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História Itália, prisão de cristal - Personas


Escrita por: MrsReddington

Notas do Autor


Olarrrr, saudades!!!
Volto com um capítulo enorme, cheio de revelações para deixar vocês super animados e dar solução a algumas teorias. Eu mal posso esperar para ver como interpretarão a história a partir de agora.
Tem passado da Carol, tem passado da família Bocarelli, tem insinuações de segredinhos... Tem cenas fofas e emocionantes para todos os gostos pessoal!
Espero que gostem, nos vemos lá embaixo.

Capítulo 50 - Personas


Nove anos antes

Campo das Margaridas, 15h40min da tarde.

Rebeca colocou um refrigerante na mesinha entre as espreguiçadeiras, olhando para o canto do jardim onde Matteo e João Pedro discutiam sobre qual era a melhor forma de colocar a carne que compraram numa ideia louca de churrasco que Violeta havia inventado.

Caroline se esgueirava pelo canto da piscina, observando as nuvens pesadas passarem, enquanto Ana divagava sobre o que faria quando a escola acabasse. Caroline às vezes ria, por vezes compartilhava alguns desejos de como acreditava que seria a faculdade. Ela parou de falar, olhando para Rebeca e depois para o irmão dela.

Matteo tinha um ótimo sensor de presença porque imediatamente lhe encarou de volta.

Os olhos castanhos, sérios, ora vazios, ora curiosos, passearam por seu corpo enquanto caminhava até a piscina. Não se sentiu a vontade, mas não pôde dizer que não achou interessante que Matteo lhe observasse.

Sempre se achou fora de qualquer radar masculino de sua escola.

Era sempre amigável, amigável o suficiente para todos lhe verem como uma grande amiga. E, honestamente, não achava de todo mal, já que jamais se viu se relacionando com qualquer um deles.

Não conseguia imaginar como sua vida simples se encaixaria na elite de Campo das Margaridas.

Talvez estivesse enlouquecendo e os olhares fossem somente coincidências. Afinal, Matteo estava numa relação chiclete com Natália e na sua cabeça, não fazia o menor sentido que ele se envolvesse ou olhasse para qualquer menina.

Subiu os degraus da piscina, escapando do vento gelado e sentou ao lado de Rebeca. Ela estava balançando os pés na água, olhando para João Pedro com uma expressão ameaçadora, ou talvez fosse só a forma que ela olhava para os amigos do irmão que não tinham boa índole.

Ana ainda tagarelava e amava quando ela fazia isso porque era ela que fazia qualquer reunião de amigos uma verdadeira festa.

─ Os meninos estão olhando para nós... ─ Ela comentou.

─ Seu irmão jamais deixaria nenhum deles olhar pra você... ─ Ana achou graça.

Caroline concordou.

─ Ele é bem ciumento contigo, já notei.

Deu de ombros.

─ E eu com ele. ─ Bateu no ombro de Caroline e ela riu, fazendo que não. ─ Eu estou vendo você flertando com ele Ana. Estou vendo tudo.

─ Eu pegaria o Matteo... Não vou negar.

Caroline abraçou Ana dentro da piscina, rindo enquanto ela falava na maior cara de pau que certamente daria em cima de Matteo na frente de uma Rebeca muito irônica. Amava Ana e seu jeito completamente indiscreto de falar sobre coisas que nem mesmo se nascesse novamente teria coragem de dizer tão às claras.

Sentiu uma presença masculina em suas costas e Ana parou de falar de repente, restando somente uma sensação vergonhosa no ambiente.

O assunto havia chegado.

─ Pega, Beca. ─ Matteo disse, entregando algo a irmã.

Ele fez que não.

─ Não tomo essas coisas, você sabe. ─ Empurrou o que Caroline conseguiu perceber pelo reflexo que era uma garrafa verde de cerveja.

Respirou fundo e se endireitou na beirada da piscina. Ana subiu as escadas, aparecendo ao lado de Matteo com uma rapidez tão absurda que temeu que ela tivesse saído correndo.

─ Mas eu aceito. ─ Tomou da mão dele, risonha.

Matteo deu um sorriso de canto e abriu a garrafa para ela, bebendo um gole e lhe entregando de novo.

─ O primeiro gole é do anfitrião.

Ana virou a garrafa e Caroline revirou os olhos só de pensar no gosto daquilo. Ana ficou um pouco tonta e se segurou os ombros dele. Talvez essa fosse à intenção desde o principio e Rebeca a afastou, tirando-a de perto de Matteo.

─ Minha amiga cachaceira aqui já queimou a largada.

Ana gargalhou, bebendo dessa vez aos poucos.

Matteo cruzou os braços, encarando Caroline e a fazendo tremular com uma vergonha que nunca pensou que teria de um homem. Ele estava lhe intimidando tanto que nem mesmo conseguia olha-lo nos olhos.

─ E a sua amiga ajuizada não bebe, Rebeca?

Negou com a cabeça, porque Rebeca não disse nada e isso gerou uma intimidação ainda maior.

─ Nem bebe e nem fala, aparentemente.

─ Eu não falo com você. ─ Disse mais rápido do que pôde controlar, sem nem ao menos pensar. ─ Digo... Eu não tenho intimidade com você.

Ele fez um movimento com as mãos, para apaziguar as gargalhadas dos amigos que ficaram ouvindo a interação na churrasqueira.

─ Nada que não possamos resolver, se você quiser, é claro. Podemos ser amigos, Carol.

Caroline não tinha tanta audácia para jogar aquela brincadeira dele e certamente muito menos malícia para entender até onde ele queria lhe levar com aquilo.

─ Talvez... Mas não temos nada em comum.

─ Sou tão inteligente quanto você, Srta. Orgulho da escola... Orgulho do professor Rui. Ouvimos todos falar da sua inteligência desde antes de entrar na escola.

Rebeca e Ana se entreolharam, confusas com as palavras de Matteo.

─ Não estou te dizendo isso... Não tinha a intenção de te ofender. ─ Curvou os ombros, culpada.

─ Jamais me ofenderia por ser inteligente, Caroline. Na verdade, isso me atrai.

Caroline piscou tanto, surpresa, que teve a sensação que tudo escureceu ao seu redor. Os rapazes riam e podia ouvir Rebeca batendo no irmão, mas isso certamente lhe chocou. Não tinha sequer uma palavra para dizer em contrapartida porque jamais imaginou que Matteo lhe olhasse, menos ainda que ele poderia ter tanta coragem para lhe dizer o que disse na frente de pessoas que certamente o julgariam por estar atraído por alguém tão distante de seu circulo de amizades.

Matteo estava sendo obrigado a retornar para o reduto masculino a força pela irmã. Pensou numa forma de perguntar se aquilo era sério ou uma brincadeira, mas preferiu não se expor daquela forma.

Ana passou uma mão por seus ombros, os apertando e a jogando na piscina, encurrulando-a.

─ Olha... Carol, se eu fosse você, aproveitava à tarde com o Matteo. ─ Aconselhou.

─ Ficou doida? Ele está falando essas coisas para dar assunto para os amigos. Jamais que ele tentaria nada comigo. Matteo tá enrolado com Natália. Não... Não mesmo.

Rebeca cruzou os braços, ouvindo as duas conversarem.

─ A Carol tá certa. Nunca ouvi Matteo falando nada da Carol... Meu irmão está só se exibindo. O que é ridículo, mas é isso que está fazendo.

Caroline tentou ignorar os últimos minutos e só se aproximou de Matteo quando foram comer.

O churrasco havia sido ideia de Violetta, o que Caroline imaginou ser uma forma de integrar as novas e únicas amizades de Rebeca, como se estivesse tentando socializar a filha. Ela alegou que era um agradecimento a acolhida que Caroline fez a Rebeca quando ela veio a sua casa e até pediu que levasse alguns dos doces que fazia. Pegou-os no portão, já abrindo a caixa e comendo. Dizendo que havia os amado.

Certamente, Violeta lhe parecia bem menos fresca do que aparentava quando estava em cima de um palanque ao lado do prefeito.

Matteo não sentou do seu lado, mas fez um arranjo para que ficasse entre as meninas e de frente com ele. Segundo ele, para melhorar o fluxo de pessoas na mesa cheia, já que era a menor e teria problemas para pegar comida nos potes do meio.

Não disse nada, preferindo se ocultar das atenções. Rebeca recebeu uma cantada de André, um dos amigos de Matteo, que pelo que sabia era filho de um deputado. Mas, deu-lhe uma patada que fez o rapaz repensar se foi uma boa ideia fazer aquele comentário na frente de todos.

Ao final do almoço, já era quase hora do jantar e precisava voltar para casa, visto que Lúcia pretendia comer na casa de sua avó e no outro dia iriam viajar para casa da Abuela e Thais já era a pessoa que atrasava todas as viagens e não precisavam de mais uma.

Pegou alguns pratos e levou para a cozinha, ajudando Rebeca e a moça que estava responsável por cuidar da bagunça que fizessem. Cada um levou uma coisa para a cozinha e Caroline e Rebeca ficaram pegando as taças de sorvete para levar para a mesa do jardim.

Conversavam sobre amenidades da turma e coisas engraçadas que ocorreram durante a semana nas aulas, sobre o cursinho que Beca havia começado recentemente e o professor particular de física que a mãe dela fez questão de contratar para o que já considerava um caso perdido.

Caroline olhou para o perfil do homem numa rede social e sorriu de canto.

─ Acho que suas notas vão se tornar um caso totalmente perdido agora, Rebeca.

Ela bateu em seus ombros, rindo.

─ Não vão. Ele é chato. E eu não quero homens na minha vida, quero ser milionária, não casada.

Caroline se questionou se Rebeca tinha consciência que sua família já era milionária, mas não disse nada.

─ Eu não sei se quero ser milionária, mas não pretendo viver no sufoco. Isso com certeza, não. Vou abrir minha loja de doces... Vou projetar ela toda... Vai ficar linda. Quem sabe um dia, eu vou dar aulas, quando estiver mais velha.

─ Perda de tempo. Você nasceu para ensinar, Caroline. Vai para arquitetura para se desgastar...

─ E eu não posso dar aulas de temas da arquitetura? Não sabia que era proibida... ─ Colocou mais uma bola de sorvete em uma taça.

─ Vai ser uma professora incrível. Não sei como consegue, mas matemática com você falando parece fácil. Tão fácil  como comer um pote inteiro de sorvete... Infelizmente alguns nasceram inteligentes... e outros só nasceram bonitos mesmo. ─ Jogou os cabelos, ficando vermelha antes mesmo de olhar para Caroline de novo.

Caroline riu, riu tanto que as lágrimas escaparam de seus olhos. Rebeca não era acostumada a fazer piadas, muito menos a brincar e isso deu mais graça às coisas ainda.

Parou de rir quando Matteo se apresentou na cozinha, abraçando a irmã e a observando de olhos brilhantes.

─ Posso saber o que fez a minha irmãzinha emo rir tanto? ─ Olhou Caroline de canto, mas se voltou a Rebeca novamente.

Caroline se esgueirou pela ilha da cozinha, indo para o outro lado, ficando mais próxima a moça que já estava acabando de lavar os pratos.

─ Deixa de ser ridículo. Não sou Emo. Idiota. ─ Ela o empurrou, atirando um pano de prato nas costas brancas do irmão.

Os músculos dele se contraíram e ele correu para trás de Caroline, que tomou um susto e tentou correr, mas Matteo não permitiu, apertando sua cintura com os braços, lhe usando de escudo. O peito dele se contraia contra suas costas enquanto tentava se soltar, mas ele lhe segurava a sua frente, ainda lhe colocando como sua proteção.

Rebeca atirou o pano de novo e Caroline reclamou.

─ Seu irmão está me usando de escudo. Não me bata! ─ Implorou. Rebeca jogou novamente e Matteo lhe puxou, colando ainda mais seus corpos. 

─ Você é minha irmã e eu te amo, mas você é esquisita Beca... Não dá para negar.

─ Larga a Caroline e apanha que nem homem Matteo! ─ Gritou com ele.

─ Os dois vão parar ou vou chamar dona Violeta. ─ A moça da cozinha rosnou, lavando os pratos do mesmo jeito, sem largar de forma alguma o serviço. ─ Rebeca, teu irmão tá te provocando menina...

Caroline torceu que ela realmente chamasse a mãe dos dois, entretanto, o jeito pacífico não permitia que saísse do lugar. Enquanto isso, estava no meio dos dois com Matteo lhe usando de escudo e lhe apertando tanto que já não sabia onde estava o ar.

─ Matteo, me solta! ─ Implorou. ─ Eu vou gritar socorro, Matteo. Me solta!

Ele beijou sua bochecha de repente, mas ainda conseguiu desviar a tempo de um ataque de Rebeca. O que a deixou Beca ainda mais irritada. Caroline paralisou com o gesto dele e Matteo riu, desconcentrando. Rebeca conseguiu o atingir nas costas.

Matteo gemeu dolorido no seu ouvido, mas não lhe largou.

Foram arrastando os pés pelo chão molhado e ensaboado aos avisos baixos da auxiliar que dizia quem iam se machucar. Caroline escorregou, Matteo lhe segurou, virando seu corpo para ficarem frente a frente.

─ Safado! Solta a Carol, Matteo.

─ Bate em mim, vai bater nela? Não vai bater na Carol? Ninguém a machucaria...

─ Você está a machucando, apanha que nem homem Matteo!

Rebeca puxou os braços dele de sua cintura com tanta força que os três escorregaram de uma vez. Matteo virou no último segundo para não cair por cima de Caroline, fazendo com que caísse em cima dele. Rebeca se estatelou no chão escorregadio, batendo a cabeça num banco que caiu a frente.

O banco virou exatamente na direção da cabeça de Matteo e Caroline desviou com um braço, empurrando para longe num impulso.

A mulher largou finalmente a louça.

─ MEU DEUS! DONA VIOLETA!!!

A gritaria foi geral. Caroline ainda escutou os saltos que imaginou serem de Violeta, batendo nos degraus, chegando ao final da escadaria, mas não conseguiu acompanhar o resto do desenrolar.

Seu braço latejou e uma lágrima caiu dos olhos sem nem perceber que estava chorando.

Matteo levantou, deixando Caroline entre suas pernas. Ele apertou seu braço exatamente onde doía e fez uma careta. Ouviu-o falar um palavrão e lhe abraçar, beijar sua têmpora e depois pedir desculpas.

João Pedro entrou no seu campo de visão e levantou Rebeca do chão, olhando a testa dela. André entrou com Ana e Mauricio, outro primo dos dois, no encalço. Violetta olhou primeiro a filha que estava de pé, dizendo que pegassem gelo e depois foi para o chão, ajoelhou, pegou o braço de Caroline e ela se encolheu.

─ Parabéns! Como que vou explicar essa situação para os pais dela? Irresponsáveis! Levanta desse chão, Matteo. Leva ela para cima.

Matteo se afastou com cuidado. Caroline não ousou tentar fazer aquilo sozinha. André segurou sua cintura e lhe ajudou a levantar, Ana prendeu seus cabelos com um elástico e Matteo lhe colocou nos braços. Estava sentindo tanta dor que não conseguiu assimilar muito bem a situação, mas ouviu-o pedir desculpas varias vezes, em meio a alguns palavrões.

Sentiu que ele lhe beijou nas bochechas, nas têmporas e no topo de sua cabeça.

Achou tudo aquilo estranho, mas bizarro mesmo foi quando notou que estava gostando de estar nos braços dele. Isso certamente foi à novidade mais aterrorizante que se deu conta.

Ele lhe colocou numa cama que demorou a compreender que era a cama de Rebeca e Violeta entrou depois no quarto. Ela sentou na beirada e Matteo continuou lá, ao seu lado.

─ Querida, não sei se sabe, mas sou médica... Anestesista... Vou avaliar seu braço e verificar se precisamos fazer um raio-x ou não. Preciso que estique e eu vou entender o que está acontecendo, certo? Ana Paula está trazendo um analgésico para você.

Caroline assentiu, esticou o braço com dificuldade e deixou que ela tocasse. Primeiro, ela foi para os seus dedos, apalpou a região, com cuidado.

─ Mãe, devagar... ─ Matteo disse, de olhos arregalados e afagando seus ombros. Beijou sua têmpora de novo e segurou seu rosto contra o peito. ─ Aí... Acho que é ai, está ficando roxo, mãe.

Caroline não ousou sequer olhar para onde era que ele estava falando. Violeta apertou uma parte do seu braço e sentiu o que achou ser o mais próximo de um desmaio. Respirou fundo e sentiu Matteo lhe apertar ainda mais.

─ Mãe, devagar. Isso deve estar doendo...

─ Acho que pode ter fraturado, Caroline. Vamos precisar te levar a emergência.

Ela colocou seu braço em cima de uma almofada fofa e se afastou, pediu a alguém que avisasse aos pais de Caroline sobre o ocorrido e que iriam ao hospital. Ana Paula lhe deu um comprimido e engoliu sem se preocupar com água.

Rebeca sentou do seu lado com gelo na testa e lhe abraçou.

─ Muito bonito, olha o que as suas brincadeiras causaram Matteo!

Caroline não o olhou, porque não tinha a intenção de encara-lo com a expressão culpada que tinha, menos ainda porque ainda estava tendo que lidar com as sensações que estava começando a despontar em seu corpo.

Uma queimação que não tinha ideia de onde vinha, o coração batendo por tão superficial a pele, enfraquecendo suas pernas e gelando o estômago.

Ele lhe desceu no colo novamente e o motorista de Violeta o ajudou a entrar no carro. Certamente não foi uma viagem tranquila, afinal a cada sacudida daquele carro a sensação de desmaio voltava.

─ Carol, calma... Calma estou aqui... Estou aqui... ─ Beijou-a de novo.

A medicação que Violeta lhe deu provavelmente relaxava porque foi sentindo sono, não suficiente para apagar, mas para conseguir ignorar a dor. Era certo que a equipe da clínica já estava lhe esperando e Violeta os agradeceu com o olhar. O médico pediu que Matteo a colocasse na maca e Matteo não soube exatamente como fazer aquilo o que a fez sentir mais dor com as tentativas.

─ Desculpa, desculpa... Pela amor de Deus, Caroline.

─ Seus braços estão cansados, garoto. Dê ela aqui para mim. ─ O homem estendeu os braços.

Caroline se questionou como que diabos ele ainda conseguia carregar alguém com aquele braço torto até se dar conta que o braço na sua frente era o seu próprio. As luzes ao redor ficaram engraçadas, tudo piscava tanto que sorriu.

Parecia natal.

O enfermeiro, ou talvez o médico, lhe tirou dos braços dele e lhe colocou na maca.

A maca era fofa, fofa como um gramado e a testa careca do homem de repente começou a lhe parecer uma enorme rocha, parecia com a que via no grande paredão de pedras próximo a enseada que sempre visitava com a família.

─ Calma, rapaz... Só vamos consertar o braço da sua namorada. Não precisa tremer tanto.

Olhou de canto para as mãos de Matteo e ele estava de fato tremendo.

─ Eu não sou namorada dele... ─ Disse, risonha.

O homem mexeu um pouco em seus pulsos, lhe levou para uma sala. Fez o raio-x e voltou para a sala anterior. Tinha um pequeno trincado que o médico mostrava a Matteo e a mãe dele. Uma fratura. Isso conseguiu entender. Pelo local, aparentemente fora uma fratura causada por um movimento de defesa.

─ Fui eu, mãe. Eu brinquei com a Rebeca, provocando, nós escorregamos. O banco caiu e acho que ia bater na minha cabeça. A Caroline o empurrou com esse braço.

─ Uma brincadeira muito perigosa devo dizer, Violeta. Mais um pouco de força e esse banco quebraria o braço e precisaríamos pôr pinos.

Violeta olhou para o filho com uma expressão de censura e ele respirou pesadamente.

─ Agradeço sua disponibilidade, Marcio. Matteo, ajude a Caroline a sair, os pais dela já chegaram e eu não vou explicar nada do que aconteceu, você causou, você se explique para os pais dela. ─ Ela bateu a porta, saindo.

Caroline olhou para os braços e a sala rodou uma vez. Seu braço já estava preso numa tala e coberto de gesso rígido que coçava e queimava.

Os olhos de Matteo estavam sobre o mesmo lugar que o seu. Culpados e analíticos.

─ Você está sentindo dor?

Caroline negou.

─ Dor não, mas as coisas estão brilhando e tudo está parecendo bem engraçado.

─ É a morfina. Minha mãe aplicou no carro para reduzir a dor. Você estava bem chorosa e como o caminho tem muitas curvas, estava piorando.

