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História Liberté - O Fim I


Escrita por: caulaty

Capítulo 59 - O Fim I


Madrugada de 14 de junho de 3660

 

Aqui estou eu novamente. Não deu tempo de sentirmos falta um do outro ainda, não é mesmo? Bem, mas cá estou eu. Não percamos tempos com as banalidades da vida e da morte, esses desencontros tolos que acontecem. Vamos aos fatos.

Kyle estaciona o carro em frente a sua casa, desliga o motor e espera, respirando fundo. Daqui, ele consegue enxergar Christophe sentado em uma das cadeiras da varanda. Não há cigarro aceso, mas ele segura um copo de uísque apoiado na coxa, que pode ser o primeiro ou o terceiro da noite. Tanto faz. O gelo já derreteu. Agora, em 3645, na noite de natal, Kyle acorda para encontrá-lo sentado em uma posição muito semelhante no canto do quarto, e sente um medo muito parecido pelo que está por vir. É claro que esse homem barbado em 3660 tem o olhar severo e melancólico, muito distinto do rapaz raivoso que ele é em 3645. Parece tão calmo agora, indiferente à chegada de Kyle, como se não esperasse por coisa alguma. O que é mal sinal. Sempre mal sinal.

Kyle sai do carro e se aproxima da varanda com a chave em mãos, receoso, escolhendo não subir os degraus. Não ainda.

Quase que exatamente um mês antes, eles se reencontraram nessa mesma varanda após catorze anos separados, catorze anos em que aprenderam a viver separadamente, mas sentindo todos os dias que tinham os membros crescendo do lado de fora do corpo. E quando se reencontraram, em trinta e três dias, apaixonaram-se novamente com o mesmo ardor da juventude, senão mais, muito mais, porque aprenderam a amar no tempo em que estiveram longe um do outro. Kyle se lembra disso, como se pudesse recortar o tempo e enxergar o instante em que descobriu que o homem que ama continua vivo, depois de tê-lo enterrado em seu coração.

Christophe se ajeita na cadeira, parecendo tão cansado, os olhos pequenos e estreitos; não diz uma palavra. Só espera.

Ele já sabe. Kyle sabe que ele já sabe. Mas isso não o ausenta da responsabilidade de dizer em voz alta o que tem que ser dito. Talvez seja por isso que Christophe espere, com certo sadismo, curioso para saber até onde o limite de Kyle chega. Ele não vai gritar, não vai perguntar, não vai quebrar nada. A tranquilidade em seu rosto causa arrepio na espinha de Kyle.

Por um momento, ele pensa que vai chorar assim que separar os lábios para explicar alguma coisa. Mas isso não vai acontecer. Ele não permitiria. Não diante de Christophe.

-Algo aconteceu. - Kyle espreme as palavras com dificuldade.

O Toupeira ergue as sobrancelhas, não bem em surpresa, talvez até com certa ironia. Esse rosto diz tanta coisa.

Um relâmpago ilumina os céus, refletindo nas nuvens negras e na grossa camada de poluição. Lá embaixo, na cidade, a vista da montanha é um tapete de luzes. Cai o primeiro pingo de uma chuva fina que anuncia uma tempestade. O pingo toca o rosto de Kyle, que continua quente e inchado por conta do acesso de choro no carro há menos de uma hora. A chuva vem como um alívio.

-Eu fui até o Stan. Eu não sei… Não sei bem como, ou porquê, mas fui. Foi aquele maldito livro que me fez pensar… Em tudo, tudo o que eu não consegui pensar nos últimos catorze anos. Ou talvez não tenha sido o livro, talvez seja você, talvez sejamos nós dois. Eu não sabia o que estava procurando, não fazia ideia, ainda não faço, mas… Mas aconteceu. Não porque eu quero aquilo de volta, Christophe, eu não quero aquilo de volta, eu só precisava… Me despedir. Eu só queria me despedir.

É preciso cada grão de força que Kyle tem para fazê-lo calar a boca. Ele gostaria de ter dito muito menos. Somente “me desculpe”, era isso que seu coração desejava dizer, e mais nada. Mas não se sentiu capaz de pedir tal coisa de Christophe. Sentia-se patético.

-Hmm. - Christophe murmura, assentindo com a cabeça lentamente.

Ele desvia o olhar, apoiando a bochecha na mão, pensando por um longo segundo. E então, começa a rir.

É sutil, primeiro, fraco e quase tímido, mas o riso cresce, ganha força e tamanho, ecoa pelo céu aberto. Ele aperta o polegar e o indicador contra os olhos fechados. Escorrem lágrimas. Não de dor, não de mágoa, mas de tanto que ele ri. Uma pessoa que mal o conhecesse certamente diria que esse é um mecanismo de defesa, um riso pronto para engatar num choro, mas eu posso afirmar que a gargalhada é genuína. A única resposta que ele tem a dar.

