História Mártir - Herói?

Kyle ganhou o corredor rapidamente, suas pernas acostumadas aos pulos na quadra de Basquete tinham um impulso explosivo, sua raiva borbulhava na superfície ameaçando estourar.

Há dois meses assistia calado enquanto o namoro de Heidi e Cartman passava pelos estágios previsíveis, tendo presenciado interações de romantismo e zelo, carinhos, o charme apaixonado... evoluindo para o momento atual onde Heidi era lentamente desperdiçada, desvalorizada, acusada, cobrada, muitas vezes em público com o intuito de humilhação social, para em seguida ser abraçada, acolhida e aceita por aquele que acabara de oprimi-la e subjugá-la... Kyle sabia que era uma guerra perdida, sabia que Stan tinha razão, e ainda assim... ele queria salvá-la com todas suas forças.

Independente do preço a pagar.

Com o estômago revirado o ruivo chegou ao seu armário e apanhou o livro de Química, em seguida se dirigiu a sala da próxima aula.

Silenciosamente Kyle entrou, ainda faltavam alguns minutos para o final do intervalo de almoço, então abriu o caderno e o livro, e começou precocemente a pensar em um projeto proposto na aula anterior, ele tinha um plano a seguir.

Alguém entrou na sala e Kyle ergueu os olhos do livro, Heidi caminhou placidamente até o canto da sala e sentou-se junto a parede, a atenção de Kyle voltou-se totalmente para ela, e decidido, ele levou alguns segundos para se levantar e mudar de lugar, em seguida, puxava a cadeira ao lado da garota.

— Hey, Heidi. — Ele começou olhando para ela rapidamente, tempo suficiente para pegar seus olhos vermelhos. — Uh... ah, ansiosa para o projeto de Química?

Heidi a princípio não encarou o colega, todo o tempo no dia de hoje ela estava simplesmente deprimida, as notas em todas as Línguas estavam caindo, Matemática também mostrou o pior resultado de sua vida escolar, mas pelo menos nas Ciências (Química, Física e Biologia) ela ainda mantinha-se com as notas mais altas do seu ano, ainda assim, estava com dificuldades em compreender o que seu namorado tentara arduamente explicar a ela, sobre a constituição do sistema neurológico feminino e como os hormônios agiam para desequilibrar tudo, fazendo-a perder seu temperamento, suas notas e até suas capacidades intelectuais.

Tentando ser gentil, Heidi voltou seus olhos para Kyle, ela colocou uma mecha de cabelo para trás da orelha e o observou, repassando mentalmente a pergunta do colega.

— Eu... não... na verdade não. — “Sou muito burra agora que já atingi a puberdade, não estou conseguindo pensar muito sobre minha vida acadêmica”, ela pensou observando os olhos verdes e cabelo encaracolado que fugia da ushanka caindo em cima das sobrancelhas do colega, Kyle a observava tão profundamente que ela sentiu vontade de chorar. — Estava... estou esperando o sorteio das duplas, vou deixar minha dupla escolher o projeto.

Kyle pareceu surpreso por um instante, e se Heidi não o conhecesse tão bem mal teria percebido, ele mordeu os lábios e desviou os olhos rapidamente, em seguida voltou a olhá-la.

— Você tem alguma preferência de parceria? — Kyle questionou a expressão do rosto dele era impenetrável.

— Não. — “Todas minhas amigas me julgam o tempo todo, e se preferisse um menino, isso causaria problemas com o Eric”. — Vou aceitar o que o professor sortear.

— Certo. — Kyle apertou as bordas do livro que ele tinha em mãos e então os olhos brilhantes dele a encontraram, e eram muito quentes. — Quer fazer isso comigo?

Heidi sentiu o coração acelerar, era tão estúpido, ela e Kyle tiveram um namorico tolo quando eram crianças, ela não lembrava bem como ou porque terminou, no entanto, lembrava que se sentia muito bem com ele, talvez fazer um trabalho com alguém inteligente, pudesse mantê-la longe de um fiasco iminente, e Kyle de todas as pessoas era um dos mais adequados, ele era capacitado, simpático, reconfortante... seria bom uma companhia assim para variar.

Heidi se chutou mentalmente pela tentação de comparar Kyle com seu namorado, afinal, Eric era tão bom em aceitá-la com todos seus defeitos...

— Mas as duplas serão sorteadas, Kyle. — Ela lembrou sentindo o coração afundar.

— Posso falar com o professor, se você quiser. — Kyle respondeu serenamente.

Heidi o fitou, as bochechas de Kyle não estavam coradas, o que descartava a possibilidade de estar com interesses imorais, era muito provável que o ruivo realmente estivesse interessado na habilidade intelectual dela.