Caroline olhou de novo para si mesma se perguntando como diabos havia recebido morfina e nem mesmo sentiu isso. Talvez a dor no braço tenha lhe cegado tanto que nem mesmo foi capaz de observar com clareza o que estava acontecendo consigo mesma.

─ Peço desculpas, Caroline... Eu não tinha intenção alguma de gerar tudo isso. ─ Ele coçou o pescoço, sacudindo os cabelos lisos e castanhos. ─ Era uma brincadeira... Uma forma de...

Ele parou, sem jeito.

─ De que?

─ De nada. De te deixar confortável, só isso. Mas, não deu muito certo.

─ Nossa amizade começou mal hein, Matteo... ─ Ele ergueu um olhar. ─ Nenhum dos meus amigos quase quebrou meu braço no primeiro dia.

Matteo sorriu. Um sorriso confiável.

─ Nos dias subsequentes, eles tiveram a liberdade para isso? Digo, porque no primeiro ninguém fez...

Sorriu de canto, sonolenta e levemente enjoada da medicação.

─ Agora vou ter cuidar de você, Caroline. Um compromisso de uns seis meses mais ou menos, até que fique totalmente bem.

─ Tipo um guarda-costas?

─ É... Tipo isso. Sou o responsável por esse braço fraturado, nada mais justo do que te levar buscar da escola, pagar seu lanche na escola... Ou nos fins de semana. Obrigar você a tomar remédio... Dormir com isso vai ser bem difícil, prometo te ajudar.

Caroline achou graça da ideia, mas Matteo não lhe tempo a ela de dizer que toda essa divagação era brincadeira. Ele lhe colocou no colo novamente e quando saiu da sala escutou as vozes dos seus pais. Augusto tenso, mas mantendo o controle e Lúcia ansiosa andando de um lado para o outro.

─ O que aconteceu? Por que deixei minha filha com um braço inteiro na sua casa e agora ela esta assim? ─ Foi à primeira coisa que Lúcia disse, sem nenhum talento para ser paciente.

Matteo disse calmamente o que havia acontecido e se comprometeu a dar suporte a tudo quanto fosse necessário. Pediu um milhão de desculpas, nem mesmo permitindo que Caroline dissesse que não estava doendo tanto assim mais.

Lúcia pareceu satisfeita com as respostas, mas ainda o olhava com desdém. Violeta segurava a bolsa e o casaco, envergonhada de toda a situação.

─ Posso saber por que ainda está no colo dele? Que eu me recorde fraturou o braço, não as pernas. 

Caroline arregalou os olhos, sentiu Matteo rir com o movimento do peito dele. Violeta achou graça, deu um meio sorriso se libertando do nervosismo, mas ainda séria.

─ Ele só está sendo gentil, mãe.

─ Não precisa de tanta gentileza mais. Coloca minha filha no carro e já vamos, Matteo. A não ser... é claro, que ela tenha alguma objeção e queira ou esteja gostando dessa situação. Aí, eu não interfiro. Caroline quiser tirar uma casquinha do rapaz... que mal tem, não é mesmo. Se ele não estiver incomodado...

Caroline negou com a cabeça, fechando os olhos.

─ Pai, pelo amor de Deus. Faz alguma coisa. Olha as besteiras que a mãe está dizendo.

Augusto já havia perdido o fio da meada e estava achando graça de toda aquela situação caótica, mas se manteve sério, firme.

─ Lúcia, por favor, não mate as crianças de vergonha. Segure essa língua, mulher.

Violeta gargalhou baixinho da expressão atordoada de Matteo e o jeito envergonhado de Caroline. Foram caminhando para os devidos carros e Lúcia abriu a porta para que Matteo a colocasse no banco.

─ Eu vou à farmácia para comprar as medicações que ela vai precisar. Vamos Matteo. ─ Pegou o filho pelo braço, o carregado até o próprio carro.

─ Eu vou com a Caroline, mãe. Eu a deixo em casa e depois o Adécio me pega.

─ Não precisa Matteo. Eu estou bem.

─ Ela está bem já. Relaxa aí Romeu. ─ Lúcia fechou a porta do carro, impedindo que ele visse Caroline. ─ Vai para casa e deixa que a gente assume daqui.

Violeta censurou o filho, mas Matteo se manteve firme. Olhou para o pai de Caroline, seriamente e depois para Lúcia. Os dois esperaram o que ele diria para deliberar a respeito.

─ É minha obrigação, eu prometi.

Lúcia respirou fundo, olhando para Augusto. Ele não tinha intenção de ceder, mas deixou nas mãos da mulher.

─ Entra no carro, Romeu.

─ Matteo, senhora. ─ Corrigiu-a.

─ Você fraturou o braço da minha filha, posso te chamar do que eu quiser.

Violeta não ousou por um minuto tirar a razão de Lúcia ou defender Matteo. Não gostaria de sofrer das graças de dona Lúcia, já havia ouvido meia dúzia de impropérios dela na recepção e não desejava isso novamente nem por uma boiada.

Matteo beijou a bochecha de Lúcia e ela o empurrou. O rapaz correu, entrou no carro ao lado da Caroline. Violeta riu por impulso e Lúcia arregalou os olhos.

─ Esse seu filho acha que sou idiota. Cara de pau!

─ Matteo é um bom menino, você vai ver. Quando você perceber já vai estar mimando ele tanto quanto eu.

O caminho de casa foi com Augusto olhando vez ou outra pelo retrovisor. Caroline adormeceu no colo de Matteo, e ele de fato se virou para deixa-la confortável. Pensou em manda-lo se afastar de Caroline, mas estava mais bem apoiada daquela forma pelas curvas da estrada do que se os afastasse.

A medicação fez efeito e Caroline dormiu a viagem toda. Chegaram ao portão. Violeta esperou do lado de fora e Matteo a retirou do carro. Colocou na cama com a supervisão de Lúcia e pediu o número de Caroline para poder saber melhor como ela estava no outro dia. Voltou para casa e Rebeca ainda estava com gelo na testa, sentada no sofá com a cabeça no colo do pai.

Fernando lhe olhou com certo desdém.

─ Parabéns, Matteo. Sua irmã bateu a cabeça e a amiga quebrou o braço.

Deu de ombros, ignorando a bronca.

─ Seus amigos estão lá fora. Jogando cartas com Ana Paula. Sua mãe disse que a levaria assim que chegasse.

Ana se despediu rapidamente com Violeta a chamando no jardim e restou os rapazes na piscina. João mirou Matteo e respirou fundo, caminhando para a cozinha, palco de toda a bagunça da tarde, agora completamente arrumada.

Tudo estava escuro.

Matteo abriu a geladeira, buscou água e fechou a porta.

João surgiu na claridade da porta aberta. Aproximou-se sentando no banco. O banco agente do caos.

─ Cumpriu a aposta?

Fez que não.

─ Claro que não. Ela fraturou o braço.

João Pedro deu de ombros, despreocupado.

─ Agora tem a desculpa perfeita pra vê-la todos os dias. Cuidar do braço quebrado da arrogantezinha. Vai ser fácil, ela ficou caidinha por você... ─ Riu, ironizando.

Matteo concordou em silêncio.

─ Tinha que ver de longe a cena, você carregando ela por essa casa. Eu quase acreditei que não estava atuando até lembrar-se de ontem a noite. Uma caixa de cervejas apostada te fez fazer isso tudo. Não quero nem imaginar se te oferecessem dinheiro.

─ Já bebi a cerveja hoje à tarde. Preciso fazer valer a pena.

João tragou o cigarro e Matteo o olhou feio. Odiava que fumassem dentro de casa. Violeta ficava histérica com o cheiro de nicotina nas roupas.

─ Um beijo só e largue ela. Esse é o jogo, Matteo. Ela precisa sentir um pouquinho a humilhação que me causou na frente da turma inteira. Nada fora disso. Não se apaixone por ela.

Matteo riu de canto, bebendo mais água.

─ Eu nunca me apaixonei por ninguém, não será por Caroline que isso irá acontecer. Que frase idiota, João Pedro. Nem mesmo se injetou e já está louco...

João o olhou pela luz do cigarro. Os olhos vermelhos e diferentes do que era na frente dos pais. O menino doce que o mundo conhecia não tinha nada a ver com o Matteo que conhecia e isso era o que mais admirava nele. A capacidade de se esconder. De fazer parecer que era um anjo.

Matteo pegou as chaves do carro na gaveta, jogando nas mãos de João.

─ Onde vamos?

─ Preciso de mais daquilo de ontem. Compre pra mim. Eu te dou um pouco.

João sorriu, pegando uma colher na gaveta e jogando no ar para que ele pegasse.

─ Pegou o isqueiro? ─ João questionou ansioso.

Ele fez que sim, subindo as escadas rapidamente. Tempo suficiente para trocar de roupa e passar pela maleta de primeiro socorros de Violeta. Pegou três seringas e alguns garrotes. Desceu rapidamente.

Fernando lhe olhou de canto.

─ Onde vai?

─ Ali. Já volto.

E foi assim, sem mais explicações, que Matteo deixou a casa com João Pedro a tiracolo. Injetou a droga no amigo e depois em si mesmo. Foram até uma boate, numa cidade turística a cerca de 30km da cidade que o pai governava com mão de ferro. Campo das margaridas era o palco perfeito para o teatro de tranquilidade, alguma ideia de que aquela cidade era pacata.

Riu internamente, do alto do camarote de como João dançava, beijando duas mulheres tão loucas e idiotas quanto ele. Riu mais ainda da situação do próprio pai.

A única coisa que Fernando governava com total poder era a cidade. A casa dele, pelo contrário... A própria mulher se deitava com o professor da escola dos filhos e ele nem mesmo desconfiava.

Nunca precisou pressionar Violeta, nem mesmo se expor dizendo que sabia do que ela fazia. Tinha seus truques na manga, assim como ela, e ganhava muito mais se ela pensasse que era tão ingênuo como Rebeca. Mãe e filho eram dois iguais, cheios de segredos.

Mesmo assim, jamais imaginou que ela tivesse tamanha audácia de enfiar a filha do amante na própria casa por pura curiosidade em saber como se destruía o casamento de Rui.

Foi por Ana Paula, mais do que para incentivar as amizades de Rebeca, que Violeta idealizou aquela tarde. Foi o que ouviu da conversa dela com uma amiga, o que se confirmou pelo interesse dela na espevitada Aninha.

Violeta era sádica, mas não era nada idiota. Ela precisava se certificar que seu nome, no divórcio de Rui, jamais seria citado. Ana Paula era a fonte perfeita. A vítima da negligência familiar que uma separação daquelas causava, que só precisava de atenção e de uma figura materna presente.

Coisa que a mãe dela não era.

A esposa de Rui viajava muito a trabalho e aumentou ainda mais frequência das viagens quando a crise na relação ficou clara. Ela estava fugindo. Violeta sabia disso. Confidenciava tudo as amigas. E, é claro, também sabia por que a ouviu sem que ela soubesse.

 Era igual a ela. Nem mesmo poderia dizer que não saiu à família. Eram unidos em tudo, pelo amor, cumplicidade e pela lealdade em manter os segredos uns dos outros, como grandes personagens que eram.

DIAS ATUAIS.

Trento, 09h08min da manhã.

Casa do Giuliano.

Louis havia tido uma noite difícil, dormiu cedo e durante a maior parte da noite, mas Sarah avisou a Emília que ele acordara durante a madrugada e não havia dormido mais. Tentou histórias, música, ruído para relaxamento, leitura, mas, aparentemente, Louis estava ansioso demais para descansar.

Porém, perto das 6 da manhã, ele dormiu. Emília o encontrou dormindo quando chegou a casa. Parecendo um anjo emburrado e sem qualquer sinal de que acordaria tão cedo. Emília não o acordou para dizer que Giuliano queria vê-lo, achou melhor esperar que ele fizesse isso naturalmente para então receber a notícia.

Sarah saiu para resolver algumas pendências e lhe deixou com ele no quarto. Sentou na beirada da cama e depois deitou, se encaixando no espaço vazio. Fazia tempo que não dividia a cama com ele.

Demorou até que ele abrisse um pouco os olhos azuis redondos e grandes em sua direção. Piscou, se esticou e depois fez uma careta.

─ Vovó, já chegou?

Não podia negar que se assustou consigo mesma quando começou o ensinar a lhe chamar de vó quando ele ainda era um bebê, afinal, era tão jovem e as avós eram mulheres idosas e não se via assim. Mas, foi natural e rápido demais, tão rápido que sequer se deu conta de como aconteceu.

Com um ano, Louis já lhe chamava de vovó para todos os lados e morria de rir quando fazia cócegas nos pés dele e balançava os cabelos loiros perto do rosto do pequeno somente para irritá-lo, mas Louis gostava. Amava fazer bagunça e gargalhava quando lhe via como se fosse à pessoa mais interessante e divertida do mundo.

Não se achava divertida, mas se encontrou com aquela versão de si mesma, que Louis fez nascer e gostou.

Nem mesmo Giuliano esperava conhecer uma voz doce, meiga e infantilizada que ecoava de sua garganta quando trocava sua frauda ou brincava com Louis.

No período que Giuliano a ouviu, certamente era pequeno demais para lembrar e a imagem que tinha para ele na vida adulta já era bem diferente da época em que o bebê de olhos verdes misteriosos e profundos chegou para se tornar seu filho.

Louis e Giuliano inicialmente pareciam ter personalidades muito distintas, porém, com o tempo, ou por assimilação, eles foram se demonstrando muito parecidos. E as chegadas de cada um em sua vida aconteceram em situações completamente diferentes o suficiente para acompanhar sua própria evolução de mãe para avó.

Quando Giuliano chegou a sua vida o agarrou como se sua existência dependesse dele, e talvez realmente fosse assim. Foi como beber água em um deserto a mais de dez dias. Perder sua pequena Pia no parto e sem nunca nem mesmo tê-la visto lhe deixou marcas tão profundas que ainda se recusava a conhecer até onde elas iam.

Ainda olhava para cada mulher próxima da idade que ela teria se questionando se Pia seria como ela. Chegou a tentar voltar às aulas de desenho para desenhar uma mulher com suas características e as de Alberto para afagar a saudade do que jamais conseguiu cumprir.

Por anos comprou joias que gostaria de dar ela. Cordões, pulseiras, brincos, relógios... Com o tempo passando passou a comprar roupas, bolsas... A cada ano, ao menos três vezes, comprava joias e deixava na coleção para Pia.

Bolsas, sapatos, vestidos e joias que jamais seriam usadas por ninguém.

Deixava tudo numa parte do seu closet.

Alberto via. Em alguns momentos lhe avaliava com o olhar frio e distante quando lhe via sair disfarçadamente em algumas viagens e voltar com alguma bolsa de objetos que ele sabia que não era para si ou para presentear ninguém.

Jamais comentou nada. E foram poucas vezes que viu alguma emoção sensível correr a mente dele sobre o assunto Pia.

Ele não falava sobre ela. Relutou por anos para entender por que. Mas não fazia diferença, era melhor assim. Convenceu-se disso.

Sua dor se sucumbiu ao vazio, sem apoio e em silêncio. Ela era só sua e mesmo que Alberto fosse capaz de sentir alguma coisa profunda, ele jamais lhe entenderia completamente.

Ele a viu. Conseguiu encontrar semelhanças, segura-la, cheira-la, se quisesse. Ele a teve por alguns dias... Tinha mais que do que poderia sequer sonhar. Não achava que ele chegou a fazer tudo isso, mas ele poderia ter algo para se apegar.

Nos primeiros meses o comportamento contido de Alberto foi um alívio, afinal, ele não sentia coisas demais para ser levada a loucura por sentimentos humanos e isso lhe estabilizava. Mas, com o passar do primeiro ano parecia uma tortura conviver com alguém que conseguia falar e sentir tão pouco sobre a morte da própria filha, que aparentemente ele queria e estava, aos seus termos, feliz em existir.

Então a dor deixou de ser compartilhada, se tornou só sua e de mais ninguém.

Sua existência foi se tornando cada vez mais frívola e por mais que recusasse aceitar, não via mais sentido em viver no estado que estava.

Não sabia se por piedade ou loucura da mente perturbada de Alberto, ele um dia lhe falou sobre Giovana, sobre o que tinha que fazer e mesmo que quisesse desprezá-lo pela loucura que era a linhagem dos Bocarelli, já vira seus tios fazerem coisas piores, e, honestamente não estava sã o suficiente para recrimina-lo demais.

Não se importava com mais nada, por mais egoísta que isso fosse. Nem mesmo com Alberto e seu ascendente comportamento frio e perverso.

Não achava que poderia salvá-lo, nem queria fazer mais isso.  As ilusões de que seus traços psicóticos eram só fruto de uma mente sobrecarregada já havia muito tempo lhe deixado. Ele não fazia nada para lhe amparar e naquela época, por mais perturbada que estivesse, já notava que não era vingança, mas clareza de que era impossível salva-lo de sua própria loucura.

Já aceitara o fardo de amar alguém que nem mesmo tinha ideia do que isso significava e nem mesmo se compreendia como um humano, mas com uma espécie de deus, numa espiral louca narcísica que honestamente não queria nem mesmo descobrir do que se tratava.

Foi Giuliano quem lhe salvou.

Por mais insano e autocentrado que isso fosse. Tê-lo para si, como seu filho foi à única loucura de Alberto que jamais conseguia se arrepender e de ter sido omissa. Giovana nunca lhe julgou por isso e quando o homem morreu, ela uma vez lhe disse:

“Não se sinta culpada por aceitar meu filho como seu. Era única coisa boa que Alberto conseguiu te oferecer e você se agarrou a isso para sobreviver. Foi uma troca justa”.

Fez tudo, com a cura e a clareza finalmente surgindo em sua mente à medida que Giuliano crescia, para dar a Giovana paz e nem mesmo sentiu ciúmes ou nada parecido quando eles puderam coexistir um ao lado do outro.

Era uma troca justa. Acordos silenciosos entre duas mulheres marcadas por um homem e seu séquito milenar de insanos. Giuliano foi um presente de uma mulher que lhe salvou e, em troca, pôde amá-lo e cuidar dele para si e para ela, para salva-la também. As duas mulheres se forjaram amigas em meio ao martírio da dor mais excruciante de suas vidas.

Louis, por sua vez, foi diferente. A ferida enorme de seu coração nunca se fechou, mas estava vivendo com ela quando aquele pequeno apareceu. Não viera de um pacto egoísta e que supriu sua dor, foi uma adoção generosa e amável do seu garoto machucado pela traição e pela culpa.

Giuliano plantou amor onde só havia sofrimento e traição e isso a fez ama-lo mais ainda, e é claro, a ver Louis como um renascimento. Poderia vir coisas boas daquela família que aprendeu a aceitar como sua. Os Bocarelli poderiam renascer através de uma atitude de amor depois de séculos de existência miserável e tudo começou fruto de uma loucura que aceitou em seu colo na atitude mais egoísta que já considerou ter na vida.

Era a prova de que algo que iniciara errado poderia começar a dar frutos bons.

Foi mais um foco de luz numa escuridão miserável da qual estava enfiada até o pescoço.

─ Vovó... Por que está dormindo comigo? Eu já sou grande.

Riu baixinho.

─ Eu estava sentindo sua falta.

Ele sorriu de canto e lhe abraçou, beijando de maneira protetiva seus cabelos. Era algo que sempre viu nele. Louis era protetor e generoso. Aos quatro anos, ainda se acostumando em se equilibrar sobre as duas pernas, ele lhe acompanhou numa feira de rua típica de primavera de Siena e ficou lhe observando carregar com dificuldades algumas sacolas.

Ele olhou para a pequena bolsa de doces que carregava e depois ficou pensativo. Ele parou e já estava reclamando para que andasse quando ele disse: “Eu sou um homem, como o tio Giuliano. Ele leva as coisas mais pesadas para a senhora... Tio me disse que faz isso porque um homem é mais forte porque precisa cuidar das mulheres que ama. Eu amo você vovó.”

Seus olhos encheram de lágrimas e mesmo com as pessoas passando, largou as sacolas no chão e agachou para agradecê-lo por sua gentileza. Logicamente Louis não tinha estrutura física ainda para carregar muito, mas daquele dia em diante ele sempre levava várias sacolas para si e nem mesmo reclamava que estava pesado.

Uma vez a segurança tentou convencê-lo a entregar, mas além de Louis se recusar, também não permitiu. Precisava deixar que ele exercesse livremente suas características mais positivas.

Giuliano ficou estarrecido e ao mesmo tempo orgulhoso.

Talvez, fora das paredes dos Bocarelli, alguém achasse errado Louis acreditar que a força física que viria a ter no futuro era porque devia proteger as mulheres que amava, mas como boa parte das coisas que ouvia sobre si , não dava a mínima importância.

