História Mártir - Frustração

As atividades escolares estavam mais calmas após a temporada de provas, enquanto caminhavam pelo corredor em direção ao refeitório, Stan e Kenny comemoravam seus respectivos A e C+ na última avaliação entregue pela professora de Língua Inglesa, a prova de Kyle fora apanhada das mãos da professora e entregue ao ruivo por Stan, agora estava segura em seus dedos, mas Kyle não havia notado ainda, os olhos e a mente presos em um ponto do corredor, enquanto os amigos tagarelavam atrás dele.

— ...Kyle!

O ruivo jogou um olhar irritado quando a mão firme de Stan pressionou seu ombro direito, ele voltou os olhos verdes encarando o amigo apenas para reconhecê-lo, um instante depois Kyle já encarava firmemente algo à frente outra vez.

— O que é, cara?!

O ruivo respondeu impaciente, Stan e Kenny voltaram os olhos para a cena, na frente dos armários, Eric Cartman e Heidi Turner tinham um tipo de discussão, não parecia tão acalorada como as discussões presenciadas um mês atrás, era mais como Cartman falando com um olhar sério, e Heidi acenando concordâncias aleatórias com a cabeça, Kyle observava silenciosamente, os lábios vermelhos franzidos e os olhos verdes faiscando, Stan conhecia muito bem aquela expressão, o moreno suspirou silenciosamente.

— Kyle, você ouviu? Kenny conseguiu um C+, ele não vai ficar em recuperação nas férias.

Para acenar a afirmação do moreno, Kenny sacudiu as folhas grampeadas na frente de Kyle, um C seguido de um sinal de mais podia ser reconhecido no alto da primeira folha, Kyle apenas passou os olhos, já que o loiro cobriu sua visão com os papéis.

— Sim, certo, que ótimo.

A voz de Kyle era apática, ele e Stan haviam se revezado estudando com Kenny para salvá-lo da recuperação uma vez que o escolhido para a tarefa no trimestre anterior fora Butters, e o resultado inacreditavelmente foi o pior possível: Os dois loiros se distraíam em tempo integral, e Butters ficou com uma das piores notas da sua vida (um B-), e agora com o resultado bem sucedido, Kyle não estava nem mesmo comemorando a glória, ele deu dois passos à frente, seguido de Kenny e Stan, dobraram no corredor em direção ao refeitório, porém antes ainda presenciaram quando Heidi ergueu o rosto e abriu a boca para replicar algo, Cartman simplesmente tocou os lábios dela suavemente com o dedo indicador, silenciando-a, a voz dele chegou desdenhosa aos garotos.

— Você sabe que é normal, mulheres têm seu ápice de capacidade cerebral na infância, depois da menarca o pico cai por conta dos hormônios, e você entra na vala comum. É a ciência, Amor.

Stan viu quando a garota apertou os olhos e baixou o rosto de forma humilde, o moreno jogou um olhar esquadrinhando as feições de Kyle, o ruivo não olhava para o casal, irado ele se conteve, a mandíbula cerrada enquanto encarava os próprios pés, apertou as mãos em punhos sentindo as pontas das unhas quase rasgarem a palma, uma pequena, mínima, e concentrada explosão de sua raiva.

Stan seguiu o amigo, antes de perderem o contato visual com o casal, o moreno ainda pôde ver o olhar de súplica e ressentimento no rosto triste de Heidi.

Como um robô Kyle apanhou a bandeja dele e se encaminhou para a mesa, Stan sentou ao seu lado observando-o atento, e Kenny em frente a ele, Kenny engrenou uma conversa sobre a troca de socos entre os jogadores no confronto Raiders x Broncos, o jogo da noite passada tivera como resultado a derrota dos Broncos, mas apesar de assistir com devoção, Kyle não estava interessado em repercutir a luta anual entre Talib e Crabtree, havia outro atrito que estava obtendo toda a atenção dele.

Há cerca de dois meses Heidi reatou um namoro com Eric Cartman, o relacionamento dos dois ainda era lembrado por toda a escola como uma das coisas mais chocantes que acontecera anos atrás no fundamental, depois de muitos acontecimentos grotescos que acabaram afetando a escola inteira, Heidi conseguira se livrar daquele envolvimento, que não era nada menos do que tóxico.

Da primeira vez que Eric Cartman e Heidi se envolveram Kyle ficou farto de ver Heidi — esta garota inteligente e bonita — sendo manipulada, diminuída, destratada, repudiada. Ele tentou resgatá-la, tentou ajudá-la, mas no auge dos seus 10 anos e em sua inegável inexperiência, ficou confuso, foi fraco e incompetente, exagerou em suas emoções, e acabou como todos os outros assistindo Heidi se deixar abater dia a pós dia, até que eventualmente, para alegria de todos e principalmente da própria garota, o namoro apenas terminou.