Aquela mesma habilidade que estava se extinguindo, segundo seu namorado não parava de apontar.

— Por que você está sugerindo isso, Kyle? — Heidi perguntou, precisava saber, e por experiência sabia que Kyle não mentiria.

— Você é excepcional nesta disciplina, Heidi. Não venho na escola para fazer a minha vida medíocre, quero explorar todo o potencial! — Ele respondeu fervorosamente.

“Eu sou medíocre” ela pensou, sorrindo tristemente.

— Você pode escolher o Craig, ele é muito bom. — Heidi respondeu encarando a mesa, alguns colegas começaram a chegar, e ela não queria que pensassem qualquer coisa sobre ela estar falando com o Kyle... “Eric não vai gostar disso...”

Kyle soltou uma risada seca, os olhos dele pregados nela, uma atenção diferente.

— Craig vai querer fazer algo bem simples, Química não é a favorita dele, se fosse um projeto de Física tenho certeza que ele viria com algo espetacular, mas não Química. — Kyle puxou a ushanka e passou os dedos nos cabelos cacheados expostos, Heidi não pôde negar, a cena fez ela se aquecer por dentro, o calor se espalhou pelo rosto. — Você quer fazer com ele?

— Deus, não! — Heidi não odiava Craig Tucker, mas ele era tão estoico que ela se sentia pior com a indiferença dele do que com o julgamento de suas amigas. Kyle no entanto... — Não... ah... ele não é ruim, só lhe falta um pouco de...

— Paixão. — Kyle respondeu, voltando a colocar a ushanka, sem saber porque Heidi sentiu-se um pouco decepcionada quando os cabelos ruivos sumiram. — É o que estou falando. Bem, se quiser, falo com o professor, mas precisa ser rápido, ele vai definir as duplas no final da aula.

Heidi mordeu os lábios, a declaração de Kyle fora lógica, contundente, observadora, um tipo de análise que ele realmente faria, era uma chance boa de não ter pessoas a julgando o tempo todo, e com a desculpa do sorteio, Eric não acharia ruim que ela estivesse passando tempo com Kyle.

— Tudo bem.

Kyle sorriu tão enormemente que Heidi sentiu uma absurda vontade de abraçá-lo, mas ao invés disso, abraçou a si mesma para evitar o pensamento, era como ter 10 anos tudo de novo, Eric a advertiu sobre as emoções bagunçadas das mulheres em relação a homens cativantes... como Kyle.

A conversa parou um segundo antes de Butters sentar atrás de Kyle, ele acenou um olá para Heidi e ela balançou a cabeça, era outro exemplo dos meninos que seu namorado apontara como potencial estopim para os hormônios dela, embora a própria Heidi sempre tenha pensado que Butters era surpreendentemente crítico.

Quando o professor surgiu na porta, Kyle apanhou seu caderno e se dirigiu a ele, já tinha um plano em mente, pensara nisso antes, a parte mais complicada era mesmo ultrapassar a barreira autoprotetora de Heidi, ele chegou a mesa do professor e apresentou o caderno, sussurrando o ruivo explicou que tinha interesse em desenvolver um projeto em específico, mas que para isso precisaria de um colega adequado, capaz e comprometido, e que apesar de tudo precisava que fosse uma menina, pois não suportaria que a disciplina fosse acusada de sexista, obrigando meninos a emparelharem-se só com meninos, ou meninas apenas com meninas, era justamente sobre o que seu projeto trataria, sobre misturas.

O professor avaliou por alguns minutos, e pediu que Kyle deixasse ali o projeto, no final da aula ele daria a resposta, ficou absolutamente convencido pelo projeto oferecido, Broflovski era um de seus mais brilhantes alunos, e se estivesse com a menina Turner, a atual detentora do Primeiro Lugar na Feira de Ciências, o professor poderia sentir o prazer que era lecionar para crianças interessadas, ele já havia cogitado a possibilidade de juntar os melhores alunos para ver o que eles poderiam trazer, assim sendo, observou o restante da sala, com a extinção das “Classes Avançadas” havia este resultado heterogêneo de alunos, era complicado manter todos eles interessados e mais complicado ainda era animá-los com experiências complexas, o professor sentia falta da animação que um vulcão de lava de bicarbonato de sódio, ou uma areia movediça de amido de milho ofereciam nas séries iniciais, então com uma caneta em mãos, foi juntando nomes dos alunos do nono ano em duas colunas, e unindo eles em duplas, o resultado seria com certeza surpreendente.

