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História Liberté - A Irmandade


Escrita por: caulaty

Capítulo 32 - A Irmandade


02 de janeiro de 3645

 

O refeitório era um galpão enorme que ficava bem ao lado do motel, com um acesso lateral pelos arbustos, evitando que nós precisássemos passar pela frente. O galpão estava abandonado há anos devido à sua localização isolada, perdendo a função original de armazenar ingredientes para uma fábrica de doces. Os Monarcas apresentaram desde muito cedo uma habilidade organizacional extraordinária, especialmente se considerando que era um grupo que se propunha a instalar o caos. Eles transformaram aquele galpão em um refeitório perfeitamente funcional, fazendo excelente aproveitamento do espaço; era interessante como, para onde quer que eu olhasse ao pisar no refeitório, havia gente trabalhando. Era nossa primeira noite lá, nosso primeiro jantar, mas eu já podia sentir o senso de unidade daquelas pessoas. Elas funcionavam todas como uma célula, cada um com sua função.

O lugar estava lotado. Era de arrepiar quantas pessoas haviam aderido à causa. Havia diversas mesas de inox com bancos embutidos. Me lembrava muito do caos da cafeteria em nossa antiga universidade, onde vi Christophe pela primeira vez. Eu ainda não o tinha encontrado desde que chegamos, mas Gregory disse que ele estava medicado e mal se lembrava do que havia acontecido. Passamos o dia no quarto, perdidos na coisa toda. Kenny também não havia aparecido.

Uma garota loira nos recebeu na entrada do galpão e nos dividiu em três grupos. Para mim, Clyde, Stan e Gregory, ela disse:

-Vocês estão com o grupo do Lobo. Mesa oito. É por ali. - E apontou.

Eu não esperava que eles denominassem seus núcleos com nomes de animais, mas eu também não esperava muitas outras coisas que encontraria naquele lugar. Olhei para trás e encontrei o rosto assustado de Clyde, seus olhos castanhos maiores do que de costume. Ele não queria andar.

-Você está bem? - Perguntei, parando também.

Clyde prendia a respiração sem perceber. Ele sempre teve uma beleza fácil, boba até, um tipo genérico de rosto que todo mundo gosta, que compensava um pouco da sua falta de astúcia. Ele parecia uma criança grande, um cachorro enorme e babão, tinha essa fragilidade contraditória. Seu rosto não era belo e jovial aquela noite; em vez disso, estava abatido e exausto, com um inchaço sob os olhos que eram, por sua vez, reluzentes e apavorados.

Mas sua resposta foi uma mentira, como todos nós fazíamos quando questionados sobre nosso estado emocional. Ele assentiu com a cabeça. “Sim, eu estou bem”, ele disse sem dizer. E seguimos para a mesa.

A mesa oito continua quatro figuras conversando arduamente entre si. Bem, duas dessas pessoas discutiam, as outras duas apenas observavam.

-Henrietta, se você esfrega as cinzas, vai ser um inferno pra tirar essa mancha! - Um rapaz gritava com a voz mais indiferente que já ouvi alguém gritar em toda a minha vida, gesticulando com as duas mãos pálidas, de dedos estranhamente longos. Ele era muito alto, mesmo sentado. Magro, comprido e ossudo. Ele tinha um cabelo preto encaracolado, raspado nas laterais, uma mecha mais longa caindo pela testa. Tinha uma pele amarelada muito clara, contrastando com seu lápis de olho e cílios longos. Ele era muito bonito, mas de uma forma meio suja e triste. Eu notei o crucifixo pendurado em torno do seu pescoço; era tão raro encontrar amuletos religiosos naquele tempo.

-Você acha que eu não sei, seu imbecil?! - A mulher respondeu. - Você acha que eu comecei a fumar ontem?

Foi a primeira coisa que ouvi de Henrietta. Ela era assustadora, para dizer a verdade. Era uma das mulheres mais bonitas que eu já tinha visto, fumava compulsivamente um cigarro com os dois cotovelos apoiados na mesa, o braço revestido por uma luva preta de renda sem dedos. Ela era enorme, imponente, vestia couro, o tipo de aparência que comunica como ela pode te cortar a qualquer segundo. Usava um batom roxo escuro borrado. Ela foi a primeira a perceber nossa presença, ajeitando a franja repicada com a mão que não segurava o cigarro.

