E em um dia, tudo foi tirado de mim.
Não tenho certeza quando foi, mas nunca consegui esquecer o rosto daqueles dois homens que depois descobri que eram negros capitães do mato acometidos de ganância e covardia. Eu era miúdo e leve e comecei a chorar compulsivamente quando o homem agarrou em meu braço e me arrastou para uma carroça puxada por somente um cavalo. Os gritos de mamãe se misturaram aos urros dos homens, ao meu choro e ao desespero da perda, onde as lágrimas que embaçavam a minha vista foram caladas somente com um tapa forte em meu rosto. Eu estava rendido, desnorteado e acorrentado como um animal selvagem, preso junto com vários outros meninos de tons mais escuros que os da minha pele. Os olhos brancos destacados sobre a pele escura fitavam-me assustados e um tanto confusos e naquele segundo consegui reviver as histórias que mamãe contava sobre a escravidão e a vida dos “inferiores”.
Aquela história se tornou a minha história.
Eu sou filho de um caboclo e minha mãe é mestiça, filha bastarda de um europeu. Eu sou mistura, sou sangue das raças que aqui vivem e povoam o novo mundo. Trago comigo os encantos e as mazelas de ser inferior e viver no cinza da categoria indefinida. Não sou nobre, não sou europeu, mas não sou africano e não era escravo. Era filho de homens libertos e garoto letrado.
E talvez por isso meu preço fosse mais elevado no mercado de escravos domésticos da Vila Nova.
Eu era um filhote desgarrado que se viu forçado a passar o resto da vida servindo a uma elite desprezível. Nunca mais vi mamãe e todas as noites que passei no mercado e acabava fechando os olhos por alguns minutos, ouvia os gritos desesperados e seu corpo frágil dilatado com a gravidez de meu irmão gritar por mim, o filho perdido.
Minha primeira ferida.
Os dentes alinhados e brancos, a pele de um tom mais claro do que os olhos europeus estavam acostumados e os lábios cheios denunciavam cada pedaço da descendência e o produto que a miscigenação era capaz de produzir. Os cabelos escuros e lisos cobriam os meus olhos assustados e melancólicos quando uma senhora comprou-me por alguns contos de réis.
Voltando as primeiras lembranças nos dias de hoje, minha vida foi, salvo algumas exceções, um privilégio que muitos irmãos da linhagem da cor não tiveram. O privilégio das letras, do acesso à casa grande, da oportunidade da liberdade, das mudanças no país e da euforia das revoluções.
Mas acima de tudo, o meu maior privilégio foi ter servido a Kyungsoo.
(Jongin)
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Eu era um garoto de saúde frágil.
Por muito tempo meus pais pensaram que eu não vingaria. Fui filho de um deslize quando minha mãe já havia cessado a reprodução e por esse motivo sempre fui ofuscado pela excelência de meus três irmãos mais velhos. Meus pais eram senhores de todas as máquinas e terras da região coberta pelo solo fértil de massapê. Carregaram para o novo mundo o brasão das casas ibéricas e mesmo sendo a terceira geração, ainda orgulhavam-se e prendiam-se as descendências superiores dos europeus. Fui criado por mucamas negras e generosas, já que minha mãe gastava todo o seu tempo em escapulidas e aventuras pecaminosas para suprir a necessidade que não encontrava em meu pai. Meu pai supria sua necessidade com a senzala e o poder que prestígio que a casa-grande lhe trazia. Éramos uma família modelo apenas na fachada da falsa felicidade.
A minha pele era pura e muito mais pálida do que deveria ser. Não era fácil acostumar-se com o calor e a tropicalidade do país e os banhos de sol coravam a minha pele de um carmim típico das flores que abrochavam ao redor da casa-grande. Era primavera, e foi nesse período que o meu mundo mudou.
Eu era sozinho, miúdo e triste. Tentando solucionar um problema que tinha raízes muito mais profundas que a saúde frágil, minha mãe, “Sinhá” da casa - como diziam os escravos que tinham dificuldade de pronunciar o R de “Senhora” - comprou-me uma companhia. Eu nunca tinha tido contato com outra criança em toda a minha vida e aquela ideia fascinou-me.
Fascinou-me tanto quanto ele.
Eu tinha muitos privilégios vindos do berço, mas era extremamente infeliz. Se eu tivesse seguido sem a mudança, provavelmente terminaria com o mesmo pensamento colonial daquela época. Eu me livrei de todas as correntes arcaicas que me prendiam e segui a minha vida ao lado do melhor privilégio de minha vida.
Meu maior privilégio era um dia ter tido Jongin como meu escravo.
(Kyungsoo)
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Não sei se hoje temos privilégios, pois a sociedade não mudou e as classes não mudaram, porque as raízes que dessa árvore partiram continuam imersas nos mesmos valores. O único privilégio que o tempo te dá é o amor maduro e a coragem, capaz de passar por cima de todos os sacrifícios. Separados e juntos, rompemos com muitos deles.
(...)
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