No quadro o professor passou alguns exercícios da Tabela Periódica, Heidi lançou olhares eventuais para Kyle durante a correção das tarefas ela cometeu um erro por conta da distração, Kyle aparentemente tinha tudo sob controle, o professor finalmente divulgou as duplas, e ao mesmo tempo que alguns gostaram, outros ficaram insatisfeitos como era normal, Kevin, sentado na frente dela, estava anormalmente sorridente ao saber que sua dupla seria Craig Tucker, Heidi poderia entender, Craig não era o melhor em Química, mas tinha ideias sempre simples, porém Kevin poderia torná-las surpreendentes.

— Conseguimos, vamos fazer isso!

A atenção de Heidi foi totalmente desviada, a mão de Kyle segurava a dela por cima da mesa, ao erguer os olhos ela viu um sorriso brilhante enfeitando os lábios de Kyle, era normal um garoto ter lábios tão bonitos?

— Vamos, sim. — Ela falou puxando a mão, Eric poderia não gostar se soubesse que outro garoto estava tocando-a dessa forma tão terna. — Você pode ficar até tarde na Biblioteca? Eu gostaria de começar a pesquisa hoje, o mês será apertado por causa do aniversário do Eric...

— Aniversário do Cartman? — Kyle franziu as sobrancelhas. — Mas isso vai ser só no início de julho. Ainda estamos no início de maio, Heidi.

— Eu sei, eu sei... só... quero que seja perfeito, entende?

— Uh. Certo. — Kyle mordeu os lábios, ele não queria transparecer sua desaprovação, Heidi não precisava disso, ele voltou os olhos verdes a ela. — Nos encontramos na Biblioteca no final das aulas, então?

Heidi acenou com a cabeça, o sinal tocou e ela reuniu seu material e praticamente disparou pela porta, Kyle observou-a, quando uma sombra se fez presente à sua frente, um bloqueio azul royal cobriu seus olhos, o som dos outros alunos deixando a sala rapidamente, todos desesperados para reencontrar os amigos no corredor, Kyle não tinha tanta pressa.

— Hey, Broflovski. — A voz apática soou desinteressada, mas quando Kyle encontrou os olhos de Craig Tucker, pareciam compenetrados. — Vi o que você está tentando. Se precisar de alguma ajuda... Eu meio que tenho uma dívida moral, sabe.

Craig tinha as mãos afundadas nos bolsos, um livro preso entre a lateral do corpo e um braço, Kyle pegou seu caderno e estojo e caminhou para a porta, Craig o seguiu um passo atrás, do lado de fora Kyle notou Stan, Kenny e Clyde conversando no corredor, tinha treino de Futebol hoje, provavelmente isso foi o que os reuniu ali, Kyle virou-se tão silenciosamente quanto pôde e encontrou os olhos impassíveis de Craig.

— Talvez eu precise sim, vou deixar você saber. — Kyle deu as costas para o moreno do chullo azul no mesmo instante que Stan acenou para ele, teriam a última aula juntos.

Kyle caminhou em direção aos amigos, Stan se desgarrou do grupinho e uniu-se a Kyle.

— E aí, cara? — Eles caminharam juntos pelo corredor em direção a próxima aula. — Vai ficar pro treino do pessoal?

Kyle mordeu o interior das bochechas.

— Não. — Ele não encarou Stan. — Vou... tenho um projeto de Química pra fazer...

— Ué, e desde quando isso te impediu? — Stan falou, parecia muito surpreso. — Você pode pegar um livro como sempre e sentar lá nos assistindo.

Kyle parou no meio do corredor, faltava apenas alguns metros para chegar na sala, no outro extremo ele viu Cartman falando alguma coisa para uma Heidi de cabeça baixa, o ruivo observou a cena desgostoso quando o braço da garota foi puxado na direção oposta, ela tinha uma expressão de dor quando tentou arrefecer o aperto das mãos grandes em seu pulso delicado, Stan acompanhou o olhar do melhor amigo, não podia dizer que não viu as lágrimas brilhando nos olhos de Heidi.

— Não dá, Stan. Não posso sentar lá assistindo. Não posso mais.

Stan deu um passo em direção a Kyle, os olhos azuis brilharam quando ele tocou com a mão direita o ombro esquerdo do Melhor Amigo, a outra mão de Stan apanhou a mão de Kyle e uma bolha de calor os envolveu, Kyle simplesmente não conseguia desviar, ele encarou os lábios de Stan, a voz do moreno era uma carícia.

— Você não pode consertar o mundo, Kyle, não estamos mais brincando de herói. Sabe que não pode. Vai se ferir, vai se machucar, não vê?

Herói?

A bolha estourou e Kyle se desvencilhou dos braços de Stan, o ruivo saiu andando, não esperava que Stan o seguisse, não esperava que o entendesse... era perda de tempo, ninguém nunca o ouvia, nunca o entendiam, nunca o seguiam.