CAPÍTULO 4
A neve começava a cobrir o asfalto do estacionamento da escola. Meu jipe já estava coberto com uma película de gelo. Mamãe dizia que eu era doida por ter comprado aquela lata velha. Nesse momento, tremendo debaixo da cobertura de lona, eu tinha que concordar. Mas havia sido um espetáculo durante o verão, quando fizemos passeios off-road.
Meus ossos estavam trincando no momento em que fiz a curva para chegar ao Chalé das Crianças.
— Piper, graças a Deus! — Judy Arndt se apressou para me encontrar na porta. — Você pode ficar na Escavação dos Dinossauros enquanto eu corro para depositar este dinheiro antes que o banco feche?
— Claro.
— Você é uma santa. — Ela saiu por trás de mim, deslizando pela rampa congelada.
Enquanto abria minha blusa de moletom, subi o corredor em direção à sala da pré-escola. Enquanto caminhava, fiquei admirando as artes de marshmallow em miniatura pelas paredes.
— Tia Piper! Tia Piper! — Duas crianças deram gritinhos quando me viram na porta.
— Oi, Courtney e Steffi. — Elas correram e lançaram os braços em volta de mim. — Ah, Steffi, adorei sua fantasia de princesa! — Ela sorriu e deu uma voltinha para me mostrar. As outras crianças estavam provando fantasias do baú de contos de fadas, ou então montando peças de Lego, ou dançando em frente ao karaokê. Havia outra ajudante na sala, a sra. Ruiz, avó da Courtney, que havia se oferecido como voluntária dois dias por semana. Cumprimentamo-nos com sorrisos enquanto ela distribuía biscoitos em forma de ursinhos para o lanche. Courtney e Steffi correram de volta para o espelho.
— Vem brincar com a gente, tia Piper! — Kyle gritou do outro lado da sala. Todo mundo parecia ocupado, então me juntei a ele e seu irmão, Kevin… os gêmeos do terror.
Esse devia ser o melhor trabalho do mundo. É, era um salário mínimo, e era difícil fazer dez horas semanais com o meu cronograma, mas eu sacrificaria o treino de natação antes de desistir disso. Adorava as crianças pequenas. Elas eram tão engraçadas, tão autênticas. O jeito como engatinhavam para o seu colo ou se penduravam no seu pescoço. Às vezes, eram bastante carentes, como se não estivessem recebendo o afeto de que precisavam em casa. Por mim, estava ótimo. Eu tinha amor de sobra para espalhar por aí.
Courtney se aproximou de mim pelas costas e tapou meus olhos com os dedos pegajosos.
— Adivinha quem é!
— Barney?
— Não.
— Scooby-Doo?
Ela deu uma risadinha.
— Não.
— Os três porquinhos?
— Sou eu!
Agarrei-a e fiz cócegas com ela no meu colo. Eu queria uma centena de filhos, pelo menos.
Mamãe estava desligando o telefone quando entrei pela porta dos fundos um pouco depois das seis.
— Era a Bonnie Lucas.
Fiz uma careta.
— Mãe…
— Sem desculpas — ela disse. — Vá até lá amanhã. Ela teve muito trabalho para solicitar todos aqueles catálogos e fichas de inscrição. Eu me adiantei e já preenchi todos os formulários de auxílio financeiro que você deixou na sua escrivaninha.
— Mãe. — Involuntariamente, meus punhos se fecharam. Eu queria que ela ficasse longe do meu quarto. De preferência, longe da minha vida. Respirei fundo, me acalmando, antes de dar um beijo em Hannah na cadeira de bebê. Mamãe me afastou com uma cutucada e levantou Hannah, acrescentando: — Você age como se não se importasse.
— Eu me importo — falei, me eriçando de novo. Por que ela não ia para a faculdade se estava tão obcecada com isso?
Escancarei a porta da geladeira e roubei uma travessa de sobras de frango. Para sobremesa, escolhi um pacote de batatas fritas que estava sobre o balcão. Já na cripta, liguei o CD player e vesti a calça de moletom, depois descarreguei os livros e os cadernos em cima da cama. Uma sensação de pavor se infiltrou no meu âmago. Já fazia um tempo que andava me corroendo. Por que eu tinha que ir para a universidade? Eu adorava a escola, mas principalmente pela vida social. Não conseguia imaginar mais quatro anos me debruçando sobre livros, escrevendo relatórios, apresentando seminários e virando a noite para estudar para as provas.
