele também é um deus da agricultura, embora seja difícil acreditar nisso, não estranharia se fosse daí que ele tira essa habilidade peculiar, quem sabe.
- Soa mais como uma líder de torcida armada para mim – Suite comentou com suma naturalidade.
- ...Não deixe ele te escutar dizendo isso, é sério – Rebateu o serpentariano – Mas eu entendi seu ponto.
- Eu contínuo sem conseguir enxergar como Ares feliz poderia nos ajudar aqui – Finalmente rebateu Saori, suas mãos ainda contra o gelo – Eu sei bem como o poder dele funciona, mas ele não é capaz de influenciar meus cavaleiros, eles já estão sob a minha influência, o mesmo vale para os marinas.
- Você está certa – Declarou o médico, e não havia nenhum prazer em sua voz ao dizer isso – Não funcionaria se fosse algo baseado no cosmo dele, mas como eu disse não é. E eu sei que vocês lutaram por milênios, eu sei melhor do que ninguém a consequência da luta de vocês, acontece que a última vez que você o teve como “aliado” foi na gigantomaquia, então pode não entender como ele se comporta nessa posição, por outro lado ele lutou do lado do meu pai na Guerra de Troia e até hoje Apolo o valoriza como a parceiro de batalha, mesmo que tenham perdido a guerra.
- Eu não o tenho como aliado há milênios justamente porque ele abandonou nosso lado a favor de Troia por pedido de Aphrodite, esse é o tipo de aliado que ele é volúvel. – Declarou com desgosto – Mesmo que Aphrodite não esteja no campo de batalha, quem pode me garantir que isso não vá acontecer de novo?
Isso fez Kasa soltar um grunhido baixo, o que não chamou a atenção de ninguém por si só, uma vez que o português parecia simplesmente aterrorizado desde que o Hecatônquiros foi citado, porém Krishna entendeu o que ele queria dizer com isso.
- Talvez Athena tenha razão em seus receios – Interveio o srilankês – Há boas chances de Aphrodite ser uma aliada de Chronos.
- Como assim? – Questionou Sorento com clara preocupação em sua voz.
- Sinceramente tanta coisa aconteceu em sequência que não tivemos tempo de pontuar sobre isso, mas enquanto ajudávamos alguns cavaleiros a derrotar aqueles ramos que os estavam atacando, Kasa pôde assumir uma forma frente a eles, a forma do mesmíssimo deus da guerra.
- Sim – Seguiu o homem de pálida pele – Meu poder de transformação basicamente me permite transformar-me nos seres queridos de quem eu enfrento, quando me deparei com essas coisas, sentia uma consciência por trás coordenando os ataques, eis que em sua presença eu – Engoliu em seco – Assumi a figura do deus da Guerra, e sinceramente não conheço qualquer outra divindade além de Aphrodite capaz de ter Ares em grande consideração.
- E como ela é uma deusa da fertilidade, faz sentido ela ser capaz de manipular plantas, sem mencionar que rosas são um de seus atributos – Encerrou Chrysaor. – Então mesmo que possa ser um bom aliado, se existe chance de Aphrodite ser nossa inimiga, realmente não é uma boa ideia convocá-lo para essa batalha.
- E vocês não pensaram na possibilidade de dizer isso antes de Poseidon dizer para Apolo convocar os olimpianos?! Porque Ares É um olimpiano! – Irritou-se Io.
- Como eu ia saber que ele ia fazer isso? – Defendeu-se Lymnades.
- Ele não ia mudar de ideia mesmo se soubesse – Seguiu Krishna – Você também viu como ele estava. Hecatônquiros é um rancor antigo do nosso senhor, e que esteja absorvendo o cosmo de Kronos e outros prisioneiros do Tártaro definitivamente não é algo para se levar de ânimos leves.
- Em outras palavras é inevitável que Ares venha para cá agora, de um modo ou de outro – Concluiu o raciocínio Sorento – Acha que mesmo assim consegue convencê-lo a se manter do nosso lado? – Voltou-se a Esculápio.
- Eu acho que sim, ele e Aphrodite não estão na melhor fase de sua relação – Comentou o médico já não parecendo tão seguro – Eu não duvidaria que isso foi justamente um motivante para ela ter se aliado a Chronos. Hoje em dia os generais dele a detestam acima de tudo, mesmo sendo a mãe deles, então é difícil ele optar o lado dela, Ares tem uma tendência a ser muito protetor com seus filhos e assumir a luta deles, ainda assim, confesso que as chances dele pender para o lado de Aphrodite novamente ainda existem, e mesmo que isso não aconteça duvido que ele queira lutar diretamente com ela. Seja como for, ele tem razão – Indicou Io – Uma vez que Poseidon se contactou com meu pai, e ele se responsabilizou de informar os olimpianos, Ares ser convocado para essa batalha não é um SE, é o um QUANDO, então o melhor a fazer é se preparar, e tratar de convencê-lo a se manter conosco antes de entrar no furar da batalha, apesar dessa nova descoberta eu ainda me comprometo a fazer isso.
- Você parece bem intimo dele, sendo seu médico e tudo, o que é verdadeiramente muito estranho para quem alega ser um “Ex cavaleiro” – Acusou Athena, que até então tinha se mantido afastada da discussão dando ordens para que Suite e Shura se unissem a Albafica, agora novamente de pé, e Egas e levassem pai e filho para a prisão do Santuário, além de orientar que o líder dos cavaleiros de prata tentasse se comunicar com Suikyo que havia desaparecido com Ikki, contudo, seguiu pendente de cada uma das palavras ditas.
- Se você duvida considerar-me um aliado ou não Athena, eu não dou a mínima. – O serpentariano disse encarando diretamente a deusa, finalmente erguendo no chão – Muitos nesse santuário podem estar escondendo de ti o que realmente sentem ao seu respeito, com tal de seguirem como seus aliados nessa guerra, mas eu vou ser muito claro quanto a minha posição, se eu já não deixei bem claro antes – Deu mais alguns passos em direção a divindade, Shura entrando protetoramente na sua frente, ao mesmo tempo que deixava estrategicamente o antigo grande mestre afastado o suficiente de toda aquela ação e não acabasse ferido, entretanto isso não pareceu frear o médico e suas intenções – Eu a desprezo deusa da sabedoria, eu nunca odiei tanto alguém em toda a minha vida, nem mesmo Zeus, quanto eu a odeio por todas as suas ações, por tudo que fez meus antigos companheiros passarem. Eu jamais vou esquecer as consequências de todos os seus atos em nome de “causas maiores”, e se te matar fosse uma decisão só minha, eu faria isso exatamente agora! – Isso alertou imediatamente Pégaso e Capricórnio que entr5aram em posição ofensiva, o que não foi necessário, pois após suas ameaças o homem de longos cabelos voltou-se ao destruído santuário no horizonte, deixando escorrer por sua figura melancólica sua postura agressiva – Mas eu não sou mais um guerreiro, mesmo que eu tentasse a essa altura qualquer vingança seria vazia e estupida, ao invés disso tenho muito claro em minha mente que acima de tudo eu sou um médico, e como médico não importa o que eu acho ou deixo de achar sobre você, Ares, marinas, cavaleiros ou espectros. Se houver alguém ferido na minha frente, eu vou tratá-lo, independe de seu lado ou princípios, porque é isso que os médicos fazem. Então, é simplesmente estupido considerar-me seu inimigo, mesmo que eu desejo do fundo do coração o pior para você. Seria como uma planta considerar o sol seu oponente por causar a seca, sendo que sem o próprio sol, a flor sequer estaria viva. – Então voltou-se a divindade – O melhor a fazermos é seguirmos nossas funções, eu curo, você guerreia, e tentarmos lidar o mínimo possível um com o outro. Está bom o suficiente para você?
- Athena – Mais uma vez Kiki se viu na obrigação de interceder – O senhor Esculápio nos ajudou muito na Fonte, e definitivamente não estamos em posição de recusar reforços médicos se a guerra apenas vai escalar de tamanho daqui para frente, já perdemos muitas vidas – Sua expressão claramente decaiu – Eu, Hayata e Ailá não somos suficientes, pouco antes de Camus perdemos Máscara da Morte, e ele só pôde se despedir de sua família graças a ajuda do senhor Esculápio.
Isso fez Shura vacilar por um instante em sua postura.
- Máscara da Morte está morto? – Colocou, sentindo como se tivesse recebido um soco em seu estômago - Decorrente de sua luta com Aiolos? – O lemuriano apenas confirmou com a cabeça.
Saori assistiu como a face do outrora estoico capricorniano se empalidecia, mesmo que não fosse muito próximo do canceriano, ainda haviam participado juntos do plano para recuperar a armadura de Athena há mais de vinte anos, e acima de tudo, o assassino era justamente aquele que costumava ser seu melhor amigo.
Frente a essa ligeira interação, tendo sabido do descontrole do sagitariano pelos próprios lábios do espanhol enquanto examinava os supostos braceletes de Erictônio, Athena tomou uma decisão, pois acima de tudo não queria que mais nenhum de seus cavaleiros caísse essa noite.
Por isso estendeu a mão.
- Aliados, até a guerra acabar – Colocou em tom firme – Até lá, confiarei em tuas habilidades, e passarei por alto suas ofensas e acusações sobre o destino de Erisictão e Astéria.
A última parte fez o sangue da ex divindade simplesmente ferver, como se toda a verdade finalmente a tona fosse simplesmente desconsiderada se apertasse a mão da japonesa.
Um silêncio tenso se fez entre todos, enquanto a mão seguia erguida.
Então em um longo suspiro de derrota, Esculápio estendeu sua própria mão e firmou o acordo.
- Não direi mais nenhuma palavra sobre o assunto se isso me permitir trabalhar sem ser rondado por sua desconfiança.
- Então temos um acordo.
-Aparentemente.
E ambos se separaram, sem deixar de encarar de mal grado um ao outro.
- Shura, Suite – Nomeou – Por favor, já podem se retirar para cumprir suas ordens.
- Sim, senhora – Disseram ambos curvando-se, e tomando Shiryu consigo em um Esquife que parecia cada vez menor, diferentemente do tradicional Esquife de Gelo da casa de Aquário, e assim ambos partiram, prestativamente Havok os seguiu para que pudesse desfazer seu turbilhão e liberar o inconsciente cavaleiro de Libra, e assim, com as instruções passada a Egas e Albafica, os quatro e seus dois prisioneiros partiram em direção ao santuário, enquanto o Dragão Marinho voltava ao lado dos demais marinas uma vez mais.
Saori abriu a boca para dar uma ordem a Kiki que a acompanhasse a Fonte e lhe informasse dos estragos, mas logo engoliu a mesma, ponderando suas palavras.
- Eu verificarei a Fonte, talvez meus poderes possam ajudar alguns dos nossos feridos, sem mencionar que eu não me sinto completamente confortável de deixar Poseidon lá sozinho. Ainda mais se Ares está se aproximando. Não importa o que digam, não acredito que Ares lutará do nosso lado – Anfisbena estava ponto de se oferecer para segui-la, mas não o fez, mantendo-se desconfortável em seu lugar por recordar-se que não era mais o responsável pela ala médica do santuário, mesmo que diretamente sua antiga deusa não tivesse dito nada sobre isso, no momento era melhor confiar em Hayata para lhe passar todas as informações e manter-se com seu próprio bando.
A aliança de todos era um fio fino demais que poderia se romper frente a qualquer estresse, por isso apenas assistiu Athena afastar-se sozinha para dentro da Fonte, enquanto ainda sentia seu coração na mão pelo que havia acontecido com seu amigo Shiryu e seu filho.
Os dois deveriam ter um plano, tinham que ter.
Empurrou essa questão por enquanto, havia outro assunto que pedia sua atenção, uma vez que os marinas eram agora os únicos do lado de fora da ala médica.
- Senhor Esculápio – Chamou – Se me permite eu gostaria de saber qual sua relação com o deus da guerra.
- Eu também estou curioso – Uniu-se Io – Não é exatamente uma dupla convencional, e mesmo assim você parece ter razoável segurança sobre convencê-lo.
- Não deveríamos ir até o senhor Poseidon ao invés de ficar aqui? – Inqueriu Kasa ainda desconfortável com o assunto Ares.
- Oh, ele está bem -Informou Havok com um sorriso – Na verdade, ele parece muito bem, os tremores até pararam, ele deve ter encontrado a água que queria, tenho certeza que em breve voltará para cá.
O português resolveu não questionar mais, embora ainda claramente descontente.
-...Tem a ver com a minha deserção do exército de Athena em primeiro lugar – Respondeu cansado o médico acariciando distraidamente a cabeça de Tônio ainda confortavelmente enrolado em seu pescoço – Na época eu soube que Erictônio havia executado as irmãs de Eri por ordens da mesmíssima deusa.
-Como o senhor descobriu? – Não pôde deixar de perguntar.
- Hélio – Sua resposta foi direta – Ele ainda possuía uma forma física acessível na época, e como filho de Apolo não era difícil para mim falar com ele, e não há nada que aconteça durante o dia que não seja de seu consentimento. Ele viu quando as irmãs de Eri abriram a caixa onde Erictônio guardava seus braceletes.
