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História Mil Acasos - Existiu amor algum dia?


Escrita por: MxrningStar

Notas do Autor


Demorou, mas finalmente rolou.
Gente, eu fico besta com o tanto de comentário que esta fic recebe, porque, sério, eu nunca que imaginei que iam gostar assim dessa história rsrsrs.
Primeiro, valeu pelas opiniões, ideias, pelos surtos e por compartilharem o que acham e sentem com a história.
Segundo, sobre as opiniões a respeito da Samantha: não, ela não é tóxica. Pessoas que passam por um baque emocional tendem a se fechar e a se armar pro mundo, sobretudo quando o causador do teu "trauma" está por perto. Os ataques dela são defesas apenas. A Samantha não é uma pessoa ruim.
Terceiro, sobre a Lica. Cuidado ao passarem pano pra ela. Foi a Heloísa que causou tudo e acreditem quando a julgam e falam que de madura ela não tem nada. Essa fic é sobre isso: o amadurecimento das pessoas, então se atenham a este detalhe.

No mais, agradeço desde já a leitura e bora pro capítulo de hoje.
Boa leitura!

Capítulo 7 - Existiu amor algum dia?


- Ellen – Samantha chamou, visivelmente séria e firme – Eu acho que já tem professor demais aqui. Nós não precisamos de mais ninguém. Pode ir, Heloísa, eu agradeço seu interesse e disposição, mas não tem espaço pra você no projeto.

 

Heloísa tentou processar as palavras de Samantha, tentando achar algum sentido nelas. Ellen lhe chamara ali porque sugeriu que ela poderia participar do MP3 e agora Samantha lhe dizia o contrário? E a Lambertini era o quê? A dona do projeto?

- Como assim não tem espaço? – Lica perguntou – Eu só preciso de uma sala. O material todo pode deixar que eu trago.

- Heloísa, não insiste. A gente já tem professor de artes, não precisa de mais ninguém – Samantha rebateu, agora encarando a Gutierrez de frente com firmeza e altivez – Não tem porque você se juntar ao projeto, porque a gente não precisa de mais ninguém.

- Aí que você se engana, Samantha – Lica também foi firme, como se a enfrentasse – Projeto social funciona na lógica do “quanto mais gente pra ajudar, melhor”. Eu posso ajudar a expandir as aulas de arte, trocar ideias com os alunos, aumentar as turmas...

- Ó, isso aí é uma boa – MB se meteu.

- Calara a boca, Michel – Samantha o cortou sem nem desviar o olhar de Lica e o rapaz ficou em silêncio – As aulas de arte estão boas do jeito que estão.

- Samantha – foi a vez de Ellen intervir – Eu acho que se a Lica quer ajudar, não tem porque a gente recusar. Ela é artista plástica de renome internacional e isso agregaria muito pro projeto.

- Você também é programadora de renome internacional, Ellen. Se for só por isso, nossa cota de profissionais internacionalmente reconhecidos já está preenchida.

- Vem cá, Samantha – Lica se empertigou – Qual o seu problema? Eu estou tentando somar numa iniciativa bacana e não entendo esse seu piti. Eu posso acrescentar muita coisa no projeto de vocês e eu quero ajudar. Deixa de birra.

Birra? Ah, agora Samantha estava com birra? E que tom foi aquele que Lica usou para se dirigir a ela? Não admitiria aquele afronte, não quando estava em seu território.

- Eu não dou três meses pra você desistir da gente e dizer que precisa focar em outra coisa. Não é isso que você costuma fazer? Começar as coisas e depois largar sem uma explicação plausível sequer? – uma facada teria doído menos. Lica engoliu em seco ante o olhar penetrante da Lambertini e se pensou que ela tinha terminado, estava enganada – Eu não quero você aqui se não for sério. Esse projeto não é brincadeira, pra você começar e depois largar na mão. E convenhamos que manter compromisso não é muito sua praia.

- Au! – MB soltou – Samanthinha foi sem dó, hein?

- Para, MB! – Ellen ralhou, vendo a tensão quase palpável entre Heloísa e Samantha. Até ela já estava tensa.

- Se eu vim até aqui, é porque eu realmente estou interessada, Samantha. Você sabe que eu sou a favor de causas sociais, não distorce as coisas e nem vem colocar questões pessoais no meio.

Tinha virado lavação de roupa suja. No meio da quadra do MP3. Na frente de Ellen e MB. Péssima escolha de cenário e de figurantes. Aliás, não deveria nem ter figurantes numa situação daquela, tinha que ser só elas duas. Mas MB parecia interessadíssimo em ver de quem partiria a próxima farpa. E Ellen... Bom, era bom ter alguém ali para ajudar a separar caso Lica e Samantha se engalfinhassem.

- Não é questão pessoal, Heloísa. Só estou falando o que todo mundo aqui sabe. Que você não tem compromisso com nada, que não cuida direito nem de você, imagine de uma turma inteira, que não se importa com mais ninguém além de você – apontou o dedo para ela – E esse seu trabalho estúpido.

- Fail – MB atestou balançando a cabeça e até Ellen arregalou os olhos.

- Trabalho estúpido? – Heloísa se empertigou. Samantha pareceu entender o que havia dito no calor no momento e começou a se maldizer no mesmo segundo. Que droga! Na tentativa de machucar Lica, dera mais munição a ela e acabou falando o que não queria – O meu trabalho é estúpido, Samantha?

- Lica, eu... Não foi isso que eu quis... – bem que tentou resolver aquilo ali, mas foi atropelada por uma Heloísa ligeiramente vermelha e pronta para avançar em alguém. E esse alguém seria ela, Samantha.

- Eu estudei cinco anos, me matei pra conseguir conciliar as aulas com o trabalho, me submeti a tudo quanto foi tipo de humilhação pra conseguir um espaço por mínimo que fosse numa exposição, ouvi meio mundo de “quem sabe na próxima”, tive que tirar dinheiro do inferno pra não depender da minha família e conseguir investir na minha própria galeria, e você chama meu trabalho de estúpido? – Lica havia aumentado em uma oitava sua voz – É porque é arte? Hum? É porque não dá tanto dinheiro quanto administrar hotéis? É porque eu não patrocino projetos, não tenho instituto social? Ou é só porque sou eu? Hein, Samantha? – desafiou – É porque sou eu e tudo que faço é estupidez? É porque eu não sei o que quero e deixo tudo pela metade? É porque eu não consigo manter a palavra? – Samantha engoliu em seco. Ellen estava atônita e MB de queixo caído – E só pra constar. Eu decidi investir no meu trabalho que você chama de estúpido porque desenhar é a única coisa que eu sei fazer na vida. Não questiona o que eu faço só porque está magoada comigo.

