”Fraca! Fraca, burra! É isso o que eu sou!” Kori reclamava mentalmente, seus passos eram firmes na madeira do convés, andava de um lado a outro a noite toda. Enquanto mordisca a unha do seu polegar, todos os seus pensamentos estão ligados a uma única pessoa: Garfield. Repetidas vezes o xingou de todas as palavras mais ofensivas que conhecia. Se o visse de novo e caso Ravena não estivesse com ele, o mataria antes que Trigon o fizesse.
“Homens! Todos são sempre iguais! Argh! Tão burros! Covardes! Inúteis!” Ela fumegava com os próprios pensamentos. A tripulação evitava sequer dizer algo para não incomodá-la com os seus olhos verdes faiscantes e furiosos, – principalmente porque talvez o primeiro homem que cruzasse o seu caminho, iria ter uma morte com certeza dolorosa (e todos desejavam que fosse Garfield).
Enquanto ela fumegava pelo piso de madeira, Richard estava escondido dentro da cabine do capitão, junto de Viktor e Jeremy, todos os três temerosos pelo humor da moça; Dick com um medo maior do que os outros, sabia o que aquela mulher era capaz de fazer quando estava com raiva e definitivamente não queria ver aquilo de novo, mas como acalmá-la? Aquele ”doende-verde” havia a deixado irritada de uma forma que nem um novo pedido de casamento a deixaria feliz. Por um momento, desejou que todos os tempos difíceis com a presença da irmã dela voltasse. Era relativamente menos sufocante.
Ser o único com a obrigação de acalmá-la era o seu único problema, não queria morrer.
Seus pulmões se encheram lentamente de ar, sendo esvaziados alguns segundos depois num longo e cansado suspiro; ele medrosamente colocou o pé para fora da cabine e andou um pequeno passo de cada vez na direção da cabeleira rosada e crepitante que se movia pelo convés. Em seu terceiro passo, o piso de madeira afundou levemente rangeu numa altura considerável; Koriand’r virou a cabeça bruscamente e o olhou com a sua expressão mais mortífera, seus olhos mortais sendo tão afiados e perfurantes quanto uma espada afiada. Dick sentiu a morte sussurrar ao pé de seu ouvido, uma parcela de sua alma simplesmente saindo do seu corpo e o abandonando para morrer sozinho.
A rosada deu um pequeno passo na sua direção, sendo suficiente para que ele simplesmente corresse para trás do mastro, como um grande escudo de madeira para que pudesse usar para se defender e, de forma trêmula, começou a pedir incessantemente por “calma” para a sua noiva.
— M-Meu amor, po-por que você não se acalma? — O suor escorria frio pela sua testa. — O-O que acha de be-beber um vinho com-comigo, hein?
— … Vinho? — A voz dela era glacial, rude. Sentiu as mãos da morte segurando seus ombros. Seu fim seria ali. — A minha amiga foi levada por um bando de guerreiros desconhecidos, capazes de inibir poderes mágicos que não remetam aos seus feitiços pagãos… — Enquanto falava, era como se os seus passos fossem de um predador, como uma leoa encurralando a sua presa, uma tigresa esperando para atacar e quebrar o pescoço de sua caça numa única patada. E sua presa era ninguém mais e ninguém menos do que o seu noivo. — E você está me chamando para TOMAR VINHO!? — Seu bote não falhou. Estava cara a cara com aqueles olhos azuis completamente aterrorizados.
— Pe-Pe-Perdão, amor! — Seu desespero era evidente. — Fo-Foi um erro! U-Um pequeno erro, eu não quis dizer aquilo…! Ha… haha…
— UM!? NÃO, DICK! FORAM VÁRIOS ERROS! — Sua voz era pior que um trovão. — VOCÊS APOSTARAM TUDO EM UM HOMEM VERDE, TRAIÇOEIRO E ARROGANTE PORQUE SÃO UNS… UNS…! — Seus olhos faiscaram. — SÃO UM BANDO DE FILHOS DA PUTA!
— E-Eu sei…
— Se ele não voltar com a minha amiga INTACTA, Richard Grayson, eu garanto que as coisas vão ficar MUITO ruins.