O garoto de mechas vermelhas também estava lá, eu o reconheci quando ele se virou. Ele mexia a cabeça para tirar a franja do rosto, observando-nos com os lábios entreabertos. Ele tinha um piercing no inferior, algo que eu não havia reparado antes.

-Ei. São os novos. - Ele disse, talvez nos reconhecendo também.

Henrietta deu uma tragada longa e soltou a fumaça, levantando o queixo com graciosidade, os olhos presos em nós quatro.

-Mexe a bunda pro lado, Pete, dá espaço pros garotos sentarem. - Ela disse.

Gregory foi o primeiro a se sentar, sem muita hesitação, lançando-nos um olhar como que para nos garantir de que estava tudo bem. Para ser bem honesto, eu fiquei muito aliviado por estar no mesmo grupo que ele. Não tinha só a ver com o senso de segurança que ele trazia, mas também com quem ele era. Seus olhos azuis tinham esse talento para acalentar todo tipo de ansiedade que se construísse em meu peito. Eu repeti o movimento, sentando logo ao lado de Gregory, e nós trocamos um olhar breve enquanto eu botava as duas mãos trêmulas sobre a mesa. Ele sorriu de leve pra mim. Stan se sentou ao meu lado e, mesmo que houvesse mais espaço naquele banco, Clyde se sentou do outro lado porque Henrietta havia aberto espaço e ele não conseguia ser indelicado, mesmo que quisesse. Clyde era gentil demais para o seu próprio bem. Era engraçado, porque isso gerava um tremendo desconforto para ele e Henrietta não teria dado a mínima se ele escolhesse sentar ao lado dos seus companheiros.

-Você é o garoto da Sheila Broflovski, né? - Ela me disse com um sorriso curioso, virando o rosto para assoprar a fumaça na direção do homem com quem ela discutia em vez de Clyde. Ele não pareceu se importar. Ela não era calorosa ou simpática, nenhum deles era, mas havia um humor cínico naquela mesa que me deixou confortável muito depressa. - Eu amo o seu cabelo.

-Posso tocar? - O homem com o crucifixo já estendia a mão do outro lado da mesa antes mesmo de ganhar permissão, o que eu não teria dado, mas já era tarde para isso. Ele passou a mão pelo meu cabelo delicadamente, sem apertar, quase como se tivesse medo de ser mordido. Eu recuei a cabeça por instinto, franzindo as sobrancelhas pela invasão. Ele afastou a mão e voltou a se sentar, mas seus olhos continuavam carregando certo encantamento, mas sua expressão continuava totalmente estoica. - É tão esquisito.

Ele falou como se fosse um elogio, então eu não consegui me incomodar.

-Meu nome é Henrietta, esse é o Michael. - Ela apresentou. - A bicha é o Pete. E aquele ali é o Firkle. - Pela primeira vez, meus olhos se voltaram para uma pessoa muito jovem sentada na ponta do banco, escondido atrás de um cabelo preto escorrido e imundo. E usava um batom preto. Eu não sabia dizer qual era o seu gênero.

-Minha nossa. - Falei sem pensar. - Quantos anos você tem?

-Quinze. - Firkle respondeu com uma voz muito baixa, como se não tivesse vontade de falar.

Por algum motivo, de repente, eu não conseguia tirar os olhos daquele garoto. Por baixo da camada grossa de delineador e pó branco, eu via o rosto de alguém que recém saiu da infância.

-Você não é jovem demais pra estar aqui? - Stan perguntou, talvez sentindo o mesmo aperto no coração que eu.

-Esse daí é mais casca grossa do que todos nós juntos. - Pete respondeu com um quase sorriso. - Vai vendo.