- Aqueles que Athena ficou encarando como estátua? – Io questionou – O que eles têm de especial?
- Sinceramente eu não sei, nunca tinha a oportunidade de me aproximar deles - Confessou – Mas sei que algo neles prova que Erictônio era filho do ato sujo de Hefesto, aproveitando-se do Dunamis que Athena usou-se para livrar-se do ferreiro. Seja como for, elas descobriram a identidade do filho de Athena, e pagaram com a vida. – Suspirou longamente, lembrando que havia sido ele mesmo que cegamente havia assassinado Erictônio em vingança, mesmo que antes disso tivesse amado o problemático garoto como se fosse seu filho, sinceramente, não tinha moral para julgar seu pai se este decidia impor-lhe um castigo cruel por sua traição, quando foi sua de vez julgar, foi absolutamente mordaz com o menino que só queria ser reconhecido pelo que era – Isso já era motivo o bastante para eu me sentir enojado, mas o estopim foi a declaração de guerra que Hermes nos trouxe por parte de Ares. Eu pude interceptar o deus mensageiro antes que ele voltasse para o Olimpo, sentia que havia algo errado nessa história, ele claramente não queria me passar a mensagem na integra como fez com Athena, mas Hermes é um deus que você pode simplesmente comprar. Então eu dei a ele as duas serpentes que fazem parte do seu Caduceu.
- Por isso o símbolo de vocês se parece? O caduceu e o bastão de Esculápio, o símbolo do comercio e da medicina – Perguntou Kiki, ao que Épios confirmou com a cabeça – Fascinante!
- Então ele me disse que a declaração de Ares se devia não apenas de todos os desgostos que tinha com Athena, como também pela morte de uma das irmãs de Eri, Aglauro, que era justamente uma amante de Ares.
- Eu vou te dizer uma coisa, essa família sim que era complicada – Ironizou Io – Já começo a achar que nosso Senhor Poseidon ter perdido Atenas para Athena foi a melhor coisa que nos aconteceu só por não ter essa família ao complicada ao seu serviço.
Frente ao seu comentário recebeu olhares zangados tanto de Kiki quanto do próprio Esculápio, ainda assim o filho do sol seguiu.
- Seja como for, eu confrontei Athena sobre isso, porque suas ações não apenas tinham atingido diretamente um de seus cavaleiros mais leais, como havia levantado a ira de Ares. Por isso eu disse que apenas a primeira Guerra contra Poseidon foi inevitável, eu tentei coloca-la na razão, tentei convencê-la a conversar com Ares, que tinha claro que Erisictão era um maldito que compactuava com a morte de sua família, ele tinha razão por estar nervoso, ela era a mãe de uma de suas filhas, e como eu disse antes, Ares pode ser realmente brutal quando se trata se sua prole, os mitos sobre ele falam por si só, em sua grande maioria relatam sua empreitada por uma de suas crianças. Contudo, como devem imaginar foi uma tentativa simplesmente estupida, convencer um deus da guerra a NEGOCIAR com outro deus da guerra? Meio-irmãos que simplesmente se destavam...Ainda assim eu fiquei tão frustrado que enfrentaríamos outra grande batalha, tão próxima da primeira, por causa das atitudes de Athena, me senti tão traído e tão sujo por não poder dizer o que sabia para Eri e Astéria, ela me fez prometer isso em troca da minha deserção. – Lágrimas tomaram sua face antes mesmo que percebesse – E eu repugnantemente aceitei, tentei convencer Eri e Astéria a me seguirem, mas eles não fizeram...Então eu...Fui embora e os abandonei a própria sorte, imaginei que logo eles perceberiam quem Athena realmente era. Eu preferi me libertar de guerras sem sentido a custa de estar com meus companheiros até o fim, e minha punição foi jamais esquecer. – Engoliu em seco, sem encarar ninguém diretamente – O resto da história vocês já sabem, pelo menos, até a parte que eu voltei a vida e me tornei um deus. Eu tinha completo acesso ao Olimpo sendo filho de Apolo, e o visitava com frequência, e em uma dessas visitas eu soube que Ares seria o primeiro deus a sofrer um julgamento divino presidido pelo Olimpo, se fosse condenado ele poderia perder absolutamente tudo, até tornar-se mortal indefinidamente. Quando eu soube seu crime, eu imediatamente fui encontra-lo na prisão.
- ...Creio que eu me lembro dessa história - Colocou Sorento franzindo a expressão, mostrando-se desconfortável - Foi Poseidon que exigiu o julgamento, porque Ares havia matado um de seus filhos, Hallirhothios.
- Eu não sei nem como se pronuncia esse nome – Resmungou baixinho Kasa, apenas recebendo um olhar azedo do músico – O quê? Eu estou falando sério, eu não sei em alemão, mas em português esse som nem faz sentido.
- Por que Ares o matou? – Kiki perguntou interessado.
- Porque Hallirhothios havia tentado... – Então lançou um olhar constrangido para Havok, a única criança presente – Ehem...Tentado...”Desposar” uma das filhas de Ares, a força – Deixou em destaque seu eufemismo que indicava a tentativa de estupro – E antes que acontecesse ela gritou pela ajuda do pai que bem...O matou no melhor estilo Ares eu diria. Acontece que essa jovem, Alcipe, era justamente a filha de Aglauro, em outras palavras, sobrinho de Erisictão. Eu fui até ele e me ofereci para cuidar dela, tanto mental como fisicamente, mas ele apenas me agrediu – E apesar de dizer isso, sorria – Como podem imaginar, ele não estava mais disposto a permitir que nenhum homem chegasse perto de sua menina, e eu não pude deixar de simpatizar com ele por isso, não apenas estava protegendo a sobrinha de meu saudoso amigo com unhas e dentes, literalmente, unhas e dentes, como estava disposto a sofrer castigos terríveis por ela, me lembrou o que meu próprio pai havia feito por mim, por isso me empenhei em conseguir que ele fosse absolvido, tentei convencer um a um os olimpianos de que ele havia agido em seu direito como pai pela defesa de um filho. Ele precisava de quatro votos para ser absolvido.
- E quantos ele teve? – Questionou Kiki que engolia cada palavra daquela história como uma criança ouvindo uma grande história de fantasia dos lábios de seu pai.
- Onze – Mas a resposta veio de Sorento – Acabou que nem Poseidon votou a favor do filho, e Ares claramente não pôde votar. – Foi a única vez que isso aconteceu.
- O local onde aconteceu o julgamento até levou o nome dele por isso, Areópagos, e acabou se tornando um importante tribunal humano. – Findou Épios com um sorriso fraco – Depois desse episódio, consegui obter mais a confiança dele, pude conhecer Alcipe e cuidar dela até o fim de sua vida, por causa do que aconteceu ela nunca quis se casar e ter filhos, e sua linhagem acabou com ela. Eu até tentei convencer Ares de parar suas guerras contra Athena, mas depois da invasão do submundo por sua culpa, e um outro motivo que ele nunca me contou, ele tinha ainda mais motivos do que nunca para guerrear. Tudo que me restou foi oferecer meus serviços médicos a ele e seus filhos, e em troca eu poderia determinar em que época ele atacaria Athena e seus cavaleiros. Basicamente eu determinava épocas onde a maioria dos meus antigos companheiros ainda não haviam nascido, mas que o santuário ainda tinha força o bastante para resistir. É egoísta, eu sei, mas foi o melhor que pude fazer, ao menos assim as três guerras santas jamais colidiriam próximas. Era horrível curá-lo depois de um desses assaltos, mas eu era profissional e tentava me acontecer que tudo podia ser muito pior. Então nossa relação é basicamente....De trabalho? Sinceramente, eu não saberia nomear, mas ele confia em mim.
-...E Ares simplesmente não desconfiava que você determinava épocas que o santuário estava no auge? – Questionou descrente Kasa.
- Na verdade isso o deixava muito feliz e animado – Deu de ombros – Eu tenho certeza que ele sabe que eu faço isso.
- Eu disse que esse deus é simplesmente demente...! – Resmungou o português baixinho.
-....É....Uma história e tanto, eu sinceramente não esperava – Confessou Kiki – Cada vez mais eu percebo o quão pouco eu conheço sobre os deuses...
Contudo seus pensamentos passaram para outro plano quando uma poça de água indicou que Poseidon estava retornando.
Por alguma razão o deus marinho, muito diferente de quando havia saído, trazia um enorme sorriso em seu rosto, e a face ligeiramente ruborizada.
-...Será que ele confundiu água e cachaça? - Lymnades sussurrou para Krishna que não respondeu, na verdade, nem pareceu se dar ao trabalho de ouvir.
- MARINAS! EU TENHO UM GRANDE ANUNCIO A FAZER! – Exclamou contente – EU ESTOU APAIXONADO!
Silêncio.
- Você só esteve fora por alguns minutos! – Exasperou-se Sorento perdendo sua postura de marina e assumindo a de tutor – Apenas alguns minutos!
- Ah, meu caro Sorento, como músico você deveria saber, o Amor não espera!
-.-.-
- PAI! – Shoryu se lançou assim que pôde nos braços do mais velho que ainda tremia ligeiramente – O senhor está bem?!
- Mais do que eu imaginei que estaria, sinceramente – Confessou abraçando o menor com força, agradecendo o contato com outro corpo mais quente que o seu.
- Isso porque eu não usei realmente o Esquife de Gelo, e sim uma variante que eu criei – Sorriu com sutileza a jovem Pégaso. – Você sabe, eu queria algo menos drástico que não precisasse das almas de libra e um risco muito real de alguém acabar esquartejado. Eu chamei de Apócrifo de cristal*
- Eu entendo o sentimento – Sorriu com empátia o ex Grande Mestre ainda abraçado com seu filho, permitindo que este chorasse baixinho em seu ombro, o lamento sacudindo o corpo de ambos mais do que o frio.
Estavam em um corredor escuro com poucas arandelas disponíveis, as quais eram acesas por Julian usando-se do antigo isqueiro de Máscara da Morte enquanto as interações aconteciam na frente das celas, como o lugar era excessivamente úmido o trabalho estava se mostrando mais inglório do que deveria.
- Ainda assim Athena usou seu cosmo para resguardá-lo Shiryu, tenha isso em mente – Pontuou Shura que possuía sua expressão fortemente franzida, encostado contra as barras de ferro. – Ela estava preocupada contigo apesar da cena que armaram.
- Senhor Shura está muito transtornado com nosso plano, mas aceitou participar – Concluiu Suite sorrindo simpática, apenas fazendo que o capricorniano gemesse internamente com a situação.
- Sim, sobre isso, qual é o plano? – Perguntou com sinceridade Shiryu sentando-se no chão para melhor poder confortar seu filho, que se embolou em seu colo como um gato, algo extremamente difícil dado que possuíam a mesma altura.
- Eu ainda não consigo acreditar que você fez o que fez sem saber se eles tinham um plano! – Exaltou-se o espanhol, denotando o quão incomodado estava.
- É claro que tínhamos um plano – Julian voltou ao grupo, embora estivesse de costas para ele, pois observava Egas e Albafica procurando algo no chão de cimento batido repleto de musgo. – A nossa geração foi treinada para usar a cabeça, senhor Shura.
Capricórnio se limitou a franzir a expressão frente a clara afronta do mais jovem, mas não se deu ao trabalho de responder, definitivamente não era o momento de cair em provocações leoninas.
- Eu apenas queria usar a oportunidade para dar-me o benefício da dúvida, Athena sabe o quanto eu amo meus filhos, me vendo fugir assim sem tentar ajudar Shoryu só evidencia que eu posso não estar sob minhas melhores faculdades mentais.
- Você nunca teve boas faculdades mentais, quase quarenta anos e continua agindo dessa forma inconsequente – Tornou a rezingar Shura.
- O senhor está agindo de forma muito rancorosa, senhor Shura – Brincou Suite.
- Perdão se trair Athena não me deixa confortável – Quase rosnou – Por outro lado tu pareces bem tranquila.
- Eu sou boa em teatro – Deu de ombros.
- Seja como for, eu vou explicar o nosso objetivo, e fique tranquilo senhor Shura, não envolve fincarmos uma adaga no pescoço de Athena – Frente a isso foi fuzilado pelo olhar do espanhol, mas não se importou. – Embora alguns de nós até queiram isso. Também vou contar para vocês tudo que aconteceu e o que sabemos até então.
O leonino contou da forma mais resumida que podia, não se apegando a muitos detalhes, uma vez que, ironicamente não disponibilizavam de muito tempo.
- Entendo – Completou Shiryu com voz solene – Então Máscara da Morte... – Não completou a frase, a essa altura Shoryu já havia deixado seu pranto, estando agora sentado ao seu lado, com a cabeça apoiada em seu ombro, sua expressão, porém seguia miserável.