- Eu... Eu não quis dizer isso – Samantha se explicou, em um fio de voz.

- Mas foi o que disse – Lica disparou – Eu posso não ser a mega empresária dona de São Paulo, a mega programadora dona do Google, mas meu trabalho pode ajudar muita gente também. De uma maneira diferente, mas pode. Não desmerece isso.

- É, Samanthinha – MB interferiu – A Liquinha aqui tem conhecimento de causa quando o assunto é arte. Dá esse voto de confiança aí. Vai ser bom pra gente.

- Eu só acho estranho pra quem falou que não voltaria mais, agora estar aqui, querendo fazer parte de tudo – de novo a acidez no tom da Lambertini. Lica revirou os olhos.

- Você sabe porque eu disse que ficaria na França? – a Gutierrez questionou à meia voz. Samantha voltou o olhar para ela. Aquele assunto ali era só delas. Não envolvia ONG nem mais ninguém. Só elas – Medo de ser insuficiente. Ninguém nunca tinha dito que me amava antes e a pessoa que falou era a que eu mais amava no mundo, mas eu fiquei com medo de não corresponder – Lica engoliu em seco – Como ‘cê disse bem, eu não consigo cumprir com minha palavra, que dirá manter um relacionamento sério como o que eu pensei que poderia. E convenhamos, pelo meu histórico, que vocês insistem em ficar lembrando – assumiu um tom cansado – Eu não sei fazer nada na vida, a não ser transformar a vida das pessoas num inferno – riu sem humor e engoliu em seco, olhando agora diretamente para Samantha – Eu só não queria transformar a vida da mulher que eu amava num inferno – a encarou no fundo dos olhos – Preferi machucar ela uma única vez e ir fazer minhas merdas bem longe do que vê-la sofrendo por quem não valia à pena. Por que claramente eu não valia à pena e continuou sem valer – Lica terminou de falar se virando para Ellen e MB, ainda sorrindo sem graça – “Ah, a Lica só faz merda. Ah, a Heloísa não dá uma dentro. Lá vai ela de novo... Bem feito, Lica, achei pouco” – e voltou pra Samantha – “Você e seu trabalho estúpido”.

Lica se calou e o silêncio que se instalou ali foi ensurdecedor. Tina, Benê e Keyla tinham acabado de chegar à sede do MP3 e estavam paradas, atônitas, próximas ao portão. Heloísa deu tudo de si pra não vacilar e achou melhor ir embora. Já tinha falado mais, muito mais, muito além do que devia. E em um lugar inapropriado, pra quem não tinha nada a ver com a história.

Parabenizou Ellen e o restante das meninas pelo projeto e marchou portão à fora. Benê, que não tinha pego o início da discussão, foi quem questionou na maior inocência do mundo.

- Lica, quando começam suas aulas?

Lica se virou e respondeu em meio a um risinho sem graça.

- O quadro de professores está completo, Benê. Não tem mais espaço. Ah, quando ‘cê terminar aquela música que estava compondo, eu quero ouvir. Achei ela da hora.

E entrou no carro, dando a partida. Saiu dirigindo pelas ruas de São Paulo meio sem rumo. Encontrou refúgio em um bar na Augusta. Mandou mensagem para Alice e foi prontamente respondida. A fotógrafa ficou de ir se encontrar com ela. Bom, pelo menos era alguém desconhecido e que não ficaria apontando o dedo e jogando seus erros em sua cara. Um respiro no meio do caos.

(...)

Samantha chegou em casa, jogando a bolsa no sofá e foi direto atrás de um remédio para dor de cabeça. Seu cérebro parecia que ia explodir, as palavras que ouvira de Heloísa martelando em sua mente. Medo de ser insuficiente e de transformar a vida dela num inferno? Se ela bem entendeu, Lica quis machuca-la de vez para não machuca-la seguidas vezes... E isso não fazia o menor sentido. Que espécie de pessoa veria senso numa coisa dessas? Heloísa viu. Tinha que ser ela mesmo.

Samantha teve vontade de gritar. Lembrou-se do dia em que se despediu de Lica no aeroporto, quando ela viajou para fazer o curso na França. Dissera com todas as letras que a amava e em troca recebeu um beijo profundo e um “eu também sou louca por você, Sammy”. Ela não respondera à mesma altura a sua declaração e isso no momento causou uma certa inquietação em Samantha. Por um segundo, achou que um “eu também te amo, Sammy” sairia naturalmente da boca de Heloísa. No segundo seguinte pensou que ela só deveria ter ficado nervosa.

Jamais passou por sua cabeça que Lica nunca tivesse ouvido aquilo de alguém. Ah, pelo amor de Deus, olha o tanto de gente com quem ela havia se envolvido antes de estarem juntas. MB, Felipe... Se bem que esperar um “eu te amo” sincero daqueles dois era meio complicado. Mas sério que Lica “bugara” com sua declaração? Foi por medo que ela lhe dissera que era melhor terminarem? Medo de voltar e fazer merdas reiteradas vezes e acaba transformando sua vida num pequeno inferno?

Samantha se pegou imaginando como teria sido sua vida se Lica tivesse voltado após os três meses na França e elas tivessem ficado juntas. Ainda estariam juntas depois de sete anos? Bom, pelo conhecimento que  tinha das duas, provavelmente não. E como teria sido o fim do relacionamento? Um final amigável ou elas sequer estariam se falando? Teriam acontecido mais mágoas?

De uma coisa Samantha tinha certeza. De uma não, de duas: a primeira era que com certeza Marina não existiria. Não teria sua filha, seu bem mais precioso. A segunda era que ela provavelmente não estaria tão bem de vida. Provavelmente teria rompido com os pais, uma vez que eles não eram lá muito a favor de seu relacionamento com Lica, então não teria tomado a parte que lhe cabia nas empresas. Logo, sem hotéis, sem restaurantes, sem apartamento bom em Perdizes, talvez sem independência financeira e com seus dias incertos. Provavelmente não teria conduzido tão bem o curso de música, que pretendia ter feito. Acabou cursando administração e se encontrou naquilo. Samantha amava música, era sua alma, mas não via nela um meio de vida, e sim uma paixão, algo que lhe relaxava e lhe elevava a alma. Não era algo que queria fazer como obrigação para garantir seu sustento. Era um passatempo que ela amava.