Em seu coração, Louis ser protetor e generoso era a melhor coisa que poderia acontecer naquela família e só isso bastava.

─ Seu pai acordou, Louis... ─ A expressão de Louis foi mudando para a surpresa e depois ele sorriu. Uma sorriso genuíno. ─ Ele quer ver você.

O menino se mexeu, esticando o corpo na cama com agitação. Chutou os lençóis e se sentou.

─ Ótimo, preciso dizer a ele que cuidei bem da senhora, da Sarah e da Carol.

A expressão de Emília, apesar de boba, modificou para a dúvida.

─ Carol, Louis? O que fez para cuidar da Carol? Eu sei que comprou chocolates para Sarah e insistia para ela ir dormir quando você estava insone, que me mandava vídeos fazendo as tarefas para eu não me preocupar...Mas a Caroline... O que fez para cuidar dela?

O menino sorriu de canto, travesso e genioso.

─ Pedia para ela dormir aqui. Ela dormia no meu quarto e aí eu podia olhar ela e não deixar ela sozinha em casa sem ninguém... ─ Emília arregalou os olhos, estarrecida com a esperteza do menino.

─ Inteligente, confesso.

─ Eu sei que eu sou inteligente vovó... ─ Mexeu os ombros, presunçoso e brincalhão.

Beijou o rosto dele e Louis se aconchegou nos seus braços. Os olhos azuis que tanto conhecia, o sorriso meigo tão semelhante ao do homem de quem herdou os genes lhe encararam com uma expressão de ironia.

─ Se eu me atrasar, tio Giuliano vai dormir e não vou ver ele... Levanta vovó, eu tenho muitos compromissos hoje.

Emília revirou os olhos, levantando da cama e puxando junto.

─ Sua agenda muito lotada, imagino... ─ Sorriu de canto e Louis desdenhou. Emília olhou as horas no relógio de pulso e suspirou pensando nas orientações que mais uma vez teria repetir. ─ Estamos fazendo de tudo para que as pessoas não te vejam, não queremos te expor ou deixar vulnerável... Mas, se caso alguém da imprensa te veja... Olhe para baixo ou sempre para frente. Não precisa falar nada.

Louis deu de ombros, acostumado.

─ Eu vou ser presidente um dia, como o tio Giuliano é. Eu sei o que fazer.

Emília arregalou um pouco os olhos com aquela expressão, mas não disse nada que pudesse sinalizar que estava atenta com isso. Deixou o quarto e fechou a porta atrás de si, encostando as costas e sorrindo de canto, imaginativa.

Ah, a ironia... Como sempre, a ironia...

Trento, 10h07min da manhã.

Casa de Luca

Caroline dormiu depois de algumas horas. O corpo dela adormeceu em um sono profundo e exausto que foi fácil coloca-la na cama, no andar de cima. Organizou os lençóis e a cobriu, receou deixa-la sozinha, mas precisava resolver outras pendências.

Amelie chegou antes das sete da manhã, mas foi silenciosa o suficiente para não questionar nada naquele momento. A expressão de assombro de Luca foi suficiente para compreender que algo no mínimo assustador havia acontecido.

Não queria imaginar como Caroline poderia ter tido pesadelos com Alberto sem jamais o ter conhecido. Porém, sabia da sensibilidade que Caroline carregava para absorver os problemas e os sentimentos alheios. Ela sentira a força que um dia Alberto teve e, claro, as sombras dele.

Foi ao mercado, depois a padaria. Faria um café da manhã digno e não tocaria naquele assunto. Só o faria se ela quisesse.

Voltou para casa rápido, colocou as sacolas na mesa da cozinha e foi no próprio quarto, andou até a beirada da cama que Caroline dormia e seus cabelos estavam espalhados, alguns fios cobrindo o rosto. Ela continuava quase na mesma posição que havia a posto ali.

Beijou sua testa e sentiu o ar pesar.

Uma alma tão doce, mas carregada de tanta dor.

Pegou em uma das mãos, acariciando a palma e a ponta das unhas ovais. Tão pura e ingênua que lhe parecia um anjo. O seu anjo.

─ Eu amo tanto você... ─ Sussurrou, baixinho. Temendo que ela ouvisse, que a porta se abrisse. Que algo atrapalhasse a atmosfera onírica das últimas horas.

Tivera Caroline por mais tempo, por horas. Sem trabalho, livros ou publicações. Conseguiu apreciar seus gestos, seu comportamento, sua personalidade.

Teve mais certeza dos seus sentimentos por ela ali do que já tivera sobre toda a sua vida. 

Pensou em acordá-la, mas não achou justo que a tirasse da tranquilidade que estava por seu egoísmo em ver o café da manhã que havia feito para ela. Então a deixou dormir mais um pouco, que acordasse quando seu corpo desejasse.

Desceu os degraus estreitos da casa e antes que chegasse ao lance que dava para a sala ouviu a voz de Anika. Ela dominava o ambiente com suas botas de cano curto fazendo barulho por seu carpete e pelo cheiro adocicado do perfume. Esperava por si, encostada no sofá, apertando a alça da bolsa com a ponta dos dedos.

─ Bom dia! ─ Ela disse perniciosa. Olhando ao redor, para o cenário da madrugada que teve com Caroline. ─ Imagino que estudaram muito essa noite.

Ela apontou com um olhar para o notebook de Caroline e a agenda sobre a manta do sofá, embolado nos fios do carregador e do fone do ouvido.

Ignorou.

─  O que veio fazer aqui na minha casa tão cedo, em um domingo?

Anika cruzou os braços, levemente indignada.

─ Você ainda não enviou alguns documentos para o comitê. E como o prazo final foi ontem à noite, professor Klein da universidade de Berlim me ligou, perguntando se havia desistido de submeter o projeto conjunto.

Luca deu de ombros. Já havia resolvido aquilo com a universidade desde a semana anterior. Uma doutoranda, orientada por ambos havia solicitado que suspendessem a sua matrícula por alguns meses já que não havia conseguido liberação da universidade que trabalhava para ir a Berlim.

Porém, como era esperado, Anika inventaria essa conexão para manter contato.

─ Já está resolvido. Poderia ter me ligado, te estressaria menos num domingo pela manhã.

Ela deu de ombros.

─ Eu liguei, mas não atendeu. Amelie me disse que havia saído e que deixou o celular em casa.

Luca analisou-a.

─ O que realmente quer, Anika? Pensei que tínhamos resolvido nossos assuntos. E eu já entendi a razão da sua visita desde o momento que abriu a boca. Porém, não compreendo o que ainda quer. No que mais posso te ajudar. ─ Colocou a mão nos bolsos, encarando-a até que ela ficasse constrangida.

─ Está certo. Eu precisava que soubesse de uma coisa.

Luca fez sinal que ela continuasse e ela se angustiou com algo. Ele a escoltou para o outro sofá e os dois sentaram, um ao lado do outro. Anika manteve tanto a postura que seu corpo parecia que a coluna estava amarrada a uma estaca de tão tensa.

─ Eu estava com alguns colegas ontem à noite. E alguns membros do comitê de ética estão falando em investigar você... ─ A expressão de Luca mudou para a completa surpresa. ─ Você e Caroline.

Os lábios dele se juntaram e formou uma linha aguda, os olhos se fecharam um pouco e a surpresa deu lugar a ira. Anika sentiu a raiva dele, o ódio se consumindo por dentro só pela menção do nome de Caroline naquela conversa.

─ Pelo que? ─ Foi frio, pragmático.

─ Alguns deles não viram com bons olhos você ter feito aquela viagem para o Brasil, em busca do artefato... ─ Suspirou. ─ Acreditaram que pode ser um pretexto para envia-la para ao doutorado e que isso esteja a privilegiando. Que tenha feito isso por motivos pessoais.

─ Que tipo de motivos pessoais? ─ Falou baixo. Anika demorou a falar. ─ Fala, Anika.

Ela se encolheu.

─ Pelo o que eu ouvi... Eles ainda não tem certeza... ─ Buscou as palavras na mente.

Luca lhe interrompeu:

─ Como eles podem querer acusar a mim e Caroline de uma coisa dessas se sequer conseguem elaborar uma razão pela qual eu daria algum privilégio pra ela? Que coisa maluca é essa, Anika? Quem diabos inventa algo assim sem provas?

Ela também pareceu confusa.

─ Eu não sei... Não sei como começou... Mas, eles estão certos que você dá privilégios a Caroline. Que isso esteja relacionado à sua amizade com Caroline. A sua relação intima com ela.

Luca engoliu em seco. Imaginou que poderia ser por qualquer coisa, menos aquilo. Imaginou se não seria por Giuliano e pela antipátia generalizada que ele tinha angariado com alguns acadêmicos por suas atitudes políticas pouco ortodoxas. Todavia, não. Os supostos privilégios tinham a si como pano de fundo, não com Giuliano.

─ Anika, isso é ridículo...

Ela não o olhava mais.

─ Você sabe que não é ridículo. Sabe que essa coisa entre vocês, existe. Eu mais do que ninguém sou testemunha disso.  Sei que tem consciência que nada disso é infundado. As pessoas falam, comentam, veem... Todo mundo sabe que Caroline é a sua favorita. Vocês dois são jovens, não deveria te surpreender que uma hora outra iriam falar que existe além de uma amizade ou de competências profissionais dela como os motivos que guiam você.

Luca ainda achava aquilo incompreensível. Forjado, na verdade.

─ Caroline estava em um relacionamento com o Giuliano esse tempo todo. Era muito mais fácil me acusar de favorecer ela para agradar meu primo, mas isso? Isso é ridículo Anika! ─ Ele esfregou as mãos, ansioso. ─ O que disse? O que falou quando insinuaram essas coisas? Alguém te incluiu ou perguntou a sua opinião?

Ela baixou o olhar e fez uma negativa, não para o assunto, provavelmente porque não concordava com o que fez, ou seja lá para o que disse.

─ Eu disse que isso não fazia sentido. Você e Caroline eram amigos e sempre se identificaram. Tinham personalidades parecidas... Que nunca passou disso.

Luca se surpreendeu. Não por Anika ter mentido, mas por ter mentido tão bem. Ela estava escondendo algo mais.

Ela continuou:

─ Eu acho que consegui segurar essa onda por um tempo. Mas precisa se cuidar. Precisa tomar cuidado com o que falam sobre como faz as coisas agora. Se quiser manter essa coisa de vocês, precisa se desvincular de Caroline... Ou se afastar mais.

A conversa não havia acabado somente com a palavra de Anika. Mas ela tinha certeza demais de que estava tudo controlado.

─ O que mais fez Anika? Como conseguiu em uma noite de bebedeira calar a boca de um comitê daquele tamanho? ─ Desconfiou.

Ela suspirou.

─ Eu fiz o que podia para manter você e Caroline longe de problemas. Fiz o que era preciso.

Luca virou o rosto, contrariado.

─ O que disse a eles Anika? Precisava só ter dito que Caroline estava com o Giuliano. É a verdade, de uma forma ou de outra é o que todo mundo deve pensar no momento.

Ela mexeu nos cabelos, na franja curta, esfregando a pele do rosto como se pudesse arrancá-la.

─ Não entende que o problema não é a conduta da Caroline? Que é você o problema? E que, ela estar com Giuliano Bocarelli não faz nenhuma diferença se quisessem ter alguma coisa? O problema é você. É você que carrega o nome da instituição nas costas Luca. É você que tem os cargos e que é responsável por várias das produções acadêmicas na nossa área dentro dessa universidade.

Luca ponderou. Entendia-a. Mas não entendia como alguém poderia simplesmente resolver que queria investigar porque Caroline era sua favorita ou não. Todos tinham protegidos, alunos que consideram mais íntimos, mais cordiais, mais próximos.

Anika continuou:

─ Eu disse que nós dois estavámos juntos. Que eu e você temos um relacionamento há dois anos e que não contamos nada porque não havia necessidade de nos expor. Fiz-me de ofendida e a situação pareceu se arrefecer.

Luca arregalou os olhos mais e mais até fecha-los e esconder o rosto nas mãos. Fez uma negativa e depois riu, descrente da situação que se meteu.

─ Está me dizendo que um comitê sério resolveu investigar uma coisa absurda como essa e só parou quando teve certeza que eu estava com você e que não havia a menor possibilidade de eu ter algo com Caroline? Como uma fachada?

Ela assentiu.

─Serviu para segurar os boatos. Para apaziguar as fofocas.

Ele fez que não com a cabeça novamente.

─ E se essa fachada não servir?

─ Tem que durar. Eu e você estamos presos um ao outro enquanto acabar o mestrado de Caroline e ela ir embora ou fazer doutorado em outra universidade. Não podemos fazer nada que acabe com essa fachada ou vamos prejudicar Caroline e a você.

Luca deu de ombros.

─ O comitê inteiro não vai aprovar uma moção para repudiar nossas pesquisas somente baseados em fofocas ou comentários. Isso não vai para frente de qualquer forma. ─ Tentou se despreocupar.

─ Mas se eles aprovarem a investigação, independente do resultado, vocês dois vão cair em descrédito, vão colocar um alvo nas costas.

─ Eu não sou o único professor do mundo a ter favoritos. Isso é ridículo Anika! Não entende o quão sem fundamento isso é?

Anika continuou sentada, mas Luca andava de um lado a outro da sala.

Ela arrumou a bolsa, olhando de canto para a mesa de café da manhã montada e para a escada que daria para o quarto onde Caroline dormia, na cama de Luca.

─ Eu poderia concordar que é. Mas não quis arriscar para ter certeza se vão levar isso para frente ou não. Para todos os efeitos, eu e você estamos juntos e essa fachada tem que durar. Eu vou embora. Agradeço se puderem ser discretos a partir de agora.

Ela se levantou para sair, mas não foi tão longe. Luca a chamou antes que ela chegasse próxima da porta.

─ Por que fez isso?

─ Eu fiz isso por você. Para que você fosse feliz da forma que quiser e com quem quiser. Mesmo que seja com ela. Aproveite.

E então ela saiu. Não dando sequer espaço para que agradecesse.

Luca sentou no sofá e expirou o ar pesado do corpo. Tentando aliviar a cabeça.

Precisava fazer aquela fachada valer a pena agora. Mais do que antes.

Amélie certamente ouviu a conversa, não formulou palavras, só tocou seus ombros em apoio.

─ Prepare uma mala pra mim, por favor? ─ Ele disse, introspectivo. ─ Coisas para um dia, no máximo dois. Vamos partir em duas horas no máximo. Se te perguntarem onde estou... Você não sabe de nada, nem mesmo pra onde nós fomos.

─ Alguns amigos me disseram que Giuliano acordou... ─ Ela falou testando as reações de Luca. Foram amenas. ─ Está buscando por ela. Ele quer ver Caroline de todas as formas.

Luca girou os olhos, irritado.

─ Posso estar errada, mas acredito que ele não queira perder tempo. Ele precisar casar com ela o mais rápido possível.

─ Caroline é livre para decidir o que quiser. Se ela decidir por bem a se casar com o Giuliano, não há nada que ninguém possa fazer. Porém, até ela tomar qualquer decisão, precisa que ele faça muito mais do que correr meio mundo atrás dela, precisa que ela ainda não esteja curada ou fragilizada, é isso que quero que aconteça. Caroline precisa estar bem para poder tomar qualquer decisão que seja. Ela precisa de um tempo e eu vou proporcionar isso.

Amélie fez que sim, afagando os ombros de Luca e concordando em silêncio que era o certo a se fazer.

─ Nós vamos sumir por algumas horas. Vou precisar acordá-la.

─ E o que Anika disse? Sobre manter uma fachada? Serem discretos?

Luca já estava a caminho da escada, mas parou.

─ Eu não me importo com o que podem fazer comigo. Em outro tempo... Poderia ser que sim. Quando a minha carreira profissional era a única coisa que tinha para fugir dos negócios da família. Mas, não agora. Ela é mais importante que qualquer outra coisa. Se para vê-la longe de alguns monstros eu tenha que perder uma vida... Bom... Vale a pena perder uma vida por um dia que Caroline tenha paz.

Trento, 11h16min da manhã.

Casa de Raena

Raena verificava as mensagens no celular e suspirou. Olhou para a porta do restaurante cheio e depois para Olívia no caixa, distraída com os clientes. Era um horário de pico, a praça fervilhando. Laura não chamaria tanta atenção, mesmo que Trento andasse respirando política.

Assim que a cabeleira loira passou pela porta conseguiu identifica-la. Laura estava muito bem vestida, os olhos bem marcados em um delineado fino preto, o que exibia ainda mais firmemente a cor de seus olhos azuis. Ela olhou um pouco ao redor, verificando quem poderia estar por ali, mas baixou o olhar.

Certamente percebendo que não teria problemas.

Mesmo que por fora Laura parecesse à mesma, ela estava diferente. Sentia-a cansada.

Chamou-a discretamente para trás do balcão e Laura subiu as escadas atrás de si. Entrando em sua casa. Mostrou o sofá e ela sentou, tirando a bolsa dos ombros e se apoiando no encosto como se estivesse carregando o peso do mundo nas costas.

Colocou o chá na mesa e esperou que ela bebesse algo para se sentir confortável para conversar, entretanto, ela ignorou qualquer convenção e lhe abraçou.

Laura encaixou o rosto em seus ombros e chorou. Soluçou como se a alma estivesse partida em duas.

─ Eu o perdi...

Aquiesceu, sem dizer nada. Era nítido que ela estava falando sobre o bebê.

─ Sinto muito... ─ Afagou os ombros de Laura. ─ Sinto tanto querida.

Laura escorregou a cabeça para suas pernas, pedindo colo para chorar. Soluçando até perder o fôlego.

Possivelmente Raena compreendia a dor da perda do seu bebê. Mas ela não saberia, nem mesmo poderia explicar que a dor em seu peito tinha mais causas. Era ele. A vida. Ou, para quem acreditasse, o destino.

Ver Giuliano morrendo lhe mostrou algo que negou para si milhares de vezes, que sua mente egoísta e comportamento superficial não lhe deixaram ver desde o momento que parou na cama dele em Siena pela primeira vez. O arrependimento por não ter sido capaz de voltar atrás e mudar aquele dia somente para não sentir a dor de ter que afastá-lo, dessa vez para sempre. Até mesmo culpa por não ter vivido mais o que a vida lhe presenteou quando podia. Quando era possível.

O sentimento que não nomearam... Na dor e pela dor, encontrou um nome.

Um nome que agora nada valia porque não havia mais tempo, não havia uma realidade paralela que poderia fazer dar certo. Restava somente um oco de si mesma sendo obrigada a viver obrigando-se a expulsar para sempre as próprias memórias... Expurgando-as como uma doença.

E não era certo.

Não podia arrancar a melhor parte de sua própria vida. Mesmo que ela fosse proibida, um erro de percurso.

Era o sentimento certo, mas para a pessoas errada. No meio mais errado possível.

Mas isso ainda não fazia seus sentimentos serem ruins o suficiente para ter forças e odiá-los. Não conseguia, jamais poderia e teria que viver com isso. Carregando as marcas de uma vontade que jamais seria atendida.

Seu choro compulsivo continuou por minutos e Raena continuou lá, como uma mãe que pega a filha nos braços. Sentia mais afeto vindo dela do que sentiu em toda sua vida vindo de Alessa e desejou não ser quem era e jamais aceitar aquele convite que lhe levou a Organização cinco anos antes.

Desejou tudo o que nunca poderia ter.

Ela secou seu rosto, beijou sua testa.

 Bebeu chá e se encolheu no colo dela.

─ Eu me sinto tão egoísta... Eu queria tanto meu bebê... Eu queria ao menos uma lembrança do que eu sinto e nunca mais vai acontecer. É egoísmo não é Raena? É egoísmo desejar meu bebê comigo e pensar que se eu o tivesse deixar o pai dele doeria menos?

Raena sentiu que as lágrimas eram também de amor. De um amor complicado, denso, nunca concretizado e que infelizmente jamais teria conclusão.

─ Não, não é querida... Infelizmente não há remédio para sua dor que não envolva o tempo e a vida. Viver tira o peso da dor e as memórias... As memórias alentam. Eu te garanto que alentam. ─ A expressão de Raena era de um sorriso, mas os olhos estavam vermelhos. ─ Agora elas doem, porém, se tornam um afago. Eu prometo. Prometo que vai.

Laura não conseguia encontrar como fazer aquilo, mas confiou. A voz da experiência tamponou seu coração como um curativo. Em algumas horas estaria encharcado de sangue, mas aliviava, naquele momento fazia arder com menos força, diminuía o peso em seus pulmões e a sensação que seu corpo se desfaria em cinzas.