- Então é uma questão de tempo para que o santuário seja invadido por olimpianos, carruagens divinas e monstros gigantes – Findou Julian – Precisamos achar Chronos antes que isso aconteça, não sabemos quantos anos ele ficou em silêncio infiltrado entre nós, mas claramente podemos supor que ele é do tipo que prefere sentar e esperar.
- Bem, ele é o tempo, não é? É o que o tempo faz – Pontuou Suite.
- ENCONTRAMOS! – Exclamou Egas parado junto a Albafica sobre o entalhe de um pequeno caranguejo, que mal tinha um centímetro, sendo quase invisível no chão irregular e úmido. – Agora, segundo Piada...
Fechou os olhos, concentrando seu cosmo no dedo indicador como se fosse abrir o Seikishiki novamente, mas ao invés disso o posicionou no centro do crustáceo.
Um CRACK soou como de uma porta sendo destrancada, e Câncer e Peixes tiveram que se afastar quando um mecanismo muito similar a abertura da câmera dos antigos foi ativada. O cimento do chão começou a se recolher sobre si mesmo formando placas, similares a grandes engrenagens, abrindo aos poucos uma passagem.
- Eis aqui, uma das criptas do santuário – Colocou impressionado Albafica – Agora só precisamos enviar o sinal para eles virem para cá - Com isso agachou-se, fazendo com isso uma expressão de dor.
- Você está bem? – Questionou o prateado, preocupado.
- Estaria melhor se Shoryu não tivesse que ser TÃO realista em sua encenação – Respondeu lançando um olhar zangado ao mais velho, enquanto fazia uma pequena planta crescer no túnel aberto – Se eu não tivesse me fingido de nocauteado teria literalmente sido.
-...Talvez eu tenha me deixado levar um pouco. – Confessou timidamente Libra, finalmente erguendo-se e limpando as lágrimas de seus olhos – Você sabe que eu estava nervoso.
- Obrigado por descontar em mim, quando esta guerra acabar eu vou fazer vocês dois – Disse indicando Julian também – Se arrependerem amargamente de me usarem de isca e saco de pancada.
- Ninguém mandou ser resistente – Brigou o leonino – Mas eu estarei esperando sua vingança ansiosamente.
- Falando na encenação de vocês – Shura tomou novamente a palavra com a expressão franzida – Como você pode simular aquele cosmo tão violento? Por que aquilo claramente não era humano.
Shoryu abriu a boca para responder, mas Julian o interrompeu.
- Shoryu, pensa rápido – Disse jogando o isqueiro ao chinês que o tomou no ar sem qualquer dificuldade – Você tem que tomar cuidado com ele, não quer que acabe quebrando, quer?
- É claro que não – Respondeu, franzindo a expressão, vendo o pequeno objeto e então guardando-o com carinho em suas vestes chineses agora que não trajava mais sua armadura – É um presente querido para mim
- Eu sei que você está com um pouco de inveja do nível da nossa atuação senhor Shura, então eu vou explicar, já que esse plano foi ideia minha – Colocou com suma arrogância fazendo tanto Shura quanto Albafica revirarem os olhos – Utilizamos as ilusões de Shijima para dar a nosso amigo um toque bestial, tanto em cosmo como ligeiramente em aparência.
- Eu acredito que as ilusões de Shijima já ultrapassaram o nível das de seu mestre, o que quer dizer muito, já que ele só tem dez anos – Emendou Shoryu – Eu parecia tão assustador assim?
- Bastante – A resposta partiu de Egas, que não pôde deixar de notar como o mais velho não parecia muito feliz com essa constatação – Mas essa era a intenção, não?
- Sim, eu só não gosto da sensação que isso trás – Deu de ombros.
- Você não parecia exatamente incomodado enquanto estava nos espancando – Espetou Albafica cruzando os braços.
- Larga de ser rancoroso. – Provocou Leão – Você apanhou por uma boa causa.
- Você vai ser a próxima isca, Julian.
- Não tem como um Leão ser uma isca, isso é muito mais trabalho para um Peixe.
O pisciano estava a ponto de rebater, mas controlou-se ao ouvir sons vindo do túnel.
- Vocês demoraram muito! – Era a voz ainda distante de Piada Mortal, que liderava o caminho com uma chama azulada em mãos, andava de pé pelos tuneis que seguiam de forma horizontal por baixo da prisão e se perdiam de vista. Atrás de si pareciam ter mais duas pessoas – Athena entrou na Fonte e começou a perguntar como estávamos, não foi nem um pouco fácil escapulir dela.
Ao chegar no alçapão aberto, Piada saltou para fora, trajava a armadura de Câncer que havia se ajustado ao seu tamanho, atrás de si vinha Shijima, também com sua armadura, e fechando o grupo, Soleil.
Egas estendeu a mão para ajudar o espectro a sair do túnel que possuía pelo menos dois metros de profundidade, já que sendo um civil não teria a habilidade necessária para subir sozinho. Estava a ponto de recusar quando sentiu os ramos de Albafica prendendo em sua cintura e puxando-o para cima, deixando-o sumamente envergonhado, pois graças aos treinamentos secretos de Milo era sim capaz de fazer esse salto.
Com o trio reunido, Piada se agachou, desfazendo a chama em suas mãos, e buscando o caranguejo que Altar havia usado antes, e realizando o mesmo procedimento para que a passagem fosse fechada.
- Me lembra de novo, como isso – O prateado apontou para a passagem que se fechava – Existe, e como você sabe que existe.
- Beeem... – O menino sorriu, apesar de seus olhos ainda vermelhos e inchados - Carope de Câncer construiu esses túneis na quinta geração, antes mesmo que o santuário tivesse sido finalizado, pois na época essa prisão já existia. O que diz muito sobre nós, se quer a minha opinião.
- E por que razão eu não fico surpreso por um cavaleiro de câncer do passado ter criado tuneis que saem da prisão do santuário? – Shura pontuou cruzando os braços.
- O que você está tentando insinuar? – Questionou levando a mão ao peito, parecendo ofendidíssimo – Saiba que Carope era um homem muito nobre, um bom soldado que nunca fez nada de errado, mas sem dúvida era visionário! Originalmente existiam muitos desses tuneis, mais a maioria foi soterrado com o passar dos anos, seja por consequência das lutas da superfície, seja porque representavam um perigo, como o que passava por baixo das doze casas. Esse em questão – Disse dando algumas pisadas no chão de pedra agora fechado – Levava até o bosque que havia fora dos terrenos do santuário.
-...Permitindo uma fuga perfeita – Resmungou Capricórnio.
-...Mas quando a Fonte de Athena foi criada, Amir Almawt de Câncer junto com Roberto II de Áries da décima geração resolveram, em segredo, leva-los para as mediações da fonte milagrosa. Em suma era um túnel muito usado para levar medicamentos e curar os prisioneiros de forma clandestina. -Recitou com orgulho – Eeeembora, muito provavelmente Almawt também queria uma rota de fuga fácil, já que El Cid de Capricórnio, o primeiro El Cid, acabou se tornando Grande Mestre, e ambos meio que eram adversários de guerra fora dos muros do santuário, e como o bosque a essa altura já era muito movimentado, uma segunda saída da prisão era um excelente plano B caso alguma coisa desse “errado”. Mas sério, ninguém mais acha engraçado ter um cavaleiro de Áries que se chamava “Roberto”? E ainda mais segundo! Me pergunto quem foi o primeiro.
- Como eu disse, não me surpreende que a ideia desse túnel tenha partido de um canceriano – Reforçou novamente Shura.
- Eu apenas não entendo como eu não sabia disso – Comentou Egas com o cenho franzido – Eu li tudo que pude sobre a casa de Câncer antes que abrisse mão da armadura dourada.
- Certos conhecimentos não se passam através dos livros – Disse com um sorriso travesso o menor com a intenção de brincar, mas isso involuntariamente fez o prateado lembrar-se da conversa que havia tido com Máscara da Morte no Yomotsu, e as próprias falas de Athena. Uma tristeza logo o invadiu por isso, fazendo-o não insistir mais no assunto.
- Se há algo que eu aprendi nesses vinte anos, é que as casas zodiacais guardam muitos segredos – Agregou Shiryu com conhecimento de causa – Muitos deles nos influenciaram diretamente essa noite. Isso me lembra algo muito importante, Shoryu – Disse voltando-se ao mencionado – No tempo que você esteve na câmara dos antigos, você viu uma pequena caixa decorada sobre o altar de Gêmeos?
- Sim, como um baú de joia – Confirmou – O que tem?
- Aparentemente aquela é a Caixa de Pandora, me refiro a caixa original.
Isso fez um silêncio profundo atingir o grupo.
- Eu sei que isso pode soar idiota levando-se em conta que tem um Hecatônquiros vindo para cá, junto a vários outros deuses, mas eu ainda achava que uma caixa que continha todas as desgraças do mundo era, não sei, metafórico? – Opinou Piada. – E sim, eu sei o que é metafórico. – Disse antes que Albafica pudesse questioná-lo.
- Não era isso eu ia dizer – Rebateu com o rosto franzido – Eu ia questionar como algo tão perigoso está conosco no santuário, tudo bem que a câmara dos antigos só pode ser acessada com o báculo de Athena, mas isso não é exatamente impossível de se obter – Disse apontando para Shoryu.
- A caixa é inútil sem a chave, e aparentemente a mesma se encontra no submundo. Por isso ela ficou sob os cuidados da casa de Gêmeos por milênios sem ser aberta, o próprio Hermes confiou ela a Póllux, o primeiro cavaleiro de seu signo – Explicou Shiryu – Mas com ou sem chave, é melhor tomarmos posse dela, Athena planeja usá-la para aprisionar o imperador do submundo, e com essa história do Tártaro estar rachando – Voltou-se a Shura, pois o mesmo havia contado o que aconteceu depois de sua prisão no gelo – Só posso imaginar o quão catastrófico isso seria.
Então em breve palavras explicou a confissão de Saga sobre a Caixa, na presença de “Sorente” e o interesse que Athena demonstrou em usá-la.
- Então é melhor roubarmos ela de nós mesmos antes que Athena a reivindique, ou pior, Chronos. – Compreendeu Julian – Ao menos temos a vantagem de possuir o báculo conosco.
- Ainda quero entender como vocês puderam falsificar o báculo de Athena assim, e porque – Interveio Shura com o cenho franzido.
- Mais tarde Shura, mas em suma, eu apenas quis garantir que Nike estaria do nosso lado, e caso uma luta fosse desatada no castelo de Heinsteim contra Shun, isso não acabasse sendo a ruina dele – Simplificou o ex Grande Mestre.
- Mesmo que isso significasse que poderia ser o seu fim? Ir para a frente do inimigo sem a deusa da vitória poderia ter significado o fim para nós – Ralhou Capricórnio – Você tem ideia que estava jogando Xadrez usando diretamente o Rei, não é? Sem qualquer pião para protegê-lo, arriscando tudo em jogadas que podiam fazê-lo perder tudo.
- Eu sei, por isso usei tudo que tinha contra Shun, sem depender de um campo de batalha – Frente a isso tirou de suas vestes a adaga dourada do Grande Mestre, o dourado reluzindo sua face, principalmente suas cegas íris brancas, através da fraca luz das arandelas. – Empurrei meu inimigo contra mim mesmo, e o capturei. Cerquei todas as suas possibilidades de fuga, coloquei meu próprio irmão contra a parede antes mesmo que ele percebesse o que eu estava fazendo, e então eu pude ter certeza sobre suas intenções. – Voltou a erguer o rosto, mesmo sem enxergar sentia todos os olhos sobre si – Sem a deusa da vitória nos abençoando e influenciando nossos destinos, eu queria ter certeza que o submundo era ou não nosso aliado agora que Shun o “herdou”, e a resposta que eu obtive foi positiva.
Frente a isso seu conselheiro soltou um longo e cansado suspiro.
- Sinceramente Shiryu, as vezes você me assusta...
- Obrigado, Shura.
- Não foi um elogio. – Grunhiu, para o que Libra apenas sorriu.
- Mas eu creio que há mais alguém aqui que queira advogar sobre isso, e eu não quero desmerecer todo o esforço dele para estar aqui, então creio que é importante para todos vocês ouvir o que ele tem a dizer – O chinês voltou a palavra, dirigindo-se a Soleil que chorava baixinho com as palavras contrárias – Se ele acreditar que está pronto.
- E-eu – A voz trêmula de Lune tomou a atenção de todos, principalmente de seus amigos – Já chorei por essa noite o suficiente para uma vida inteira, sinceramente já estou cansado – Dito isso levou a manga de suas roupas sociais aos seus olhos e os limpou.
- Ninguém aqui está em posição de julgar esse tipo de coisa hoje – Pontuou Julian em um tom mais brando do que aquele que costumava usar. – Creio que estou correto em afirmar que todos que estão aqui perderam alguém muito importante hoje.
Um silêncio recheado de luto os envolveu, em respeito àqueles que haviam partido essa noite.