-Eu tenho… Eu tive um irmão dessa idade. - Murmurei sem pensar. Eu não teria trazido à tona o nome de Ike em circunstâncias normais, era algo que eu fui ensinado a evitar por completo. Stan ficou tenso ao meu lado, espiando a minha expressão pelo canto do olho, sem querer virar diretamente para mim. Isso delataria a mentira. Eu detestava alimentar aquilo, simular uma dor de morte que nunca existiu, mas honestamente… Eu não sabia o que havia acontecido com Kenny e Ike. Talvez eu nunca descobrisse. Ele já estava distante o suficiente para parecer uma lembrança de alguém que eu nunca mais veria.

Pela primeira vez, Henrietta me olhou de verdade. Não aquele tipo de olhar casual que se dá a um estranho, não o olhar curioso de quem finalmente conhecia o filho de Sheila Broflovski. Ela me viu. Não tinha uma expressão particularmente emotiva tomando conta de seu rosto, mas seus olhos demonstraram uma gentileza que não estava ali antes.

-O que aconteceu com ele? - Ela perguntou.

E de todas as perguntas do mundo, essa era a mais difícil de responder.

O ambiente nunca chegou a ficar em silêncio, sempre preenchido pelos burburinhos das outras mesas. Mas ali, na mesa oito, ninguém disse mais nada durante um longo momento. Eu umedeci os lábios, meus olhos percorrendo a superfície da mesa limpa que continha um pires cheio de cinzas, um maço amassado de cigarros, xícaras de café, uma jarra de água e um prato de biscoitos salgados que ninguém tocou.

-Ele se afogou no gelo. - Respondi com uma voz pequena, não fazendo contato visual com ninguém.

Gregory, que estava bem ao meu lado, trouxe a mão à minha nuca e apertou carinhosamente. Quando virei meu rosto para encontrar o dele, pude ver em seus olhos que ele sabia que eu estava mentindo. Talvez não com certeza, ou não de forma consciente. Ele não chegou a ver o Ike na casa, e eu sabia que Christophe não teria contado. Mas mesmo assim, ele sabia.

-Que merda. - Michael disse, soltando o ar pelas narinas. Foi quase engraçado de tão honesto. A forma como as pessoas lidavam com luto naquele lugar era muito diferente, muito mais sincera, como se já estivessem acostumados com a morte.

-Quantos anos ele tinha? - Henrietta perguntou.

-Doze.

Ela franziu o nariz como se a idade piorasse mais ainda a situação, uma familiaridade reluzindo em seus olhos escuros. Ela bateu as cinzas do cigarro no pires e pressionou a língua por dentro da bochecha, mostrando a parte interna do lábio que não estava coberta pelo batom.

-Eu também perdi um irmão mais novo. - Ela disse, com o tom de quem comenta que vai chover amanhã, brincando com o cigarro entre os dedos. - Dez anos. Ele estava brincando no rio, escorregou em uma pedra e abriu a cabeça. - Henrietta estreita os olhos com satisfação ao dar mais uma tragada, soltando a fumaça quase que de imediato, seu tom inalterado o tempo inteiro. - É uma merda ser criada por pais que perderam um filho.

Por mais que Henrietta não contasse esse fragmento de sua história com dor na expressão ou na voz, eu senti vontade de vomitar. Uma dor aguda me atingiu na ponta do estômago, fermentando uma raiva corrosiva de minha mãe por fazer parte da guerra e de mim mesmo por perpetuar sua história. Eu não podia me dar muito ao luxo de pensar sobre onde Ike estaria naquele momento, porque desabar na frente daquelas pessoas não era uma opção. A natureza do assunto fez com que a ardência nos meus olhos passasse como algo esperado. Stan me encarou de perto e colocou a mão sobre o meu joelho. Eu ofereci a ele um sorriso fraco, que ele não correspondeu, seus olhos cheios de inquietação.

-Ei. - Henrietta chamou, olhando diretamente para o Gregory, como se sentisse a obrigação de mudar de assunto de repente. - Você é quem coordena eles?

Eu me perguntei como ela sabia disso; talvez fosse uma questão básica de atitude. Clyde certamente não era líder nem de si mesmo, Stan era introvertido demais e… Bom, eu era apenas o filho de Sheila Broflovski.

-É, acho que sim. - Gregory respondeu encolhendo os ombros, como se não fosse vaidoso o suficiente para assumir o título, o que era uma grande bobagem. Mas ele provavelmente esta sim intimidado naquele ambiente novo, onde ele já não era mais a pessoa mais experiente. - Vocês não trabalham com líderes aqui, imagino.