E provavelmente ainda teria que estar lidando com a presença física de Lica mesmo com todo o revés emocional que ela talvez estivesse lhe causando fosse em um relacionamento, fosse em um fim dele. Sua vida teria sido completamente diferente. O que uma ligação de cinco minutos e um “acho melhor a gente terminar” não fazem. Sem Lica, Samantha pode olhar para si mesma, cuidar de si, investir em si. Com Lica, talvez... bom, talvez sua vida fosse dedicada à Gutierrez e a consertar e tentar conviver com as merdas que ela fazia. As merdas típicas de uma pessoa que não sabia o que queria, que não tinha certezas na vida. Ia chegar uma época em que a Lambertini iria querer segurança. Lica teria lhe dado essa segurança?

Pode parecer estranho, absurdo até, mas Samantha vislumbrou lá no fundo, bem no fundo mesmo, um pouquinho de senso no que Heloísa fizera. Talvez não fosse completamente sem sentido. E se Lica terminara para lhe poupar de um relacionamento sem solidez, sem maturidade e permeado por inseguranças e altos e baixos? Não era o tipo de relacionamento que ela, Samantha, queria, muito menos o que merecia. Será que Lica enxergara isso e fora esse o motivo de ficar na França e terminar? Dar a ela uma chance de crescer sem sua figura instável por perto?

- Eu vou ficar maluca – Samantha resmungou, esfregando a testa.

- Falando sozinha, meu amor?

- Ai, que susto! – a mulher exclamou quando viu Henrique parado do outro lado da sala, trajando um calção e uma camiseta – Eu nem te vi entrar.

- Eu percebi – o homem sorriu e aproximou-se dela – Tudo bem? Você me parece cansada.

- E estou mesmo – Samantha soltou um suspiro e deu espaço para o marido se sentar ao seu lado no sofá – Fui à ONG pra espairecer e só arrumei dor de cabeça.

- É? – o homem inquiriu – E o que aconteceu?

Samantha achou melhor deixar aquele assunto para lá.

- Problema no quadro de professores. Mas isso já foi resolvido. Eu espero – suspirou de novo e se aninhou nos braços de Henrique – A Marina, cadê?

- Na sua mãe – o homem falou e deixou um beijo quente no pescoço da esposa – O que me lembra que estamos sozinhos nessa apartamento enorme e...

Samantha nem deixou que ele terminasse de falar. Agarrou a boca dele com a sua em um beijo profundo, quase desesperado. Virou-se e sentou-se sobre o quadril de Henrique. Mãos sem destino vagavam por seus corpos, traçavam curvas, apertavam, arranhavam. Samantha terminou sem roupa com um Henrique igualmente despido no sofá da sala em um banquete de sensações lentas e prazerosas.

Repetiram o mesmo ritual na banheira e mais umas duas vezes na cama. Quando Samantha desabou no colchão ao lado do marido, estava exausta, mas satisfeitíssima. Aninhou-se a ele, que a envolveu pelos braços, apertando-a contra si.

- Eu te amo tanto, Samantha, tanto – disse e deixou um beijo lento e gostoso nos lábios da mulher.

- Eu também te amo, meu amor – respondeu na mesma hora, quase que automaticamente e retribuiu o carinho dele.

E foi ao ouvir Henrique e responde-lo que ela não entendeu qual a dificuldade de declarar seu amor para alguém. Era só abrir a boca e deixar o coração falar. Não era nada de outro mundo. Talvez o fosse quando o coração não tivesse nada a dizer. E se alguém não diz um “também” em resposta a um “eu te amo”, é simplesmente porque não há reciprocidade. E era isso. Para ela estava tudo às claras. Heloísa não lhe amava, nunca o fizera. Lhe pedira em namoro por impulso, como tudo que ela fazia na vida.

Se relacionara com Felipe no impulso de implicar com Clara. Se declarara a Bóris no desespero de preencher o vazio de uma figura masculina que lhe desse segurança e afeto. Caíra nas drogas no impulso de sentir alguma coisa e preencher o vazio emocional causado pelos problemas de seus pais....

Ficara com ela, Samantha, no impulso de provar para si mesma, e talvez aos outros, que podia sentir algo por alguém e ter um relacionamento estável. Mas no dia que a coisa ficou séria, pulou fora.

(...)

A semana se arrastou a passos lentos. Heloísa às voltas com a reforma do prédio onde seria sua galeria e batendo perna por toda São Paulo atrás de material e resolvendo burocracias. Ao menos tinha a companhia de Alice. Além de entendida do assunto, a mulher tinha um vibe maravilhosa e vinha sendo um verdadeiro escudo contra tudo que vinha causando mal-estar na Gutierrez.

Um ótimo papo, um excelente senso de humor, divertida, leve. Acima de tudo, leve. A figura de Alice era como um contrapeso na vida de Lica. Um equilíbrio contra o peso de se sentir ligeiramente vigiada pela mãe, contra o peso de ter que lidar com Clara pedindo o tempo todo pelo amor de Deus para ela não fazer besteira, contra o peso que foi sentir o distanciamento que havia se instalado entre ela e suas amigas, contra o peso da presença de Samantha.

Na verdade, as Five e sua ex-namorada eram os maiores “problemas”. Desde que voltara de Paris, não era novidade que Lica vinha se sentindo ligeiramente fora de lugar entre suas melhores amigas. Talvez tivesse mesmo passado tempo demais fora e aquele ditado que diz que quem não é visto não é lembrado fizesse realmente sentido.

Tina vivia às voltas com as festas que produzia e no seu negócio com Anderson. Ah, e os dois pareciam não estar lá muito bem. Benê e Guto também tinham seus contratempos. Aliás, Benedita reclamara que Guto andava muito aéreo em relação ao seu trabalho na música e isso por si só era motivo para a relação deles dar uma desandada. A mulher odiava falta de atenção e de compromisso. Resumindo, ela também tinha seus próprios problemas.

Keyla se desdobrava para dar conta de Tonico, que parecia dar mais trabalho do que quando era só um bebê sujando fraldas seguidamente, e para dar conta de seu trabalho como estilista e dona de boutique. E Ellen vivia às voltas com seu trabalho como programadora de uma plataforma de streaming e com a cara enfiada no computador, criando seus aplicativos.