Empurrando os livros de lado, rolei na cama e abracei meu travesseiro.
O que havia de errado comigo? Desde que o último ano do ensino médio começou, eu não conseguia me animar. Não conseguia entrar no jogo. O tempo parecia ter acelerado e alçado voo sem mim. Ou então parado de repente. Essa sensação de inércia me deixou petrificada. Às vezes, eu me pegava mirando meu reflexo nas janelas e me indagando quem eu era, aonde estava indo. Então a imagem mudava e não era mais eu, apenas a sombra nebulosa de uma pessoa. Um metamorfo vazio, frouxo.
Os passos de Mamãe estalaram no andar superior, no meu quarto antigo. Uma pontada de culpa me fulminou as vísceras. Eu sabia por que ela estava tão obcecada com a universidade. Ela teria frequentado uma se pudesse, mas precisou abandonar o ensino médio quando ficou grávida de mim. Os pais dela a expulsaram de casa. Ela nunca falou muito sobre aquela época. Nós vivemos em um abrigo por um tempo, acho. Por fim, Mamãe entrou em um programa de auxílio a mães solteiras e conseguiu o certificado do ensino médio. Ela cursou a escola de comércio e trabalhou como assistente jurídica.
Eu a admirava, de verdade. Ela havia passado por muita coisa. Era forte e independente, muito mais do que eu. Uma vez, quando ela estava grávida de Hannah, eu fui acompanhá-la no exame de ultrassom e lembro que, sentadas no consultório médico, Mamãe folheando uma revista de maternidade, nós duas ficamos nos derretendo com roupinhas fofas de bebê. Ela me disse que se arrependia por ter sido mãe tão cedo, pois teria sido uma mãe melhor se tivesse esperado e planejado. Tentei dizer que ela era uma ótima mãe, mas acho que não me ouviu. Ou não acreditou. Ela disse que, se fosse mais velha, mais madura, teria me desejado mais como filha.
Fechei os olhos com força, expulsando a lembrança, as implicações. Hannah foi desejada. Eu, não.
Deveria ter me ressentido por Hannah, e provavelmente me ressenti, no começo. Mas Mamãe a dividiu comigo. Era como se estivéssemos criando a Hannah juntas. Eu adorava isso, o trabalho de equipe. E ninguém poderia guardar rancor de um bebê, especialmente de uma bonequinha tão fofa quanto a Hannah.
Meu celular tocou, me catapultando de volta ao presente.
— Oi, Piper! — Larry falou. — Está ocupada?
— Extremamente — informei a ele. — Nem pense nisso. Preciso dormir.
— Hummm. Eu sempre durmo melhor depois.
— É, sei, você dorme durante também.
— Ei!
— Brincadeira! — Falei.
— Escuta, sobre sexta à noite. Cancela. Meu irmão e os colegas de quarto dele iam passar o fim de semana esquiando e disseram que podíamos usar o apartamento, mas agora um deles vai ter que trabalhar. — Ele suspirou pesado. — Desculpa.
— Tudo bem. — Por algum motivo, eu me sentia aliviada.
— Eles remarcaram para o fim de semana que vem, quando vamos poder ficar no apartamento. Enquanto isso, mandamos ver na porãolândia.
— O Neal vai passar o resto do mês em casa — avisei. — E a Faith vai estar aqui no fim de semana.
Larry praguejou num sussurro.
— Você só está mimado por causa das férias.
— Não brinca — ele respondeu. — Acho que estou viciado. Viciado em você.
— Existe tratamento pra isso.
Ele deu uma risadinha.
— Ei, o lago Echo vai abrir no sábado. Quer ir patinar?
— Quero — eu me animei. — Vou chamar a Lorna e a Polly. Não saímos todos juntos desde o verão.
— Ah, tudo bem — Larry disse, sem emoção.
— Se você não quiser que eu…
— Não, tudo bem. É que parece que não fazemos mais nada sozinhos.
Isso não era verdade. Ele ficava sozinho comigo o tempo todo. Larry acrescentou:
— Você já pensou sobre aquilo… — a voz dele baixou — que começa com “c” e não é câncer?
Minha mandíbula se apertou. Novamente essa história de ter relação sem camisinha?
— Acho que ouvi minha mãe resmungar.
— Piper…
— Larry, assim que eu souber, você saberá. Eu prometo.
E quando vai ser isso?, me perguntei. A resposta era óbvia: assim que eu descobrisse onde a vida da minha mãe acabava e a minha começava.
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