Esfregou o ventre vazio e se encolheu em silêncio. Raena continuou fazendo carinho em seus cabelos e o barulho dos clientes no andar de baixo a fazia perceber que não estava sozinha. Que a vida, ao menos a vida dos outros, seguiria. Mesmo que a sua estivesse estagnada em cada pedaço dos últimos anos.

─ O amor é a única coisa que faz a alma morrer mesmo quando o coração pulsa... Mas ela trás vida também. ─ Ela sussurrou em seu ouvido e colocou mão na altura de seu estômago. ─ Esses bebês tiveram seu tempo e o amor que sentiu por eles nunca irá embora, Laura. Tudo que precisa fazer é se agarrar na vida que o amor te trouxe...

Lembrou-se de Miguel, de tudo que ele exigia e de que não seria capaz de cumprir sequer metade. Menos ainda de buscar por Caroline para mais uma vez e fazê-la acreditar no amor de Giuliano não sentia, sendo a principal pedra de sustento de uma farsa.

Mas a pior mentira era a que contaria para si mesma a partir daquele momento.

Morrendo engasgada com segredos e soterrada por mentiras. Exibindo-se e criando um teatro como se estivesse nos bastidores de uma enorme encenação.

Gostaria de culpar Caroline. Mas ela não estava numa posição tão diferente de nenhum dos envolvidos. Queria não vê-la para não recordar o papel que teria que desempenhar e como a veria sofrer à medida que ficasse tão claro que a produção e os atores não estavam suportando os sapatos de seus personagens.

Desejou não ter que vê-la e nem mesmo ter que ouvi-la porque não teria forças para insistir no mesmo roteiro falido e dolorido, e, é claro, com o mesmo fim.

─ Eu preciso continuar não é, Raena? ─ Disse, enigmática.

Raena não teve tanta certeza se estavam falando sobre o mesmo assunto, mas assentiu.

Laura precisava, por seu próprio bem, continuar.

Laura internamente sabia que Independentemente do que Giuliano lhe disse ou de seu próprio coração. Era seu dever, mais do que sua vontade. O que pensava ou sentia não tinha a menor importância.

Não mais.

Trento, 11:48 da manhã.

Hospital.

Giuliano já caminhava sem nenhuma ajuda e as primeiras horas exaustivas de intervenções e exame haviam passado. A fisioterapeuta pediu que usasse meias compressivas para evitar um distúrbio de coagulação por alguns dias e fizeram alguns exercícios em alguns tatames do outro lado do hospital.

Andar foi terrível nos primeiros minutos, seu cérebro não achava o controle para suas pernas. Como se os fios estivessem desencapados e replicando choques por todos os lados, lhe desequilibrando. Precisou parar, respirar, se apoiar, contar com a força de Miguel e dos enfermeiros ao seu redor.

Acordou cedo disposto a ir embora daquele hospital o mais rápido possível e pra isso faria qualquer coisa.

O cardiologista e o pneumonologista lhe imploraram para ter paciência na beirada do tatame, mas só parou de tentar se reconectar com seu corpo quando a fisioterapeuta finalmente lhe disse alguns bons argumentos.

Voltou para o quarto e decidiu que tomaria banho sozinho e o fez. Sem maiores problemas, nada que o fizesse sentir mal. Pelo contrário, sentia-se vivo como nunca antes. Miguel ficou responsável por lhe acompanhar enquanto Emília ia a casa, buscar Louis.

Miguel entrou no cômodo do banheiro somente para lhe entregar as roupas e saiu rapidamente.

Giuliano mirou-se no espelho, com os cabelos ondulados caindo no rosto, precisando de corte. Nenhuma olheira grave. A última noite de sono tinha sido ótima, apesar do barulho e de pessoas lhe verificando como se fosse morrer de uma hora para outra. Vestiu a calça do moletom e a camisa de manga longa.

Estava condenado a usar pijamas, por pelo menos uns dias. Fora esse o termo que um dos médicos lhe disse para relaxar

Escovou os dentes pela quarta vez naquela manhã, o gosto metálico que tinha boca iria demorar a passar, mas isso não lhe impedia de tentar se livrar daquilo. Colocou o chinelo porque detestava andar somente com aquelas meias e andou de volta para a cama hospitalar.

Miguel continuava lhe observando como se quisesse lhe punir por alguma coisa, ao mesmo tempo que estava feliz por lhe ver de novo. Essa era a melhor parte dele. Miguel sabia ser tio e seu mentor ao mesmo tempo.

─ Aparentemente, suas tentativas de manter a sua relação com a Laura às escondidas de nós não teve muito sucesso.

Giuliano sentiu pelo ritmo da fala dele quem era o “nós” daquela sentença.

─ Não me importa nem um pouco que saibam dela. Vocês sempre souberam, na verdade. Nunca escondi. Preservei somente o que considerei pessoal.

─ Pessoal? Duas crianças? Qual o seu conceito de informação pessoal pelo amor de Deus? Você a engravidou por duas vezes? Vocês terão esse vinculo para sempre Giuliano! Não poderia esconder isso de nós. Não poderia esconder isso de mim... ─Soou pessoal. Magoado, na verdade. ─ Eu sou sua família e você me escondeu que Laura estava grávida. Laura carregava uma criança sua enquanto estava te ajudando a arranjar uma forma de conquistar Caroline. Que tipo de maluquice imoral foi essa que se meteu?!

Giuliano pegou o Ipad que Sarah fez questão de mandarem lhe entregar em cima da mesinha e fingiu que não estava ouvindo. Miguel não se importava se iria retrucar ou não. Ele não queria ouvir, somente reclamar.

─ Como quer que eu ache normal a forma que tratou a Caroline? Como acha que eu vou conseguir explicar como vai conquista-la de novo com todo esse pandemônio como pano de fundo?

─ Não precisa explicar como vou fazer nada. Eles querem resultados, e eu os darei. Convenhamos, nunca se importaram com que meios ou o que eu faria da minha vida enquanto tentava cumprir essa missão suicida que me deram nas mãos. Nunca se importaram comigo ou com o que eu teria que sacrificar para conseguirem o que queriam. ─ Deu de ombros.

Miguel cruzou os braços estarrecido.

─ Não compreende a gravidade disso? Uma coisa é vocês continuarem essa aventura sem futuro algum de vocês enquanto não se casa... O que já é muito questionável. Outra bem diferente é gerar um ser humano nesse processo. O que iria fazer se Laura não tivesse perdido essa criança? Como iria lidar com essa enrascada imoral?

Giuliano ergueu os olhos do ipad. Não que estivesse conseguindo prestar atenção no documento que Sarah lhe preparou, mas estava perdendo a paciência com a fala de Miguel e não tinha nenhuma pretensão de brigar, menos ainda com ele.

─ Moral? Moralidade? Vocês vão mesmo falar de atitudes moralmente aceitáveis? Vocês? Para mim? ─ Ironizou. Miguel apertou o espaço entre os olhos como se isso fosse acalmá-lo. ─ Todos sabiam que eu tinha uma vida antes da Caroline! Ela foi enfiada na minha vida como uma responsabilidade que eu tinha que cumprir e eu fiz tudo o que me mandaram, mesmo sem saber o porquê, mesmo discordando... Não podem me exigir que a ame, que queira estar com ela, nem mesmo que eu a deseje.  Não há nenhuma clausula que me obrigue.  Eu vou me casar com ela, vou cumprir com o que querem e é tudo o que terão. Nada a menos, nada a mais. E, se Laura não tivesse perdido nosso filho, não tenha dúvidas que eles iriam precisar de outra pessoa para cumprir esse papel, porque jamais a deixaria com meu filho sem minha supervisão para viver uma mentira sem proposito!

Miguel engoliu a força aquelas palavras e apoiou as mãos na proteção da cama. Não poderia argumentar com aquilo, ou talvez somente não quisesse mais uma discussão com Giuliano que provavelmente não mudaria nada na forma de pensar no sobrinho.

Giuliano continuou:

─ E se quer saber minha opinião, bem pessoal, sobre tudo isso tio... Essa coisa é mais injusta pra ela do que pra mim... Ela não tem qualquer ciência do por que nós a queremos e acredita somente num sentimento da minha parte que jamais existiu e que nunca, ouça bem essa parte Miguel... Nunca... Nunca vai acontecer! Ela confia em um amor que eu inventei. Que nós todos criamos. É um personagem, nada além disso!

Giuliano desligou a tela rapidamente, perdendo o olhar por alguns segundos em algum espaço qualquer do quarto.

O mais velho já abria a boca para manda-lo parar de falar, mas desistiu novamente. Giuliano não ouvia ninguém quando já estava de cabeça feita. Deixou que ele continuasse a correr o risco de se prejudicar com as próprias falas se isso significava que ele seria sincero em alguma coisa.

Era melhor saber o que ele pensava do que deixar que se fechasse e escondesse mais segredos.

─ Você errou, Giuliano... Você cometeu muitos erros desde que isso começou.

Ele concordou com um meneio de ombros.

─ E de todos os meus enormes erros... E dos muitos que eu já cometi. Eu gostaria que Caroline ficasse fora deles.

 O olhar foi para o tio, seguro e implacável. Miguel aquiesceu. Piscou por tempo demais e soltou a mão da proteção da cama, desarmou os escudos e tocou os cabelos do sobrinho, beijando os fios loiros e molhados.

Seu garoto genioso.

Giuliano foi praticamente seu primeiro filho. Alberto o ensinou como um menino, mas foi sua atribuição formá-lo como um homem.

─ Sinto muito pelos seus filhos... ─ Falou baixo. Temendo ser ouvido por aqueles que tinham menos coração para entender as razões de agir de Giuliano. ─ Entendo o que sentiu quando o perdeu...Entendo o que fez em Milão, por mais que não concorde. Tome seu tempo para curar das suas feridas.

Giuliano não disse nada sobre aquilo. Aquelas palavras eram daquelas que não careciam de respostas. Ouvi-las já aliviava o peso de sua mente.

─ Não é das minhas feridas que preciso cuidar...

Miguel concordou mexendo a cabeça e depois olhando para a porta, ou para o lado de fora que Laura esteve.

Era dela que ele se referia.

─ Preciso cuidar da mãe dos meus filhos, Miguel. Da mulher que salvou a minha vida... E não me importo à mínima com o que eles pensam sobre isso. E você sabe... Você sabe que se me disser pra deixa-la sem olhar para trás, eu não faria. Não me peça isso. Não me peça nada sequer parecido com isso, tio.

Miguel fez que sim, mais uma vez só concordando com a cabeça.

─ Eu seguro o que tiver de segurar por isso. Eu prometo. Tome seu tempo, mas seja rápido. Precisa de Caroline. E não importa o que pense a respeito, mas Caroline é única pessoa de quem precisa.

Miguel deixou Giuliano sozinho, mas não se esqueceu de entregar a ele o celular que a equipe médica havia negado anteriormente e que Emília fez questão de confiscar quando Sarah tentou entregar.

Caminhou para o elevador olhando na tela do próprio celular, verificando a última mensagem de Cícero com os nomes dos dois proeminentes membros da fraternidade que foram os primeiros a aceitar os convites da reunião que realizaram em Paris.

Não muito coincidentemente foram os mesmos que tiveram intermediários encontrando contatos de Norma nos Estados Unidos. Encontrando senadores que deviam até as roupas que vestiam a Giuliano e que tinham muitas motivações para querê-lo morto.

Aparentemente os senadores estavam buscando por se livrar de Giuliano, fosse de que forma fosse, vindo de qualquer um.

Norma era assunto para depois, mas os dois em questão, não.

Não muito surpreendentemente Valentim era um dos melhores amigos de Alberto Bocarelli em vida.

Não muito surpreendentemente, Emília estava certa.

Hugo Valentim e Clarke Evans foram os membros mais insatisfeitos com a forma com que Giuliano tratou Caroline no hospital em Milão. Eram eles que sempre reclamavam do comportamento indisciplinado de Giuliano e, claro, os dois que no passado usaram todas as forças para manter Giovana em exílio e que depois fizeram todo o possível para angariar votos para executá-la.

Todavia, não houve votação para executar Giuliano. Não houve consenso, porque jamais isso foi proposto para afastar seu sobrinho. Nem mesmo o mais maluco dos membros da fraternidade ousava levantar a voz contra Giuliano. Eles o respeitavam, mesmo que nunca concordassem com ele.

Esses fizeram por sua própria conta... E por próprio risco. E sabiam que isso era traição.

Sabiam qual era a regra para esse tipo de conduta.

Porém, ainda precisava descobrir como e por que, com tanta coragem, cometeram essa traição. Por que Laura foi a única a ter conhecimento de como reverter o estado que Giuliano estava e, é claro, entender porque ela tinha tanto medo que descobrisse.

E ainda não podia dar a Giuliano poder de ciência sobre a situação, não enquanto não compreendesse porque Caroline se tornou mais importante que Giuliano a ponto de ousarem mata-lo em defesa dela.

A Caroline, Giuliano devia a morte, e a Laura... Devia a vida.

E precisava entender por que.

Iria começar por Santino.

A fraternidade e suas piadas de mau gosto. O mais baixo dos seus serviçais agora se tornava o mais importante.

Travou o elevador por alguns poucos minutos... Tempo suficiente para fazer a ligação que ninguém poderia saber que estava fazendo.

Gianluigi foi um colega de faculdade, numa época distante foram até amigos, porém agora se restringiam a contatos breves e incipientes cheios de promessas de que marcariam alguma coisa no futuro.

Casou com a mulher que ele amou e não se arrependia disso. Carla havia deixado seu amigo, muito tempo antes de se casarem, mas isso não impediu Gianluigi de lhe detestar por alguns anos.

Águas passadas.

Mas que não mudavam a forma como Gianluigi a olhava quando achava que ninguém veria.

No olhar dele conseguia sentir o que Giuliano sentia.

Querer estar com alguém que não faria parte de seu futuro. Fosse amor, paixão ou mesmo desejo e conforto. Da forma mais nobre a mais baixa. A vontade que não era satisfeita doía e criava um vazio nunca preenchido.

Gianluigi poderia amar Carla mil vezes, dela não havia nada além de um passado que nunca se concretizou.

Ali via Caroline, ou mesmo até Giuliano. Poderia encontrar Laura com uma grama que fosse de semelhança de sofrimento igual. Mas, certamente encontrava Luca.

Gianluigi trabalhava na universidade de Trento. Professor e responsável por julgar procedente determinadas ações no comitê de ética. Tinha influência sobre muitos dos outros professores recém-chegados que mal sabiam em quais rabos de serpentes pisavam.

─ Já jogou a peça que combinamos? ─ Disse, se esforçando para não sentir pena.

─ Sim... Funcionou. Funcionou melhor do que imaginava. A professora Anika assumiu praticamente uma relação pública com o seu sobrinho. Isso vai afastá-lo da garota brasileira. A fachada dessa situação vai separa-los como me pediu.

Miguel assentiu.

─ Sabe onde ele está?

─ Luca? Luca Bocarelli?

─ Sim. Sabe onde está meu sobrinho? Ele já deve estar sabendo disso e há essa hora Caroline já deve estar saindo fugida da casa dele.

Gianluigi riu.

Qualquer pessoa que convivesse com Luca mais de cinco anos conseguia perceber a estranha habilidade de escapar de situações conflitantes, fosse por seu sorriso e ironias que quebravam qualquer clima ruim, fosse por literalmente desaparecer quando queria.

─ Isso... Isso você tem que averiguar por si mesmo. Fiz o que você me pediu... Plantei a semente e há 30 minutos, como pediu, liguei pra ele. Não tem sinal.

Desligou o telefone e destravou o elevador. Chegou ao andar de baixo, cochichando já nos pés dos ouvidos de Magno. O rapaz coçou uma sobrancelha com uma expressão constrangida. Cochichou algo de volta e isso o fez arregalar os olhos.

Riu. Gargalhou na verdade.

Ah... Aquela família... Aquela família lhe dava as melhores risadas.

Como o futuro que imita o passado, Luca levou a prometida do primo.

─ Luca desapareceu com Caroline? ─ Gargalhou. ─ Desapareceu das vistas dos melhores do serviço secreto com o nosso diamante e ninguém sabe para onde ele foi?

Magno fez que não.

─ Não há uma única pista. Caroline só aparecerá quando Luca quiser, ou quando ela mesma quiser fazer isso. Luca faz tudo o que ela quer... Afinal. Caroline deve ter escolhido assim e ele acatou.

─ Ela sabe que Giuliano está a buscando?

Magno fez uma expressão vaga.

─ Não sei dizer. Não sei o que Luca pode ter dito a ela. De qualquer forma, se ela souber que Giuliano acordou, deve desconfiar que ele queira vê-la.

Miguel sabia que era uma missão impossível. Luca sabia desaparecer. Sabia como fazer isso sem levantar suspeitas e nem mesmo Giuliano conseguia ter certeza de seus rastros quando Luca realmente se esforçava para isso.

─ Ache-os, Magno. Você tem algumas horas. Ache-os e não me importa o que precise fazer com o meu sobrinho. Ache Caroline.

Magno assentiu, mesmo que soubesse que não teria muito que fazer.

Miguel desceu as escadas de saída do hospital pensando consigo mesmo a ironia daquela situação. Um imbróglio digno de uma tragédia romântica da qual se contava nos dedos os verdadeiros amantes e amores.

O fúria, apelido de Luca quando ele trabalhava como o mais proeminente servo de Alberto, precisava trazer o pequeno diamante de volta antes que a fraternidade fizesse mais do que Gianluigi fez sob seu comando.

Trento 11h10min da manhã.

Lago di gardo

Caroline colocou outra marcha, aumentando ainda mais a velocidade do carro e Luca achou graça. Ela não havia brincado quando lhe disse que dirigia rápido e tinha prazer nisso. Controlava bem o carro, mantendo a estabilidade e as únicas coisas que faziam com que não dormisse eram o receio de uma patrulha passar e, é claro, porque ela estava feliz.

─ Não me diga que está com medo, Luca. ─ Ela provocou.

Negou.

─ Confio em você.

─ Não deveria deixar um carro desse porte na minha mão, Luca. ─ Ela esfregou o símbolo da Ferrari no volante. ─ É muito caro e eu gosto de correr.

Luca deu de ombros.

Haviam saído de casa em um Alfa Romeu, parado em um posto de gasolina, trocando o carro por outro que Luca guardava em um galpão. Caroline questionou porque ele o guardava ali, a resposta de Luca foi simples.

Era um item de colecionador que não tinha espaço para manter na casa de Trento. Às vezes saía com ele somente para esquentar o motor, mas na maior parte do tempo o deixava ali.

O carro chegava fácil aos 200 km/h e chegaram próximo ao destino mais rápido do que gostaria.

Queria apreciar a vista passar mais devagar, mas, Caroline queria correr como se o mundo fosse acabar em uma hora, ou até menos que isso. E ela era boa. A estrada era íngreme, mesmo diminuindo a velocidade nas curvas mais acentuadas, ela certamente fez o trecho mais rápido do que seria seguro.

Mas o fez sorrido, rindo, com um brilho no olhar. Os olhos retesados, o corpo gritando de adrenalina e excitação.

Não estava quente o suficiente para a vista estar totalmente livre da neve branca nos arredores, mas o céu claro e aglomerado de grama e arvores ao seu redor já era bem visível. Passaram por alguns vilarejos rapidamente, não pararam em nenhum momento.

A região tinha em torno de 20 vilarejos ao redor do maior lago da Itália e a gardenosa ocidental contornava o lago, passando por vários deles.  A estrada era mão dupla e por vezes se perguntou que deveriam estar com sorte que nenhum dos motoristas os denunciou a patrulha.

Ela diminuiu mais uma vez, passou devagar por um túnel entre as montanhas, praticamente rente à proteção de concreto a beira do monte de água. Conseguia ver nos olhos escuros o reflexo da visão bela que era aquele trecho.

─ Não me parece um pequeno vilarejo como disse que era... ─ Caroline murmurou olhando a vendo a confusão de telhado e a pequena projeção de baia cheia de barcos ancorados.

As casas em tom de amarelo brilhavam com o reflexo no sol da água e o calçamento de pedra parecia uma imensa cortina, caindo no lago tão azul quanto os olhos do homem ao seu lado. De longe conseguia ver a torre do relógio e as árvores verdes brilhantes.

Parecia de longe com Veneza.

Nunca havia ido a Veneza, mas imaginava os canais como aqueles que agora viam de longe.

─ Podemos parar para almoçar, se quiser. ─ Luca disse, mas torceu que não. Tinha preparado um almoço no destino final daquela viagem curta.