O único lugar em que elas pareciam ter tempo para se verem eram nos fins de semana quando iam à ONG e lá, Lica não botava nem os pés. Não depois do que acontecera quando visitara o lugar pela primeira vez. Não depois do que ouvira de Samantha e até mesmo por medo de encontrar a mulher lá. Ela seria capaz de lhe chutar do MP3 a vassouradas, se não a tiros mesmo.

E não podia negar que ficara realmente ressentida com suas amigas por elas não terem feito nada, simplesmente nada que pudesse contornar a situação. Ela só queria ajudar no projeto e dar aulas de arte. Havia participado de inúmeros projetos sociais ensinando crianças, carentes ou não, a desenhar e se expressar por meio dos traços e das cores quando estava na Europa. Tinha tato para isso, conhecia técnicas de ensino e aprendizagem como ninguém, sendo neta de quem era e herdeira de uma das melhores escolas de São Paulo.

Mas isso tudo lhe pareceu não valer nada, simplesmente nada, pro pessoal dali. Nem para suas amigas. Não quando a única coisa que as pessoas faziam o tempo todo era lhe lembrar de suas falhas e suas faltas. Lica tinha que admitir: isso cansava. Isso e a apatia de Tina, Ellen, Keyla e Benê quando ela precisou que alguém botasse o pé na parede e fizesse Samantha parar.

A Lambertini era o quê, afinal? A dona do MP3? Aquilo era uma projeto social ou uma extensão das empresas dela para que ela mandasse e desmandasse ali dentro sem ninguém contestar nada?

Lica até chegou a jogar o assunto despretensiosamente em uma conversa com Clara e acabara descobrindo que o Grupo também apoiava o projeto. A ironia é que ela era tão dona daquela escola quanto a irmã e sequer fora informada disso. Se nem como representante de um dos apoiadores ela era bem vinda ali, já ficara claro que o problema era mesmo com ela, Heloísa. Não com quadro de professores e horários cheios. Não lhe queriam lá, ela que não insistiria. Magoou um pouco, Lica chegou a se questionar se fizera tanto mal àquelas pessoas assim, mas decidiu deixar para lá. Tinha mais coisa com que se preocupar. Se cada um ali tinha sua vida, ela que não faria como Benê dissera: não ficaria desocupada, correndo atrás de Samantha. Tinha uma galeria para montar e sua vida para tocar.

Naquela sexta-feira, dedicara o primeiro tempo de seu dia, como vinha fazendo, ao Grupo. Seguiu seu ritual: ajudava Clara, fazia seu lanche nada saudável na cantina da escola e depois seguia para resolver seus assuntos de trabalho. No intervalo, como sempre, tinha a companhia de Marina enquanto ela fazia seu lanchinho, e depois a menina desatava a correr no meio do pátio, brincando de pega-pega ou jogando bola.

- Tia Lica, você viu o gol que eu fiz? Meu time ganhou porque eu que fiz o gol – a menininha terminou a hora do recreio toda suada e ligeiramente vermelha.

- Vi sim – Lica respondeu, animada. Vibrou feito uma torcedora fanática quando viu Mari pegar a bola do coleguinha e correr em direção ao gol. Aos tropeços, com as perninhas curtas, ela entrou no gol com bola e tudo. E deu a vitória para seu time – Você foi incrível, Mari! Seu gol foi lindo – empostou a voz, pegou Marina nos braços, a ergueu e começou a balança-la de um lado para o outro como se a exibisse para todo mundo ver – Senhoras e senhores, e aqui temos a melhor jogadora do Grupo! Marina Lambertini! – e começou a fazer uns sons imitando uma torcida de futebol indo à loucura e gritando “Mari! Mari!”.

Marina soltou uma gargalhada estridente e toda feliz àquele gesto de Lica. Quando ela lhe pôs de volta no chão, recebeu um abraço meio inesperado. Pega de surpresa, Heloísa demorou a retribuir o gesto, mas assim que o fez, foi com todo o carinho do mundo. Envolveu uma Marina morta de suada no aconchego de seus braços e, sem saber muito porquê, se sentiu em casa ali.

- Obrigada, tia Lica – ela disse em um tom manhoso – Você também é beeem legal.

Lica não disse nada e apertou mais em seu abraço.

- Então a gente está empatada nessa, porque você também é beeeem legal – brincou e afastou-se para olhá-la – E é a melhor jogadora de futebol que eu já vi. Quem é a rainha Marta perto de você?

- Eu sou melhor que a rainha? – Mari não entendeu e arrancou uma risadinha de Lica.

- Quem sabe? – riu – Marta é a maior jogadora do futebol do Brasil e já foi eleita seis vezes a melhor do mundo. Se você continuar jogando assim, vai ser melhor que ela, hein – brincou.

Os olhinhos de Marina brilharam. Não era de hoje que Lica já havia percebido que a menina sempre entrava em algo pra ser a melhor. Mas não era nada do tipo de ter que provar para os outros que era boa. Era só que ela dava tudo de si no que se propunha a fazer. Fosse desenhando, fosse jogando futebol ou brincando de pega-pega. E Lica não entendeu bem o motivo, mas sentia um orgulho danado disso.

O sinal bateu, sinalizando o fim do intervalo. Marina se despediu de Lica, bebeu sua aguinha e correu sala a dentro. Heloísa ainda ficou um tempinho agachada ali, vendo a menina sumir Grupo a dentro. Foi tirada de seu torpor momentâneo por Clara parada ao seu lado.

- Vai ficar aí babando até quando? – a loirinha brincou.

- Ah, não enche, Clara – se pôs de pé – Ela é incrível, né? Decidida... Se duvidar, um dia ainda ganha uma Copa e um Nobel.

- É, a Mari é bem esforçada mesmo. Inteligente pra caramba e uma menina de ouro – Clara comentou e se virou para Lica – E você é uma babona! Parece até uma mãe paparicando a cria.

- Ah, não força – Lica lhe deu um empurrãozinho no ombro – Ó, eu vou indo encontrar com a Alice. A gente combinou de olhar umas molduras hoje.

- Vem cá, qual é a sua com essa Alice? – Clara foi direto ao ponto. Não era de hoje que via a irmã para lá e para cá com a moça. A loirinha sabia que ela era fotógrafa da produtora de Tina, mas ainda não tinha entendido a afinidade que ela e Lica vinham tendo.