-Tsc. - Michael estalou a língua, tentando usar um isqueiro prateado para acender um cigarro, mas falhando miseravelmente. Michael tirou o cigarro da boca, coçando o olho com o polegar, não aparentando estar muito incomodado com o fato de o isqueiro não funcionar. - A menos que você conte Terrance e Phillip.

-Eles tão aqui?! - Clyde perguntou, finalmente parecendo empolgado com alguma coisa.

Henrietta e Pete trocaram um olhar não muito sutil de desdém, e não me escapou dos olhos o sorriso no canto dos lábios dela, um sorriso contido de quem acaba de ouvir a maior idiotice de sua vida, mas ela não comentou a respeito. Michael parecia desinteressado, tentando novamente acender o cigarro, como se aquela pergunta não fosse digna de resposta. Minha atenção percorreu até o outro lado da mesa, onde Firkle estava com sua cabeça baixa, lendo um pequeno livro de poesia de Charles Baudelaire, como se o resto do mundo nem existisse.

-Não, é muito perigoso pra eles. - Pete disse, esticando o braço para pegar a jarra de água gelada posta à mesa, servindo-se em um copo plástico. Por um instante, eu me perguntei se aquela jarra não estaria cheia de vodka em vez de água. - Mas eles aparecem de vez em quando.

-Eles ainda aparecem nos confrontos de rua? - Stan perguntou.

-Ah, com certeza. - Henrietta disse, tirando o isqueiro da mão de Michael para acender o cigarro por ele, pois ele não conseguia fazer a maldita coisa funcionar. Os dois se comportavam como irmãos, mas não deviam ser, pelo menos não de sangue. - Mas não tem como saber. Eles não aparecem com a cara à mostra, é óbvio. - Ela largou o isqueiro na mesa porque estava claramente sem combustível, usando o próprio cigarro para acender o de Michael. - Ninguém mostra a cara, aí é que tá. Eles podem ser qualquer um. Essa é a parte foda. Não importa quem eles são, eles são como todos nós. O que importa é a ideia.

-Mas o que isso quer dizer? Eles já podem ter sido assassinados na rua e ninguém sabe? - Perguntei, franzindo a testa.

-Não, não. - Henrietta respondeu, balançando a cabeça. - Os sapadores não querem te matar.

-A gente ouve falar que a coisa é bem carniceira lá no Colorado, Utah, Wyoming, por ali. - Pete comenta, bebendo água quase compulsivamente no intervalo entre uma frase e outra. - Aqui não é assim. Eles querem é te pegar vivo. Um cadáver a mais não serve de nada.

-Sério? - Clyde perguntou. Ele não parecia mais tão fragilizado quanto antes, talvez porque a conversa levou sua mente para outro lugar, mas ainda havia muito medo em sua voz. Eu queria ter intimidade o bastante para tocar o braço dele como forma de conforto, provavelmente o teria feito se ele não estivesse do outro lado da mesa. - Por quê?

Dessa vez, Henrietta riu de verdade, mas não parecia ser para tirar sarro da inocência de Clyde. Não, dessa vez, parecia um sorriso amargo e muito pessoal, como se a pergunta tivesse atingindo-lhe um nervo. Ela tragou o cigarro quase no fim para se inebriar. Ninguém disse nada por alguns segundos, talvez comunicando o suficiente através do silêncio. Mas eles não pareciam desconfortáveis. Gregory me lançou um olhar indecodificável, as sobrancelhas um pouco erguidas, como se estivesse apenas checando se nós estávamos bem. Ou se nós entendíamos o que eles estavam dizendo.

-Se eles me pegassem, eu daria um jeito de botar uma bala na minha cabeça. Juro por Deus. - Pete disse, liberando o ar pela boca como se estivesse muito imerso na ideia, suas pupilas um pouco dilatadas.

-O que…? - Stan começou a perguntar, mas hesitou por um momento, pigarreando. - O que exatamente fazem com os prisioneiros políticos?