- Sim – Completou Lune depois de aproximadamente um minuto, embora parecesse muito mais. – Por isso eu voltei ao santuário, mesmo contra a vontade de Athena, eu já sabia da morte do meu tio Milo, e temia que tudo pudesse escalar ainda mais e eu pudesse perder mais alguém – Apertou os punhos com força, forçando a si mesmo a não chorar novamente, por mais que a despedida de seu pai poucos instantes atrás fervesse em seu cérebro e coração.
- Por que Athena não queria que você voltasse? – Questionou Albafica também sentindo seu estômago se revirar com a lembrança de Máscara da Morte, mas manteve-se firme, não se permitiria quebrar novamente, não quando todos estavam se esforçando para se manter de pé.
Devido a morte do canceriano, aqueles que estiveram ao seu lado até o último momento não puderam estar completamente a par da conversa entre Camus e Athena, portanto, não testemunharam o desgosto da deusa para com o presença do jovem norueguês, dos seus amigos aqui presentes apenas Suite estava ciente de sua identidade como espectro, pois também estava no castelo de Heinsteim onde a revelação se fez presente, era impossível ela não saber, Athena deveria ter mencionado com desprezo, ou mesmo o Grande Mestre, para que a jovem aquariano entendesse todos os desenlaces da situação em que estavam.
Por isso, quase que mecanicamente, ergueu a face e buscou os olhos de sua melhor amiga, quase como uma criança que busca a provação da mãe depois de apresentar um inocente desenho.
Quando ela lhe sorriu então, sentiu-se tão leve quanto quando descobriu que Kiki estava vivo, apenas com aquele sorriso suave sua amigo conseguia transmitir-lhe toda a confiança que ainda precisava.
- Eu não sabia até meados dessa semana – Começou a dizer, mantendo a cabeça erguida, soando mais como o arrogante braço direito de Minos de Griffon do que o mensageiro do santuário que viveu se achando inferior por não poder usufruir do uso de cosmo. – Mas eu descobri a razão pela qual eu sempre fui assim, defeituoso.
- Ora vamos, você não é defeituoso! – Impacientou-se Shoryu – Quantas vezes eu já te disse isso?!
- E você sabe o que eu sempre te disse, todo o ser vivo nasce como cosmo, não possuir isso não é algo natural – Rebateu.
- Porra, e daí? Isso te faz diferente, certo, mas não “defeituoso”, no máximo especial! – Findou com firmeza.
- Shoryu, Linguagem, por favor.
- Ah, foi mal pai. – Riu baixinho.
- Eu sei que impliquei muito contigo por causa disso, mas você sabe que Shoryu tem razão – Pontuou Julian cruzando os braços – Apesar dos pesares, você sempre se manteve como um de nós, mesmo que não pudéssemos lutar juntos, eu ainda podia te destruir no jogo de cartas – Finalizou com sua altanaria característica.
Sorriu com sinceridade frente a palavra de seus amigos, tão reconfortantes em um dia tão difícil para todos.
- Eu não tenho muito mais o que acrescentar, você já sabe o que eu penso a respeito disso – Albafica foi o último a se manifestar. – Crescemos juntos afinal.
- Então desembucha de uma vez porque você está sendo muito dramático já e eu estou perdendo a paciência – Avisou Leão.
- Muito bem então – Respirou fundo – A verdade é que meu verdadeiro nome é Lune de Balron, por milênios eu fui o escriba do submundo, braço direito do grande juiz Minos de Griffon, além juiz substituto em sua ausência, e guardião do Serapeu ao seu lado.
Novamente houve silêncio, mas dessa vez decorrente de sua confissão.
Piada e Egas não pareciam surpresos, pudera, para cancerianos essa revelação não deveria ser realmente chocante, outro que não se manifestou foi Shijima, sua expressão se mantinha mesma desde que havia chego ao lado do pequeno italiano, quieto e apenas escutando tudo, como costumava fazer.
Albafica tinha as sobrancelhas erguidas e a boca ligeiramente aberta, os lábios de Julian formavam uma perfeita linha reta, mas quem quebrou o silêncio foi Shoryu.
- Olha, isso faz sentido agora que paro para pensar, você cheira igual meu tio-não-morto-Tikki, na verdade, Suikyo também tem o mesmo cheiro. – Disse como se falasse do tempo. – Os cavaleiros de câncer têm um cheiro diferente, mais suave, mas é parecido.
- Cheiro?! – Exaltou-se, sem poder evitar de cheirar suas roupas. – Que cheiro?
- O cheiro da morte, mas não se preocupe, não é desagradável - E sorriu, sorriso que pareceu ligeiramente perturbador devido as suas palavras.
- É só isso? – Julian por sua vez parecia desapontado – Eu pensei que você diria que era algum deus antigo ou a alma de alguma criatura terrível.
-....Não, eu sempre fui mortal, desde minha primeira vida, e porque essa cara de desapontamento?!
- Bem – O leonino deu de ombros – Eu esperava desafiar um deus para uma luta um contra um, desafiar o escriba do submundo não tem a mesma graça.
Em resposta apenas olhou exasperado para o mais velho que suspirava com derrota, negando com a cabeça, Shoryu aproximando-se para dar uns tapinhas no ombro dele e dedicando-lhe palavras de animo como “Quem sabe da próxima”, talvez por isso, por sua expressão de descrença, ou por causa dos dois, Suite riu baixinho.
- Isso é...Uma surpresa – Albafica foi o último a se manifestar, e com dor Soleil percebeu que estava incomodado, enquanto massageava seu próprio braço direito – Isso significa que em reencarnações passadas éramos inimigos, significa que você já matou cavaleiros no passado – O peso que o pisciano colocou na palavra “matou” caiu como uma pedra no estômago do capricorniano.
- Sim...- Foi tudo que pôde dizer em resposta.
- Soleil, o que define você, o que você viveu nesses últimos vinte anos, ou sua identidade de espectro? – Shoryu perguntou, em tom sério dessa vez.
- Os dois, eu realmente não acho que um anule o outro – Confessou, sua coragem morrendo, por isso desviou o olhar para o chão. – Eu pretendo, na verdade, retornar ao submundo, sei da importância do papel que tenho lá e que ninguém é capaz de me substituir.
- Olha só quem está sendo presunçoso agora – Ironizou Julian com um sorriso no rosto.
- Desculpa, eu apenas estou sendo sincero, não são muitos que passam nos padrões do senhor Minos – Defendeu-se. – Em milênios só eu e Byaku passamos!
-Seu idiota, nunca peça desculpas por ser a pessoa mais importante da sala – Rebateu, dando um pequeno soco na cabeça do mais jovem – Erga já essa cabeça, isso não muda nada entre nós, então pare de agir como um cachorro atropelado. Eu não dou a mínima para o que você foi, ou deixou de ser, você é nosso amigo, o idiota das listas, nem se você fosse o próprio Ares reencarnado apagaria o que passamos juntos – Então sua expressão de desapontamento retornou, e Shoryu novamente o consolou com os seus “Quem sabe na próxima”.
- Para de fazer essa cara de desanimo! Não é porque eu sou o escriba do submundo que eu não posso chutar o seu traseiro, cavaleiro de Leão! – Desafiou, franzindo a expressão, e sua provocação teve o resultado que queria.
- Agora sim essa ladainha está valendo a pena! – Exclamou, seus olhos brilhando de antecipação.
- Eles têm razão, sabe – Suite enfim tomou a palavra – Lune de Balron faz parte de ti, mas Soleil Sintès também. Não faz sentido te acusarmos de matar cavaleiros há milênios, se nós também matávamos espectros, estávamos em guerra afinal, e é isso que as guerras fazem.
- Sim – Albafica por fim sorriu, embora ainda houvesse preocupação em seu rosto – Eu não posso te julgar apenas pelo que você foi na reencarnação passada, não seria justo, sinto muito – E sem poder evitar lançou um olhar para Piada Mortal, que o retribuiu ligeiramente confuso.
- Sinceramente, é bom ver velhos inimigos se tornando nossos aliados, devemos abraçar isso ao invés de colocar empecilhos e apontar as feridas – Acrescentou Egas com uma expressão que o fazia parecer muito mais velho que que realmente era. – Além do mais, como canceriano seria hipocrisia da minha parte de julgar, além de irônico.
- É isso aí! – Confirmou Piada, sentindo-se no fundo aliviado, pelo menos seus anos de serviço ao submundo pela alma de Irekuha não seriam solitários. – Falou tudo Egas!
- Eu queria que Izo também estivesse aqui – Confessou sentindo falta de seu companheiro de signo – Não conseguimos trazê-lo conosco, eu queria saber o que ele acha.
- “EU NÃO ACREDITO QUE VOCÊ É UM ESPECTRO!” Então ele ia ficar bravo por nunca ter percebido, mesmo que fosse impossível, ia se culpar, te fazer várias perguntas, mas no final vai aceitar porque ele tem coração de manteiga -Interpretou Shoryu com carinho – Não se preocupe, vamos fazê-lo saber assim que possível.
E assim Lune respirou aliviado, um sorriso nascendo em seus lábios.
- Sinceramente, nada mais me surpreende nessa madrugada. – Shura deu de ombros, com cansaço, negando com a cabeça. – Ao menos assim você pode se reencontrar com seu pai do outro lado.
Imediatamente o sorriso de Soleil morreu.
- ...Eu não tenho certeza se ele ainda é meu pai, mas...- Engoliu em seco – A alma dele estava um desastre, então...
- Você só vai saber quando vê-lo – Shiryu voltou a palavra – E suponho que sua volta ao submundo tenha a ver com o álibi que vocês três usaram para conseguir sair da Fonte.
- Sim – Piada respondeu cruzando os braços atrás da cabeça – Ela perguntou se ele já se sentia melhor, e se sim, que Egas o levaria de volta ao reino dos mortos quando fosse buscar Suikyo, então eu me ofereci e arrastei Shijima comigo, ela não questionou.
- Apesar de tudo, ela foi gentil comigo, sei que não estou no meu lugar de fala mais, porém, a Athena que contavam nas histórias ainda existe nela – Disse com suavidade – Chronos pode ter apenas feito a cabeça dela.
- Sim, eu já pensei nessa possibilidade, Hyoga e Saori pareciam bem próximos nesses vinte anos, embora ele não a visitasse muito. Determinada vez June até me perguntou se ele poderia ter algum interesse romântico na deusa.
- O QUÊ?! – Shura sobressaltou-se com completa afronta – Desejar uma deusa virgem é o pior pecado que um cavaleiro, não um homem, pode cometer!
- Além de ser nojento, seria como desejar transar com uma batata. – Colocou com repulsa.
-...Shoryu.
- Desculpa, pai.
Então palmas de Julian chamaram a atenção de todos.
- Seja como for, essa conversa já se estendeu demais – Então ergueu a mão com o punho fechado – Para derrotar Chronos e salvar os nossos de seu domínio, somos traidores, mas acima de tudo, somos aliados e amigos. Se Athena se recusar a enxergar isso, foda-se ela.
- Julian! – Albafica repreendeu antes que Shiryu pudesse dizer algo, Shura gemeu baixinho, levando a mão ao rosto exasperado.
- Tirou todo o clima do discurso – Brincou Suite.
- Você viu isso em um anime, não é? – Acusou Soleil.
- Cala a boca e ergue o braço! Eu não tenho um canetão para desenhar um rosto nas nossas mãos, mas vai servir, serve para nos dar motivação e força – Disse ignorando os comentários do norueguês sobre para de enfiar animes em momentos sérios – Vamos salvar Athena dela mesmo, se for necessário, melhor assim, senhor Shura?
- Melhor. – Disse simplesmente. – Não muito, porém.
- Velho exigente.
- O que você-
- Eu gostei da ideia, quero participar dessa “traição de vocês”, pode soar meio clichê, uma vez que já fui o Grande Mestre, mas não ficaria de fora disso, por nada - E ergueu seu próprio braço com o punho fechado, de frente para Shoryu.
- Eu topei assim que ele me contou o plano – Shoryu fez o mesmo.
- Alguém precisa ficar de olho em vocês – Albafica se uniu.
- Eu farei tudo que puder para ajudar enquanto estou no submundo – E Soleil. – Encontrarei Suikyo e o informarei de como anda tudo.
- Como eu já disse antes, contem comigo para tudo que precisarem – Somou-se Egas.
- Eu tenho uma reclamação a fazer, falta representatividade nesse grupo – Ironizou Suite, juntando-se. – Hayata vai querer matar cada um de vocês por não tê-la chamado.
- EI! Ajuda aqui! Nós nos somos tão altos! – Resmungou Piada indicando a si mesmo e Shijima, que sorria discretamente, com isso Albafica ergueu o canceriano, com um braço, mantendo o outro estendido, Egas fez o mesmo por Shijima.
Shura respirou longamente, sentindo-se um completo idiota, mas se juntou a todos.
- Vamos fazer isso juntos! – Exclamou Leão, seus olhos brilhando de antecipação.
Assim, Shoryu e Suite se adiantaram e partiram pelo santuário a procura de Chronos e da Caixa de Pandora, Shijima usando de suas ilusões assumiu a figura do cavaleiro de Libra e se deixou prender junto com Shiryu, Shura e Julian ficaram como guardas.