- Assunto profissional – Lica foi tão cirúrgica quanto Clara – A Alice é curadora, trabalha com arte e sabe como a coisa funciona. Ela está me dando uma mão com a galeria e eu vou embora antes que você resolva me encher de mais pergunta.

- Ai, fala sério, Lica... – Clara não mostrou um pingo de convencimento – Ela é a maior gata. Vai dizer que você não está interessada em mais nada além de assunto profissional?

- Talvez eu esteja e talvez ela também, mas isso é assunto meu, diz respeito somente a mim. Tchau – pegou a bolsa no encosto da cadeira.

- Ai credo, que agressividade – Clara reclamou.

- Estou dando logo um chega pra lá que é pra não ficar ouvir julgamento depois – Lica respondeu curta e grossa, guardando o celular na bolsa.

- Eu hein, ninguém vai te julgar por nada, não.

- Ah, vão sim, irmãzinha. Vocês não fazem outra coisa. Com certeza vão. Beijo – e saiu a passos rápidos do Grupo.

(...)

- Aqui ou aqui? – Alice perguntou, enquanto posicionava uma moldura branca em uma das paredes da galeria de Heloísa. Passada a pintura do local, as duas começavam a trabalhar na distribuição das peças que ficariam espalhadas e expostas por ali. Estavam testando o espaço.

- Lá – Lica apontou para o outro lado e recebeu uma risadinha da mulher.

- Claro. Você nunca aceita uma das opções que a gente dá – riu-se Alice e fez o que Lica indicou.

- Se chama surpreender as pessoas. Eu gosto disso – Heloísa afirmou, divertida enquanto media um dos espaços com uma trena – Me ajuda aqui.

Alice atendeu prontamente e segurou o objeto em uma ponta enquanto a artista segurava na outra.

- Três metros – Lica atestou – O que eu vou fazer com esses três metros?

- Primeiro, você vai anotar pra não esquecer e depois pensa em como trabalhar o espaço – Alice soou divertida.

A curadora se aproximou alguns passos, recolhendo a trena até onde Heloísa estava. Terminaram frente a frente. Lica foi pegar o objeto da mão dela e os dedos acabaram se tocando. Uma corrente elétrica perpassou seu corpo. É... Clara tinha toda a razão. Não era exatamente profissional.

- Seus olhos são lindos sabia? – Heloísa jogou direta e decidida.

- Você está me cantando ou é impressão minha?

- Não é impressão não – ah, ela não tinha nada a perder mesmo. Alice era linda, estava ali, estava solteira, ela já sabia bem. E olha... A tensão entre as duas já era meio que inegável. Entre compras e burocracias para a montagem da galeria, elas sempre jogavam uns flertes despretensiosos, mas nem tão despretensiosos assim.

- Você é muito cara de pau, Heloísa – a mulher riu, mas se aproximou mais da artista – Eu gosto disso. Direta, decidida, não enrola....

- Quem tá enrolando agora é você – Lica já havia jogado a trena no chão – Eu estou aqui, estou dizendo que seus olhos são lindos, mas na verdade queria estar te beijando. Que risco eu corro se fizer isso?

Alice soltou uma gargalhada sonora. O sorriso dela era de fato encantador. Os cabelos castanhos escuros ligeiramente ondulados se moviam graciosamente por suas costas.

- Testa e aí você vai saber – a mulher provocou.

Lica não disse palavra. Inclinou-se e deixou um beijo casto nos lábios de Alice. A corrente elétrica em seu corpo se intensificou.

- Tudo bem? – pergunto. Queria ter certeza de que não estava encrencada nem criando uma situação delicada entre elas ali.

- Estaria melhor se você me beijasse de verdade.

Lica sorriu grande.

- Ah, sendo assim...

Puxou Alice pela cintura e a trouxe para si. É... pegada a Gutierrez tinha. E como tinha. Beijaram-se como se não houvesse amanhã. A línguas se massagearam, os lábios dançavam juntos em um ritmo cadenciado e que boca maravilhosa Alice tinha! Era macia, quente, afoita na medida certa.

Em dado momento, Heloísa, num movimento mais ousado, a encostou na parede e desceu uma carreirinha de beijos pelo pescoço da curadora. Recebeu um suspiro arrastado em resposta e adorou ouvir aquilo. Aumentou o aperto em sua cintura e recebeu umas arranhadas na nuca em troca. Gemeu baixinho, mas a interjeição foi ouvida por Alice, que soltou uma risadinha e deixou seus dedos se emaranharem nos fios negros de Heloísa.

Quanto tempo passaram ali entre beijos e carícias, elas não sabiam dizer, mas o trabalho de medir o espaço e testar a distribuição dos objetos foi totalmente esquecido. Elas tinham coisas mais interessantes para fazer naquele momento. E nenhuma das duas parecia querer se desgrudar.

Separaram-se depois que o celular de Heloísa já tocava pela quarta vez. E ela só atendeu por insistência de Alice.

- Atende, Gutierrez... Pode ser importante – ela arfou quando Lica desceu os beijos em direção a seu colo. Meu Deus, ela não conseguia parar? Não que Alice estivesse reclamando, pelo contrário. Heloísa era linda, a maior gata, tinha um perfume amadeirado delicioso e um beijo tão, mas tão gosto, que se ela pudesse, realmente não a largaria.

- Isso aqui é importante – Lica respondeu no meio de mais um beijo e a trouxe mais para si.

- Mas isso aqui pode esperar e a pessoa que está te ligando, claramente não – Alice insistiu, até que Lica se deu por vencida e a soltou. Tinha os lábios vermelhos ligeiramente inchados e o rosto meio afogueado. A franja também estava meio despenteada. Daria um frame perfeito, Alice pensou. Sexy Heloísa em Fogo e Brasa, P&B.

- Que saco! Tanta hora pra ligarem e só fazem na hora errada! – a Gutierrez saiu resmungando para pegar o celular sobre uma bancada ali perto. Atendeu sem nem ver quem era – Alô!

- Dá pra você liberar minha fotógrafa? Vou precisar dela daqui a pouco. E só pra te lembrar, Lica, a Alice trabalha comigo, não com você – Tina ralhou do outro lado da linha.

- E como você sabe que eu estou com ela? – Lica perguntou, visivelmente chateada – Está me espionando agora?

- Não, sua lesada, ela avisou que estaria com você agora de tarde. Liguei no celular dela, mas deu fora de área, por isso fui atrás de você. Anda, devolve minha fotógrafa!