-Pergunta pra quem já foi uma. - Michael respondeu, apontando na direção de Henrietta com a cabeça. Ele parecia plenamente satisfeito agora que tinha o cigarro aceso.

A informação foi lançada com tamanha casualidade que nós trocamos olhares confusos por um momento para tentar entender se todos estávamos falando da mesma coisa, mas os góticos não se abalaram com isso.

-Isso não é possível. - Gregory soltou com mais espontaneidade do que de costume. - Você foi solta?

Ela ergueu as sobrancelhas em confirmação, ciente do fenômeno extraordinário que isso significava. Com essa informação, eu também podia entender muito melhor esse olhar no rosto dela, essa expressão cansada e, ao mesmo tempo, tão forte, um pouco assustadora, como se ela já tivesse visto todo tipo de coisa horrível e não pudesse ser derrubada. Era o mesmo tipo de energia que habitava Christophe, por motivos diferentes.

-Eu passei cinco meses em Washington. - Ela contou, amassando o cigarro no pires para apagá-lo, roçando os dedos cheios de anéis, produzindo um som metálico que era abafado pelos sons de conversas no ambiente. - Os filhos da puta me deixaram amarrada de cabeça pra baixo por duas semanas. Isso ainda era bem melhor do que a caixa, diga-se de passagem. - Ela fez uma pausa, e ninguém quis perguntar o que “a caixa” significava, porque até mesmo Clyde conseguia ter uma boa ideia. - Essa eram as merdas leves, vocês precisam ver o que fizeram com a minha barriga.

-É a cicatriz mais foda que eu já vi. - Michael comentou. Ele parecia ter uma fascinação por coisas normalmente consideradas feias.

-Eu não tenho unha do pé até hoje por causa deles. - Ela continuou, batendo com as pontas dos dedos na mesa. Respirou fundo, enchendo as bochechas de ar ao soltá-lo. - Acredite, eles não querem que você morra. Eles sabem que nós estamos prontos pra isso, ninguém aqui vai pro pau na rua se não tá disposto a dar a vida.

Gregory assentiu com muita certeza, ouvindo atentamente. Clyde, ao contrário, engoliu seco, abaixando a cabeça. Estava bem ao lado dela, então Henrietta não percebeu, mas Pete estava à frente de Clyde e franziu a testa para a reação hesitante dele.

-Por que te soltaram? - Stan perguntou, unindo as mãos sobre a mesa, bastante envolvido pela história. Acho que ele tinha medo da resposta.

-Nós pegamos o governador. - Michael disse em seu tom imutável, bebendo um gole da xícara branca de café à sua frente, que já parecia estar frio.

-Eu me lembro desse caso. - Gregory disse, assentindo. - A exigência era libertar vinte prisioneiros, não?

-Dezessete. - Michael corrigiu. - Eu mesmo fiz questão de cortar dois dedos do filho da puta pra enviar como presentinho pra base militar de Washington.

Ele não dizia isso de forma sádica, apesar de suas palavras parecerem. Na verdade, Michael tinha sempre o mesmo tom gutural de quem não se importa com nada do que está dizendo.

-Firkle queria arrancar as orelhas do cara, mas o Michael não deixou. - Pete contou rindo. Rindo de verdade, como se estivesse comentando uma bobagem leve. Eu ainda não o tinha visto sorrir, e ele não ficava muito bonito quando o fazia, revelando seus dentes sujos e tortos. Mas não era pelos dentes, e sim porque ele parecia um adolescente quando sorria, o que não combinava nada com ele.

O conteúdo da conversa fez Stan respirar diferente, eu senti. Quando me virei para olhá-lo, ele tinha uma expressão dolorida no rosto, os olhos estreitos, a boca um pouco torta, revelando a perturbação que aquilo causava. A sua mão já não estava mais em meu joelho. Eu sabia como aquele tipo de coisa era difícil para ele, e a parte mais difícil talvez tenha sido que eu estava prestes a sorrir com o comentário de Pete, porque soava como brincadeira, mas a expressão de Stan me lembrava que era sério.

-Claro, ele tava achando que era bagunça. - Michael se defendeu. - Você tem que deixar recursos pra arrancar depois. Se os dedos não dessem certo, a gente ia arrancar o quê?