Kori falou suas palavras como uma sentença de morte e se afastou do seu noivo, lhe dando as costas. Todos os outros tripulantes se esconderam do seu campo de visão com urgência e medo; alguns chegando a se trombar e estapear durante toda a correria. Dick apertou o próprio peito com a respiração ofegante e o coração palpitando como quem havia conseguido desviar da morte iminente por muito pouco; aos poucos suas pernas foram perdendo a força e deslizou pelo mastro até se sentar no chão, atordoado.
A rosada andou duramente até a borda do convés e subiu na proa, não tendo dificuldade em se equilibrar pela madeira até chegar bem próxima a ponta. Encarava a ilha com medo. Estavam longe da praia porque ao amanhecer, um aglomerado de guerreiros surgiu para os espantar, provavelmente para impedir uma volta segura ao navio. Seu coração estava tão aflito; apenas lhe restava imaginar o tamanho sofrimento de Ravena, talvez sendo torturada, ou preparada para algum ritual pagão que envolvia sacrifício, ou uma opção com certeza muito ruim. Mesmo que imaginasse, sabia que a realidade era muito pior, só lhe restava sofrer em silêncio e rezar para que a visse novamente. E a visse sã e salva. Caso a visse, lhe daria o abraço mais apertado de todos e não a soltaria de novo. Deveria tê-la protegido. Mas não falharia com isso a partir de agora.
Perto do pôr do sol, quando todos já sentiam o peso da incerteza, agoniados e temerosos que os dois simplesmente não voltassem e nunca mais fossem vistos, algo muito sútil surge aos poucos no céu; Koriand’r não havia entendido completamente, porém, Viktor tinha o seu único olho muito atento e não foi difícil reconhecer e entender o que se passava. Um claro sinal de fumaça estava sendo feito. Vários sinais, na verdade. Outrora subiam vários pequenos acúmulos de fumaça, outrora acúmulos maiores e um pouco mais chamativos. Era uma mensagem clara de Garfield, ele estava vivo. Um pequeno peso saiu de suas costas, a ideia do melhor amigo morto era uma ideia estranha e não gostava tanto.
Não era muito claro compreender, mas o conhecia suficiente para pegar as partes fortes da mensagem. Deveriam se encontrar do outro lado da ilha, que era a região mais longe, seria uma longa viagem; por mais que não quisesse admitir, era um bom plano. Logo iria escurecer e não sobraria absolutamente nenhum resquício de luz para que fosse visto o navio se aproximando, como também haviam nativos acumulados num ponto, seriam menos deles aglomerados no ponto central, que era onde Garfield e (possivelmente) Ravena estavam. Mesmo assim, deveriam ser rápidos.
Viktor reuniu a tripulação dentro da cabine, agora mais sério, explicava a situação e como seria a execução do plano de resgate; saber que o líder estava vivo, deixavam os homens mais corajosos para enfrentar o perigo com o intuito de salvá-lo, enquanto o coração de Kori ficava menos dolorido com a hipótese de que sua amiga seria resgatada e logo estaria segura novamente, agora com a necessidade da filha de Eros de ser sua protetora. Tinham que executar o plano sem falhas.
— Quando o sol terminar de se pôr, iremos apagar todas as luzes do navio. O resgate vai ser mais rápido se usarmos um dos botes de emergência.
— Eu me voluntario para o resgate da amiga Ravena. — Koriand’r fala com clareza e autoridade.
— Eu também vou. — Jeremy disse de prontidão.
— O resto de nós irá preparar os canhões, não podemos deixar que nada atrapalhe a fuga deles. — Viktor tinha a voz séria e bem projetada, mesmo com todas as coisas sendo feitas às pressas, ele ainda conseguia se manter calmo e centrado para ditar os comandos aos bucaneiros.
O imediato não deu comandos muito mais complexos, apenas um rápido reconhecimento do mapa antes que todas as coisas fossem postas em prática.