- Ela só estava me dando uma mãozinha na galeria, Tina, que saco!

Ao ouvir o nome de Tina, imediatamente Alice correu para a bolsa, checar seu celular. Ele estava em modo avião desde a hora que saíra de seu estúdio de foto. É que Alice odiava ser interrompida por ligações e notificações do celular enquanto editava suas imagens. Na companhia de Lica, sequer lembrara de liga-lo novamente. É aquela coisa: quando a companhia é boa, o celular fica esquecido.

- Eu sei bem que mãozinha ela estava e dando – Tina debochou e fez Lica corar sem nem perceber.

- Me deixa falar com ela – Alice pediu, se aproximando. Lica passou o celular para ela – Oi, Tina, desculpa. Eu me entretive aqui com a Lica e acabei esquecendo a hora.

- Meu Deus, vocês são duas caras de pau! – Tina continuou ralhando, mas não era num tom de chefe para funcionário. Ela sempre deixara bem claro que Alice não era sua funcionária, e sim uma amiga com quem tinha o privilégio de trabalhar. Eram normais brincadeiras assim entre as duas.

- Para com isso, Tina – Alice respondeu, sorrindo – Ó, em vinte minutos eu estou aí. Beijo – e passou o celular de volta para Lica.

- Valeu por empatar meu date – Lica agradeceu em puro sarcasmo.

- Ué, mas não ela não estava te dando uma mãozinha na galeria? – Tina foi tão debochada quanto – Eu empatei um compromisso profissional ou uma foda?

- Um pouco dos dois – a Gutierrez devolveu contrariada – Vai trabalhar e me erra, Cristina!

- Sai de cima da minha fotógrafa e eu vou!

As duas desligaram ao mesmo tempo e Lica se virou para Alice, que retocava a maquiagem em frente a um espelho recém colocado na parede do outro lado.

- Desculpa por isso – aproximou-se cautelosa. Não sabia que reação a mulher teria depois do tanto de amasso que deram ali.

- Eu espero que o pedido de desculpa seja pelas loucuras da Tina e não pelo que fizemos aqui – ela se virou, sorrindo, os lábios em um tom de vermelho, agora. Lica teve vontade de tirar aquele batom dela com a própria boca, mas manteve o controle.

- Decididamente é pelas loucuras da Tina – riu a Gutierrez, aliviada. Bom pelo visto, sem danos – Estamos bem?

- E por que não estaríamos? – Alice devolveu com uma pergunta – Eu vou ser sincera, Lica – suspirou – Eu adorei o que rolou aqui.

- Repetiria?

- Claro, por que não? – a mulher soou convencida e algo naquele gesto fez Heloísa lembrar de outra pessoa.

- Que bom, porque eu quero muito repetir. E dessa vez com o celular desligado – aproximou-se de Alice, a envolveu pela cintura e deixou um beijo calmo e compassado nos lábios dela.

- Vai tirar meu batom assim – Alice falou depois que as bocas se separaram.

- Então a gente vai ter um problema, porque eu sempre vou querer tirar seu batom quando te ver – Lica deixou uma mordidinha nos lábios da fotógrafa.

- Só o batom?

A pele de Heloísa se arrepiou com o tom que Alice usou, mas ali era um jogo que ela sabia jogar muito bem. Estava apta a lidar com cantadas e pedreiragem. Conhecia uma pessoa exímia naquilo.

- Não só – devolveu a Gutierrez, mordendo de leve o pescoço de Alice e aumentando o aperto em sua cintura, por baixo da blusa que ela usava. A pele da fotógrafa era bem macia. E ela tinha um perfume maravilhoso.

Recebeu em resposta um riso baixinho de Alice, que virou o rosto para voltar a beijá-la. A muito custo, as duas se separaram e a fotógrafa anunciou sua partida para a produtora de Tina.

Deixou uma Heloísa sorrindo para o nada e estranhamente leve e de bem com a vida. Ela terminou de medir os espaços da galeria cantarolando que nem se deu conta do tempo passar. A noite já começava a cair quando ela chegou em casa.

Encontrou Marta e Luís tomando um chá na sala, cumprimentou a mãe com um beijo e entrou para o quarto assobiando, para surpresa da mulher mais velha. Tomou seu banho cantando no chuveiro e quando se sentou à mesa de jantar foi com um sorriso no rosto e uma animação estranhas para os moradores daquela casa.

- Viu um passarinho verde, Lica? – Marta indagou, servindo-se.

- Nem passarinho e nem nada verde. Só estou feliz que o projeto da galeria está indo para frente – respondeu, despretensiosa.

- Sei... – a mãe soou sem um pingo de convencimento – Que bom, filha. Fico feliz. A Clara me falou que você também tem sido de grande ajuda no Grupo.

- Eu agradeço a ela, mas a Clara também tem sido incrível por lá. Sério, aquilo não andaria sem ela.

- Você está com febre ou algo do tipo? Se sentindo mal... confusa de alguma forma?

- Não, mãe, por quê? – a menina perguntou, realmente sem entender.

- Você acabou de falar bem da Clara e isso não é muito normal. Não nessa casa – Marta sorriu, acompanhada de Luís.

- Eu só disse que ela tem sido incrível, dona Marta, não que ela é. É uma condição momentânea, porque em condições normais de temperatura e pressão, minha irmãzinha é uma sem noção e meio tapada.

- E voltamos à programação normal – Marta riu-se e entre conversas amenas e um ambiente leve, aquela casa teve uma refeição tranquila.

Diferente do que acontecia no bairro ao lado.

Samantha estava sentada na sala de casa lendo alguns relatórios enquanto Marina se debruçava sobre a mesinha de centro fazendo sua tarefa de casa. Vez por outra a menina lhe perguntava algo em meio a uma dúvida e ela dividia sua atenção entre a filha e os papéis que tinha em mãos.

Foram interrompidas quando Henrique chegou. Marina já foi logo correndo para abraça-lo, ele a recebeu na mesma animação, mas Samantha percebeu a expressão tensa no rosto do marido. Ele a cumprimentou com um beijo casto nos lábios e já foi logo atalhando.

- Samantha, será que nós podemos falar um minutinho? É importante.

- Claro, aconteceu alguma coisa? ‘Cê não tá com a cara muito legal.