E dói em Kyle. Arde. Machuca, corta, aperta. Ele continua parado de pé no meio do quintal, imóvel feito uma estátua, acreditando que merece a dor que esse riso inapropriado lhe causa. Conhece Christophe bem o bastante para não questionar. Apenas engole o gosto amargo que cresce em sua boca.

Você acreditaria se eu dissesse que Christophe não está tentando machucá-lo com isso? Pois não está.

-Ah… - Desculpa. - Christophe diz, secando as lágrimas. - Eu não consigo… - As palavras se diluem na próxima gargalhada incontrolável. Ele se inclina para trás, esfregando a testa. - Eu não consigo parar, porque eu passei catorze anos fora, você teve catorze anos pra… - Ele começa a ficar sem ar. Soca a mesinha ao lado, emitindo um estrondo assustador, rindo mais alto. O uísque respinga no chão. - Você teve catorze anos pra se despedir e é agora que você resolve… Agora que eu tô aqui, feito um otário de novo, é agora que você quer se despedir, aí você vai lá dar pro cara que… E eu tô tão puto, eu não consigo parar. - Com uma tomada brusca de fôlego, ele enfim faz uma pausa longa. Parece se acalmar. Esfrega a própria barba, sacudindo a cabeça. Solta mais um riso que se assemelha a um bufo cansado e encolhe os ombros, resignado. - Caralho, hein.

-Eu sei. - Kyle murmura, carregado de vergonha.

É curioso. Ele sente que já viveu esse momento. Veja bem, não é à toa que eu lhe conto essa história na ordem em que conto. Pois em 3645, Kyle se senta com Stanley para contar sobre a noite que quase teve com Christophe. As histórias se repetem, mudando apenas o viés, a desses três homens. Kyle lhe contará sobre isso em breve.

De qualquer forma, fato é que Kyle nunca conseguiu mentir para eles durante muito tempo.

-Christophe, eu não sei como te fazer entender…

-Ah, eu entendo. - Ele se levanta, buscando o cigarro no bolso. Não ri mais. E não vai, durante muito tempo. - Eu entendo que eu fui um trouxa de pensar que alguma coisa tinha mudado.

-Por favor, me escuta…

-Você é… - Ele se cala por um instante, rolando os lábios por dentro da boca, sacudindo a cabeça com violência. Desce os degraus da varanda. A chuva começa a ficar mais forte, mas nenhum deles se importa. - Eu sou doente da cabeça, mas você… Você é a porra de um buraco negro que suga tudo que tem em volta. Você é viciado em foder com a cabeça dos outros.

Agora, Kyle o olha assustado, com imensos olhos úmidos. Não se defende. Não responde. Qualquer coisa que ele diga agora só vai fazer com que se odeie mais. Mas ele tenta, tenta buscar por alguma explicação, alguma justificativa, alguma coisa que faça sentido. Tudo isso parece um sonho. Uma lembrança distante de uma época pior.

Não é uma lembrança. É o agora. É assim que as coisas são.

Christophe se recolhe, tentando acender o cigarro com as mãos trêmulas. Mas é energia demais que pulsa dentro dele, corroendo a carne, as veias, bebendo do sangue. Num surto repentino, ele destrói o cigarro entre os dedos e joga o isqueiro do topo da montanha, o mais longe que seu braço de aço consegue lançá-lo.

-Você nunca quis essa merda! Isso aqui! Você nunca quis, você gostava que eu estivesse lá feito um cachorro pra lamber o seu sapato. Quando não tinha mais o Stan, mesmo assim, você não me quis!

-Eu queria! - Kyle grita de volta, tão alto que desgraça a garganta. Tudo se revira dentro dele, o estômago se aperta, o líquido gástrico sobe, arde. E ele não consegue pensar. Nada passa pelo filtro do bom senso agora. Aproxima-se de Christophe e grita, grita, só sabe gritar. - Eu queria tanto que achei que fosse morrer!

-Você correu. - Christophe responde quase me um murmúrio trêmulo, apontando o dedo no rosto dele, terrivelmente perto agora.

-Você correu! Você foi embora!

-Porque não fazia porra de diferença nenhuma, ficar ou ir embora, você não me escolheria de qualquer forma. Você dizia que era por causa do Stan, caralho, aquele namoro insignificante de vocês, e mesmo depois que acabou…

-Eu fui estuprado! Eu não… - A voz morre na garganta de Kyle. Ele se inclina para frente, apertando os olhos, abraçando o próprio tronco. - Eu não conseguia estar contigo, não tinha nada pra te dar. Mas eu queria. Você era a única coisa que ainda me fazia sentir vivo, e você foi embora, e eu… Como você ainda pode pensar uma coisa dessas?

