Garfield apenas se permitiu ter um momento de descanso quando teve certeza de que não haveria forma alguma de serem encontrados; seus pernas doíam como nunca antes, conseguia escutar os estalos consecutivos conforme as alongava com uma lentidão causada pela fadiga que sobressaia em peso nas suas costas. Parecia que carregava uma montanha inteira, sendo o peso do cansaço muito mais pesado do que Ravena, com toda a certeza. A olhou de relance ao se encostar na parede fria da caverna, ainda estava acordada, deveria estar exausta também. Mas nenhum dos dois conseguia descansar totalmente.
O medo era grande. As incertezas e as paranoias cresciam cada vez mais; Ravena não conseguia parar de pensar que a qualquer momento teriam que sair correndo, de novo; não conseguia deixar de temer que talvez que se tivessem que fugir de novo, não teriam a mesma sorte que tinham tido todo aquele tempo. Deveriam estar indo até o navio, já deveriam ter chegado se não tivessem parado. Agora estava ali, obrigada a se deitar de bruços por causa de um ferimento patético nas costas. Obrigada a continuar se aproveitando das últimas forças que ele mal possuía por si próprio. Era inútil. Era uma completa inútil. Morreria por isso. Morreria e levaria consigo o sangue de todos ao seu redor. Sua impotência mataria a todos.
O rapaz notou o seu desconforto, mas não sabia exatamente discernir se era de frio, dor, ou absolutamente qualquer outra coisa que também o deixava incomodado, incapaz de parar de pensar. Precisava pensar em como sairiam dali, como conseguiriam voltar ao navio e se conseguiriam. A tripulação poderia nem sequer estar mais lá, talvez esses malditos selvagens já os tenha expulsado da ilha com um ataque de fogo para que não tivessem como escapar. Estava correndo sem parar atrás de um único fio de vida e sequer sabia se conseguiria alcançá-lo e mantê-lo. Estava fazendo isso consigo mesmo e com ela. Que não tinha nada haver. Mas também não podia ser culpado, não queria morrer. Não queria morrer de jeito nenhum.
Respirou fundo, sentindo sua cabeça começar a doer, por isso a encostou na pedra úmida, tentando pensar em outra coisa. Preferiu se distrair com a garota, que apesar de não fazer nada além de manter as sobrancelhas franzidas numa agonia eterna, ainda entretia o bastante. A forma como mordiscava a ponta da unha do próprio polegar e como seus olhos encaravam a baixa chama da fogueira que os separava era engraçada. Não conseguiu evitar esboçar um pequeno sorriso, achava graça a forma como ficava toda tensa, imersa nos próprios pensamentos, parecia que iria ter algum ataque ou algo do tipo.
— Está pensando demais. — Sua voz soou rouca, mas era clara, carregada com o mesmo ar sarcástico de sempre. — Nunca vai conseguir dormir assim.
— Não preciso dormir. — Ela responde rápido, sem tirar os olhos do fogo, sendo isso o que lhe fazia manter-se em alerta.
— Huh, até parece.
— Como… — Abriu a boca para perguntar o porquê estava falando, sendo que sua garganta estava machucada com um ferimento em potencial de fatalidade. Tirou os olhos do fogo para olhá-lo, instantaneamente olhando para os seus olhos verdes brilhantes e fluorescentes; não sabia dizer se era por causa da luz do fogo refletindo em seu olhar, mas jurava que aquelas íris tão intensas podiam iluminar o ambiente. Preferiu não pensar nisso.
— … Como…? — Ele gesticulou com a mão para que prosseguisse, com curiosidade. Ela desviou do seu olhar com rapidez e estudou os ferimentos dele. Nada. Estavam todos limpos. Como se nunca tivessem existido.
— Como você…?! — Se ergueu depressa, se arrependendo imediatamente ao sentir a pressão nas costas.
— Ei! — A repreendeu por se mover e se aprontou em se rastejar para perto, caso ela tentasse de novo. — Você não consegue ficar quieta?
— Como você se curou? — Indagou procurando os ferimentos de novo. Ele estava em perfeito estado. O que Trigon estava fazendo?
— … Eu não sei.
— Mentiroso.
— Eu juro, eu não sei.
— Então por que hesitou? — Ela o viu abrindo a boca, mas sua fala demorou para começar, por isso se levantou de súbito, chegando a resmungar de dor, porém, não permitindo que isso lhe atrapalhasse. — Hesitou de novo.
— Não estou hesitando. Eu estou procurando um motivo, mas eu não sei.
— Humph, até parece.
— Olha, eu não te devo satisfação de nada, agora deita e tenta dormir.
— Não tenho sono.
— Eu duvido.
— E por que você não dorme?
— Porque eu tenho que vigiar.