-A rola. - Firkle disse em um tom seríssimo que fez Henrietta gargalhar alto. Ela sim ficava bonita rindo. Clyde também gargalhou junto com ela.

E riso, por qualquer motivo que seja, é sempre contagioso. Aquilo foi suficiente para dissolver qualquer possível tensão no ar, embora Stan não tivesse achado nada engraçado. Ele parecia extremamente desconfortável. Quando eu estava prestes a perguntar baixinho se ele estava bem, alguma coisa prendeu a atenção dele. Pete também levantou a cabeça, e Gregory começou a sorrir. Quando ergui os olhos, entendi a razão.

Christophe.

-Olha só quem chegou. - Pete disse.

Henrietta, Michael e Clyde se viraram. Firkle não tirou os olhos de seu Baudelaire, porque era, claramente, um garoto com prioridades.

Ele parecia diferente. Estava parado a alguns metros da nossa mesa, os ombros um pouco caídos para a frente, usando uma camisa azul clara de flanela que certamente parecia ter sido emprestada, mas parecia tão macia abraçando o tronco dele, apenas dois botões fechados. Ele tinha um lado da cabeça envolto por ataduras, a barba recém feita, um olhar descansado no rosto. O braço mordido pelo cachorro também tinha um curativo limpo com bandagens. O resto eram arranhões e cicatrizes que poderiam muito bem já estar naquele corpo há anos, quem é que sabia? Ele estava tão lindo assim, com esse ar de quem passou por uma guerra.

Quando ele olhou para a nossa mesa, alguma coisa aconteceu com seu rosto. Ele sorriu. Não era um sorriso largo e escandaloso, mas estava ali, expondo seus dentes. E era voltado a uma pessoa específica. Ele começou a se aproximar, andando em passos lentos. Henrietta botou uma mão na mesa e sugou o ar pela boca, deixando escapar um gemido surpreso, levantando-se depressa. Ela passou as duas pernas por cima do banco e começou a andar na direção dele, com a mesma lentidão. Eu não sabia qual era sua expressão, pois ela estava de costas para nós, mas Christophe parecia radiante.

Quando estavam mais próximos, os dois ganharam velocidade e o abraço foi um choque entre os corpos. Ele precisou se abaixar para envolver o tronco dela, visto que ela era consideravelmente mais baixa.

-Seu filho da puta. Seu filho da puta. - Ela dizia diversas vezes, apertando-o em seus braços. Eu nunca pensei que fosse ver Christophe abraçando outro ser humano com tanto carinho. - Eu sabia que você ia voltar.

Também não foi um abraço que durou uma eternidade. Com a mesma intensidade com que se agarraram, eles soltaram um ao outro com um último sorriso, Henrietta segurando as mãos dele, Christophe agora parecendo quase tímido com a maneira com que ela o encarava. E com isso, soltando as mãos, os dois voltaram para a mesa, agora já recompostos de suas aparências usuais e sem sentimentos.

Ele repousou uma mão amigável no ombro de Michael, que virou a cabeça e sorriu brevemente para ele, mas não levantou para cumprimentá-lo e Christophe também não fez questão.

-Bom te ver vivo, Toupeira. - Foi tudo o que ele disse, e pareceu repleto de amorosidade, dentro dos limites de Michael.

-Eu digo o mesmo.

A verdade era que nenhuma dessas pessoas parecia muito boa em expressar afeto. Mas como existia afeto naquela mesa. Em toda aquela comunidade.

Henrietta se sentou primeiro, muito confortavelmente. Christophe cumprimentou Pete com a cabeça e, logo em seguida, colocou os olhos em mim por não mais do que dois segundos. Eu sequer tive tempo de reagir. Seus olhos pareciam desarmados. Gregory escorregou no banco para dar espaço para que ele se sentasse entre nós dois.

-Disseram que você quase morreu por uma mordidinha de chihuahua. - Michael provocou com um sorriso quase maldoso, que fez Christophe bufar.