Não fora fácil para a garota, e Kyle queria ter ajudado mais, no entanto estava ocupado demais lambendo as próprias feridas depois de ter sido rechaçado pela própria em sua óbvia nova personalidade manipulada pelo namorado narcisista, e Heidi levou muito tempo para se reerguer, talvez muito mais do que Kyle possa ter teorizado, talvez menos do que Cartman gostaria, mas ela ficou bem e aparentemente feliz por cinco anos, embora cicatrizes invisíveis ainda sangrassem dentro dela, silenciosamente.

— Você vai comer isso?

A voz de Kenny tirou Kyle de seus pensamentos, ele ergueu o olhar encontrando os olhos azuis claros de Kenny fixos em seu prato, sem nada dizer Kyle empurrou uma almôndega para o amigo, a porta do refeitório abriu e toda a atenção de Kyle estava lá outra vez.

Cartman caminhava orgulhosamente com Heidi, as mãos unidas, Heidi parou para pegar um suco e antes de sentar em uma mesa isolada, os lábios dos dois amantes se tocaram em uma imagem romântica que fez o estômago de Kyle embrulhar.

— Ouvi dizer que a Heidi tirou B- na prova de Língua Inglesa, então ela está muito triste. — A voz de Butters acusou a presença do loiro que Kyle nem mesmo tinha visto se juntar a eles. — Eric estava consolando ela no corredor, é bonitinho ver ele sendo tão prestativo, não lembro a última vez que ele foi legal com alguém.

Butters continuou comendo alegremente, Kyle empurrou a bandeja, seu apetite era inexistente.

— Ele não é “prestativo”, Butters. Cartman é um babaca manipulador. — Kyle declarou enfático.

— Ah, Kyle, eu sei que você o odeia, mas precisamos admitir que aquela declaração de amor que ele fez pra ela foi linda, com balões, e... lembra o que ele disse...? Espera, eu lembro! — Butters tinha um pequeno sorriso quando começou a recitar. — “Ao invés de me aceitar como eu sou, você me fez descobrir que eu podia ser muito melhor! Nós somos diferentes, mas diferentes de um jeito perfeito, porque a gente se complementa! Você era tudo que tava faltando na minha vida! Eu te amo cada vez mais, e cada vez de um jeito novo!”

Stan sentiu quando Kyle retesou o corpo inteiro, todos na escola lembravam da semana de Valentine’s Day, quando Eric Cartman apareceu no Saguão de Entrada da Escola com um microfone, flores e muitos balões em forma de corações, recitando o que deveria ser um pedido oficial de namoro, algo bem apurado para um adolescente de 14 anos, Heidi o aceitara de volta e eles foram o único assunto no dia posterior ao Baile dos Namorados.

— E onde que isso não era uma manipulação, Butters? — Kyle falou calmamente tentando conter a irritação. — Ele é assim, vai tratar ela como acha que ela quer ser tratada, depois que ela estiver se sentindo segura, ele estraçalha com ela. E já está acontecendo.

Butters jogou um olhar incerto para o casal que comia na mesa isolada, Heidi abandonava gradualmente a dieta vegana, uma vez que Eric Cartman lhe empurrava um pedaço de hambúrguer na boca, agindo de forma carinhosa.

Kenny e Stan trocaram um olhar, Stan se mexeu desconfortável.

— Cara, você não deveria se preocupar, o verão está aí, vamos para o Ensino Médio finalmente, e nossa adolescência mal começou! — Kenny falou. — Vamos aproveitar nossas férias!

— Não vou conseguir olhar praquele gordo sem querer esmurrar ele se eu ver a Heidi chorando. — Kyle respondeu, prestes a perder a paciência.

— Kyle, por enquanto acho que está tudo sob controle, não acha? — Stan pegou a mão do melhor amigo sobre a mesa, apertando-a ele o encarou. — Da outra vez você acabou machucado.

Kyle puxou a mão de volta, o contato físico com Stan ficara mais perigoso nos últimos anos, mais significativo, mais magnético, quase irresistível.

O ruivo se ergueu da mesa, encarando os amigos de cima, falando tão discretamente quanto possível, não queria fazer uma cena no refeitório.

— Eu me machuquei? Você acha que EU me machuquei, Stan? — Kyle falou com as costas inclinadas, muito próximo ao rosto do amigo, de longe diriam que eles estavam apenas trocando um segredo, combinando algo, falar intensamente perto era algo tão Stan e Kyle... — Você lembra como ela ficou?

Stan girou ficando de pé, a altura dos dois pareada, os olhos azuis atentos e seu rosto tão perto do rosto de Kyle que era possível contar as raias escuras dentro da íris azul.

— Eu sei, okay? Sei como se sente. — Stan apontou. — Mas o que você pode fazer se ela quer isso? É a opção dela, Kye. Dela, não sua.

O apelido simplesmente escorregou, Stan sabia o que Kyle sentia porque agora mesmo ele experimentava a mesma sensação.

Frustração.

— Dessa vez não. — Kyle deu as costas e se encaminhou pra fora do refeitório, deixando Stan ali, o observando.

O silêncio recaiu sobre a mesa, Stan chutou o banco irritado.