Com o Yomotsu aberto, Lune se despediu de seus amigos com apenas um “até logo”, até desaparecer na bruma escura.
- Vamos voltar para a Fonte agora – Avisou Albafica com Egas ao seu lado – Informar Athena que os prisioneiros estão sob custódia e que Soleil retornou ao reino dos mortos.
- Por que eu tenho que ficar como guarda?! Eu queria caçar Chronos! – Resmungou Leão.
- Você perdeu do par ou ímpar com a Suite, não seja um mal perdedor – Ironizou Altar, nessa madrugada tão tumultuada sentindo-se próximo o suficiente de seu superior como para provoca-lo.
- Maldita Pégaso com sorte...
- Quando chegar na Fonte Egas, devolva a alma de Heitor ao seu corpo – Orientou Shiryu – Se ele tem o corpo indestrutível que vocês mencionaram, não podemos arriscar que Chronos tome pose do corpo dele.
- E se ele tentar nos atacar de novo? – Questionou preocupado.
- Pelo que você disse, ele e Geki parecem ter se entendido razoavelmente bem, e se os olimpianos estão a caminho, sendo que Apolo, Ares e Arthemis eram seus aliados na guerra de Troia, duvido que ele prefira ficar do lado de Chronos e Aphrodite – Comentou, pois Aldebaran havia passado a Muh e aos demais a suspeita de Kasa sobre a aliada do deus do tempo na ocasião que os salvou, além de ser uma origem lógica para as plantas que enfrentaram – Ele também pode ser um inigualável aliado.
- Certo, Grande Mestre – Shiryu estava a ponto de negar isso, quando Altar reforçou – O senhor sempre será.
- E eu vou atrás das criptas do santuário e abrir todas que puder! – Animou-se Piada.
- Tenha cuidado, você mesmo disse que a maioria foi soterrada. – Alertou Albafica.
Egas, por sua vez, ajoelhou-se na altura do menor.
- Tem certeza que quer fazer isso? – Questionou em tom suave. - ...É tudo muito recente. – Disse claramente em reverencia a morte de Máscara.
Vendo essa cena o coração de Peixes falhou uma batida, suas memórias antigas, despertadas desde que foi vitima do poder da deusa do amor, o fazendo ver na sua frente o velho Sage preocupado com o inconsequente Manigold.
Tentou afastar esses pensamentos de sua cabeça, não era justo pensar assim, Soleil tinha razão, a vida que viveram antes não definia sozinha quem eram agora.
- Todos estão se esforçando Egas, meu tio se esforçou até o final – Disse em tom que tentava esconder suas emoções – Agora eu sou o cavaleiro de Câncer, não posso simplesmente ficar parado.
Frente a isso, Altar simplesmente se aproximou e o abraçou.
- Estou sendo muito abraçado hoje...- Comentou o menor, tentando conter as lágrimas.
- Acostume-se – Disse o maior. – O que você tem de terrível, você tem de adorável.
- O QUÊ?! – Colocou forçadamente afrontado - EU NUNCA FUI TÃO OFENDIDO!
E trazendo sorrisos de volta ao rosto de todos, Piada reabriu a cripta e sumiu em seu interior, Egas e Albafica partindo em seguida.
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Inglaterra, antes da morte de Camus e Máscara da Morte e seus desfechos.
Shaka de Virgem, Mei o Ómma, Daidalos o general do submundo e Radamanthys de Griffon estavam lado a lado frente a criatura horrenda e deformada que tentava formar novamente sua forma completa. O hecatônquiros, um titã de cem braços e pernas, e cinquenta cabeças.
A figura à sua frente ainda não tinha essas proporções, porém facilmente já chegava aos seus dois metros e muito em breve romperia o teto do restaurante vazio.
Pandora observava a surreal cena escondida atrás de um grande pilar.
- Se ele se comporta como a Hidra, não adianta o fatiarmos em pedaços, temos que atacar com tudo – Seguiu o juiz.
- Parece um bom plano para mim – Animou-se Mei, seus longos cabelos tingidos de prateado voando com os movimentos do monstro. – Somos em quatro, melhor formarmos uma cruz ao redor dele.
Nenhum dos três questionou essa lógica, Santuário, Submundo ou Olimpo, pertencer a diferentes exércitos era simplesmente irrelevante frente ao maior inimigo que já enfrentam, o ego e rivalidade passava para segundo plano, pois todos sentiam, mesmo que nem todos admitiriam, que era completamente inútil tentar enfrentar esse monstro individualmente.
Dessa forma, cada um começou a correr para um ponto cardial.
- NÃO DEIXEM ELE ACERTAR VOCÊS, OU SERÁ MORTE NA CERTA! – Berrou Daidalos indo para oeste, uma gigantesca mão que tinha quase o seu tamanho tentou agarrá-lo em seu trajeto, para pará-la o taurino tomou um dos pilares do restaurante que haviam caído e o usou como arma, conseguindo assim desmunhecar sua atacante e assim chegando no ponto desejado.
- Zeus concedeu o domínio completo dos céus para esses três irmãos – Mei dizia enquanto ia para o norte - Durante uma parte do ano, eram eles que comandavam tempestades e raios, tudo isso para ter certeza que– Teve que saltar sobre um braço que serpenteou em seu caminho. Dedicou-lhe um potente chute para afastá-lo, e logo teve que abaixar-se para evitar uma perna que tentou dar-lhe uma rasteira – Jamais os deixaria insatisfeitos, para que assim - Uma cabeça esticou o pescoço grotescamente tal qual uma serpente e tentou abocanhá-lo, contudo, com suas linhas de Oricalco pôde manter a boca aberta e chegar na posição que queria. – Tivesse a certeza que nunca precisaria enfrentá-los em uma batalha. – Outra perna surgiu do amalgama, como uma larva que perfura a pele de um cadáver, crescendo de forma torcida, formando quase uma lança com o objetivo de perfurá-lo, novamente seus fios suspenderam seu adversário em plano ar, puxando-o em diferentes direções sem rasgá-lo, similar a um condenado torturado por estiramento. – Então eu acho que é apropriado dizer que começamos com o pé esquerdo! – Disse indicando justamente o membro que havia preso.
- Eu não posso acreditar que você está fazendo trocadilhos em um momento como esse! – Exclamou Radamanthys descrente, indo para o leste. Duas mãos de pelo menos um metro cada uma, se fincaram no chão em seu caminho e ergueram o piso, a terra e parte dos encanamentos, forçando o juiz a abrir as asas de sua sobrepeliz e planar para longe – Eu conheço essas abominações muito bem, foram enviados para nós do submundo cuidarmos – A placa do chão foi lançada em sua direção, forçando-o a dar um rodopio para conseguir desvia-la.- Enquanto só tomavam o lugar de Zeus por pequenas temporadas, eles eram “guardas do tártaro” pelo resto do ano, só nos davam dor de cabeça! – Água das tubulações joraram para diferentes direções, banhando o espectro que não se importou minimamente, pousando no extremo oposto de Daidalos – O dia que Hera assumiu o poder, e junto a Ares e seus guerreiros fundiram os três irmãos e nos autorizou a prendê-los no Tártaro ao invés de deixá-los livres circulando pela prisão, foi um dos dias mais satisfatórios da minha existência.
Shaka não dizia nada enquanto se adiantava para o sul, era aquele que estava mais próximo da posição desejada, seus pensamentos, porém, estavam distantes, pôde sentir, ainda no castelo de Heinsteim, quando miasma tomou todo o santuário. Tentou se comunicar com Máscara para confirmar suas suspeitas, mas não pôde. Algo o impedia, e tinha certeza que era o mesmíssimo miasma.
Mas sem duvida não era um comum, por quase vinte anos lidou com o submundo e a captura de almas podres, puro miasma não seria capaz de pará-lo, muito menos o canceriano, sem dúvida Chronos havia feito algo para intensificar seu efeito.
Tampouco conseguia se comunicar com seu filho, e Shijima era provavelmente o melhor telepata que conhecia. Porém, não teve tempo de pensar a respeito disso, pois quando sentiu o Hecatônquiros surgindo novamente, dessa vez na Inglaterra, já sabia o que tinha que fazer. Por isso foi até o quadro que levava ao submundo e informou o general da situação.
Desde então estava completamente no escuro sobre o que acontecia no santuário, focado em sua missão no restaurante junto a Daidalos, encontrar e condenar o Hecatônquiros sempre foi seu objetivo desde que Shun percatou-se de sua fuga. Essa era uma criatura perigosa demais para ser usada por qualquer um, mesmo para o imperador dos deuses tê-la ao seu lado, foi necessário um juramento e sacrifício em um grande altar junto aos seus irmãos, altar esse que se tornou uma constelação com o mesmo nome para celebrar esse momento.
Deter os titãs fundidos em um era muito mais importante do que a vida de Athena, de seus cavaleiros ou mesmo de seu filho, porque detê-lo representava um bem maior.
Sem perceber mordeu uma parte do lábio inferior, parando em seu ponto cardeal e começando a carregar seu Ohm, duas pernas tentaram fincá-lo em uma chave, mas sem sequer precisar se mover seu cosmo foi suficiente para obliterá-las.
Dizia todos esses fatos como um mantra em sua cabeça, e ainda assim sentia algo, um aperto no peito que o desconcentrava, um nó na garganta que o impacientava, um revirar no estômago que o atormentava.
Queria saber o que estava acontecendo no santuário, queria saber o que havia acontecido com Shijima, Máscara. Mesmo Piada e Afrodite passaram brevemente por sua mente, e por mais que tentasse levar essas preocupação ao profundo de sua consciência, isso o estava consumindo e impacientando ao ponto de que acabou, mais cedo naquela noite, repetindo a refeição duas vezes enquanto esperavam algum sinal, algum maldito sinal, de que o ataque realmente seria ali.
Queria ir ao santuário.
Desde que havia deixado a infância para trás, essa era a primeira vez que se sentia assim, impaciente, inquieto, com dúvidas cercando e carcomendo suas resoluções. Por uma vez não queria fazer o bem maior, queria apenas ir ao santuário.
- Shaka! O que você está fazendo?! Não destrua os membros assim, se não eles se multiplicam! – Orientou Daidalos do seu lado esquerdo, trazendo-o abruptamente para a realidade, imediatamente parando o que estava fazendo. Realizar seu Ohm sem a devida meditação e concentração era um erro tão estupidamente grosseiro que sequer acreditava que tinha acabado de realizar.
Sem embargo, já era tarde, como fungos emergindo da terra, os membros que havia pulverizado ressurgiram em múltipla quantidade.
Engoliu em seco, precisava se concentrar, isso estava ficando ridículo. Shijima era um menino forte, suas ilusões aos meros dez anos já haviam superado as suas, e possivelmente até as de Shun, além do mais, estava com sua armadura.
Quanto a Máscara da Morte, um miasma, mesmo que modificado, jamais iria detê-lo, havia conhecido bem, além do caráter duvido, a força de seu companheiro, não era tanto quanto a sua, mas sem dúvida não era algo a ser levado sem a devida atenção.
- Vamos atacar todos juntos! – Gritou Mei no extremo oposto ao seu, desviando de uma mão que tentava esmagá-lo contra o chão – O plano é atordoá-lo e assim abrir a passagem para o submundo e prendê-lo lá.
- Quem decidiu que você dava as ordens aqui?! – Rebateu Radamanthys, torcendo um braço do Hecatônquiros com suas mãos nuas, quebrando assim seus ossos no processo com CRACKS que enchiam o salão e faziam o monstro se debater.
- Radamanthys! Não temos tempo para isso! – Exclamou Daidalos quebrando um pescoço que tentava se enrolar ao seu redor – No submundo teremos mais terreno para atuar, além de reforços.
Claramente o juiz não estava feliz com a ideia de soltar a criatura em um ponto aleatório do submundo, uma vez que não podiam abrir as portas do Tártaro sozinhos, e vê-lo destruir tudo que encontrava ao seu redor.
Deu um olhar lateral a Pandora que estava escondida quase na entrada do restaurante, assistindo a tudo sem desviar o olhar, sabia que Mei e Daidalos tinham razão, seria muito pior deixá-lo na Terra, a criatura causaria muito mais estragos e ainda poderia tentar fugir de alguma forma.
- AGORA! – Berrou repentinamente Mei. – Caerostris!* - Linhas entrelaçadas a outras saíram da ponta de seus dedos, formando uma imensa teia de aranha que cobriu boa parte da criatura.
- Rendição Divina! – Convencendo a si mesmo das habilidades daqueles que deixou para trás no Santuário, Shaka enfim pôde se focar no que fazia, voltando a sua neutralidade característica, criando uma intensa emanação de energia junto a uma luz quase cegante que acertou seu adversário em cheio.
- DESTRUIÇÃO MÁXIMA – Por sua vez, Radamanthys liberou sua própria energia em forma de vários ataques consecutivos, semelhantes a dezenas e dezenas de esferas feitas de fogo.