— Podemos revezar.
— Não vou dormir com você acordada.
— Por que não?
— E se… — Ela o interrompeu falando por cima, os seus olhos reviraram com força e muita impaciência.
— E se eu fugir?
— … Eu não ia dizer isso.
— Você ia.
— Claro que não. — Cruzou os braços, indignado, precisava de uma desculpa. — Eu ia dizer… “e se você precisar de mim.”
— Você não diria isso nem se sentisse algum tipo de preocupação real por mim. — A olhou incrédulo, sua boca formando um “o” exato. Por um lado ela estava certa, porém, tudo o que estava fazendo por ela deveria ser levado em consideração.
— Eu não me preocupo com você? — Questionou apontando o indicador em seu próprio peito.
— Você se preocupa com outra pessoa, além de si mesmo?
— Eu teria atravessado metade de uma ilha em uma noite para te salvar se eu não me preocupasse?
— Me salvou por mim, ou por você?
— Essa pergunta nem faz sentido. — Foi a sua vez de revirar os olhos. — Agora se deite e tente descansar.
— Não. — Suspirou cansada, todavia, acabou deitando mesmo assim, suas costas doíam demais para que ficasse fazendo outra coisa.
Garfield olhou rapidamente para as roupas que ela usava, meros pedaços de pele manchados de sangue. Procurou a sua camisa que estava pendurada próxima ao fogo, estava quase totalmente seca. Levantou-se e caminhou na direção da peça, a tateou rapidamente para ter certeza onde estava seco, algumas partes estavam aquecidas pelo fogo, o que lhe dava uma pequena vontade de colocá-la de volta, só que não precisava dela agora. A tirou do pequeno varal que improvisou e então a jogou sobre o corpo encolhido de Ravena, que a princípio o olhou incomodada e fez menção de retirá-la, porém, o seu corpo se acomodou no pouco calor que tinha.
— … Obrigada. — Sua voz soou mais baixa que o comum.
— De nada. — Deu de ombros.
— Não… — De repente, a dor nas suas costas foi abafada por uma dor crescente no seu peito. Uma dor que já não conseguia mais conter. Aos poucos, a cada pontada em seu peito, uma lágrima começava a cair, até que enfim se permitisse começar a chorar de uma vez. — O-Obrigada… Obrigada por tudo o que você fez, Garfield. — Fungou, mas sua tristeza se multiplicava por se sentir com vergonha de demonstrar essa vulnerabilidade. Por isso se virou de costas, tentando chorar sozinha.
— Ravena… — Ele estava praticamente perplexo. Primeiro, porque nunca em sua vida fosse imaginar que seria capaz de um dia vê-la chorando, vê-la derramando uma única lágrima sequer; segundo, porque ela, pela segunda vez, em dois meses, desde o momento que se conheceram, havia dito o seu nome. Seu primeiro nome. Aquela situação era incômoda. Sentia uma sensação estranha. O que tinha que fazer agora? Nunca esteve tão perdido como agora. Não era como se conseguisse consolá-la. Não era como se pudesse fazer qualquer coisa. Porque se odiavam. — Obrigado, também. — Sua resposta fora sincera.
A arroxeada pensou por um momento, queria responder: “pelo o quê?” Mas aquele não era um momento que necessitava de palavras.
Também merecia escutar um: obrigado. Apesar de todas as coisas ruins estarem acontecendo porque ele era literalmente o seu sequestrador, já havia feito coisas boas também. Ambos ajudavam um ao outro. Já havia cuidado do seu braço, uma cirurgia particularmente traumática, mas ainda ajudou, também salvou sua vida, salvou sua vida por vezes o suficiente; contudo, também deveria admitir que quando ele estava disposto a lhe manter “segura”, ele se esforçava como um lunático, que surpreendentemente valia a pena. Se lembrava de vê-lo numa primeira briga de lâminas, contra aquele velho repugnante e que ainda lhe causava calafrios insuportáveis; ele estava disposto a ter a garganta cortada ou o crânio aberto e, mesmo assim, não havia hesitado em evitar que algo acontecesse com sua vida ou segurança. E agora, para lhe resgatar, correndo de peito aberto e sozinho contra dúzias de guerreiros com arcos e lanças apontados na sua direção. Não terem morrido fora obra dos Deuses, essa sorte não existe. Não com ela. Começar a pensar nisso lhe fez se acalmar consideravelmente. Suspirou um pouco soluçante e secou o rosto. Talvez devesse dormir.
— Ravena. — Ele a chamou após alguns segundos. A fazendo abrir os olhos.
— … O quê?
— Eu… — Ponderava se tinha certeza dos seus pensamentos e se iria realmente dizer o que queria dizer. Só que isso já não importava mais. — Eu vou tirar as algemas.