Caroline fez que não.

─ Você fez propaganda demais das dolomitas. Quero chegar logo lá.

Luca mexeu a cabeça, concordando.

Continuou a viagem e Caroline diminuiu a velocidade para apreciar a vista, em alguns momentos abriu o vidro para passar os dedos pelo vento, sentindo-o frio e úmido. Aspirou como quem cheira a liberdade.

Aquela sensação poderia durar pouco, mas sentia como se aquele instante fosse infinito.

Os cumes das montanhas começaram a ficar mais densos e montanhas amarelas pálidas se tornaram ainda maiores, mais assustadoras e a estrada mais íngreme e difícil. Sentia que aquele lugar não queria que passasse rápido, como quase tudo que fazia na vida, com urgência. Aquelas montanhas tinham vida e exigiam que quem as encontrava as visse lentamente, as absorvesse.

─ Gostaria de parar e ver a cidade dos limões... ─ Suspirou.

─ Limone sul garda?

Ela assentiu perdida em certa tristeza pela própria urgência.

─ A pressa não é sempre inimiga da perfeição, às vezes ela é um convite para voltar... ─ Piscou para ela.

Caroline apertou o volante para retornar algum tipo de controle que poderia ter saído de sua mente e retomou a concentração.

─ Voltamos a vamos conhecer Sirmione e as termas. A arquitetura românica. Grotte de Gatullo, também.

Olhou para trás rapidamente e depois para as laterais, como se prometesse que voltaria e Luca sentiu que ela o faria.

O Carbonato duplo de cálcio das montanhas das dolomitas foi ficando mais predominante à medida que se aproximaram das dolomitas e do trecho que Luca disse que não poderiam mais ir de carro. Estava receosa daquele momento, por sua total falta de condicionamento físico, mas Luca disse que não era um trecho tão longo.

Entraram em uma pista de terra que precisou diminuir ainda mais. O cheiro de poeira entrou um pouco pela fresta do vidro e Caroline já quase não conseguia ver nada além de terra e grama a perder de vista. Havia flores em algumas partes mais distantes, animais peludos e com cara de descanso típico das pedras que estavam ali desde que o mundo era mundo.

Luca apontou para uma parte da estrada e disse que fizesse a curva. A paisagem mudou rapidamente e uma parte gramada mais forte com uma casa grande e três andares surgiu. Um chalé e uma lancha descansavam num pequeno píer próprio.

Um homem cheio de casacos acenou assim que Luca abriu a janela.

Estacionou, tirou o cinto devagar e Luca saltou, indo abraçar o homem como quem não o via a tempos.

Caroline ficou no carro por mais tempo, despedindo-se daquela parte da viagem e mirando o chalé e as cercas com algumas vacas mais atrás. O vento parecia ter parado e pensou se não estavam dentro de um vale entre as montanhas.

O lago era parado e conseguia sentir a pressão nos ouvidos. O chalé descascava as paredes em algumas partes, um chame que somente as casas velhas o suficiente da Itália tinham. Estudou as janelas e de longe um casal voltando de bicicleta.

Era um hotel, possivelmente. Rústico e rural. Conseguia sentir o cheiro de temperos que eram plantados em uma horta que não deveria estar nem a 200 metros. Caminhou até Luca, com pedras pequenas estourando entre soalhos dos tênis.

O homem sorriu, estendeu as mãos e a abraçou. Beijando suas bochechas de forma calorosa.

O rosto era oval e extenso com um sorriso aberto, dentes levemente apinhados e um pouco amarelados, possivelmente de café, que conseguia sentir o cheiro em uma mesinha próxima ao lago.

─ Essa é a Caroline, Tito. ─ Luca lhe apresentou, com um sorriso contido. ─ Vamos para o abrigo. A estrada está em condições?

O homem não lhe estudou muito, Luca tomou a atenção e isso foi um alívio. Não gostaria que as pessoas tivessem tempo para descobrir quem era.

─ Espero que não seja mais 5km porque não tenho condições de ir além disso.

O homem gargalhou, mexendo os ombros.

─ 1km, só. Não vai sentir a caminhada. O ar está bom e o caminho é bonito. ─ O homem assegurou.

Caroline não tinha tanta certeza que conseguiria andar tudo aquilo, mas ao menos foi vestida a caráter. A legging preta e blusa de mangas longas de tecido antitranspirante. Um casaco na cintura e tênis. Luca passou no carro, pegou a mochila lilás de Caroline e a bolsa preta grande que Amelié fez correndo para que pudessem passar quanto tempo fosse necessário.

Ela colocou as alças da mochila no ombro e olhou para o céu levemente nublado e para as montanhas esbranquiçadas. O terreno gramado parecia uma paisagem de cartão postal e era fácil fazer aquela subida para montanha quando tinha tanto para olhar.

Em alguns momentos conseguia encontrar flores de plantas rasteiras na beirada do caminho e pelas marcas no chão já fazia algum tempo que ninguém ia para aqueles lados.

Luca ia à frente, lhe dando algum espaço para ir mais devagar e sem lhe apressar, às vezes olhando para trás para se certificar de que estava tudo bem.

Seu rosto ficou um pouco mais quente quando parou diante de uma pedra grande na beirada de uma cachoeira que estava secando e não ter coragem de subi-la e ir para o outro lado.

─ Não consigo... ─ Disse sem graça a Luca, que já estava chegando do outro lado. ─ É muito alto.

A vista era de tirar o fôlego. Um fio de água saía de algum lugar nas montanhas e escorregava por entre um caminho de pedras que no inverno talvez virasse um lago perene logo abaixo. A pedra estava seca e era seguro subir por entre os buracos da pedra e atravessar, mas ao olhar para baixo, assombrou-se.

─ Eu vou te ajudar... ─ Ele disse, largando a mochila no chão já gramado.

Não sabia qual a era a utilidade, mas Luca retirou o casaco do moletom, abrindo o zíper num movimento rápido e firme, bruto até. Por baixo havia uma camisa preta justa que marcava o peito e abdômen e apertava os braços fortes e marcados de músculos que jamais tinha visto de tão perto até aquele momento.

Luca veio andando por cima da pedra e desceu uma das reentrâncias, apalpando por entre as frestas, buscando locais seguros para que pisasse. Ele abaixou o corpo, e esticou o braço.

Apertou as alças da mochila para tomar coragem e o olhou nos olhos. O azul parecia ainda mais vivo no meio na natureza e se perguntou se água daquele lago lá embaixo chegava perto da cor dos olhos de Luca.

Pegou na mão dele e deu um passo a mais, porém Luca corrigiu a postura de sua mão, trazendo-as para o braço. Orientou que passasse o outro braço pelo pescoço e quando o fez, ele lhe puxou, tirando seu corpo do chão e grudando bochecha com bochecha com o impulso.

A respiração dele arrancou e o peito se expandiu contra o seu, o som gutural vindo se sua garganta junto com o choque dos corpos fez seu coração apertar e bater mais rápido.

Quando conseguiu ficar de pé, Luca ainda corrigiu sua coluna e deu um sorriso tímido e estranhamente envergonhado. O ar ficou preso em algum lugar entre os pulmões e o pescoço e ficou levemente tonta.

A sensação de Luca lhe segurando era estranhamente reconhecível e...boa...

─ Olha... ─ Ele disse, tirando sua mente da vagareza do momento.

Olhou para trás e viu bem longe um pequeno grupo de casas e um pico de uma igrejinha em ruínas. Como se fosse um ponto no universo. Inalcançável e distante como queria estar do mundo.

─ Luca... Aqui é lindo. Mais lindo do que eu poderia imaginar que algo assim poderia existir.

Ele sorriu atrás de si, conseguia sentir o ar quente sair dele e encontrar sua nuca. Virou o rosto para trás e Luca estava com as mãos nos bolsos, o que inflava ainda mais seu peito e fazia faltar pedaço de tecido na barra da camisa. Virou o rosto rápido para não repara mais, mas era visível o quão marcado eram as entradas do abdômen dele.

Os cabelos ondulados e escuros se agitavam com o vento.

─ Está parecendo o super-man. ─ Comentou, brincando.

Luca achou graça, ainda mais quando percebeu que ela fazia um bico de constrangimento.

─ São seus olhos.

Voltaram a andar e a subida ficou um pouco mais difícil, mas nada grave que não conseguisse fazer com um pouco de tempo e paciência. Luca pelo contrário, ia à frente sem se preocupar muito com condicionamento físico. Evitou pensar que isso ele tinha de sobra ou iria prestar mais atenção no corpo dele.

Não que não tivesse visto antes no passado e por várias vezes o elogiou pela disciplina em manter uma rotina de exercícios, afinal, para todos os Bocarelli era sagrado guardar as primeiras duas horas da manhã para um treino físico excruciante.

Porém, nunca reparou demais, ou fez formulações mentais com outros tipos de pensamento a respeito.

Ele parou para lhe esperar e lhe ajudou com uma mão para se apoiar quando precisou para não escorregar no gramado molhado.

Outra vez a vista lhe surpreendeu. Abriu a câmera do celular e fez um pequeno vídeo do ambiente.

Um tapete verde se estendia a perder de vista e parecia que os limites daquilo era só o céu e as nuvens. Como se estivessem mais perto do céu do que em qualquer lugar. O vento batia um pouco mais forte e as montanhas nas laterais do vale lhe cobriam, como se protegendo aquele lugar de toda a interferência humana.

Luca lhe sinalizou mais embaixo e pôde ver um banco e um balanço. Deu o celular para ele subiu no banco. Não sabia se era do seu celular ou do dele, mas ouviu fotos. Sorriu quando pulou do banco para o chão e então subiu no balanço. O vento lhe empurrava e era como se estivesse voando.

Fechou os olhos e agarrou as cordas ate as mãos arderem.

Respirou fundo várias vezes, em silêncio. Sentou no banco do balanço e pegou impulso. A estrutura era resistente, fincada no chão, mas ainda era madeira e rangia sempre que chegava próximo do chão de novo.

Luca segurou as cordas quando diminuiu o balanço e parou. Usando o corpo para aparar suas costas.

─ Eu sempre me peguei pensando como ficaria feliz com esse balanço.

─ Você acabou de me fazer sentir uma criança.

Ele deu de ombros.

─ Você tem uma ótima relação com a infância, só mantém ela viva em você e isso não é crime. Tenho fotos muito bonitas desse momento, inclusive.

Caroline riu, e fez que não com a cabeça.

─ Ainda falta muito.

─ Não se preocupe, o almoço não virará lanche da tarde. Prometo.

Desceu do balanço e Luca lhe escoltou até de volta ao caminho no gramado. Andou mais cerca de trezentos metros até ver o que poderia ser certamente a casa dos sete anões da branca de neve. Obviamente que tinha a estrutura grade, mas estava escondida entre trepadeiras e rosas. Havia uma piscina aquecida, lhe lembrando que aquilo ainda era um abrigo de luxo, mas ainda era simples e com um ar romântico.

Como um refúgio para amantes.

─ Há quantos anos tem esse lugar?

Luca sorriu de canto, surpreso.

─ Como sabe que é meu?

─ Pelo jeito que falou com Tito. Acho que aquela pousada lá é sua também e que isso faz parte da propriedade.

Ele concordou.

─ Tem razão. ─ Confessou. ─ Faz uns três anos que conheci o Tito. A propriedade era da família dele, o irmão era quem administrava, deixou o local à beira da falência e eu confiei que ele saberia administrar melhor que ele. Foi um bom investimento, afinal. Sou o acionista majoritário da rede hoteleira dele.

Caroline deu-se por satisfeita.

─ Vem muito pra cá?

Ele fez que não.

─ Eu gosto daqui, venho sozinho. Mas, de uns tempos pra cá, tem ficado solitário ficar aqui por muito tempo sem nenhuma companhia.

─ Qual é o conceito do lugar? Lua de mel?

Luca riu.

─ Olha... Sim. Mas não se sinta obrigada a casar comigo.

Caroline gargalhou da brincadeira de uma forma nervosa que deixou Luca constrangido.

Caminharam para dentro da casa e Caroline notou um pequeno estábulo na lateral da casa, que deixaria para explorar depois. Luca abriu a porta e um cheiro de canela entrou por suas narinas. A sala tinha um sofá grande de couro marrom, as paredes eram altas de tijolinhos e havia uma lareira.

A cozinha tinha portas de correr de vidro no fundo. A paisagem de trás era ainda mais bonita.

Na lateral tinha uma escada com degraus pequenos e estreitos.

─ Os quartos são para lá?

Luca coçou a nuca.

─ O quarto é lá em cima.

─ Só tem um quarto? ─ Caroline franziu a testa.

─ Só tem uma cama.

Caroline não quis parecer desconfortável e Luca se ateve a lhe mostrar o quarto. Deu-lhe passagem na escada estreita e chegaram ao quarto. O ambiente era imenso, Caroline se questionou se o propósito daquele lugar era a ironia. Dentro daquele quarto imenso cabiam certamente uns três quartos pequenos.

Porém, compreendeu que o conceito era para apaixonados.

Havia uma varanda larga com portas de vidro e espreguiçadeiras e uma mesa redonda. Em outro canto do quarto havia uma hidromassagem e uma parede de vidro, apoio para vinho e taças. Não havia televisão no quarto, mas alguns livros numa pequena estante na lateral. A cama era muito grande e coberta por lençóis brancos. Havia toalhas dobradas no canto e um baú no chão, além de uma cômoda que Luca lhe instruiu a guardar seus pertences.

A decoração era toda rústica e com toque de dourado e branco. As cortinas, inclusive, eram de um branco que chegava a doer.

─ Imagino que queira comer alguma coisa... Então eu vou lá adiantar nosso almoço. A Casa é toda sua.

Caroline colocou a mochila em cima do baú e foi até a varanda. Olhou em baixo e viu os cavalos presos, descansando. Parecia que estavam a postos e se perguntou se Luca pediu que Tito os deixasse esperando porque teria curiosidade de ir até eles.

O banheiro era outro show a parte. A banheira grande ficava no final, duas pias, toalhas brancas em estantes suspensas, shampoos, sabonetes, sais de banho em nichos ao redor da banheira.

Tomou um banho rápido, mais rápido do que desejaria, afinal tinha planos de usar aqueles sais de banho depois. Colocou um vestido longo e sandálias, penteou os cabelos, pôs perfume e um batom e desceu.

A mesa já estava posta. Sentia cheiro de lenha queimada e se perguntou mais uma vez se Tito tinha deixado as coisas semiprontas também. Luca terminava de colocar uma vasilha de inox na mesa quando lhe viu. Ele parou, sorriu um pouco surpreso.

─ A mulher mais linda de Itália, certamente.

─ Seus lindos olhos azuis, Luca.

─ Todo mundo só repara na cor dos meus olhos... Sempre foi assim.

─ É você queria que elas reparassem em que mais? ─ Cruzou os braços, divertida. ─ O resto que se repara não se comenta em voz alta, Luca.

Não sabia se foi sincera demais, coisa que já era normalmente, ou se Luca se ofendeu, porque ele arregalou os olhos e depois sorriu, sem graça. Se ele se ofendeu, não foi algo grave, por que ele devolveu sua brincadeira:

─ Existem qualidades em você que também não se pode comentar em voz alta, Caroline.

─ Ah é, que tipo de coisas? ─ Respondeu por impulso e só depois percebeu que ele poderia querer saber seus pensamentos também.

Preparou-se mentalmente para falar que o pé dele era bonito e encerrar a situação com uma piada caso ele virasse a pergunta para si. Mas Luca lhe olhou estranho, de um jeito esquisito que já havia visto antes, mas que só ali reconhecia que era como se ele estivesse lhe predando com o olhar.

Aparentemente todos os Bocarelli que conhecia sabia como fazer uma mulher perder o ar.

Luca fez um som estranho com a garganta e depois riu, balançando a cabeça.

─ Seu cabelo... Seu cabelo grande emoldura seu corpo... Seu rosto. ─ Virou de costas.

Caroline se perguntou se ele era cabelereiro, mas notou que ele falara sobre os seus cabelos da mesma forma que falaria dos pés dele. Para fugir.

O clima não pesou porque Caroline tratou de falar sobre os cavalos e Luca lhe respondeu dizendo que tinha planejado irem depois do almoço e que iria gostar da paisagem.

─ Não sabia que sabia cavalgar... ─ Ele comentou, colocando um pouco de molho em seu prato.

─ Não sou uma amazona. Só sei montar e me equilibrar em cima de um cavalo enquanto ele anda. O básico. ─ Bebeu um pouco de suco.  Amava o fato dos italianos que conhecia respeitarem sua dificuldade em se adequar a beber vinho. ─ Mas, qual é a da sua família com os cavalos? Sua tia tem um haras e tudo, uma criação bem intima de cavalos, o próprio filho, por exemplo.

Luca gargalhou por minutos e Caroline somente sorriu.

A criatura mais grosseira que Emília havia criado certamente era Giuliano, por convenção social e por opinião pessoal, o comparou a um cavalo.

Não achava certo falar mal de Giuliano para Luca, mas a comparação com um cavalo era uma coisa que sempre fazia mentalmente quando ele lhe tratava de forma indiferente desde o momento que soube que a família fazia negócios com haras. Se tornou errado, mas engraçado, fazê-lo.

─ É uma conexão antiga. Nossos antepassados há muito tempo atrás, negociavam cavalos para o Palio de Siena como uma de suas cartas de negócios. Com o tempo, abandonaram um pouco essa linha. Mas... O meu avô e o pai do Giuliano gostavam de lembrar as estranhas tradições de família e voltaram a mexer com isso. Emília é quem administra hoje.

Caroline sorriu, animada.

─ Você precisa me prometer que um dia vai me levar para o Palio de Siena. Sou louca para conhecer.

─ A loucura é querer ir. ─ Ele riu. ─ Nossa contrada correu ano passado e me perguntei se realmente gostava tanto de história quando vi a loucura que Siena virou.

Caroline esqueceu até a comida para apoiar as bochechas nas mãos.

─ Qual é a contrada dos Bocarelli?

Luca riu.

─ Minha família tem linhagem em duas contradas. Mas, tem melhores relações históricas com a contrada del Drago. É a maior e mais estável. Como sempre, muito políticos, meus primos mantém relações com aquelas que melhor lhe favorecem.

─ Você já correu no Palio?

Luca fez que não.

─ Eu, não. Prefiro acompanhar, comer e me juntar com as pessoas na praça. Encontrar meus primos distantes e falar mal dos políticos e da aposentadoria.

─ Vocês visitam o palácio da família com frequência? Imagino que tenham casa na cidade...

─ Eu não. ─ Deu de ombros. ─ Quem o mantinha era Giuliano. Ainda está lá na verdade. O visitava com frequência, mas preferi não me vincular a isso com o tempo. Ele era controlador demais com as coisas que ficam sobre sua responsabilidade, principalmente quando se tornou prefeito, então, não fui mais.

─ Sua família tem uma história e tanto... sabia? Eu gostaria de saber, como vocês sabem, as origens e o que seus familiares fizeram.

─ Nem sempre isso é uma benção Caroline... Nem sempre ─ Riu. ─ Nem sempre nossos antepassados tinham a mesma noção que nós do que era certo ou errado. Às vezes é melhor ficar na fantasia.

Almoçaram com uma conversa amena e não esperam muito para irem para o pequeno haras. Os cavalos esperavam pelos dois e Luca auxiliou Caroline a subir na fêmea, a mais dócil e menos tendenciosa a ter comportamentos impulsivos. Caroline aprovou isso por sua própria segurança e com menos de cinco minutos estavam trotando lado a lado, caminhando lentamente.

Os olhos dela brilhavam, parecendo estar diante do próprio paraíso.

─ Você não sabe correr com ele? ─ Apontou para o cavalo de Luca.

A expressão de Luca foi de desdém.

─ É claro que sei, mas prefiro andar devagar com você.

─ Deve ser chato ficar no meu ritmo lento, vai lá. Eu te espero.

Luca negou, não por discordar, mas por ela estar certa. Apertou o ritmo, segurando as rédeas firmes do cavalo. Em seu comando o animal disparou. Salpicou água para todo que era lado quando passou pelo alagado e fez o caminho de volta, fazendo um círculo poeirento ao redor dela. Caroline sorriu, fazendo carinho na cabeça na égua, placidamente aguardando, sem nenhum interessem em extrapolar mais nenhum limite de velocidade.

Parou do lado da égua de Caroline e ela mexeu o pescoço com um gesto de aprovação.

─ Deveria reconsiderar e ir para o Palio.