De prontidão, Kori desceu novamente ao porão, se equipando com o seu enorme arco e a aljava cheia de flechas, seu olhar era carregado por chamas, chamas que somente se apagariam quando tivesse certeza de que as coisas se resolvessem, - ou seja, chamas essas que apenas se apagariam quando terminassem de carbonizar o corpo verde de Garfield.
Ao pôr do sol, quando o último resquício solar sumiu no horizonte, todas as luzes que auxiliavam o navio foram apagadas, todas as velas, lampiões e tochas, completamente apagadas. A escuridão foi a única coisa que restou no mar, a mais profunda escuridão e quietude, com uma vaga memória do navio pirata. Os nativos, antes atentos para os seus movimentos, assistiram aos poucos, o navio simplesmente se tornar invisível e completamente silencioso, sem nem ao menos ter os gritos da semideusa para os alertar de alguma coisa. Estavam perdidos, completamente perdidos. Sem o paradeiro da bruxa e sem o paradeiro dos piratas.
Garfield e Ravena estavam escondidos no alto da copa das árvores, desde o sinal de fumaça, a primeira e única coisa que fizeram, foram se esgueirar pelo mato para conseguirem se esconder em algum lugar próximo a orla da praia da parte mais distante da ilha. Agora os restava esperar, em silêncio e com paciência. Não trocavam muitas palavras e nem tentavam manter conversas desde que saíram daquela caverna, o mínimo de energia que podiam guardar caso precisassem fugir era excepcionalmente importante; suas palavras se resumiam a monossílabas simples e rápidas.
O som da noite era amedrontador, não se era possível discernir se era um barulho da flora, da fauna, dos nativos, ou até mesmo dos tripulantes do navio; os olhos nervosos de Ravena não eram capazes de enxergar absolutamente nada naquele completo breu, o que fazia com seu cérebro ansioso e desesperado ficasse ainda mais assustado, enviando ondas de nervosismo crescente para o seu corpo; as suas mãos e pés estavam completamente gelados e era preciso muito esforço para suas trêmulas pernas se manterem firmes sobre aquele galho, não era um lugar difícil ou de pouco espaço, mas a cada pequeno ruído, a vontade de sair correndo gritava forte no seu peito. Provavelmente já estaria morta, contudo, estava se mantendo forte e calma, justamente porque Logan estava lá.
Ele estava atento aos sons, atento aos cheiros, às nuances na água escura; naquela parte, tudo estava muito quieto, muito tranquilo, o que dava um falso ar de esperança. Mesmo sem a luz da lua e as estrelas, de alguma forma, conseguia enxergar parcialmente uma boa quantidade de coisas no seu campo de visão; era algo útil, mas o que realmente importava era Ravena, ela estava notoriamente cansada e com medo. Procurando uma forma de mantê-la mais calma, despretensiosamente a sua mão envolveu a sua cintura para que suas costas ficassem encostadas no seu peito, para que conseguisse um melhor apoio; ela sentiu um breve incômodo no início, mas a sua ansiedade havia se aquietado mais do que esperava, talvez a certeza de que ele estava lá havia lhe tranquilizado, já que era totalmente incapaz de enxergar, por isso, se manteve daquela forma, encostada em Logan como um simples apoio. Tentando se manter mais calma, reparou em como a pele dele sempre era quente, mesmo com o clima frio da noite e a água gelada da cachoeira, o seu calor corporal era consideravelmente alto; talvez achava isso porque sua pele era fria demais, ou porque existia a possibilidade de ser incapaz de produzir calor. Sempre sentiu muito frio.
Ele pensava quase a mesma coisa. Ravena sempre era muito fria demais, fosse pelas suas palavras, a forma como ela simplesmente não se importava com um monte de coisas cruciais relacionadas às pessoas, suas expressões, – ou a ausência delas – e principalmente: a sua pele. Independente do que fosse, num dia quente e até quando usava capa, suas mãos sempre estavam frias, era quase como se fosse uma morta-viva.
O som de um galho se quebrando em meio ao silêncio chamou a atenção de ambos quase imediatamente, mas as suas reações foram completamente diferentes. Enquanto o esverdeado olhou ao redor, procurando alguma outra origem de som ou qualquer coisa que pudesse se mover na escuridão, a garota instintivamente se encolheu e buscou por ele, suas mãos geladas seguraram a dele na sua barriga com pressa, apenas esperando o sinal para pular de lá de cima e voltar para uma corrida intensa pela ilha. Mas nada aconteceu.