— O quê? — Sua voz soou surpresa, pensou se de repente havia dormido e agora estava sonhando, mas a dor nas suas costas estava lhe fazendo crer que era bem real. Queria ter certeza. Se esforçou para se sentar de novo e se virou na direção dele novamente. O seu rosto era sério.
— É sério.
— Diga de novo.
— Eu vou tirar as suas algemas. — Parecia mentira. Por um momento queria crer que era mentira, pois assim, quando ele admitisse, não ficaria tão decepcionada, contudo, o seu rosto não mudava. Seus olhos continuavam encarando os seus, sem nem ao menos se mover. Não era possível que fosse verdade.
— Você está falando a verdade?
— Tem a minha palavra.
— Não confio na palavra de um pirata. — Ele sorriu de canto, balançando a cabeça.
— Eu também não confiaria.
— Logan, é sério! Você vai tirar ou não?!
— Vou. — Ele pegou a adaga, aproximando a lâmina da parte interna do seu braço.
— O-O que você vai fazer? — Ravena teve o reflexo de tentar se aproximar, talvez ele estivesse falando tudo aquilo porque enlouqueceu.
— Esse é o maior juramento que eu posso fazer, para que você acredite em mim. — A lâmina cortava a sua pele sem dificuldade, mas não formaria um ferimento grave ou que lhe atrapalhasse. Fora apenas uma linha reta. O sangue acumulado na lâmina, ele balançou perto da fogueira para que queimasse. — A cicatriz vai sempre me lembrar do juramento que eu fiz.
— Eu já tinha acreditado em você.
— Eu também queria acreditar em mim mesmo. — Se sentou na sua frente. — Olha, eu sei que é puro egoísmo, mas entenda que eu também não quero morrer.
— … Eu sei… Eu não posso culpá-lo por ser humano. Por temer a morte.
— Mesmo assim… isso não é justo com você. Por isso eu vou te soltar e… você vai ser livre de novo.
— Também não é justo com você. Não pode viver sem me entregar. Mas não posso fugir e te deixar morrer.
— Você deveria querer que eu morra.
— Não quero… não o tempo inteiro.
— Você me odeia. E você tem vários motivos para me querer morto… muitas pessoas querem a minha cabeça, na verdade…
— … Realmente te odeio.
— Eu sei.
— Te odeio muito.
— Eu também me odiaria.
— E por mais que eu te odeie com todas as minhas forças. Eu não quero que você morra. — Ravena fez menção em mover-se para que se erguesse e pudesse levantar, contudo, o mais alto foi mais rápido em segurar o seu ombro para fazê-la ficar deitada.
— Tem como você ficar deitada?
— Podemos conversar sério só uma única vez? Uma vez, Logan. — “Humph, “Logan” de novo.” Ele pensou num rápido revirar de olhos.
— Está certo. Vamos conversar.
— Se lembra do acordo que tentei fazer?
— Não. — Foi a vez dela revirar os olhos, um suspiro longo escapou da sua boca.
— Está bem… me deu a palavra de que vai me soltar. Certo?
— Pode confiar. — Ele apontou para o corte recém feito. — Dessa vez você pode confiar.
— Então nós iremos fazer um acordo. Vamos colocar as nossas regras e vamos seguir tudo à risca. — Sua voz era baixa por causa do seu cansaço, mas seu tom era firme.
— Pode começar.
— Não vamos fazer isso aqui.
— … Não quer tirar as algemas?
— Vamos sair dessa ilha primeiro.
— Não temos certeza se vamos conseguir.
— Nós precisamos conseguir. — Eles compartilharam um olhar cúmplice. Agora, mais do que nunca, Ravena queria sair daquela ilha.
— Vamos esperar o anoitecer.
— E vamos voltar para o navio.
— E eu vou tirar as suas algemas.
— E nós faremos o nosso acordo.
— Fechado.
— Então iremos sair dessa ilha.
— Juntos.
— Sim. Juntos. — Pela primeira vez, o silêncio e a troca de olhares não era algo tão estranho. Seus olhos estavam conectados por uma linha fina e invisível, apenas com o som do crepitar do fogo que fazia a pouca luz que eles tinham.
— … Você dorme primeiro. — Garfield quebrou o silêncio, cobrindo mais os ombros da menor com a sua camisa.
— … Está bem.
Ravena se acomodou no chão da melhor forma para conseguir dormir, seus olhos se fecharam com peso, devido a exaustão. Ele se afastou, caminhou para o outro lado da caverna, onde anteriormente estava encostado, mas o seu olhar se manteve fixado na imagem da arroxeada, que não demorou para cair no sono. Por mais que estivesse incerto se conseguiriam sair de lá, agora tinha a certeza de que era obrigatório o seu sucesso.
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