-Por favor. Foi uma febrezinha de nada. - Enquanto ele falava, dava a volta na mesa para se sentar naquele espaço estreito que Gregory abriu para ele. Gregory soltou uma gargalhada incrédula ao ouvi-lo, jogando a cabeça para trás de forma dramática, porque era realmente bastante irônico chamar aquilo de “febrezinha de nada” quando Christophe passou a viagem de avião inteira inconsciente e nem conseguia andar sozinho quando chegamos. Christophe estava muito mais tirando sarro da situação do que propriamente tentando convencer alguém. A risada gostosa de Gregory me fez sorrir, mas o sorriso desapareceu quando o braço de Christophe roçou no meio, sua coxa pressionada contra a minha pela falta de espaço, meu corpo querendo roubar o calor dele. Nós nos olhamos por um breve instante. - Desculpa.

-Tudo bem. - Eu disse com pressa.

Só então, Stan escorregou para o lado, dando espaço o suficiente para que nós não precisássemos mais nos tocar. Eu limpei a garganta, sentindo uma ardência desconfortável, colocando as duas mãos sobre a mesa. Meu coração batia um pouco apertado, alterando a minha respiração, especialmente porque eu sentia os olhos de Henrietta sobre nós.

-Como você se sente? - Perguntei ao Christophe em uma voz rouca. - Melhor?

-Eu tô ótimo. - Ele respondeu distraído, sem olhar pra mim. - Ei, Michael. Me dá um.

Michael tateou o bolso da camisa branca antes de se lembrar que o maço de cigarros estava sobre a mesa, deslizando-o para o outro lado até chegar ao alcance de Christophe.

-O isqueiro não funciona. - Avisou.

-Não tem problema. - Christophe disse, levantando a bunda para pegar o isqueiro no bolso traseiro da calça. Eu tive flashbacks rápidos de quando precisei tatear pelo corpo dele em busca do isqueiro para enxergar alguma coisa e encontrei aquele ursinho talhado em madeira. Me perguntei se aquilo ainda estaria em seu bolso. - E aí? Já deram a programação?

-A gente ainda tá conhecendo os garotos, calma. - Henrietta respondeu, cruzando os braços sobre a mesa, apoiando os seios sobre eles, quase sorrindo. - Você tá sempre louco pra quebrar alguma coisa.

-Tem coisa que não muda. - Pete comentou.

-É, tipo você se borrar todo quando vê um cachorrinho. - Michael disse, brincando com o maço quase vazio, passando a língua pelo lábio superior.

-Vai tomar no seu cu. - Christophe respondeu sem raiva nenhuma, muito pelo contrário, com um esboço de sorriso brotando nos lábios que seguravam o cigarro, fazendo com que as palavras saíssem mal pronunciadas, emboladas no sotaque dele. Não fez questão de negar nada, o que só fez com que eles rissem.

Era surreal e bonito ao mesmo tempo observar a interação de Christophe com essas pessoas. Eles eram amigos. Amigos de verdade, pelo que parecia.

Antes que outro assunto começasse, senti uma presença atrás de mim e uma mão grande em meu ombro. Virei para enxergar o rosto pálido de Standish, sua barba cheia muito bem penteada, um brilho ébrio em seus olhos. Ele segurava um cantil que emanava um cheiro forte de cachaça de limão, o que talvez explicasse a intimidade daquele toque. Meus músculos ficaram tensos de repente.

-Henrietta, eu já te falei pra parar de assustar os meninos. - Ele fala alto, abrindo um sorriso largo que mostra o dente de ouro dele, esquecendo sua mão em meu ombro.

-Eles precisam saber como é a vida. - Ela disse, segurando a xícara de café e erguendo para cumprimentá-lo antes de beber.

-Me dá um gole disso. - Pete pediu, esticando o braço para pegar o cantil, que Standish lhe entregou sem prestar muita atenção. Pete bebeu com a mesma ansiedade com que bebera o copo de água.

-Vocês estão bem instalados? Falta alguma coisa pra vocês? - Standish nos perguntou em um tom ainda mais paternal do que ele usava quando estava sóbrio.

-Falta comida. - Christophe disse sem olhar pra ele, esfregando as têmporas com uma mão só, fechando os olhos como se estivesse com dor de cabeça. - Tô fodido de fome.