─ Sou um pobre cavalheiro sem nenhuma posse sequer, Caroline. Não tenho nem mesmo o que ganhar ou perder numa competição como essas.

Ela gargalhou.

─ Não seja ridículo, Luca.  Essa é certamente a mentira mais absurda que me contou.

─ Eu contei alguma mentira antes para que essa fosse a mais absurda? ─ Apertou a rédea do animal para conter o ímpeto dele em correr.

─ Certamente já deve ter me contado algumas ao longo da nossa amizade.

Ele baixou o olhar, mirando o sol por trás da montanha e ajeitando as ondas do cabelo. Caroline sentiu que havia algo, uma ponta de desconforto que ele gostaria de expressar. Alguma coisa nos olhos dele diziam isso, mas ele nos últimos dias jamais deixava que explorasse o olhar dele por muito tempo, como se fosse ver algo refletido naquele mar azulado que não deveria conhecer.

Ele estava lhe escondendo algo.

─ Por que a ideia de me trazer aqui, Luca?

Ele baixou o olhar.

─ Eu não sei que feitiço tem... mas é capaz de descobrir qualquer coisa de mim. Qualquer um.

Ela não parecia irritada, estava confiando que tinha uma explicação adequada e que não fosse capaz de julgar.

─ Meu primo... Ele acordou. A cidade está um caos, maior do que qualquer coisa que tenha visto. O mundo está com os olhos naquele hospital e em cima de... Em cima de você. Eu queria te proteger dessa situação. Não consegui te proteger dele... Me culpo por isso, mas não aceito falhar com a sua segurança. Não mesmo.

Caroline tomou um tombo no coração, o impacto quase lhe derrubou do cavalo. Giuliano estava bem, era um pesadelo que chegava ao fim. Porém, outra tempestade que se aproximava.

Não tinha ideia do que fazer para lidar com ele, nem mesmo tinha cabeça para pensar no que faria com isso.

Mas pensou em Louis, e que deveria estar com ele.

Mexeu a cabeça positivamente.

─ Obrigada... Obrigada por isso. ─ Olhou para o chão, pensando em como Trento estava naquele exato momento. ─ Posso estar sendo uma covarde em não querer enfrentar essa confusão, mas não tenho forças para lidar com isso. Não agora.

Luca tocou em seu rosto, dedilhando com o polegar as bochechas e depois os lábios cheios de Caroline. Beijando sua testa.

─ Não importa o que o Giuliano diga, ou o que Sarah tente enfiar na sua cabeça. Não pode voltar pra onde você foi mais ferida. Giuliano nunca saberia retribuir seu afeto, nem mesmo se ele nascesse novamente. Não precisa lidar com a imprensa querendo uma foto que enriqueça a história que eles querem contar.

Caroline concordou, segurando o braço dele. Deitou o rosto na mão de Luca que passava por sua face.

─ Eu não quero falar do Giuliano... Agradeço se fizermos jejum do nome dele. Por favor.

E assim foi feito. Nenhuma menção ao nome ou sobre a existência do mundo inteiro se implodindo pelas ruas de Trento. 

Trotaram pelas campinas com vagareza, como se o tempo houvesse parado e não houvesse absolutamente nada além daquele imenso tapete verde e das montanhas. Trotaram até um elevado com arvores frutíferas, pegaram maçãs do alto das copas e foram conversando sobre a vida, sobre o passado e sobre o futuro. Obviamente não sentiram o tempo passar e voltaram para casa praticamente à noite.

Luca desceu primeiro do cavalo e entregou as rédeas a Tito. Ajudou Caroline a fazer o mesmo, tomando liberdade para arrumar o laço da blusa dela que havia se soltado com o movimento. Ela prometeu que faria o jantar e nem mesmo ousou se recusar, afinal adorava a comida dela, mesmo que tivesse provado pouco.

 Infelizmente, isso era um talento que Caroline só dispensou mais vezes para as pessoas erradas. Em sua opinião, é claro.

Tomou banho no andar de cima ouvindo Caroline falar sozinho na cozinha de baixo. Riu.

 Passou pelo quarto, encontrando um vestido pelo chão. Provavelmente derrubado da cadeira. Era o que ela vestiria aquela noite.

Seus pensamentos tomaram vida própria e quando os parou era por motivos poucos cavalheirescos.

Colocou o vestido no lugar que lhe era devido e abandonou o quarto. Não sabia como teria sangue frio para deixa-la dormir ali sozinha e não fazer nada.

 Desceu para a sala e Caroline estava terminando de cobrir uma panela, lhe olhou sorridente e cheia de vida.

─ É uma surpresa...

Respirou pesadamente. Caroline estava percebendo algo, talvez o peso que carregava estava ainda mais difícil de manter ou não o quisesse mais carregar. Caminhou lentamente para mais perto dela e Caroline ficou a poucos centímetros de si, mexendo um molho que nem mesmo conseguia sentir o cheiro. Era o dela que buscava.

Afastou os cabelos dela para o lado e cheirou a fumaça quente da panela por cima do pescoço dela.

─ Está muito bom...

Ela não lhe respondeu imediatamente, ficou rígida e então disfarçou com um olhar brincalhão. O olhar dela ficou preso aos seus por alguns segundos, medindo as intenções de sua mente, mas desistiu e baixou o rosto, encolhendo-se.

Pensou por um segundo que ela estava confusa com seu comportamento, esperando uma atitude a mais para falar. Mas, essa sensação passou quando ela se afastou e sorriu da forma mais acalorada que conseguia, voltando-os a coisa mais cotidiana que poderia passar em uma cozinha.

─ Vou tomar banho... Está pronto em uns dez minutos. Olha, por favor?

Luca consentiu e Caroline subiu as escadas lentamente. Mais lenta que o normal.

Teve receio que Luca notasse seu total desespero com a presença dele tão perto e interpretasse aquilo de uma forma negativa, como medo, por exemplo. Mas temeu tanto quanto que ele entendesse aquilo como atração. Como um afeto maior do que a amizade que já sentiam.

Se ele sentisse algo também faria algo ali ser real e não um devaneio de sua mente. E se não fosse um devaneio, estava em uma situação ainda mais complicada.

Arrumou-se devagar, ganhando tempo para assimilar as sensações que Luca estava provocando, ou que estava provocando em si mesma.

Talvez ele estivesse se comportando como sempre, afinal essa era sua natureza conquistadora, e estava criando coisas em sua mente, da parte dele e de si mesma. Estavam sozinhos, somente com a companhia um do outro, vivendo um verdadeiro furacão familiar e afetivo. Era fácil sentir algo diferente quando perto de Luca, era a única pessoa que se sentisse perigosamente protegida.

E precisava, para o próprio bem, separar as coisas. Mesmo que elas já estivessem extremamente confusas desde o incêndio no restaurante e as memórias, ou até quem sabe, desejos inconscientes começaram a lhe perturbar.

Era coisa da sua cabeça, tinha que ser.

Encostou a testa no vidro e o vapor de seus lábios embaçaram o vidro. Bateu um pouco a cabeça, sacudindo seu cérebro para esquecer os pensamentos perigosos que vinham rodeando sua mente.

Secou o corpo e se vestiu. Penteou e secou os cabelos, colocou um pouco de maquiagem. Não tinha a intenção de ser detalhista, mas queria estar agradável. Colocou o perfume e uma bota de cano curto, para suportar o frio daquelas montanhas e desceu.

A comida estava pronta, porém Luca não tinha intenção nenhuma de comerem ali. Ele estava colocando as coisas para o lado de fora.

Protegeu-se do frio, cruzando os braços enquanto saía, vendo os pratos numa mesa ao ar livre.

O céu escuro brilhava cheio de estrelas como se fosse um manto coberto de diamantes.

Lembrou enquanto Luca comentava sobre as lendas da região, que o manto dos Bocarelli no passado era de um azul escuro e coberto de brilhantes. Talvez numa licença poética, os olhos de Luca eram exatamente da mesma cor e quando os notava enquanto ele olhava para as estrelas, conseguia ver como se confundiam.

Sentaram a mesa, comeram rindo de algo bobo que ele comentou sobre a época do exercito e se sentiu leve. Os lábios foram ficando gelados e os esquentou soprando nas mãos e deixando o ar voltar para o rosto.

─ Sabe uma coisa que trouxe para aguçar sua curiosidade? ─ Ele mexeu num embrulho no canto que Caroline sequer tinha notado até então.

Ela espiou por cima dos ombros dele e fez uma expressão confusa, não tinha ideia do que era. Aparentemente parecia um rolo ou um tubo. E que por um acaso muito lhe lembrava dos que usava para carregar projetos quando fazia arquitetura.

Apontou para o item, com curiosidade, esfregando as mãos.

─ O que é?

─ Não me leve a mal, até porque sou igual a você no quesito curiosidade... Há alguns anos eu encontrei isso na biblioteca do meu avô. O pai do meu pai. Eu era uma criança muito curiosa e achei que ninguém iria se importar se eu pegasse algo tão velho. Não sei se estava certo porque jamais recebi nenhum dos meus tios me obrigando a entregar... ─ Caroline o olhava já de olhos arregalados. ─ É uma pintura.

Ele destampou o pequeno rolo e com cuidado colocou o tecido sobre a mesa. Caroline foi afastando todos os objetos para que não houvesse a possibilidade de lesar o item. Ela correu para o lado de dentro, acendendo a única luz que não estava acessa do lado de fora. Clareando o ambiente completamente.

─ A pintura estava dentro desse rolo?

Luca fez que não.

─ Eu o coloquei aqui dentro. ─ Ele respondeu rapidamente e se atentou a continuar desenrolando a pintura.

Caroline, por sua vez, continuou fazendo perguntas. 

─ E onde estava? Ao que parece está até muito conservado... Ficava no escritório do Haras ou do palácio na cidade? Porque o clima impacta na conservação e um item como esse, imagino, precisaria de condições muito apropriadas por ser tão antigo...

Luca riu de canto.

─ Eu nem te disse a idade e já presume que é tão antigo...

Caroline deu de ombros, com a mesma ansiedade que já conhecia de quando estavam visitando o passado nas pesquisas das cartas. Ela ficava num estado como se a qualquer momento algo fosse saltar do artefato, um alerta excessivo que chegava a ser cômico.

A todo o momento tinha que pedir para que tivesse calma ou ela acabaria fazendo conclusões precipitadas de cada linha escrita no documento. Era certo que ela faria isso novamente com a pintura. E se tinha uma coisa que tinha aprendido com Caroline é que ela tinha uma espécie de instinto investigativo que por mais que ela se precipitasse, jamais errava.

Terminou de rolar a pintura e um homem apareceu. Os cabelos levemente enrolados, grandes e os olhos de um verde intenso, mas que o autor provavelmente não queria dar tanta expressividade. O enfoque certamente estava no peito, bem emoldurado pela armadura.

O olhar dela encontrou os seus, diante de um mistério que adoraria desvendar.

─ Quem é?

Fez que não sabia.

─ Não faço ideia. Suponho que seja algum ancestral meu... Mas não há nenhum nome ou qualquer coisa que o identifique.

─ Não que uma pintura seja a coisa mais nítida possível para descrever alguém, mas ele era bem bonito. ─ Fez um sorriso divertido.

Luca olhou a imagem de canto.

─ Não, não... Não acho. Mas isso é reflexo do fraco que tem pelos homens Bocarelli.

Caroline riu, todavia não ousou retrucar.

Um silêncio confortável pairou por alguns minutos. Caroline se abaixou até a altura da pintura sobre a mesa e a avaliou com um olhar clínico que Luca não questionou de onde ela havia tirado. Certamente, inteligente como era, estava compreendendo que aquela figura ali representada tinha certamente mais que quatrocentos anos facilmente.

Caroline, por sua vez, se sentia avaliada por Luca enquanto observava a pintura, buscando detalhes que revelasse mais do que seu professor um dia poderia não ter visto. Mesmo que fosse impossível que ele não visse, afinal, Luca não era um dos melhores a toa.

As pinturas antigas, geralmente as pintadas no período renascentistas, carregavam aspectos, detalhes pequenos, traços que fossem, que revelavam muito sobre ela. Os artistas do período estavam aficionados por muitas ciências ao mesmo tempo e a pintura era uma ótima maneira de expressar segredos, ou mesmo conhecimentos ocultos, a partir delas.

A técnica utilizada e o tipo de detalhe misterioso e escondido poderia revelar quem poderia ser o pintor e, por consequência, quem poderia ser o modelo. Da Vinci, por exemplo, geralmente inclinava a pose para agregar movimento ao desenho e isso o identificava.

─ Quem pintou não tinha uma boa técnica para pintura a óleo... ─ Resmungo, olhando para as beiradas do desenho, para os pontos de contato entre as imagens descritas no tecido. ─ Possivelmente final da baixa idade média... A tintura a óleo não era popular e os artistas não tinha tanto domínio. Quem pintou, estava estudando como utiliza-la.

Luca fez que sim, um sorriso de canto despontando.

─ Não sabia que gostava de história da arte. Tem ótimo olho clínico.

Caroline fez um aceno ao elogio, mas não se desconcentrou.

─ Será que é impulsivo pensar que quem pintou ainda era aluno de algum mestre mais experiente?

Negou.

─ É possível, mas não explicou por que acha isso.

─ Ele faz um ótimo modelo tridimensional da imagem, mas não tão bom quanto um grande mestre. É nítido alguns erros de perspectiva ─ Apontou para partes do desenho que considerada feita por um aprendiz. ─ Certamente era alguém muito dedicado e talentoso, mas sujeito a falhas bobas.

Luca assentiu, concordando em silêncio.

Caroline fez uma expressão confusa e se agachou, ficando na lateral do desenho com o olhar posicionado a direita, vendo-o pelo canto. Ela o chamou de lado, sem sair da posição. Pôs uma mão no ombro de Luca e o colocou a sua altura, guiando a posição do corpo dele.

─ O que? O que está vendo?

Ela fez um gesto de silêncio e pediu que continuasse olhando.

─ Olhe fixo e deixe seus olhos embaçarem.

As linhas laterais se uniram e os anjos que estavam escondidos, que sequer tinha dado importância a principio, devido à época e o estilo religioso predominante na arte. Inicialmente parecia confuso, os olhos doeram, mas conseguiu ver algumas formas geométricas. Demorou mais alguns segundos para reconhecer triângulos. Muitos triângulos em posições variadas.

Ela correu do lado de dentro da casa e pegou algumas folhas de papel, tentando replicar o que já havia visto e o que Luca demorava a identificar e começou a escrever repetidamente um cálculo de maneira compulsiva.

─ Caroline, o que é isso? Que cálculos são esses?

─ Relações trigonométricas... ─ Disse mordendo uma caneta. ─ Arte é a expressão de códigos matemáticos. Proporções, ângulos... E no passado, principalmente na época do renascentismo, alguns artistas utilizavam seres angelicais, figuras sacras e passagens bíblicas para revelar segredos, criavam enigmas, na verdade... Muitos utilizavam de conhecimentos de ângulos, proporções, propriedades físicas e até mesmo químicas dos insumos utilizados para dar pistas.

Luca ergueu o olhar do quadro e colocou no papel que ela desenhou e nas contas extremamente longas que ela estava fazendo no papel.

─ Como sabe disso?

─ Eu estudei um pouco de arquitetura, Luca. ─ Disse como se fosse óbvio. ─ Não era a melhor em matemática, como meus colegas, mas conseguia me virar. Como gostava de história... Apegava-me a essa parte da geometria e da física para satisfazer meu ego intelectual.

Parou ao lado de Caroline se perguntando como que ela conseguia ser tão inteligente e ao mesmo tempo tão bonita fazendo cálculos e desenhos.

─ Quantos períodos fez de Arquitetura? Não dava tempo de saber isso tudo, Caroline.

Ela achou graça da forma estarrecida que Luca olhava para si e para os papeis.

─ Fiz dois. Mas fui monitora de geometria e história na escola. Certamente que era melhor em história porque sempre tive mais facilidade com esse conteúdo... ─ Luca ainda continuava chocado. Olhou-o seriamente e sorriu, tímida. ─ Nunca percebeu esses padrões na pintura?

Fez que não, chocado.

─ Bom, agora entende perfeitamente porquê em hipótese alguma deixo você largar meu grupo.

Caroline riu, negando.

─ Você está sendo muito humilde.

─ E você consegue superar sua própria beleza quando mostra segurança no que está fazendo. ─ Disse por impulso.

Caroline baixou o olhar, tímida.

Luca precisou não dizer mais nada porque claramente estava perdendo as poucas estribeiras que lhe restavam vendo Caroline de pernas cruzadas fazendo desenhos com tanta propriedade. Esfregou o pescoço quente e respirou fundo.

Ela continuou fazendo fosse lá o que estivesse fazendo e somente a apreciou. Ela tirou fios da franja do rosto, esticou o pescoço e o olhava vez ou outra, sorria de canto, envergonhada e continuava. A respiração dela era ansiosa e precisou se concentrar muito no barulho das corujas para não jogar tudo na grama e ela por cima da mesa.

─ Acabei.

Luca se ergueu da cadeira e os dois olharam para o desenho atualizado, rasurado e riscado que possivelmente não deveria fazer sentido na cabeça de alguém como Luca, que tinha pouca ou nenhuma experiência em calculo.

─ E o que é isso? Pode me explicar, Dan Brown?

Caroline gargalhou e o sorriso satisfeito com a descoberta fez que com que Luca esquecesse a confusão com aquelas linhas na sua frente.

─ Eu não tive tempo para deixar isso bonito, mas é uma rosa dos ventos. Se o autor quis deixa-la aí é porque a pintura já surgiu depois da invenção dela. Não me questione nada sobre isso porque sou péssima em geografia, principalmente em cartografia... Mas, tem alguns ângulos fiz as relações trigonométricas e possivelmente gera alguma localização.

Luca sacou o celular do bolso, mas Caroline o parou. Segurou sua mão e fez um som de desapontamento.

─ Possivelmente, não vai conseguir encontrar nada. Está faltando o mapa de referência.

─ Como um mapa do tesouro?

─ Isso. E certamente deve ter outras pistas ou enigmas no resto do desenho, teria que passar por uma análise bem apurada. Isso é pouco que consegui ver, mas há diversas perspectivas e muitos ângulos ou triângulos para medir. A rosa náutica e a bussola, precisam de um mapa de referência para os ângulos fazerem sentido. Darem em algum lugar.

─ Sério? ─ Cruzou os braços, confuso. ─ E por que esconderiam um mapa ou localização de algo assim na foto de um ancestral que ninguém sabe quem é?

Caroline colocou uma mão no bolso.

─ Bom... Isso é com você. Era de alguém da sua família. Deve ter feito sentido no passado. Você sabe, as repúblicas viviam em guerra no período, talvez servisse para mandar alguma mensagem a exércitos, ou mesmo para proteger joias, coisas de valor para que fosse localizado. Pode ser, que esse homem da figura seja um personagem que só fizesse sentido para quem recebesse a pintura, uma piada interna... As pessoas naquela época estavam muito obcecadas com códigos e enigmas.

Estava começando a achar que era a sua vez de ficar obcecado e impulsivo com algo e Caroline tinha total razão.

─ Não consegue identificar com esses cálculos algo que o identifique?

Caroline fez que mais ou menos.

─ É possível, mas precisaria de muitas análises. Talvez até luz ultravioleta... Tentar encontrar alguma assinatura escondida. Esse homem pode ter sido qualquer um dentro do período de 1400 ou 1500. Pelo estilo e pelo tipo de desenho, acredito que fosse essa época mais ou menos. Se nunca estudou a geneologia da sua família para saber quem estava vivo na época, talvez ajudasse se quer tanto saber.

Luca deu de ombros. Ela estava certa e estava sendo irracional.

─ Agora me entende não é? Quando ajo da forma que vê com as cartas é pela mesma curiosidade louca que te move agora. ─ Ela olhou para as estrelas e depois para os olhos dele. ─ Como se toda sua vida estivesse presa a essa coisa e nem faz sentido por que... O que ela é? Um pedaço de tecido de cinco séculos atrás? Um monte de cartas escritas por desconhecidos numa época tão distante?

Ele sorriu de canto. Caroline colocou a caneta presa aos cabelos e se encolheu com o frio. Abraçou-a de lado.

─ Como se um pedaço de papel tivesse algo para dizer sobre você que precisa ouvir... Talvez eu seja doida... Entretanto, agora você está tão doido e obcecado quanto eu.

Quis corrigi-la e dizer que estava louco sim, mas por ela. Mas conseguiu se comportar e beija-la na testa. Ficaram alguns minutos, ainda controlando a adrenalina da última uma hora e meia.  Completamente parados, pensando nos mistérios da humanidade e de si mesmos.