- PRISÃO TITÂNICA*! – Daidalos deu dois potentes socos no chão, criando uma onda de impacto devastadora que começar a erguer o piso a partir de onde estava e até mesmo desintegrar partes do teto.
Os quatro golpes se chocaram tendo o Hecatônquiros como centro, criando uma pressão que começou a arrastar todos para trás. O inglês foi o mais atingido, uma vez que não tinha mais a energia extra de sua sobrepeliz, sendo lançado com tudo contra a parede do restaurante às suas costas, sangue escorrendo de sua boca pelo impacto.
- PETER! – Scath gritou assustada, sentindo um enorme peso no peito, como um horrível Deja vuu ao vê-lo assim.
- NÃO SE APROXIME! – Gritou onde estava, incapaz de se mexer, pois a explosão em cadeia ainda deixava seus efeitos. Seu único consolo era ver que o cavaleiro de virgem havia colocado uma proteção nela usando seu Khan, e ao que parece, Mei havia feito algo muito similar com seus fios.
Para não ser arrastado, o Ómma usou seus fios para se prender em partes mais sólidas do prédio que ainda não haviam ido abaixo, Daidalos agarrou-se com força no chão de terra uma vez que o piso já havia sido destruído, por fim, Shaka havia usado sua proteção em si mesmo.
- ABRAM A ENTRADA DO SUBMUNDO, AGORA! – Mei gritou para se fazer ouvir – A ILUSÃO SOBRE O PRÉDIO NÃO VAI RESISTIR POR MUITO TEMPO!
Como Radamanthys ainda não conseguia se mexer, foi Daidalos que tirou as sementes de romã de suas roupas, rasgando com os dentes uma parte de sua mão para ensanguentá-los e assim enterrá-los no chão, saltando logo e seguida para não ser pego pela rachadura que se abriria.
A igual que um devastador terremoto, todo o prédio começou a tremer, o Hecatônquiros ainda não era completamente visível devido a fumaça, destroços, águas jorrando e luzes reminiscentes dos golpes a ele dirigidos, mas não havia sido completamente fulminado, sua energia monstruosa ainda era claramente sentida.
Por isso, quando o chão começou a rachar e dar espaço a uma grande cratera, a criatura começou a ser sugada para dentro.
Isso até um grito simplesmente ensurdecedor atingiu a todos, dissipando completamente as ondas de impacto e tudo que obstruía a visão do que estavam enfrentando.
O titã havia perdido pelo menos três quartos de seu corpo, haviam evidentes buracos onde Radamathys havia acertado, partes faltantes do lado de Shaka, e órgãos quebrados e retorcidos na direção de Daidalos. Contudo, ainda assim o ser estava ali, preso as teias de Mei, que ainda não haviam se desfeito, enquanto começava a se regenerar e multiplicar numa velocidade simplesmente absurda.
E era exatamente por isso que não se deixava tragar pela entrada do submundo, que era cada vez maior e tomava mais do prédio, forçando Shaka a se afastar. Pelo menos seis pares de pernas surgiram para substituir as que haviam sido destruídas, dando finalmente o equilíbrio necessário para que pudesse se erguer e deixar de ser apenas uma amalgama sem forma definida, e com as doze novas mãos que surgiam, segurou os dois lados da rachadura, impedindo-o de cair na armadilha.
- EU NÃO VOU AGUENTAR POR MUITO TEMPO! – Exclamou o servo do Olimpo, pois, por mais que suas linhas não estavam sendo cortadas, com mais e mais membros surgindo a cada segundo, começava a ter mais partes do monstro soltas do que presas, o que dificultava cada vez mais mantê-lo amordaçado.
- Invocação dos Espíritos Malignos! – Ao comando de Shaka, várias ilusões em formato de espíritos se fizeram presentes a partir de suas mãos, enrolando-se em volta de seu adversário e começando a puxá-lo para baixo.
Cuspindo um pouco de sangue que ainda restava em sua boca, e provavelmente um dente, Radamanthys voltou a ficar de pé, suas asas se levantando como plumas eriçadas de um caçador prestes a atacar sua presa.
- Rugido Deslizante! – Com isso impulsionou seu corpo para frente, dando força com os pés e planando parte do caminho, armando suas afiadas asas e fortes pernas quase como uma águia, mas ao invés de lançar seu adversário para o alto, junto com as ilusões de virgem o forçou para baixo.
- Hybris pecaminosa*! – Dezenas e dezenas de correntes com espinhos foram emanadas a partir do cosmo de Daidalos, traçando-se entre elas mesmas, formando o que parecia ser uma espécie de lagarto gigantesco com quatro pares de patas, uma representação da monstruosa Ceto que tentou devorar Andrômeda, tal emanação se agarrou ao Hecatônquiros e também começou a puxá-lo para baixo, como correntes presas ao tornozelo de um criminoso.
- ISSOO, ESTÁ QUASE LÁ! – Animou Mei desfazendo sua teia - Crianças Perdidas! – O Ómma então deu um único soco para a frente, criando assim um feixe azul brilhante, que logo se dividiu quase como uma estrela, esquartejando o adversário em cinco partes.
Completamente despedaçado, o Titã começou a ser tragado pela entrada do submundo sem ter como reagir a tempo.
-... Funcionou? – Radamanthys perguntou com desconfiança, vendo como a criatura debatia-se e jorrava sangue para todas as direções, ainda assim, cada vez caía mais profundo em meio a escuridão. – Precisamos saltar logo em seguida se-
Não pôde terminar sua frase.
- RADAMANTHYS! – Daidalos berrou quando viu os olhos do juiz ficarem brancos ao ser acertado por um imenso raio partindo do centro da cratera, fazendo em um único acerto o inglês cair de joelhos e logo ir ao chão.
No entanto, o argentino sequer teve tempo de ir ao seu socorro, pois mais e mais raios subiram pela passagem, seguidos de ventos tão rápidos que eram capazes não apenas de arrastar todas as mesas, cadeiras e entulhos do restaurante, como também cortar tudo que estava ao seu redor como navalhas.
- AFASTEM-SE! ELE ESTÁ SUBINDO! – Orientou o general, lutando como podia contra o vento que se tornava cada vez mais e mais forte – MEI, AJUDE O RADAMANTHYS! – Exclamou exasperado com a posição completamente vunerável que o inglês estava, os gritos de Pandora se perdendo quando Shaka a tomou em seus braços e sem permissão começou a saltar para fora do prédio, saindo pelo buraco que seus golpes haviam feito no telhado, numa tentativa de não ser atraído pela ventania fatal.
O último dos Kido usou suas linhas para se agarrar aos pulsos e tornozelos do juiz, trazendo-o para si com um grande impulso, segundos antes do Hecatônquiros conseguir erguer-se da fenda que tentava engoli-lo, escalando suas laterais usando suas agora cinquenta pernas e cinquenta braços, parecia minimamente mais humanoide agora, com um tronco único do qual seus membros saíam e se deslocavam, cada vez se dividindo e dando origem a outros, contudo, o que mais descartava qualquer semelhança a humanidade era as vinte e cinco cabeças que se empurravam umas as outras, criando pescoços longos que as permitissem enxergar mais a frente.
- Merda, merda, merda, merda, isso não está funcionando – Lamentou Mei, agarrando o desacordado Radamanthys em seus braços – Temos que recuar! – E como Shaka, começou a saltar em direção ao teto, ao chegar ao topo, percebeu que o virginiano havia usado a saída para retornar as ruas de Londres, parado com Pandora próximo a um grande canal que cortava a cidade.
O general lançou um último olhar aflito a entrada que começava a se fechar, para então seguir os outros dois, enquanto o prédio começava a ruir de dentro para fora, soterrando o monstro lá dentro, mas por pouco tempo.
- Vocês têm mais algum golpe super destrutivo? Por que eu sinceramente não tenho – Confessou Ómma deixando Radamanthys no chão, que começou a acordar com um gemido de dor, sua pele ligeiramente queimada, Scath soltou-se de Shaka com um empurrão e correu até o inglês, ajoelhando-se ao seu lado e perguntando se estava bem.
- Se ele não tem consciência minimamente humanoide, não há muitos dos meus golpes que funcionem nele – Confessou o virginiano encarando com seus olhos abertos a construção que ruía.
- Está falando sério?!
- Da última vez que o enfrentamos ele parecia ser consciente, você sabe, composto por aqueles três homens que atacaram Verônica – Daidalos juntou-se com os demais, ligeiramente arfante.
- Sim, mas agora ele é só uma besta sem cérebro, sem sentidos, apenas um desejo fervoroso por destruir, aparentemente Chronos usou nosso pequeno enfrentamento anterior como um teste.
- Em outras palavras, estamos em maus braços aqui – Suspirou Mei.
- Pare de fazer trocadilhos em momentos tão cruciais! – Exclamou Radamanthys com ódio, conseguindo ficar de pé – Tem que a ver um jeito de parar essa coisa, se os servas de Hera e de Ares conseguiram, eu me recuso a acreditar que não possamos.
- Nós não somos imortais, Radamanthys – Cortou Daidalos, desesperança clara em sua voz – Muito menos resistentes como os Berserkes, é preciso muito mais força bruta do que habilidade para enfrentar isso, infelizmente é algo que foge a nossa capacidade.
- VOCÊ NÃO PODE ESTAR FALANDO SÉRIO! – Berrou descrente o escorpiano erguendo-se furioso – VAI SIMPLESMENTE DESISTIR?! Essa coisa pode arruinar TUDO pelo que senhor Hades trabalhou nos últimos milênios, e não apenas isso, se ficar solta, tem ideia de quantas milhares de pessoas ela é capaz de matar?!
- EU SEI! – Gritou em retorno, algo bem incomum em si – Estivemos estudando isso há anos, mas está mais forte, mais irracional, e mais mortal do que jamais esteve, não há nada que possamos fazer.
Em desespero, o juiz buscou o olhar do cavaleiro mais arrogante do zodíaco, e não acreditou quando viu um quê de derrotava e aceitação em seus olhos azuis.
- VOCÊS NÃO PODEM ESTAR FALANDO SÉRIO! – Repetiu exaltado - E VOCÊS SE CHAMAVAM CAVALEIROS DA ESPERANÇA?! SIMPLESMENTE DESISTINDO POR QUE O ADVERSÁRIO É MAIS FORTE DO QUE ESPERAVAM!? NÃO ME FAÇAM RIR! – Então afastou-se do grupo, caminhando sozinho em direção ao prédio – EU VOU ENFRENTAR ESSE MONSTRO ATÉ FICAR EM PEDAÇOS SE FOR PRECISO, MAS NÃO VOU SIMPLESMENTE FICAR AQUI DE BRAÇOS CRUZADOS!
Antes que Daidalos pudesse tornar a respondê-lo, tudo que restava do edifício veio a baixo, e quando o pó começou a baixar, em seu lugar estava um titã de pelo menos seis metros de altura, possuía cem mãos e cem pernas ao redor de seu tronco, impossível de ser visto agora, e por fim, cinquenta cabeças que se amontoavam no topo como os cabelos de Medusa.
- Eu não sei nem como imortais podem lidar com isso – Resmungou Mei.
- Mas Radamanthys tem razão, não podemos simplesmente deixá-lo assim. Precismos acertá-lo novamente com nossos melhores golpes, talvez – Disse vendo o rio que corria ao longe – Talvez prendê-lo embaixo d’água, ainda temos sementes restantes, e abrir o portal do submundo embaixo d’água é ainda mais eficaz, então façamos ass-
Sua frase, contudo, jamais se completou.
Como se fosse em câmera lenta, mas tudo aconteceu em grande velocidade, o titã partiu na direção do grupo, com uma duas mãos agarrou o braço de Daidalos, e como se o general fosse de pano, simplesmente o arrancou fora, lançando-o no alto, quatro cabeças disputando para comê-lo.
- DAAAAIDALOS! – O juiz berrou assim que pôde recobrar a voz, vendo a expressão chocada do americano que ainda não havia processado o que tinha acontecido consigo mesmo.
- ELE ESTÁ MUITO RÁPIDO AGORA! – Mei correu, agarrou novamente o loiro com um braço e uma chocada Pandora com outro, e aproveitou a falta de resistência de ambos para correr dali, ter que servir deuses como Hefesto e Hermes ao menos o havia obrigado a ser forte e rápido.
Shaka, por sua vez, criou um Khan ao redor de si mesmo e do Argentino, que caía de joelhos, um grito gutural escapando de sua garganta enquanto se agarrava ao seu ombro que jorrava sangue devido ao seu membro subitamente perdido.
- Você precisa voltar urgentemente para o submundo, ou morrerá, e sem sobrepeliz será definitivo – Disse com seriedade o virginiano, pegando de suas roupas sua própria semente de romã, enquanto encaixava o braço restante de Daidalos em seu ombro e começava a correr para se afastar.
- ...O que vamos fazer, Shaka...- Sua voz era quase um sussurro, sua face era ainda mais pálida do que costumava ser.