-A gente já vai servir. - Ele disse, então fez uma pausa com seus olhos em Christophe, talvez esperando ser olhado de volta. Quando ele sentiu que era observado, virou o rosto em minha direção e sorriu, subindo a mão do meu ombro até o meu cabelo. Mas que porra de ideia era essa que as pessoas naquele lugar tinham de que podiam tocar o cabelo dos outros quando quisessem? - E você? Já resolveu o que vai fazer com esse cabelo?

-Ainda não. - Respondi um pouco incomodado, recuando com a cabeça.

-É uma pena. É um cabelo tão bonito. - Ele comentou baixo, fazendo um carinho na parte de trás da minha cabeça.

E se ele queria antes que Christophe olhasse para ele, agora havia conseguido. O rosto dele estava próximo o suficiente de mim para que eu pudesse perceber as nuances da sua expressão irritada. Sua língua aparecia sobre o lábio inferior, percorrendo-o uma vez, uma pequena ruga entre as sobrancelhas e os olhos reluzindo de impaciência para a mão dele nos meus cabelos. Stan, do meu outro lado, parecia apenas confuso. Eu lancei a ele um olhar igualmente atônito.

-Você quer perder a porra da sua mão e ter que bater punheta com a esquerda pro resto da vida, Standish? - Christophe perguntou em um tom estranhamente calmo, segurando o cigarro nos lábios, sugando a fumaça e deixando que ela saísse pelo nariz e pela boca logo em seguida.

Stan franziu ainda mais a testa, passando a mão pelos cabelos, rindo e bufando ao mesmo tempo enquanto sacudia a cabeça negativamente. Ninguém se moveu durante alguns segundos, até que a mão de Standish deixou os meus cabelos e ele pegou o cantil de volta quando Pete o entregou, bebendo um gole demorado. Durante esse meio tempo, eu não sabia se era sério ou o quê. Se essa era apenas a maneira com que eles se comunicavam, ou se Christophe estava brincando. Eu não conhecia Standish o suficiente para poder prever uma reação.

Mas ele sorriu um sorriso triste, colocando a mão esquerda no ombro de Christophe de forma muito mais cautelosa do que fez comigo.

-O garoto não pode falar por si próprio? - Ele perguntou, referindo-se a mim.

-Eu não falei por ele. Eu vou arrancar a merda da sua mão se você não parar com gracinha.

Standish riu.

-Você está melhor, garoto? - Perguntou sem defensiva alguma.

Christophe encolheu o ombro em um movimento muito claro de “não encosta em mim”, que Standish respeitou de imediato. Também não respondeu à pergunta dele. Eu virei o rosto para Gregory, que observava a cena com curiosidade nos olhos, os dedos roçando pelo maxilar, a boca entreaberta. Ele parecia saber qual era o tipo de relação entre os dois. Todos sabiam. Bem, todos com exceção de Stan, Clyde e eu.

-Bom, nós vamos servir em cinco minutos. - Standish disse por fim, dando um passo pra trás. - Se vocês precisarem de qualquer coisa, podem falar comigo. Mas vocês estão em boas mãos.

Ele não parecia tão magoado quando se afastava. Não parecia nada magoado, mas ao mesmo tempo, eu o ouvi dar um suspiro profundo ao se virar, um suspiro típico de quem se importa muito. Assim que ele se afastou, Henrietta disse:

-Você pega muito pesado com ele.

Christophe encolheu os ombros. Ele visivelmente não queria falar sobre isso.

Depois de quase um minuto de silêncio na mesa, Pete ergueu a cabeça, jogando o cabelo vermelho e preto para trás.

-Sabe o que seria massa? - Ele perguntou, olhando para todos nós. - Levar vocês pra conhecerem a cidade. A próxima ação é só terça-feira, a gente pode encher a cara esse fim de semana. Vai que é o último.

Eu mal ouvi o que ele dizia, porque por mais que meus olhos não quisessem encontrá-lo, meu foco ainda estava na energia forte que Christophe emanava.

Stan aproximou a boca do meu ouvido e sussurrou:

-O que aconteceu aqui?

Eu não fazia a mínima ideia.



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