─ Vamos entrar professor. Está frio. ─ Beijou-o na bochecha por impulso e se afastou um pouco.

Ele deu um sorriso de canto e fez que não, beijando-a de volta. Um hábito que pegou dela.

─ Eu deveria te dar o mestrado agora, sabia? Professora.

Caroline o olhou, desdenhosa.

Entraram, arrumando as coisas em cima da mesa entre brincadeiras bobas sobre como Caroline era dando aulas e como Luca era irônico e sedutor quando estava lecionando.

─ Não sabia que fazia isso... ─ Luca disse constrangido quando Caroline disse que ele tinha o péssimo hábito de fazer caretas quando alguém fazia alguma pergunta boba, ao mesmo tempo que dava piscadelas quando encerrava as lições, se despedindo nas aulas. ─ Eu não percebia realmente. Nunca notei.

─ Fala com as mãos e mexe a cabeça o tempo todo. Mexe muito no cabelo para arrumar por isso. As pessoas comentam que parece que está tentando fazer propaganda de shampoo enquanto fala.

─ Infelizmente, italiano demais.

─ Certamente... ─ Sussurrou.

─ Você sorriu quando está explicando alguma coisa ou sempre que alguém te faz uma pergunta, mesmo que seja idiota.

─ Eu sou boazinha, Luca. Muito diferente de você. Somos bem diferentes dando aula.

─ Eu não sou bom com você?

Deu de ombros.

─ Comigo é diferente. Eu sempre te tirei dessa pose irônica.

─ Você é engraçada Caroline. ─ Ele fez uma ênfase com as mãos e Caroline cruzou os braços, vendo os trejeitos agitados de Luca com um sorriso de canto. ─ Todas as vezes que tentei reclamar de alguma coisa, você fez outra ainda mais grave que eu simplesmente me perco no que preciso dizer. Uma vez reclamei que estava atrasada e você me disse que eu também. Eu te perguntei onde que eu estava atrasado e você disse que para buscar um café pra você. É uma cara de pau terrível.

Caroline gargalhou recordando que conhecia Luca pouquíssimo quando disse isso e foi numa reunião do intercâmbio, lotado de gente. Luca lhe olhou sério, tão sério que achou que ele fosse lhe expulsar, fez cara de mal e sorriu até perder a compostura e gargalhar.

─ Sempre que tentei te deixar envergonhada, conseguiu virar a situação contra mim e nem consegui reagir porque estava rindo.

─ Lembra quando falou que eu estava rindo mesmo quase me prejudicando e eu te perguntei se queria que eu chorasse. ─ Balançou a cabeça percebendo a audácia daquele comentário.

Luca gargalhou porque a situação aconteceu na frente de Anika. Queria realmente dar uma bronca e acabou gargalhando e só serviu para que Anika lhe recriminasse ainda mais.

E para piorar, toda a vez que se irritava, mesmo que só a olhasse de forma irritada e Caroline sorria, culpada, vinha em sua direção, beijava sua bochecha e corria. Ou mesmo, quando tentava falar sério e ela estava comendo cabelo sem perceber, ou fazendo algo de uma forma que não queria deixa-la triste discutindo.

─ “Bom dia, Luca. Trouxe café, eu te amo e não briga comigo” ─ Imitou-a. ─ E quando chego irritado na universidade você está segurando uma xícara de água, sem qualquer explicação.

─ É para apagar o fogo do seu ódio... ─ Riu, baixinho. ─ Você fica se sacudindo quando se irrita. Vou acrescentar um pente para pentear seu cabelo arrepiado no kit “acalmar o Luca”.

Não precisava de Kit algum. Ela era o Kit completo.

Entraram em casa ainda pensando nos últimos dois anos e nem parecia que era somente aquele tempo. Como se houvesse se conhecido durante toda a vida.

Luca lhe puxou para o sofá e ligou a lareira com um botão. Ficaram afastados, cada um no canto do estofado. Havia dormido no sofá na última noite e agora estava tentada a fazer o mesmo. Conversaram até Caroline começar a cochilar.

─ Vai para cama, Carol.

Fez que não.

─ Você não sente frio Luca? Seu corpo está quente. ─ Esfregou os pés nos pés dele.

─ Pé frio.

Ela sorriu e ele lhe colocou de pé. Tropeçou tonta no centro da mesa e Luca gargalhou quando caiu por cima dele. Luca ria tão mais fácil. Tudo era extremamente tranquilo com ele. Não abriu os olhos, mas procurou os cabelos ondulados e escuros dele, caindo na testa e levemente bagunçados, mexendo neles mais ainda e o irritando.

─ O que você vai fazer daqui a 10 anos? ─ Perguntou a Luca.

Ele fez um ruído gutural, estava pensando. Enquanto segurava Caroline de pé para empurra-la até o quarto.

─ Quero estar aqui... ─ Mexeu nos cabelos dela. ─ Abraçado com a mulher da minha vida... Ela vai ter um anel de diamantes no dedo anelar e provavelmente vai ter alguma criança enchendo a nossa paciência para não dormir correndo atrás dos vagalumes. Eu vou querer leva-la lá para cima para poder namorar em paz... Porém, o instinto maternal dela jamais vai deixa-la eu dar algum conhaque para essa criatura dormir... ─ Caroline gargalhou e o estapeou nos braços. Luca continuou ──: Eu a levarei para o andar de cima com toda a intenção de dar algum irmãozinho para aquele ser desenfreado que demorou a dormir, que certamente puxará a mãe... Porque eu sempre fui uma criança calma e tenho a tendência a me apaixonar por mulheres com alguma hiperatividade.

Caroline não sabia se estava achando engraçado ou bonito a narração dos fatos da parte de Luca.

─ E você? O que fará em dez anos?

Caroline esfregou o rosto, olhando a casa que poderia ser um cenário de uma família feliz. Da família que desejava. Gostava do sonho de Luca.

─ Acho que estarei brigando para colocar alguma criança hiperativa para dormir... Enquanto meu professor chato está mandando eu consertar alguma pesquisa de algum aluno desavisado que o escolheu como orientador. ─ Sentiu o coração dele bater mais rápido e depois se acalmar. ─ E essa pobre criatura puxará totalmente ao pai, porque eu não sou assim... ─ Luca revirou os olhos e Caroline riu. ─ Terei algum marido chato para me perturbar enquanto faço minhas leituras, falando que não o dou atenção suficiente e que ele quer outros filhos...

─ Seja mais criativa Caroline, pela amor de Deus. Está roubando partes do meu sonho. Estou achando que quer ser minha esposa.

Ela não continuou e começou a rir.

─ Não sou tão criativa com sono e somos muito parecidos, Luca. ─ Deitou a cabeça no peito. ─ Não pensei que quisesse ter tanto uma família... No futuro.

─ Eu quero. Com a mulher que eu amo eu quero exatamente qualquer convenção maluca que ela queira...

─ Um romântico... Um romântico incorrigível esse Luca Bocarelli. ─ Debochou. ─ Não parou em relacionamento algum desde que tinha quinze anos, mas aos 40 quer uma família. Muito bonito. Isso não é justo.

─ Homens amadurecem mais tarde, querida... ─ Deu de ombros, segurando os ombros dela num abraço.

Caroline estava tonta de sono. Ficaram em silêncio por algum tempo. Ouvindo alguns grilos gritando ao longe e rindo do quão roucos e sonolentos estavam. Luca não havia bebido nem meia taça de vinho e estava sonolento e tonto e Caroline estava com a leveza natural que tinha depois que passava das dez da noite.

─ Promete uma coisa, Carol.

─ Lá vem... ─ Murmurou.

─ Se em dez anos não arranjarmos ninguém, vamos nos casar.

Caroline soltou uma risada alta, tão alta que os pássaros saíram voando de algumas árvores.

─ Meu Deus, Luca... Imagine que casal não seriamos? Uma loucura terrível. Não levamos nada a sério e rimos de tudo, como isso daria certo?

Luca pensou um pouco e fazia certo sentido.

Ele a escoltou até o quarto e Caroline sentou na cama, deitando no colchão e se cobrindo até a metade do rosto.

─ Certo, Luca. Se em dez anos não nos casarmos, eu me caso com você. O casamento tem que ser no campo, nessa casa.

Luca fechou uma cortina e pensou um pouco.

─ Um filho?

─ Três. Eu amo crianças. Vamos deixar essa quantidade especificada em contrato pré-nupcial. Não vai me passar a perna Luca.

Ele deu de ombros.

─ Vamos ter gatos.

Ela concordou.

─ Um ou dois. Mas eu amo cachorros. Temos que ter cachorros.

─ Também gosto de cachorros... ─ Ele confirmou, como se estivesse anotando mentalmente.

─ Quando estiver grávida, vai ter que fazer todos os meus gostos. Aliás, vai ter que sempre fazer meus gostos, não só quando houver bebês.

Luca revirou os olhos.

─ Comprar todos os livros que eu quiser... E temos que fazer viagens todos os anos...

─ Mulher... ─ Ele riu de canto. ─ Qual a parte que eu vou à falência?

Caroline achou graça e cobriu o rosto todo por alguns segundos.

─ Eu sou uma mulher cara. Aguente isso.

Ele balançou a cabeça, resignadamente. Como quem vai para a forca.

─ Eu tenho que fazer todos os seus gostos, comprar todos os livros que quiser, temos que viajar todos os anos... O que mais você deseja, princesa?

─ Que me faça rir, porque eu amo rir. Se me fizer chorar, um dia que seja, raspo seu cabelo.

Luca arregalou um pouco os olhos e Caroline estava ficando vermelha de tanto rir.

─ Posso pedir coisas também? Que casamento é esse que só você se beneficia?

─ Vai querer o que? O direito de ter uma amante? Homens bonitos como você sempre tem ideias doidas de casamento.

Luca fez que não, com uma ponta de desapontamento. Fez cara de ofendido e Caroline fez bico, imitando-o.

─ Não. Se abrisse essa opção para mim, teria que abrir para você também e não quero minha mulher com outro homem. Menos ainda, desejaria outra mulher. Sou um homem devotado e fiel. Estou ofendido, mas obrigado pelo elogio.

Caroline bateu palmas. Ele continuou:

─ Quero que isso aconteça de verdade.

─ Mas vai acontecer, é um acordo certo. Promessa de dedinho. ─ Mostrou o dedo mindinho e Luca girou os olhos.

Ele mexeu na gaveta do lado da cama e abriu uma caixinha. Um anel com uma pedra azul saiu de dentro. Praticamente saltou. Os olhos de Caroline se arregalaram e ela olhou séria para Luca. O homem deitou na cama, mexendo na pedra de turmalina solitária que se exibia por cima do anel.

─ Que anel mais lindo, Luca... ─ Ela disse baixinho.  ─ É seu?

Ele fez que não e lhe lançou um olhar desconfiado.

─ Minha mãe me deu antes de morrer. Era uma joia de família. Disse que era para entregar a primeira mulher que eu prometesse casamento... ─ Caroline arregalou os olhos. ─ Aparentemente você foi à única até hoje. Agora... Ele fica com você por dez anos. Se ainda estivermos solteiros quando esse tempo passar, fica com você para sempre.

Na verdade, o anel para ser entregue a mulher que mais amasse em sua vida, a única a quem poderia se casar e era Caroline. Sempre seria ela. Passasse o tempo que passasse. Dez ou cem anos. Seu coração estaria nas mãos dela, assim como aquele anel também estaria.

─ Não pode... ─ As palavras morreram.

─ Promessa à mãe na beira do leito de morte é divida. ─ Sorriu, sem jeito.

Caroline percebeu que não tinha ideia de como a mãe de Luca havia morrido.

─ Eu sei que vai cuidar bem dele. ─ O anel era o de menos perto do coração que já havia entregado nas mãos dela.  ─ Eu confio em você.

Caroline fechou a tampa da caixa e apertou entre os dedos, assentindo. Os olhos pesaram de sono e Luca beijou sua testa para se despedir e lhe deixar dormir. Puxou-o um pouco, impedindo-o de sair.

─ Fica aqui... Até eu dormir. Por favor. Ainda estou me acostumando a dormir sozinha. ─ Falou com a voz falha. Ele sabia das crises. Ele havia visto uma delas.

Luca fez que sim e deitou no outro lado da cama, afastado o suficiente para lembrar que só estava ali para passar segurança e porque ela confiava que jamais ultrapassaria qualquer limite.

Caroline se virou, encolhendo o corpo em posição fetal e o olhou. Imitou-a e ficaram frente a frente. Ela cochilava, abrindo e fechando os olhos de forma mais lenta.

─ Ainda tenho medo do que vejo quando fecho meus olhos...Eu consigo ver os olhos de Máximo... ─ A voz dela sumiu e ela respirou. ─ Não lembro, mas algo, lá no fundo da minha mente, me tortura.

Ele não disse nada, puxou uma mão dela e beijou o dorso.

─ Ninguém vai te machucar, Caroline. Não mais. Eu prometo.

Ela fez que sim e olhou para os olhos azuis firmes de Luca. Nunca ouviu nada sobre a mãe de Luca que não fosse sobre a semelhança entre eles. Aparentemente, Luca herdou dela a bela cor dos olhos que tanto fascinavam as pessoas.

─ A sua mãe...

Luca sabia o que viria. Não se importava em falar sobre isso com ela.

─ Ela se matou... Um pouco depois de meu pai morrer. ─ Caroline afagou seus ombros, mas não demonstrou a piedade que as pessoas lhe davam toda vez que sabiam. ─ Ela estava depressiva... Eu via... Estava ruindo. Eu tentei ser suficiente para ela... Mas não fui. Ninguém seria. Nós conversamos alguns minutos pela manhã, como sempre acontecia. Saí do quarto e ouvi o disparo. Entrei correndo e não tinha muito que ser feito.

Ele não parou de falar, parecendo desejar contar cada detalhe para revivê-lo como deveria ser. Com a dor que merecia.

─ Sinto muito... ─ Acariciou a mão dele e beijou sua testa. Luca devolveu o afeto.

Caroline dormiu alguns minutos depois, entretanto, descumpriu o pedido. Não foi embora quando ela pegou no sono. Ficou e a viu dormir mais uma vez. Acompanhando a respiração dela e desejando que ela soasse em seus ouvidos quando pudesse abraça-la.

Cochilou em algum momento da madrugada e acordou com o celular de Caroline vibrando entre os travesseiros.

Havia somente um ponto de sinal e foi suficiente para ver o nome de Giuliano na tela. Não havia nada a mais. O nome dele como um contato normal. Ele estava a buscando, sabe-se lá há quanto tempo e não tinha intenção alguma de ser parado. Desejou que se ignorasse aquela ligação resolvesse a situação, porém, ele tentaria de novo.

Atender, provavelmente o faria mandar seus cães na sua porta.

Entretanto, não se importava. Pelo contrário. Isso faria com que Caroline talvez compreendesse quem de fato Giuliano poderia se tornar quando algo saía de se controle.

Seria a primeira e a última vez que se atreveria a receber uma ligação de Caroline.

Pegou o celular e levantou da cama com cuidado para não acordá-la. Desceu as escadas e o ponto persistente de sinal continuou, assim como o nome dele brilhando na tela. O sol já raiava e Giuliano já deveria estar despachando do hospital em seu horário habitual

Deslizou o dedo sobre a tela e o ouviu falar.

─ Onde está? Por que desapareceu dessa forma? ─ A voz estava um pouco aliviada.

Ele deveria ter alguma ideia que Caroline não o atenderia e que poderia não ser ela ali, mas mesmo assim simulou preocupação.

─ O que você quer, Giuliano?

Ele silenciou.

─ O que quer, Giuliano? Por que está ligando?

─ Passe para Caroline.

─ Eu não vou passar. ─ Disse firme. ─ Não tenho intenção alguma de nem mesmo dizer que ligou.

─ Que secretário incompetente foi esse que Caroline encontrou. Nem passar recados consegue Luca.

─ Imbecil. ─ Retrucou.

Giuliano não disse nada, seu silêncio foi cercado pela imagem que quase conseguia vislumbrar de um sorriso. Ele estava se divertindo com sua irritação.

─ Já que não quer passar um recado para minha futura esposinha... Vai um recado meu para você. Especialmente meu e direto para o seu coração bondoso e afetivo. ─ Luca revirou os olhos. ─ Traga Caroline de volta para Trento. Isso não é um pedido, estou te ordenando Fúria, como seu superior, que retorne. E eu não gosto de atrasos, nem mesmo sou tolerante com eles.

Luca não respondeu. Giuliano continuou:

─ Pare de se esconder como um rato e traga minha mulher.

Luca fechou um pouco os olhos. Era óbvio que a organização estava em seu encalço. Eles não desistiram, e, mesmo quase morrendo, Giuliano não voltaria atrás. E, eles deveriam estar fazendo todas as vontades de Giuliano depois de tudo que o aconteceu.

─ Ela não é sua mulher... ─ Rosnou. ─ Ela não é uma propriedade, Giuliano. Ela é um ser humano, coisa que nunca soube o que é ser. Ao menos aprenda algo com a quase-morte.

Ele ignorou completamente sua fala.

─ Os irmãos cuidarão de você.

─ Eu não faço o que quer, Giuliano.

─ Você? ─ Ele riu. ─ Você faz o que quer com a porca vida que escolheu, Luca. Você faz o que desejar com a sua miserabilidade. Eu não me importo. Ninguém se importa! Mas, ela, ela não. Ela faz o que eu quero, o que os irmãos querem, ela faz o que tem que ser feito. Sabe as consequências para sua desobediência. Uma perda por outra, você sabe as regras. Seja lá o que conseguiu arrancar dela aí, arrancarei de você. Arrancou a presença dela de meus olhos, farei o mesmo. Olho por olho, dente por dente.

Luca parou de respirar. Engoliu forte.

─ Não machuque mais ninguém inocente, não envolva estranhos nos nossos assuntos. Não ache que ficarei em silêncio para sempre, Giuliano. Minha paciência e tolerância estão bem perto do fim.

─ Sua atitude já causou seus efeitos, Luca.  Você sabe que a minha tolerância e paciência são menores ainda.

─ O que vai fazer com ela?

─ Eu? ─ Achou graça da situação. ─ Não tem que se importar.

Luca suspirou pesadamente, esfregando a testa.  Pensou que Giuliano já havia desligado, mas o ouviu de novo.

─ Luca.

─ O que quer, inferno?

─ Precisou de alguns dias de ausência minha e já queria desvirtuar minha mulherzinha... Que pouco cavalheirismo da sua parte.

─ Por que age como se ela fosse um brinquedo que estamos disputando? Por que é assim Giuliano?

Ele soltou um gemido de contentamento.

─ Eu me divirto com os seus ciúmes. Imagino que dói saber que o que mais deseja é meu. Bom, de qualquer forma, tiro trocado não dói não é?

Caroline dormia inocente sem saber que seu destino já havia sido selado, sem lhe deixar escolhas.

─ Ah, outra coisa.

─ O que Giuliano?

─ Prometo te devolver o sangue que me doou.

Então ele silenciou e Luca não aceitou para refletir como ele faria aquilo.

─ Eu não fiz por você, Giuliano... Você sabe que não.

─ Fez por que Caroline te pediu. Foi por ela. Precisava sustentar esse papel, afinal, que tipo de bom coração tem que veria o próprio primo morrer e não fazer nada?

Luca deu de ombros, negando com pequenos murmúrios. Uma lágrima escorrendo dos olhos azuis, mirando o horizonte.

─ Não... Caroline me falou, me pediu... Mas não foi por ela...

Giuliano ficou em silêncio. Aguardando sua fala, esperando que dissesse algo que ele não acreditaria.

─ Você sabe por quem foi... Sabe a razão pela qual te mantive vivo... E sabe que vou retoma-la. Mais dia, menos dia... ─ O lábio inferior tremeu quando o mordeu. ─ Não vai ter tudo para sempre, Giuliano. Você sabe que não... Não sabe?

Ele continuou em silêncio. Não o ouviu falar nada, porque ele se recusava a continuar qualquer assunto que o lembrasse de que não poderia esconder a verdade para sempre.

─ Está me ouvindo, Giuliano. Sei disso.

─ Você não caminhará pela terra se tentar, Luca. Não vai... Não puxe essa corda nesse cabo de guerra porque sabe que por isso... Por isso eu destruo qualquer coisa... E você... não é nada pra mim... ─ A respiração dele pesou. ─ Eu parto essa família e o que estiver diante de mim ao meio, destruo o que tiver de destruir, mas não te dou o que deseja.

Luca secou a lágrima que caiu novamente e sorriu, dolorido.

─ Você vai se arrepender, Giuliano.