- Não podemos nos desesperar agora – Disse simplesmente, olhando para trás e vendo que a criatura não o seguia mais, por isso buscou os outros três com o olhar e parou ao lado deles no telhado de outro prédio.
- Precisamos...Precisamos entrar em contato com o submundo – O general disse, quando Shaka o colocou sobre as telhas frias, os outros três simplesmente o encarando – Precisamos contar para Kairos o que aconteceu.
Ninguém o contestou quanto a isso.
Então levou a mão ao seu membro perdido, e com a palma repleta de sangue fez um pentagrama sobre as telhas, fechando os olhos ao fim de seu desenho, desejando que sua imagem fosse transmitida ao espelho negro.
A figura de Kairos apareceu no meio do círculo, com a mesma precisão de um reflexo em uma poça, seus olhos vermelhos se ampliarem e sua boca abriu ligeiramente ao ver o general completamente ensanguentado, ainda assim, por desejo do próprio, não podia ver seu braço perdido.
-...Kairos...Falhamos, nosso tempo agora está contado – Disse num grunhido de dor.
- Você está se exaltando demais! – Radamanthys surgiu atrás de si, tenso.
- ...Você tem que acordar Shun agora, de qualquer jeito... – Seguiu em um tom cada vez mais vacilante.
Quanto a isso, Kairos engoliu em seco.
-...Eu tive uma visão sobre quando e como o imperador irá acordar – Explicou em tom sério o deus caído, mudando completamente de postura - Ainda preciso...De pelo menos dez minutos.
-...Ele irá para o santuário se n- Contudo, as palavras morreram em sua garganta, e teria caído de lado se o juiz não tivesse prontamente o segurado.
- Venham imediatamente para o submundo – O deus do tempo declarou, em um tom que não aceitava replicações – Sapo, vocês três e o Ikki precisarão estar aqui pontualmente em dez minutos. Eu irei falar com os outros dois inúteis.
Antes que o homem de grande porte pudesse reclamar quanto as ordens, Kairos interrompeu o contato.
- Maldito insolente – Resmungou com um grunhido.
- O melhor agora é fazermos o que ele disse – Seguiu Daidalos tentando focar sua visão, mas isso se tornava cada vez mais difícil. – Por que...Ele está parado?
O grupo se voltou ao Hecatônquiros, que precisamente não havia mais se movido de seu lugar desde que havia devorado o braço do ex cavaleiro.
Então, como se tivesse recebido uma ordem, a criatura começou a caminhar na direção do rio.
- Eu acho que não apenas nós paramos para ter uma conversa – Opinou Mei – Parece que ele acabou de receber instruções e está indo realizá-las.
- Ele não deveria ser capaz de entender qualquer estimulo externo – Rebateu Shaka. – Aquilo é puro instinto.
- Mas há deuses que são capazes de controlar as emoções mesmo de seres que regressaram a um estado tão “primitivo” – A fala partiu novamente de Mei, que engoliu em seco – Alguém que tivesse muito poder, que tivesse nascido justamente de um ato horrendo contra um Titã, vamos lá, eu não posso dizer o nome, sou um Ómma, não posso acusar assim, mas vocês sabem de quem eu estou falando.
- Aphrodite. – A resposta partiu ironicamente de Scath, que tremia ligeiramente, mas se mantinha de pé - A deusa nascida da castração de Uranos. É a ela que você se refere?
- Sim! Isso mesmo. Ela pode não parecer exatamente forte, mas seus poderes são mais...Controladores? Sabe, ela e seu filho Eros são os únicos capazes de manipular completamente as emoções de outros seres, sejam mortais ou divinos, e instinto é basicamente se deixar levar pela emoção, não?
- O que levaria Aphrodite a manipular uma coisa dessas? – Radamanthys questionou com descrença.
- Eu não sei, sinceramente, mas foi ela que me mandou para cá em primeiro lugar, manchando a reputação do submundo.
Um novo gemido de Daidalos chamou novamente a atenção do grupo.
- Será que dá para discutir mitologia depois? Esse homem precisa urgentemente de um hospital! – Exclamou Pandora. – Ele vai acabar morrendo aqui.
- Ela tem razão, digo, com exceção da parte do hospital – A jovem olhou para ele com descrença - Eles são do submundo, eles tem o Flegetonte lá, é muito mais rápido que um hospital.
- Eu vou levá-lo – Adiantou-se Radamanthys – Eu tenho minha sobrepeliz, posso abrir a passagem. – Então seu olhar se voltou a Scath, um singelo olhar que pedia perdão.
- Eu vou levá-la para o castelo de Heinsteim comigo, é minha próxima parada, por pertencer ao senhor de vocês, creio que lá ela estará segura.
- Espera, mas isso não fica na Alemanha?! – Ela deu um passo para trás – Como pretende me levar daqui para a Alemanha?! Se tentar alguma coisa estranha, eu vou-
- Não se preocupe, Ómmas tem sua própria forma de viajar – Peter-Radamanthys a acalmou. – Você vai ficar bem, e lá será mais fácil de te encontrar depois, de te explicar tudo.
-....- Ela hesitou, franzindo a expressão, mas então logo aceitou de mal gosto – É melhor que você não demore.
- E você, Shaka? É Shaka seu nome, não é? – Questionou Mei tentando ser simpático apesar da situação – Você quer que eu te ajude a ir a algum lugar?
O virginiano não respondeu, seu olhar parecia sumamente perdido, olhando para o horizonte, mais precisamente na direção onde ficava a Grécia.
- Shaka é...Capaz de se teletransportar sozinho – Daidalos respondeu, notando a estranha postura do virginiano – Vocês...Podem ir.
- Certo, boa sorte, lamento por estar aqui, mas saiba que ao menos poderei dizer que fizemos o possível para pará-lo. – Então colocou a mão sobre o ombro de Pandora e os dois desapareceram.
- Shaka, o que aconteceu...? – Perguntou o general permitindo-se erguer por Radamanthys que começava a abrir o portal para o submundo usando-se de sua sobrepeliz. Podia ver a face congelada do indiano, estava lívida, seus lábios ligeiramente abertos, seus punhos cerrados e um suave tremor sobre eles.
Contudo, não precisou realmente que respondesse, seguindo sua visão, entendeu o que havia acontecido.
-...Máscara da Morte...- Disse com pesar, quase tinha se afeiçoado ao cavaleiro de Câncer. – Parece que ele está em um estado bem crítico.
Tudo aconteceu muito rápido.
O Hecatônquiros deixou de caminhar obedientemente em direção ao rio, suas cabeças se agitaram, como se estivessem buscando o cheiro de sangue, o localizando sem muita dificuldade no topo de um prédio próximo.
Toda a estrutura veio abaixo em um único instante, quando o enorme Titã saltou com todo o seu peso colossal sobre a construção, foram milésimos de segundos os que tiveram pra reagir. Radamanthys pulou, com Daidalos em seus braços, para dentro da rachadura que havia aberto para o mundo dos mortos, e como ela pertencia a outro plano, a destruição não os atingiu.
Shaka havia se afastado usando sua velocidade de cavaleiro de ouro, parecia estar tendo sucesso, o elemento surpresa do Hecatonquiros não funcionaria duas vezes, o dourado ainda era mais rápido.
Mas algo deu errado no caminho.
Um segundo.
Um único segundo de distração.
Quando o virginiano sentiu que a Morte abraçar o signo de câncer, suas pernas simplesmente não o responderam mais, sua mente ficou em branco, e seu coração pulou uma batida.
Por apenas um segundo, o homem mais próximo de deus hesitou frente a morte.
Entretanto, foi o bastante.
- SHAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAKAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!!!
A garganta de Daidalos simplesmente se desgarrou quando frente aos seus olhos uma das cabeças do hecatônquiros se esticou, em meio a ruína do prédio, e usando esse mesmíssimo segundo de abertura, abriu sua imensa mandíbula abocanhando completamente o tronco do virginiano sem armadura, deixando seus braços e pernas pendidos.
Mesmo a boca do juiz se abriu em terror vendo o sangue que escorria pelos dentes do monstro, vendo a expressão de completa dor na face do cavaleiro ao ter sua carne perfurada.
- PRECISAMOS TIRAR ELE DE LÁ! – Berrou Daidalos esquecendo sua própria dor.
Seu companheiro apenas confirmou com a cabeça, deixando a passagem aberta às suas costas, voo até a cabeça em questão, desviando e atacando outras que tentavam se aproximar no caminho.
Quando pertos o suficiente, o general usou suas correntes para imobilizar como podia parte da criatura, ao menos por alguns instantes, enquanto Radamanthys usava um misto de força física e cosmo para tentar abrir a mandíbula que segurava o virginiano com as mãos nuas, enquanto o general se agarrava como podia ao tronco do juiz com seu único braço, era uma questão de tempo para que escorregasse, e tudo que encontraria abaixo era um mar de cabeças disposto a devorá-lo.
Contudo, não era isso que importava agora.
- Shaka! – Chamava exasperado, vendo o corpo cada vez mais ensanguentado do cavaleiro, por mais que o escorpiano estivesse conseguido arrancar os dentes de sua carne – Você consegue me ouvir?
-...Sim – Disse numa voz quebrada e frágil como jamais ouviu antes - ...É pior do que eu pensava.
-...Ter o corpo mastigado? Definitivamente – Invocou mais algumas de suas correntes, usando o pouco de cosmo que lhe restava, envolvendo-as, o mais sutilmente que podia, nas partes não feridas do virginiano, com a intenção de tirá-lo de lá.
-...Não, a morte de um amigo – Disse fechando seus olhos – É muito pior do que eu pensava.
- Shaka, você não pôde estar pensando nisso quando está literalmente na boca da morte! – Exclamou o taurino exasperado – Preocupe-se um pouco com sua própria vida! Você ainda tem seu filho, esqueceu?!
O virginiano apenas confirmou com a cabeça, emanando seu próprio cosmo, tentando invocar ao menos uma pequena Rendição Divina, para que pudesse se soltar dos dentes que restavam, os quais Escorpião não estava conseguindo lidar apenas com força bruta.
As correntes de Daidalos uma a uma eram destruídas, começando a escorregar de seu agarre frágil ao corpo do juiz.
Estavam ficando sem Tempo.
O golpe da casa de virgem não parecia estar funcionando, Wyvern parecia estar ficando cada vez mais fraco, algo estava acontecendo.
Então Virgem percebeu.
- Ele está devorando nosso cosmo – Alertou num tom que era quase um sussurro, tentando deter a emanação massiva de seu golpe mais destrutivo, mas percebeu que não podia mais.
Sentia-se sendo simplesmente drenado, numa velocidade que atordoava todos os seus sentidos.
- O quê?! Mas...Ele não deveria ser capaz...- Começou o general, percebendo que seu próprio cosmo parecia estar sumindo. – Nunca lemos nada sobre isso.
- Eu sou o cavaleiro de virgem, eu tenho o maior cosmo entre os doze – Disse com voz firme, mais como uma constatação do que como uma arrogância. – Eu não posso permitir que ele se alimente disso.
-....Shaka – Engoliu em seco – O que você está pensando em fazer...?
-...Eu não aguento mais...- Rosnou o juiz, sangue escorrendo de suas próprias palmas pela pressão que estava fazendo para manter a mandíbula aberta. As correntes se desfizeram. Várias cabeças e braços passaram a cercá-los.
O Tempo tinha acabado.
Radamanthys soltou as presas assim que sentiu que seu general não suportava mais se sustentar e começava a escorregar para a morte certa, agarrando-o com ambos os braços. Como resultado, a mandíbula do Hecatônquiros se fechou com mais violência, sangue decorrente do ato jorrou sobre os espectros e uma expressão de intensa dor tomou a face de Shaka junto a um grito que cortou a noite.
- Arranquem....Minha alma! – Gritou em um tom arrastado – De nada vale...Salvar esse corpo agora! Ele não vai...Me matar enquanto eu...Tiver cosmo!
Como se confirmando seus dizeres, enquanto se afastavam voando, a dupla pôde presenciar com horror como a cabeça sacudia o corpo, mas não voltava a mastigá-lo, e ainda assim os movimentos bruscos eram suficientes para trazer mais dessa dor excruciante que tomava o virginiano.
- VÃAAAAAO LOOOGOOOO – Berrou, provavelmente, pela primeira vez em sua vida.
- Perdão – Foi tudo que Daidalos disse, lágrimas enchendo seus olhos quando invocou uma de suas correntes.
Como se não fosse física, a mesma adentrou a mandíbula fechada e sangrenta e perfurou o peito do virginiano, retirando consigo uma chama parcialmente branca e negra, que o general trouxe consigo.
Imediatamente a isso, o corpo pendeu completamente, sem vida aparente, levando poucos segundos, enquanto o juiz voava e desviava de outros membros que tentava atingi-lo, para o Hecatônquiros notar que não havia mais o cosmo que o mantinha entretido com aquele homem.
Por isso jogou-o para o alto e...