Henrique relanceou Marina, concentrada em sua tarefinha e pediu que a esposa o acompanhasse até a cozinha. Assim ela o fez. Aproveitou para falar que Maria, a secretária da casa, havia deixado o jantar pronto, mas que ela e Marina já haviam comido.

- Não, eu estou sem fome. Na verdade eu estava em um jantar com um cliente no restaurante do MB e qual não foi minha surpresa quando ele me encontrou e comentou que te viu essa semana junto com a Heloísa.

- Oi? – Samantha não entendeu – Não entendi. Eu estava junto com a Heloísa?

- Foi o que ele disse – o homem estava sério – Que vocês se encontraram lá na ONG.

Samantha suspirou, cansada e se recostou ao balcão da cozinha.

- Ele falou também que eu fui pega de surpresa com ela lá?

- Deve ter mencionado. Mas disse que ela ia se juntar ao projeto. Por que você não me contou?

- Porque eu não vi relevância nenhuma nisso? – Samantha devolveu, firme – E ela não vai entrar no projeto.

- Foi por isso que você chegou daquele jeito? Aquele dia? – ele perguntou, referindo-se ao dia que encontrara Samantha jogada sobre o sofá, ligeiramente tensa e abatida.

- Você realmente dá muita importância pra Heloísa pra achar que tudo que acontece comigo tem alguma coisa a ver com ela. E sinceramente, eu não entendo qual a necessidade disso – Samantha cortou logo a insinuação do marido.

- Samantha, analisa a situação. Desde quando essa mulher voltou, a gente não tem paz. Ela armou confusão no seu hotel, meteu na cabeça da Marina essa besteira de aprender a desenhar – Samantha arqueou a sobrancelha – Fez a gente discutir aquele dia por causa de uma coisa sem importância que eu disse e agora quer se meter no seu projeto. Ela sempre dá um jeito de fazer as coisas desandarem e de, indiretamente, estar no mesmo ambiente que você.

- Primeiro, eu não acho que a Marina querer aprender a desenhar seja uma besteira. Segundo, aquilo que você falou pra ela não foi sem importância. Foi sério, absurdo, ridículo, completamente desnecessário e eu não esqueci aquele episódio – Henrique engoliu em seco ao ouvi-la. Já não tinham resolvido aquela questão? – Terceiro, o MP3 não é meu projeto, é uma ação social. E sobre a Heloísa sempre estar no mesmo ambiente que eu, eu só quero te lembrar que não posso impedir as pessoas de irem e virem. Para de drama.

- Não é drama, Samantha, é a realidade. Vai me dizer que você não se sente afetar pela presença dela. E de uma forma negativa.

- A gente só se afeta pelo que a gente dá importância, Henrique. Se você parar de dar importância pra Heloísa, talvez nem lembre da existência dela. A gente pode parar agora? Eu estava no meio de uma leitura importante e esse seu ataque infundado está me atrapalhando.

- Eu não queria te atrapalhar, mas é que... sei lá, essa mulher, eu não vou com a cara dela Samantha - -pareceu menino birrento falando – E, cá pra nós, também não confio nem um pingo. E ela ficar de papo com nossa filha... Eu não gosto disso – ele voltou a bater na mesma tecla.

- Elas se veem no Grupo, Henrique. A Heloísa trabalha lá. Não é uma coisa que a gente possa exatamente impedir.

- Outra coisa que eu não entendo. O que diabos ela faz lá? É professora? Funcionária?

- Ela é dona da escola.

- A dona do Grupo é a Clara, Samantha. Aliás, graças a Deus, porque diminui horrores meus problemas como advogado. O Edgar já causou tanta confusão no meu escritório por causa das falcatruas dele, imagina o trabalhão que não seria eu assessorar uma escola administrada por uma pessoa problemática como a Heloísa.

- Problemático está sendo você e esse papinho sem noção! – Samantha exclamou – Para de levar o assunto sempre pra ela – pediu, já perdendo a paciência.

- Mas é ela que impõe a própria presença em tudo que diz respeito à gente.

- Não, Henrique, é você que fica trazendo a Lica pra tudo – quis alterar a voz – Ela está aqui em casa agora? Mora ou vive com a gente? Porque pelo jeito que você fala, é como se ela fosse uma presença física aqui. O problema está na sua cabeça, não na Heloísa.

- Mas também, o que foi que ela veio fazer aqui? Ninguém chamou ela de volta. E eu não sei você, mas eu não me sinto muito seguro com ela por perto – o homem justificou. Samantha respirou fundo. Aonde Henrique queria chegar?

- E o que diabos você acha que a Lica faria, hein? O máximo que ela consegue é beber até cair. A Heloísa pode ter todos os defeitos do mundo, mas eu a conheço bem o suficiente pra saber que não faz mal a uma mosca.

- Vai defender ela agora? Porque pra mim, já está claro o que ela quer.

- Ah, é? E o que é, hum? – Samantha rebateu – Viver a vida dela perto da família? Porque ela tem família e amigos aqui, sabia, Henrique? A vida da Heloísa não gira em torno de mim e nem de você, então para com essa mania de perseguição absurda – foi incisiva.

- Ela quer é acabar com nosso casamento – Henrique soltou, do nada, e Samantha olhou para ele com uma expressão cortante e indecifrável. Se era raiva ou susto pelo que ouvira, ele não sabia dizer. Mas ela... ah, ela entendera bem o que ela havia dito.

- Sabe o que acaba com uma família ou um casamento? – ela colocou ênfase nessa última palavra, sustentando uma expressão dura – Falta de confiança um no outro. E eu espero sinceramente, Henrique, que não seja esse o problema.

Foi tudo que ela precisou falar. Saiu da cozinha e deixou o marido lá, sozinho, com uma expressão vazia no rosto. Retornou à cozinha e encontrou Mari sentada no sofá, balançando os pezinhos.

- Que foi, filha? – Samantha perguntou, vendo a expressão dela – Tá tudo bem?

- Umhum. Terminei minha tarefa – ela respondeu e apontou para o materialzinho já todo recolhido sobre a mesinha de centro.

- Deu pra entender tudo? Ficou alguma dúvida? ‘Cê quer me perguntar alguma coisa?

- Quero.

- Pois pode perguntar, meu amor – Samantha fez um carinho nos cabelos cacheadinhos da filha.

- Por que você e o papai brigam quando falam da tia Lica? E por que você e ele não gostam dela? Ela é legal.