Ouviu-o arfar. Respirando fundo. Apertou o próprio peito, sentando no sofá, escutando Giuliano murmurar coisas incompreensíveis de um ódio profundo.

─ Continue mordendo-se de ódio enquanto houver dentes em sua boca, Luca. Não cite esses nomes, não ouse macular essa história em suas memórias...

─ É minha história, Giuliano!

Ele lhe interrompeu.

─ A única história que tem parte é em ser um miserável e não... Não vai reabrir esse livro como se ele estivesse na sua estante ao seu bel prazer, Luca. Não me obrigue a te pôr no seu lugar... Não me faça lembrar você. Não quer esse problema só porque acha que Caroline vai te amar mais.

─ A linha do destino que quebrou no passado vai se reatar de qualquer forma. O futuro imita o passado, Giuliano, o futuro imita o passado.

Giuliano desligou, ignorando suas palavras. Porém, um dia ele não teria como ignorar a avalanche. Mirou a janela, as montanhas que cobriam o terreno lateral da casa. De lá, viu um drone passeando furtivamente. A irmandade já havia os localizado e Giuliano só estava ganhando tempo para lhe encontrar.

Subiu rapidamente e encontrou Caroline ainda adormecida.

Não podia mantê-la ali para sempre, mas a ensinaria a se defender.

Trento, 08h07min da manhã.

Hospital.

Louis viria lhe ver novamente no horário do almoço, e isso lhe motivava para despachar pela manhã depois do comportamento cínico de Luca pelo telefone. Audacioso, atendendo o celular de Caroline e dominando a situação, controlando-a.

Já estava vestido adequadamente e não sentia dificuldade alguma para caminhar, nem mesmo se sentia cansado. Seu corpo estava lhe obedecendo perfeitamente e isso era bom. Caminhou pelo tatame da sala de reabilitação do hospital e Abel conversava com a fisioterapeuta, ela lhe mostrava alguns exames recentes e Abel estava concentrado. Distante o suficiente para não notar a presença de Cícero entrar no ambiente.

Atirou uma bola de ginástica no irmão de Giovana e ele a pegou no ar, colocando nas laterais do corpo e veio andando em sua direção.

─ O diamante já está a caminho de Trento.

─ Ele não vai me desafiar, não mais. Não vou tolerar ser ameaçado da forma que fui. ─ Estalou os dedos, colocando o relógio que havia retirado para se exercitar.

─ Ficou calado porque se sentia culpado por Máximo.

Giuliano não disse nada. Seu silêncio foi revelador.

─ Já descobriu onde o verme está se escondendo? Alías, onde Norma o enfiou?

Ele fez que sim, mas não de forma contundente.

─ Norma renunciou.

─ Sarah já me passou. Notícia antiga, Cícero. ─ Deu de ombros. ─ Pierre também já me disse que Hanna está na minha casa, em segurança. Eu sabia que Norma buscaria por ela para encontrar o suposto dossiê.

Cícero cruzou os braços.

─ Esse dossiê é uma bomba Giuliano. Maior do que qualquer preocupação que tenha. Até mesmo o diamante. Esse dossiê vai expor a todos nós. Dimitri não se preocupou nem mesmo com seu próprio pai se o fez para te denunciar.

─ Mas uma razão para que o velho não dê ouvidos a Norma quando ela o procurar... ─ Deu de ombros. Cícero concordou. ─ Porém, não vivemos no mundo da fantasia. O velho quer a cabeça de qualquer um que acredite que matou seu filho. Eu faria o mesmo. Eu o entendo. ─ Baixou os olhos rapidamente  e voltou a encarar Cícero. ─ E sei, assim como eu, que poderia manipular as informações contidas ali para tentar respingar o mínimo possível em mim mesmo.

─ Ele pode tentar salvar os Glaskov, mas não vai salvar a todos os irmãos...

─ Não importa. Ele quer vingança pelo filho. Vai doer menos. Mesmo que isso o mate com os fraternos.

Cícero se calou. Giuliano estava certo.

─ Preciso negociar com ele. Pessoalmente. Preciso mostrar as gravações. Eu não matei Dimitri. Eu o larguei, deixei que ele fizesse o que achasse melhor, mesmo sabendo que ele iria tentar me expor.

─ Você sabia que Norma o mataria... ─ Acusou.

Ele confirmou.

─ Eu sabia. Não fiz nada para ajuda-lo. Não posso me arrepender de não ter o ajudado quando ele tentava me jogar no buraco.  Se ele não entender isso, honestamente, não me importo... Eu tenho alegações para fazer o que quiser com os Glaskov. Se o velho tiver a cabeça no lugar, vai preferir estar do meu lado.

─ Não pode vê-lo agora. Não pode viajar. Não pode sair de Trento até o tratamento acabar, muito menos para enfrentar o frio russo. Vai colocar sua vida em risco se o fizer.

Giuliano olhou para o relógio novamente, vendo a data.

Não tinha tempo para esperar. Não podia esperar todo aquele tempo. Mas, Cícero não precisava se ater aquilo agora.

─ Como Hanna está?

Cícero revirou os olhos.

─ Infernizando a vida de todos em porcentagens iguais até o momento. Não elegeu nenhuma vítima importante... Ela disse que virá hoje para vê-lo... ─ Confidenciou. Giuliano deu de ombros. ─ Não sei com que propósito. Afinal, ela tem consciência de tudo que houve aqui quando esteve fora do ar...

─ O que houve aqui com Hanna? ─ Exasperou-se.

─ Pierre a largou aqui porque não a suportava mais. Pensei que Caroline, Laura, Emília e Sarah explodiriam juntas. Ela conseguiu irritar todas elas, foi um verdadeiro inferno.

Giuliano fez uma careta rapidamente e depois girou os olhos. Típico de Hanna.

─ Eu me entenderei com ela depois, afinal.

─ Hanna não precisa de você, Giuliano.  Com o que vai negociar?

Ele negou.

─ Ela precisa. Precisa para ganhar dinheiro e para sobreviver. E essas coisas são as únicas que Hanna entende. Ela precisa de mim para se manter viva com Norma caçando os Glaskov. E precisa de mim para manter o preço dos cachês. Tudo isso aumenta ainda mais as receitas dela. Hanna não quer que eu faça nada que atrapalhe esses ganhos. Nada como afasta-la ou negar qualquer ideia de relação com ela no passado.

Cícero observou o sobrinho. Aparentemente o cérebro voltava a ser o mesmo de antes. O coração, por outro lado, parecia ainda mais duro.

─ Por que acha que ela vai ter medo de Norma, afinal... Destruir você pode ser um trunfo.

Giuliano pensou um pouco, olhando o espaço e guardando na mente tudo o que vivera nas últimas horas.

─ Sei em alguma parte de mim, que Norma está procurando-a para cobrar algum favor que Hanna certamente não tem interesse em cumprir. Nesse caso, ela prefere se agarrar a mim do que tentar a sorte numa aliança com Norma. No fundo, Hanna tem consciência que não vale nada para Norma, não tanto quanto o sobrenome que carrega vale para a minha família. Ela não vai arriscar o certo pelo duvidoso.

Cícero desejou saber de onde os instintos de Giuliano tiravam aquela informação, mas não questionou. Não naquele momento.

─ Os irmãos querem te ver. ─ Disse por fim.

Giuliano fechou um pouco os olhos. Ponderou se não participar traria consequências negativas, entretanto, pesou que se fosse, teria muito mais positivas. Precisava de repercussão positiva entre o séquito de malucos de Alberto.

Fez que sim a cabeça e um gemido.

─ Quando?

─ Na próxima crescente.

─ Isso é... três semanas. ─ Olhou para Cícero, confirmando.

─ Nosso grupo se encontrará em Barcelona.

Giuliano respirou fundo. Mais uma dose de insanidade para sua mente. Mais uma que precisaria se esforçar para esquecer.

─ Santino? O que ele achou disso tudo?

Cícero tirou o rosto da janela e encarou Giuliano por alguns segundos, engolindo as palavras antes de pronuncia-las.

─ Ajoelhou para Caroline. Foi por ela que ele parou. Ela foi o sinal para a situação no governo paralisar. Anne deu graças a Deus que essa ofensiva parou. Estava sufocante.

Giuliano deu de ombros, não se atendo a interpretar naqueles momentos. Precisava ir a Barcelona ver com os próprios olhos. Anotou mentalmente questionar Anne quais atitudes Santino estava produzindo.

─ Ainda dizem que é um bom trabalho que cala a boca dos lobos...Certos animais só podem ser amansados com a força bruta da submissão.

Não entraria naquela discussão de “por que” ou “como” Caroline o fizera. Cícero e Miguel diriam o mesmo. Que a resposta sempre esteve diante de seus olhos, bastava que descobrisse mais seu próprio propósito. Em outras palavras, que se afundasse no oculto mundo que se recusava a molhar sequer os pés.

─ O que dirá no encontro para explicar suas atitudes em Milão, Giuliano?

Tinha algo em mente, não diria naquele momento, mas Miguel lhe atropelou.

─ Conte a verdade, Giuliano. Diga o que houve em Milão naquela noite para Cícero. ─ Incentivou com uma expressão coercitiva, como ótimo advogado que era. Olhando para si e para Cícero. ─ Conte a verdade, porque a mentira quem irá inventar somos nós dois.

Cícero arquejou, mas assentiu. Reconhecendo em silêncio que havia uma longa história para ouvir e encobrir. Ao final do relato, que Giuliano fez de maneira pouquíssimo preocupada e com adendos para fazer ligações e atender algumas outras importantes, Cícero assentiu e agradeceu por Miguel já ter sabido primeiro e os dois já terem algo em mente.

Horas depois.

O tempo corria, o tempo voava e o futuro era uma mera questão de percepção. Isso era claro. Caroline sabia que a vida passaria mais rápido quando encontrasse o ar de Trento de novo. A primavera já abafava um pouco o ar e o pólen das plantas irritava seu nariz por vários momentos enquanto passava pela cidade com os vidros abertos e as mãos do lado de fora.

Já passava um pouco da hora do almoço, mas não se importou com isso. Luca havia desmarcado as reuniões que teriam e isso lhe dava a tarde livre. Um luxo que não vinha tendo há muito tempo, mas que ainda conseguia se sentir culpada por existir.

Assim que seu celular pegou mais qualidade de sinal o ouvia bipar por sua atenção, porém se recusava a aceitar aquilo. Cansou-se da própria covardia e o pegou. Várias mensagens. Muitas das quais eram da universidade e outras de as vida particular.

Porém, a que mais lhe perturbou fora a de Sarah. Mandada do seu celular pessoal. A imagem da ruiva preencheu sua tela e tudo o que pôde fazer foi cobrir o rosto com os braços e fechar os olhos.

Ela pedia que respondesse, em alguns momentos até mesmo implorava.

Escreveu um oi e torceu para não ser nada com Louis.

“Vou te ligar”

Luca soltou o ar com certo desprezo e apertou mais o volante. Olhou-o de canto.

─ Sarah?

Fez que sim, duvidosa. Apertou o celular e virou a tela para baixo, para que ele não visse mais do que já havia encontrado.

─ Sarah só quer te arrastar para os problemas de Giuliano, para a órbita dele. Não é por mal, mas ela faz. Decida por si se deseja isso para sua vida novamente.

Caroline concordou em silêncio. Pensou em se manter ainda mais a margem, mas lembrou de Louis. Poderia lidar com Giuliano, mas não com uma negligência com Louis. Ele não merecia sua distância. E, de qualquer forma, atender Sarah sobre algo de Giuliano não iria lhe fazer girar em torno dele para sempre, por mais perigoso que fosse.

Tinham assuntos pendentes de qualquer forma, não poderia evita-lo pelo resto da vida.

O telefone tocou e o atendeu. Luca tentou lhe deixar a vontade, mas não conseguiu. Ele estava curioso. Entretanto, estava chegando ao apartamento e a segurança já lhe aguardava. Não questionaria como, mas eles sabiam que estava de volta. Luca lhe desembarcou rapidamente e se despediu com um toque nas mãos, segurou seus dedos por alguns segundos e deixou que fosse, fazendo sinal para a equipe fazer o cordão do corredor de proteção.

Colocou os óculos escuros e baixou o olhar, não os encarou, não queria enfrentar ninguém. Não estava sob o jugo de Emília.

Sentiu-se abraçada por alguém e houve certa dispersão na pequena multidão, como se o corredor de braços houvesse se partido. Sarah vinha atrás de si, conseguia enxerga-la através do casaco. Os cabelos vermelhos em meio a todo preto das roupas.

As portas foram fechadas e o barulho sumiu. Sarah olhou para o porteiro e para alguns vizinhos sendo escoltados para seus próprios apartamentos por agentes do governo.

─ Não me diga o que falam de mim.

─ Não falam nada. Não deixei que falassem. Fiz uma nota interna para te proteger. Fez uma pequena viagem para resolver pendências pessoais e familiares. Entenderam que não tinham nada para ver, mas, a sua imagem vende, não posso proibi-los de lucrar.

Caroline se questionou por que, mas não gostaria de resolver aquilo naquele momento.

─ Disse que me ligaria...

─ Estava perto. Soube que estava chegando. ─ Desconversou. ─ Podemos subir?

Deixou a chave reserva na portaria e o porteiro sorriu demasiadamente para lhe parecer solicito. Subiu as escadas pulando degraus e Sarah foi devagar. Entraram em sua casa. Abriu as janelas para deixar o vento entrar e pela varanda via a segurança desfazer a pequena multidão.

Eles estavam indo.

Sarah não se sentou. Fez sinal para isso, mas Sarah negou. O olhar da ruiva ainda era tão doce e divertido quanto se lembrava, mas ela estava esperando que desse partida para começar.

─ Por que queria conversar comigo? ─ Disse, sentando no sofá e se protegendo com as almofadas. ─ É sobre aquele assunto?

Os olhos gatunos de Sarah fizeram um leve aceno de desconfiança, mas voltaram ao habitual. Ela lhe encarou por alguns segundos, neutra, antes de começar.

─ Giuliano quer te ver. Desde o momento que abriu os olhos até agora, ele pede para te ver.

Se Sarah tivesse lhe empurrando num precipício a sensação de queda seria menor. Baixou o olhar, pegando as próprias mãos e cruzando os dedos uns nos outros com o polegar. Ergueu uma sobrancelha e balbuciou murmúrios dos seus próprios pensamentos.

─ Por quê? ─ Disse séria. ─ Por que Giuliano quer me ver? Agora? Ele está com a família, imagino que com o Louis. Não existe razão para que eu o veja... Sou só mais uma das pessoas que ele conhece... Conheceu, na verdade.

O tom magoado não deixava mentir. Caroline ainda estava lutando com as feridas abertas.

Sarah riu de canto e deu um passo a frente.

─ Só ele pode dizer o que necessita falar. E como essa pessoa é você, receio dizer que o motivo só saberá se for.

Respirou pesadamente, olhando para as montanhas de Trento pela janela. Lembrando as últimas horas que pensou serem semanas. Tinha uma vida para continuar e Giuliano não poderia continuar nela. Não havia amor em si para conseguir esquecer a dor que foi infligida. Não queria se manter na órbita de poder dos Bocarelli, menos ainda ser um joguete do seu ex.

Respirou fundo, sufocando a casca recém-formada que se abria. Era ouvir a menção dele que ela quebrava, se abria como se nunca antes tivesse existido.

─ Não irei. ─ Disse de uma vez. ─ Não tenho assuntos com seu chefe.

Sarah mexeu a cabeça positivamente.

─ Entendo. Deseja transmitir algum recado?

Caroline pensou nos milhares coisas que pensou em dizer desde o momento que ele quase morreu até ali, mas o remédio para a própria dor estava no silêncio.  A solução para não voltar atrás e desistir de si mesma era continuar e isso incluía decisões egoístas e pouco corteses.

Balançou a cabeça negativamente.

Sarah virou o pescoço, com certa piedade.

─ Tem certeza, Caroline?

Murmurou palavras perdidas e abafadas, brigando com sua consciência. Mordeu os lábios e com o peso de uma tonelada sobre a cabeça, fez que sim.

─ Tenho.

Sarah assentiu, respeitando sua evasiva.  A ruiva fez menção de se despedir, mas Caroline a interrompeu.

─ Louis está bem?

─ Ele está. Perguntou de você, mas não se afligiu. Ele entendeu sua ausência.

Ela abriu a porta e se foi com um aceno rápido. Não lhe deu tempo de perguntar sobre o assunto do passado, mas se ela mesma não lhe disse nada, não deveria haver algo para comentar. Fechou a porta com as chaves e secou duas lágrimas perdidas.

A dor iria curar por si mesma. O amor que lhe restou curaria a si mesma e continuaria.

A terra ainda girava em torno de si mesma e ao redor do sol. O tempo ainda continuaria e os dias seriam novos em breve. O passado ainda era passado e o futuro era seu trabalho construir.

Desejou por alguns segundos seus devaneios estarem certo e Luca sentir algo e poder correspondê-lo. Desejou se apaixonar a ponto de fazer aquela dor causada por Giuliano deixar de existir. Mas era loucura, uma invenção boba... Mas, fantasia ou desejo, loucura, talvez, ainda era uma ilusão menor desejar ser amada por Luca do que por Giuliano.

E no quesito ilusão, seu coração, era especialista em dar a elas alguma vida. Giuliano e Luca poderiam ser só mais uma.

Secou o rosto e tomou banho. Estava de folga, não ficaria em casa esperando que a órbita de Giuliano lhe puxasse novamente. No poker, como na vida, tudo é uma questão de interpretar um personagem até que ele crie vida, e criaria um.

15h12min da tarde.

Casa de Luca.

Estacionou o carro na garagem e não se importou em desembarcar suas malas. Vira Amélie na janela e precisava dela mais do que de organização de roupas. Subiu correndo as escadas para cozinha vendo-a distraída enxugando uma fruteira de vidro que fora herança da casa dos seus pais. A preferida de sua mãe, presente de casamento de alguma casa real que não recordava, ou mesmo não sabia, de onde viera.

Seu telefone vibrou no bolso. Viu a tela e parou. Atendeu e a voz feminina firme preencheu seus ouvidos.

Tempos estranhos, com alianças esquisitas.

─ Imagino que não teve outra opção a não ser trazê-la de volta... Tínhamos um acordo por mais tempo.

─ Seu filho não me deu opções, Emília.

Ela fez alguns estalidos decepcionados.

─ Bom, de qualquer forma, ainda pode manter nosso acordo. Mantenha Caroline longe do Giuliano, isso é fácil de fazer. Tem motivações para isso.

─ Poderia ter sido mais convincente... ─ Retrucou.

─ Você sabe que existem guerras que não tenho poder para lutar. Mas, fiz o que podia nessas 24 horas. ─ Emília pensou em Magno. Em todo o esforço que ele teve para sabotar Miguel e a busca dele. ─ Não quero meu filho perto dessa mulher e acredito que não quer a mulher que ama perto do Giuliano.

─ Eu cumprirei a minha parte do acordo, Emília. Desde que cumpra a sua.

Emília sorriu de canto.

─ Tudo há seu tempo... Tudo há seu tempo.

Ela desligou e Luca continuou parado, respirando pesadamente. Olhou Amélie pela janela e foi a vez dela de atender uma ligação. Luca já estava na porta, vislumbrando-a pelo vidro temperado.

Entretanto, houve um grito. Um grito dolorido e assombrado. Daqueles de quem espreitou a morte em alguma esquina da vida. A fruteira se partiu. Ouviu-a rasgar o vento e se espatifar em pedaços minúsculos no chão.

Abriu a porta e viu Amélie abaixada, apática, mirando o celular como se dele viesse o apocalipse. Puxou a senhora pelos pulsos e a trouxe para o seu olhar.

─ O que houve? ─ Repetiu algumas vezes, pegando-a pelos braços e a sacudindo.

Os pés ardiam com os vidros latejando entre os dedos e no chão viu o nome de Mikaela, descrito em letras imensas.

O tremor das mãos de Amélie  passou para as suas antes mesmo que entendesse a razão do porquê.

─ Amelié... Amelié o que houve?!

─ Um atentado...Um operação militar...

─ ONDE? O QUE? ONDE? DIGA ALGO AMELIÉ!

─ Mataram Vittorio...Mataram o marido da Mika, Luca!

Os gritos doloridos de Amelie partiram seu raciocínio. O suor pingou de sua testa e o ódio invadiu suas entranhas.

Giuliano. Giuliano havia cumprido a promessa.


Notas Finais


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Galera, comentem, compartilhem teorias e fiquem bem felizes nesse domingo a tarde!
Beijos e nos vemos <3


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