O rapaz moveu o rosto para perto da orelha dela, deixando os lábios próximos o suficiente para que pudesse ser ouvido sem que emitisse sons muito altos.
— Fica calma… — Seu tom era tão baixo que os poucos sons capazes de serem captados eram os da sua boca e os poucos sibilos que se formavam pela excessividade do ar. Um arrepio subiu pelo corpo da arroxeada, que estava com os sentidos mais aguçados pela ausência da visão; o ar que ele soprava em sua orelha lhe causava sensações não-familiares e incômodas.
— Estou tentando… — Sua capacidade de produção sonora era igualmente quase inaudível. — … Acha que irão demorar muito…?
— Talvez… precisamos ter paciência… — Um longo suspiro se esvaiu pelos seus lábios.
Nenhuma outra palavra fora dita, como nenhum outro som fora feito. Ambos ficaram em silêncio, no escuro, imerso nos seus próprios pensamentos desesperados enquanto aguardavam pelo resgate.
Cerca de uma hora e meia se passou, a penumbra era a coisa mais constante na situação; a arroxeada revezava entre seus pés, não estavam tão doloridos, era a sensação dormente a que mais lhe deixava incomodada, sem contar que estava tendo uma boa parte do seu peso praticamente sustentada pelo rapaz, que se mantinha atento ao redor, esperando, os seus braços cruzados ao redor da silhueta magra, sem nem um leve afrouxar. Estavam tão próximos, tão unidos e tão completamente quietos, que quase poderiam se tornar um só, se quisessem. O tempo parecia se esgotar gradativamente; absolutamente nada acontecia, o que deixava a mente incansável de Ravena num completo e absurdo caos.
Ela não viu, não via nada, contudo, Garfield, atento a qualquer mosquito, conseguiu ver um pouco ao longe na água, um pequeno bote com duas pessoas, aquele era o momento, eles haviam chegado, a estratégia silenciosa havia funcionado.
Sua movimentação repentina fez com que a arroxeada ficasse ansiosa e eufórica, mas o aperto tranquilo no seu corpo serviu como um sinal para que ficasse tranquila. Eles desceram em silêncio e caminharam para a praia, onde a sua posição estava mais reveladora e exposta; o pequeno barco se aproximava cada vez mais da praia, enquanto o líder se aproximava cada vez mais da água, até que suas canelas sentissem a primeira onda gelada. Ravena estava temerosa que fosse obrigada a nadar, principalmente naquela água congelante, contudo, continuou andando. Cada vez mais fundo, até cobrir os joelhos, as coxas, o quadril, a água já estava na cintura quando ela sentiu a necessidade de segurar o braço dele com as duas mãos, como demorava tanto para um barco chegar? A água estava em seus braços, mais um pouco e não conseguiria mais. Quando a água estava em seu pescoço, usou do movimento de uma onda para pular o mais alto que conseguiu para que se mantivesse em pé por mais tempo.
Quando teve certeza que iria afundar definitivamente, as mãos ao redor da sua cintura lhe surpreenderam, ele havia a erguido sem dificuldade aparente e quando se deu por conta, outras mãos lhe puxaram para cima. O barco estava lá. E estava dentro dele. Antes que questionasse ou visse algo, o abraço forte (quase matador) e facilmente reconhecível lhe sufocou totalmente. Era Kori. Sentiu o peso da exaustão se dissipando aos poucos conforme o abraço durava, era quase como tomar um revitalizador completo. O choro dela lhe veio aos ouvidos imediatamente e tudo o que conseguiu fazer para reagir com o carinho do resgate foi: rir. Estava viva. E estava segura de novo. Haviam conseguido. Quando olhou para frente, Logan estava sentado, ajudando Jeremy a remar de volta para o navio. Ambos compartilhavam um olhar cúmplice. O olhar cúmplice de que em breve, Ravena estaria livre.
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