Samantha engoliu em seco. Esperava uma dúvida relacionada ao dever de casa e não uma pergunta capciosa daquelas. Marina estava crescendo, era atenta demais a tudo, pegava as coisas no ar e haviam certas conversas que simplesmente não tinham como mais ser tidas na frente ou perto dela.

- Não é que a gente não goste da tia Lica, filha... É só que... – Samantha não sabia como responder. Como diria a Marina que a mulher a quem ela tinha verdadeira adoração lhe partira o coração em mil pedaços e a fizera duvidar de qualquer sentimento, sobretudo o amor?

- Marina, filha, ‘cê já não devia estar na cama? – a voz de Henrique soou calma lá da porta da cozinha – Está tarde já, meu anjo.

- Bora pra cama – Samantha falou – Bora dormir de conchinha – brincou. Marina foi dar um beijo de boa noite no pai. Samantha pegou a filha nos braços e a levou até o quarto.

Depois que a colocou na cama, a cobriu bem direitinho, percebeu o olhar ainda curioso de Marina. Aquela conversa ainda não tinha terminado para ela.

- Você vai me contar? Por que vocês não gostam tanto da tia Lica? – perguntou em expectativa.

- Marina... – Samantha começou – A mamãe já conhecia a tia Lica bem antes de você nascer....

- Eu sei, ela me falou que vocês eram amigas na maior parte do tempo. Mas não me disse na menor. O que vocês eram na menor parte do tempo?

Samantha riu da perspicácia da filha.

- Depois a mamãe te conta isso. Por agora, basta você saber que a tia Lica é humana e que como todo ser humano, ela tem defeitos e falhas. Não é que ela seja uma pessoa ruim. É que às vezes ela magoa as pessoas, igual todo mundo faz em algum momento da vida, mesmo sem querer.

- Ela magoou você e o papai? – Marina insistiu – Eu posso brigar com ela. Não quero que ela magoe você e o papai.

Samantha soltou uma risadinha pelo nariz.

- Depois a gente conversa sobre isso, meu amor. Está tarde já, mesmo pra uma sexta à noite. Dorme bem, minha vida – disse e deixou um beijinho delicado na fronte da filha.

- Tá bom. Te amo, mamãe. Beeem muitão assim – Marina abriu os bracinhos o máximo que pôde e bocejou. Ah, o poder de uma boa cama e de um ar na temperatura certa....

- Também te amo, filha Beeem muitão assim – Samantha repetiu o gesto dela.

Saiu do quarto com um peso nas costas. E ele pareceu dobrar quando viu Henrique saindo do banheiro com uma toalha amarrada na cintura.

- Samantha... – ele bem que tentou, mas ela não estava a fim de papo.

- Agora não, Henrique. Sério, eu só preciso dormir e esquecer o dia de cão que tive hoje. Só isso – seguiu para o closet, colocou um pijama qualquer e se encolheu sob as cobertas.

Sentiu quando o marido ocupou o espaço ao lado e a abraço pela cintura.

- Desculpa, meu amor. Eu não queria te fazer sentir mal – ainda conseguiu ouvi-lo baixinho.

Mas não respondeu. Deixou entorpecer pelo sono. Mais do que descansar o corpo, Samantha precisava descansar a alma. Ficara sem resposta diante de sua filha e silenciar com Marina era a pior coisa que poderia lhe acontecer. Não gostava de não ter palavras quando ela lhe inquiria sobre algo, ainda mais quando o assunto envolvia elas duas diretamente.

E sobre ela ter “presenciado” uma pequena discussão entre ela e Henrique... Precisava urgentemente falar com o marido sobre. Eram coisas que poderiam ser facilmente evitadas. E começaria por ele largar Heloísa de mão e confiar mais nela. Ou confiaria ou decididamente a relação dos dois estaria fadada ao fracasso, porque, se tinha uma coisa que Samantha odiava mais do que mentira e traição, era a falta de confiança nela e em sua palavra.


Notas Finais


Nessas notas finais, queria deixar uns pontinhos legais pra vocês pensarem e compartilharem o que acham:
1. A história, como disse antes, fala de amadurecimento e faz parte desse processo se questionar. Samantha tá passando por esse processo de se questionar sobre si mesma e sobre sua vida. Que espaço afinal a Lica ocupou na história dela?
2. Temos aí a figura da Alice dando aquela balanceada na Lica. Só torçam pra Heloísa não meter os pés pelas mãos e acabar magoando até quem não merece.
3. Samantha passou pano pro marido no episódio com a Lica? Vimos aí que pra ela, essa questão não ficou nem um pouco resolvida. Entendam: a Samantha não é besta nem burra. Nos próximos capítulos veremos que da trouxa do ensino médio, ela não tem mais nada. Nem pras coisas da ex e nem pras coisas do atual. Pelo contrário, Heloísa que lute quando perceber o mulherão da porra que a Sammy dela se tornou. E isso leva a outro ponto:
4. Samantha terá história própria. Não esperem um plot dela jogado na Lica, nas histórias da Lica, nas merdas dela... Diferente de MVAD, aqui ela tem casa, família e uma vida independente da Heloísa. Talvez isso deixe a Gutierrez mais maluca do que já é: o fato de ela encontrar uma Samantha que não corre mais atrás, que é bem resolvida e independente, mexe no ego dela. O ego de uma Lica que sempre teve tudo que quis. Porque, concordem comigo, a Lica era mimada sim. Tinha consciência da bolha dela? Não. Veio ter depois da Ellen e da Benê e da Keyla, mas a formação dela foi em um ambiente onde ela tinha tudo, uma mãe que dava sermão, mas que passava a mão na cabeça e, enfim, vocês viram MVAD, eu suponho.
5. Lica foi embora por medo do que estava sentindo. Ficou na França e terminou por telefone. Isso, no meu mundo, se chama covardia. É como se a Samantha tivesse mergulhado de cabeça e a Lica tivesse dado pra trás na beira da piscina, entendem? Só caiu pra quem ficou aqui. O que a Lica viveu nesses sete anos na Europa, ela escolheu. A Samantha e o que ela viveu aqui, não teve escolha. Foi meio que acontecendo tudo no automático depois que a doida terminou do nada. Pensem nisso. Se eu vejo todos os meus planos, minha vida toda virada ao revés por causa da imaturidade de alguém que dizia me amar, eu ainda vou dar confiança pra essa pessoa ao menos chegar perto?

É isto rsrsrs.
Obrigada pela leitura, beijos e até o próximo capítulo.


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