Tanto Daidalos quanto Radamanthys, mesmo o segundo passando milênios no submundo, não tiveram coragem de olhar, recuando e voando na direção da pequena passagem ainda aberta, ouvindo apenas o som das cabeças disputando entre si, e assim partiram, a entrada do submundo fechando atrás de si.
Uma vez sozinho, e sem mais sangue que o atraísse, o titã saiu de dentro dos escombros, e voltou novamente ao seu destino, o rio que levava ao mar.
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Héstia caminhou plena até a deusa do amor, desviando do que restava dos cadáveres de suas servas, sem olhar para os demais presentes naquele corredor.
Só então em meio a seu surto que Aphrodite notou que possuía plateia.
- O que vós quereis a- Porém sua fala foi cortada, junto com a respiração de todos, quando o seguinte movimentou aconteceu.
A grande deusa do fogo dedicou-lhe um tapa de mão cheia no rosto da divindade do amor.
- Como OUSA tentar manchar a honra do meu irmão, Shun?! – A figura colocou com imponência encarando com desprezo a primordial – Como OUSA profanar os restos mortais de suas próprias servas e profanar o castelo de teu anfitrião, Aphrodite! Eu te acuso de desobedecer às leis de meu irmão, Zeus!
Um silêncio completo se formou no corredor com todos processando o que tinha acabado de acontecer.
Lentamente a senhora de beleza levou a mão ao rosto, ligeiramente trêmula.
- Tu....Acabaste... – Sua voz era simplesmente colérica enquanto aranhava sua própria pele.
-...Agora eu estou na dúvida – Sussurrou Valentine para seus companheiros o mais baixo que pôde, sendo o primeiro a se recuperar do movimento. – Quem quebrou o Hospitium aqui?
- Um ataque a honra também é uma quebra do ritual de hospitalidade – Ainda assim a deusa do lar pôde ouvi-lo e respondê-lo – E se o corpo humano que Shun usa ainda está nessa propriedade, então ele ainda está protegido pelo ritual.
- Astrapí Solo – Violate compreendeu no mesmo instante – Por isso o corpo dele se manteve na propriedade.
- Aparentemente nosso novo senhor não dorme em serviço – Ironizou Queen -... Ou quase, levando-se em conta que ele está dormindo agora.
- Quem tu pensas que és para me bater assim! – Exclamou furiosa a beldade loira.
- Tu sabes muito bem quem eu sou – Seguiu a morena franzindo a expressão – Um dos seis Kronides, deusa virgem da lareira, do fogo, da família, e do lar. Basicamente não poderíamos ser mais opostas, não é mesmo? Deve ser por isso que eu sempre quis esbofetear a sua linda face, devo dizer que estou muito satisfeita, a noite até parece mais bonita de repente.
Perseu se manteve alerta, vendo de uma divindade a outra, estando parado de forma protetora do lado da deusa virgem.
- Olha só, quem iria imaginar que tens senso de humor, Héstia – Declarou venenosa, ajeitando sua postura e encarando a contrária em seus olhos, em tom de ameaça nem um pouco velada.
- Senso de humor? Oh não querida, lamento dizer que eu estou apenas sendo sincera, desde que tu foste responsável pela morte da primeira esposa de Poseidon eu imagino como seria estampar minhas digitais nesse seu belo rosto, e hoje, de uma única vez, engenhaste essa acusação vergonhosa contra o submundo e quebraste o hospitium. Isso significa que eu tenho pelo menos uma afronta para cada um dos meus irmãos mais novos, na minha visão dos fatos eu tenho o direito de te bater mais duas vezes, mas se eu não usei minhas mãos nem para lutar com os Titãs, tu não mereces tanto. – Deu um sorriso simpático que fez um arrepio percorrer a espinha de todos os mortais presentes, apenas Perseu não se impressionou realmente, seu próprio deus possuía facetas bem discrepantes e coisas simples podiam fazê-lo mudar de humor rapidamente, embora isso fosse cada vez mais difícil de acontecer com os séculos, ainda era um risco palpável sendo o deus da loucura. Além disso, por causa de Priapos e sua péssima postura no passado, sabia bem do que Héstia era capaz.
A jovem loira observava a contrária com verdadeiro escarnio em sua face.
- Então a deusa virgem que viveu os últimos milênios reclusa em seu templo não dando a mínima para o mundo lá fora, resolveu descer do pedestal para defender seus irmãos? – Questionou com seu melhor sorriso presunçoso – Não me faça rir, sempre soube que tu eras hipócrita, mas sinceramente estou impressionada.
- Eu não posso mudar o passado, Hades foi lançado no submundo, Poseidon se retirou do Olimpo, Zeus deixou de escutar-me e tornou-se um tirano, e foi assim que nossas histórias se separaram, mas eu estou aqui agora. Então não vou ficar quieta vendo a ti ferir uma das melhores leis que meu irmão caçula fez antes de ser consumido pelo poder, e o medo de perdê-lo. Lei esta que por tantos séculos garantiu que diferentes seres de diferentes castas, pudessem sentar frente a frente na mesma lareira, comendo a mesma comida, sem matar uns aos outros, pois saberiam que seriam castigados pelo imperador divino se o fizessem.
- Zeus foi muito mais do que um tirano– Cuspiu Aphrodite com repulsa – Eu duvido que tu saibas METADE das coisas que ele foi capaz de fazer, sendo puritana e consentida como tu és.
- Por favor, querida, fique quieta, ainda não terminei. – A cortou de forma audaz, ignorando o ódio que manchava as belas feições dela após esse gesto. - Zeus teve muitas escolhas verdadeiramente controversas como imperador, e eu não posso culpar ninguém por odiá-lo, mas é exatamente por essa razão que eu não vou permitir que tu manches essa madrugada, porque ao menos foi o hospitium dele que nos deu a chance de nos unirmos de novo.
- E o que tu esperas que aconteça? Que prova tu tens contra mim? - Declarou com arrogância estralando os dedos, e assim os cadáveres retalhados ao seu redor simplesmente desapareceram como pétalas de rosa, a igual que o sangue que manchava suas roupas. - Eu estou aqui obedientemente nessa festa com meu marido, tive um desentendimento com algumas de minhas ninfas e me desfiz delas, algo que estou no meu completo direito de fazer, até que Héstia simplesmente apareceu na minha frente, começou a me lançar acusações e antes que eu pudesse me defender, me agrediu, na minha visão dos fatos - Parafraseou - Foste tu que quebraste o hospitium.
- Não podes mesmo pensar que tua palavra vale mais que a minha, não é mesmo Aphrodite? - Inquiriu a deusa do lar com altanaria, e mesmo assim a expressão presunçosa da contrária não se desfez.
-Eu não preciso que acreditem nas minhas palavras, é uma questão de tempo para que aquele Ómma retorne para cá, e como bem sabe Ómmas não podem mentir, então todos saberão que o hecatonquiros de fato não está mais no submundo, e portanto as ordens de Hera foram vergonhosamente descumpridas. Então mesmo que tu me arrastes até aquele salão e diga que eu “feri a honra do sucessor de Hades”, serão as suas palavras contra os fatos acontecendo, “querida” - Findou com seu próprio sorriso falsamente cortes - “O Imperador dos mares e o imperador da morte convidam os olimpianos e vários outros deuses para uma festa em um castelo humano, e coincidentemente nessa ocasião o hecatonquiros escapa”. não precisa ser muito inteligente para saber como isso vai soar aos ouvidos de todos. - Seu olhar de desgosto passou pela face de cada um dos espectros presentes - “O submundo finalmente atacou, nos reuniu aqui para destruir-nos ou prender-nos, enquanto o Olimpo está desprotegido, e aparentemente Poseidon é seu cúmplice”. Estou genuinamente curiosa sobre qual versão eles pensaram primeiro. Se tu quiser que eu te acompanhe até o salão e fiquemos confrontando nossas versões até a verdade vir à tona, eu sinceramente não me importo de ter todos os holofotes em mim.
- O que tu ganhas prejudicando o submundo assim? - Perguntou a divindade do lar, sua voz soando suave, mas ainda havia uma ponta de ameaça velada no fundo - Nem Hades, nem Shun jamais fizeram nada contra ti jamais, muito pelo contrário, tenho entendido que foi justamente meu irmão Hades que milênios atrás deu abrigo ao meu sobrinho e seu amante, Ares, na ocasião de sua guerra contra Athena.
- Eu não tenho nada contra o submundo, mas se ele se tornou um empecilho no caminho para obter o que eu quero - Deu de ombros retando importância - Eu conseguindo meu objetivo, não me importo minimamente com o que acontece com aquele buraco que chamam de reino,
- SUA VADIA! COMO PODE FALAR DO NOSSO REINO ASSIM COMO SE NÃO FOSSE NADA!! – Mais de um se surpreendeu quando Queen explodiu, seus olhos fervendo de raiva.
- E quem tu pensas que é, servazinha, para falar comigo assim?! – Exclamou com ódio, elevando seu próprio cosmo, dezenas e dezenas de ramos de rosas surgindo do chão, quebrando o piso, rompendo pelas paredes - EU ESTOU NO CONTROLE AGORA!
- CONTROLE ISSO, SUA PUTA! REALIDADE BRUTAL! – Violete deu um potente pisada no chão, usando sua força e cosmo, provocando um imenso tremor, desestabilizando a deusa – QUEEN!
- GUILHOTINA DA FLOR SANGRENTA! - Exclamou com o braço direito erguido, uma imensa guilhotina feita de cosmo e eletricidade surgindo as suas costas, cortando com suas faíscas várias das plantas ao redor do corredor antes que pudesse atingi-los.
- Hãaaa- Começou Laime recuperando-se do choque – Vamos ficar aqui parados vendo só as meninas lutarem?
- N-não, claro que não – Respondeu Valentine, fechando a boca que não havia percebido que tinha aberto – Vamos ajudar!
Buscou o olhar da deusa virgem, num misto de perdão e desculpas, tanto pela violência quanto pelo palavreado.
- Não se incomodem comigo – Héstia cruzou os braços, uma expressão de sádica satisfação que fazia a morena se parecer ainda mais com Hades. – Ela deve responder as ofensas ao reino do meu irmão.
-....Ceeerto - Confirmou Valentine, um pouco surpreso pela atitude de uma deusa cultuada pela família. – Vamos Laime!
- Sim!
- Devorador de Vidas! - O inglês levantou os braços, ao tempo que as asas de sua armadura se agitaram quase ansiosamente, e assim vários raios violetas feitos de cosmo começaram a disparar e consumir todas as roseiras do corredor, ao tempo que cercavam Aphrodite que com dificuldade pôde desviar do movimento de Queen, mas com uma agilidade impar conseguir ir até as costas da espectro e agarrá-la pelos cabelos.
- Jamais – Disse a divindade entre dentes – Me chama de vadia...Novamente! – E invocou uma de suas plantas que perfurou o ombro direito da jovem, que se recusou a gemer ou mesmo exclamar de dor.
E foi nesse preciso instante que Laime atacou.
- Tentáculos do Verme! – As garras de sua sobrepeliz se projetaram para a frente e agarram completamente o corpo divindade da beleza, a forçando a soltar os cabelos que segurava.
- E quem vai me impedir disso?! - Desafiou Queen, livre e arfante, dando um chute na cara da deusa, e no que ela se inclinou pelo golpe, a espectro lançou-se contra ela, ignorando sua própria dor, dando-lhe uma chave de pernas que a fincou no chão. – Assim você fica mais confortável, Vadia? No meio das pernas dos outros?!
- Ora sua....!
- Suficiente – Héstia decretou, pilares de fogo surgindo por todo o corredor, destruindo qualquer outro vestígio do poder de Aphrodite, e informando muito graficamente aos espectros que deviam cessar seus ataques, mas com um único olhar pedindo que tanto Laime quanto Queen se mantivessem onde estavam.
Não eram servos dela, mas sentiram que não era o momento de colocar isso na mesa, essa deusa ainda era a irmã mais velha de Hades.
- Agora, minha querida...Seria tão gentil de, por favor, acompanhar-me ao salão de festa? – Sorriu, o mesmo sorriso falsamente cortes de antes.
Às suas costas Perseu respirou profundamente, jamais imaginou que uma simples caminhada com a deusa do lar acabaria numa barbárie dessas, seu senhor fazia festas excêntricas, mas essa que Shun e Poseidon haviam organizado estava passando todas as expectativas.
E falando no diabo...
Todo o castelo começou a tremer, o quadro que levava ao submundo, mais a frente naquele corredor, caiu no chão com um baque surdo, e os tremores se intensificaram mais e mais, até que simplesmente pararam, sem qualquer explicação.
Entretanto, antes que qualquer espectro pudesse fazer qualquer pergunta sobre o assunto, um frio percorreu a espinha de todos, junto a um sentimento de antecipação.
O qual, não passou despercebido a Héstia, que inclinou o rosto com curiosidade.
- Parece que Shun finalmente despertou – Comentou ela, vendo a expressão lívida de todos os presentes que o serviam – E por suas expressões, eu diria que ele está com um pouco de raiva sobre a bagunça que fizeram em sua ausência, pobrezinho.
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