Christophe não parece mais inflamado de raiva. Olhando para ele agora, vejo apenas a casca vazia do que esse homem já foi. Quando Kyle tenta dar um passo à frente, ele recua como o lobo machucado que é, sempre foi, sempre será.

-Eu nem devia estar aqui. Não sei porque caralhos voltei.

-Não diz isso…

-Mas é. Você mesmo disse, não foi o livro que te fez querer ele de volta. Fui eu.

-Eu não quero ele de volta! Christophe. Por favor. Eu sei que é uma merda, eu sei, eu sei que é impossível, mas isso não foi mais do que um momento confuso entre duas pessoas que já se amaram muito um dia. Não é mais assim. Foi só… Só aquele momento, falar das coisas que aconteceram…

As palavras são coisas vazias para Christophe DeLorne. Já ouviu a expressão “falar é fácil”? Acho que ninguém consegue levar isso tão a sério como ele. E Kyle enxerga isso no fundo desses olhos castanho-esverdeados nos quais ele quer desesperadamente se afundar. Então não importa dizer. Não importa que Kyle o ame com cada célula do seu corpo. Porque agora, Christophe não acredita mais nisso. É essa percepção que faz com que ele pare de falar.

Christophe esfrega a nuca, dando alguns passos em torno de Kyle.

-O que você vai fazer? - Kyle pergunta, agora sim à beira das lágrimas.

E a chuva cai.

-Eu não tô sendo sarcástico quando digo que entendo. Eu entendo, de verdade.

-O quê? - Há um silêncio excruciante. Kyle se desespera, cada segundo mais. - O que você entende?!

-Eu sempre soube que essas coisas não são pra mim. - Christophe quase sussurra sob o vento, observando a cidade adormecida de cima. - Você me fez muito querer acreditar que podia ser diferente, mas não é. Sempre termina do mesmo jeito.

-Christophe…

O homem começa a caminhar em direção à estrada que desce a montanha, cercada por árvores de todos os lados. A princípio, Kyle não compreende. Dá alguns passos logo atrás dele, angustiado com a distância que começa a se formar entre os dois, as costas de Christophe se afastando no escuro.

-Você não pode estar falando sério. Onde é que você vai?! São quatro da manhã, você não vai descer a montanha a pé. Christophe!

Quanto mais as palavras preenchem o ar, mais insignificantes parecem. Kyle pode sentir esse peso diante da falta de reação. Anda atrás dele como que por instinto, os pés esmagando a grama em passos ansiosos, mas Christophe para mais adiante, as mãos nos bolsos e um vazio atrás dos olhos ao virar a cabeça por cima do ombro.

-Eu juro por Deus, Kyle, se você me seguir eu sou capaz de te dar um murro.

Kyle acredita nele. Christophe DeLorne não é de mentir.

Continua parado em frente à própria casa, essa construção torta e imponente, observando o corpo que desaparece na descida da estrada úmida pela chuva. As árvores de verão parecem escuras e tristes, acompanhando o caminho que Christophe fará sozinho. Mesmo depois de perdê-lo de vista, é ali que Kyle continua, anestesiado, encharcado, perdido. O cigarro destruído continua ali, jogado próximo ao seu pé no meio da terra que vira lama pouco a pouco. “Eu nunca mais vou vê-lo”, Kyle tem certeza, como já teve tantas outras vezes na vida. Mas parece diferente agora. Tudo parece diferente e igual ao mesmo tempo.

Aqueles trinta e três dias de felicidade se parecem com um sonho patético agora, rasos como uma poça. Kyle sente-se acordado como nunca antes em sua vida, acordado para um mundo em que Christophe continua morto em seu imaginário. E tudo volta a ser como antes.

Exceto que, agora, ele tem o peito dilacerado, não mais por feridas antigas e cicatrizes, mas por um rasgo novinho em folha. E não pode culpar ninguém além de si mesmo.

Já começa a amanhecer quando Kyle consegue se arrastar para a varanda, entornando de uma única vez o resto de uísque que restara no copo de cristal. O céu toma uma tonalidade de azul escuro que se mistura com o lilás e o cinza da chuva. Um rastro de água e lama é deixado sobre as tábuas de madeira da sala conforme ele se arrasta até o telefone. Leva-o ao ouvido, trêmulo de frio e de agonia, os olhos bem apertados. Não sabe se chora ou se toda aquela água pertence à chuva. Por fim, Kyle disca o único número do qual pode se lembrar, o único que faz algum sentido.

O telefone toca quase nove vezes na alta madrugada. Kyle está sentado no sofá, as pernas retas e os lábios pressionados, a garganta fechada, o nariz encolhido. Ele forma uma bonita silhueta contra a janela.

Quando pensa em desistir, vem a voz do outro lado da linha, grogue de sono, assustada pelo despertar repentino.

-Alô?

Ao ouvir a voz de Gregory, Kyle se desmancha por inteiro.



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