História O Tabuleiro - Os Escamas Marinhas

As estradas da província de Eldora eram as mais belas de todas as três províncias. Gina era apaixonada pelas paisagens dos vastos campos que a cercavam, e tal paisagem era ainda mais maravilhosa de se admirar enquanto se ouvia o leve barulho do Serafim Prateado em movimento enquanto ele deslizava a alguns centímetros do asfalto.

A pequena viagem tinha sido organizada pelo Senhor Zoan no início da manhã. Gina mal havia levantado da cama quando o patriarca a havia chamado para ir ao seu escritorio:

- A reunião extraordinária do ano novo está se aproximando. Sinto que é importante realizarmos uma diplomacia com as demais famílias que foram convidadas para o pequeno conselho das famílias. Vamos para a sede dos Escamas Marinhas para estreitarmos o nosso relacionamento. - dissera ele.

E assim foi feito. Os dois partiram cedo a bordo da nave dos Anjos de Ferro.

A sede dos Escamas Marinhas ficava em uma pequena ilha localizada proximo a costa de Eldora, diziam os boatos que o prédio fora contruído no meio de ruínas chamadas Templo do Mar:

“Kerb. Estou tão ansiosa para conhecer esse templo do mar”. Disse Gina empolgada, enquanto alisava o pelo do cão em seu colo.

“Deve ser mesmo um lugar interessante. Os escamas marinhas são uma família com costumes muito singulares” Respondeu o pequeno cão em pensamento.

Gina havia estudado um pouco sobre as três famílias convidadas a participar da reunião no ano novo. Os Andarilhos do Tabuleiro, os Maquinistas Circenses e os Escamas Marinhas, e com certeza a terceira foi a que mais lhe chamou a atenção. Suas pesquisas eram todas baseadas no meio aquatico e marinho e TODOS os membros dessa família possuíam poderes relacionados à agua ou ao mar:

- Estamos chegando Gina! – disse o Sr Zoan. – Vamos com o Serafim até a cidade de Bavária. Lá pegaremos uma nave aquática para chegarmos à ilha dos Escamas.

Gina olhou pela janela da nave, a cidade litorânea crescia por todos os lado e parecia querer engoli-los conforme se aproximavam, e mais a frente estava ele, azul e cristalino, soberano e imponente, o mar.

- É magnífico!

Gina só havia ido à praia uma vez em toda sua vida, portanto estava contente em poder ter essa experiência novamente. A diferença entre a capital e o litoral era notável logo na entrada da cidade, onde um enorme portal de pedra fora esculpido em forma de duas sereias segurando uma placa com os dizeres “Bem vindo a Bavária”

Pelas ruas várias pessoas andavam em trajes de banho sem nenhum medo de exibirem os seus corpos, crianças corriam e garotas sorriam. Os cidadãos em geral pareciam felizes e tranquilos. Um clima de descontração tomava conta do lugar e conseguiu contagiar Gina.

Eles chegaram a um porto e estacionaram o Serafim Prateado para alugar uma nave aquática para realizar a travessia até a ilha. Existiam três tipos de naves, terrestres, aquáticas e aéreas. Por mais que flutuasse, o Serafim Prateado era uma nave terrestre, portanto era necessário que existisse uma superfície sólida abaixo dele para que ele pudesse flutuar. Na água ele não seria capaz de se mover.

Gina e o Senhor Zoan subiram a bordo de uma nave chamada Lagosta Azul, sua lataria tinha a cor que a denominava, a viagem foi tranquila, mas a garota percebeu algo que a perturbou. Os pensamentos dos peixes e outros animais marinhos chegavam com dificuldade até ela, isso era porque a movimentação da água distorcia as ondas sensitivas que ela tinha tanta facilidade de pegar pelo ar.

A ilha da Escama ficava a apenas 15 quilômetros de distância da costa, a viagem não durou mais que meia hora, quando pisaram em terra firme, Kerb empinou as orelhas e o rabo, indicando estar atento a algo.

“Kerb? O que foi?” perguntou Gina em pensamento.

“Estou farejando algo. Alguém, pra ser mais exato. Alguém que já nos encontramos há pouco tempo.”

Senhor Zoan naturalmente não podia ouvir os pensamentos do cão, portanto não se apercebeu de sua inquietação e apenas deu sinal para que Gina se apressasse. O caminho apesar de ser curto era cansativo, a ilha basicamente era composta de um único morro, no qual o templo do mar se localizava, para chegar até ele era necessário subir por uma longa escadaria de pedra:

- Isso com certeza é grandioso! Digno de uma das famílias protetoras. – disse o velho patriarca quando por fim chegaram ao topo da escadaria.

Gina entendeu o que ele quis dizer. O templo do Mar era uma construção milenar, mas estava longe de ser chamado de ruína, cada parede e coluna se erguiam de forma orgulhosa, como se quisessem provar a sua força e resistência. O seu formato octogonal esbanjava imponência, as portas de pedra eram cuidadosamente esculpidas com a imagem de belas sereias e pareciam ser fortes o suficiente para resistir a invasão de um exército. A beleza daquele templo era capaz de fazer com que o Templo do Sol parecesse algo pobre e sem graça.

No topo um enorme letreiro exibia o logotipo da família, um peixe azul com escamas coloridas, e abaixo dele os dizeres “Escamas Marinhas, pesquisas científicas e biológicas”. A última palavra chamou a atenção da garota:

- Biológicas? É a primeira vez que eu vejo uma família com um letreiro desses em sua sede.

Senhor Zoan sorriu:

- Cada família tem a sua particularidade. Acho que já deu para notar que a paixão dessa família pela vida marinha vai além de qualquer coisa.

Quando o velho estava prestes a tocar o interfone as portas de pedra se abriram:

- O que?! Isso é impossível! – disse Gina de queixo caído quando pode ver o interior do templo.

Por dentro a Sede dos Escamas mais parecia um shopping center. O centro do saguão era decorado com uma grande fonte com um chafariz, as paredes estavam enfeitadas com grandes aquários que exibiam as mais variadas espécies de peixes. O lugar parecia muito maior por dentro do que por fora, e o ambiente não fazia lembrar em nada um templo antigo, o chão perfeitamente encerado e a iluminação amigável tornava-o moderno e futurístico.

Ao fundo, uma escadaria de mármore branco levava a um piso superior, por ela descia um casal muito exótico. O homem vestia a malha azul-claro dos Escamas Marinhas e uma capa da mesma cor, diferente dos uniformes das outras famílias essa malha tinha mangas curtas e mais parecia um maiô de natação e os ombros largos dele revelavam que ele era adepto ao esporte, seus cabelos eram encaracolados e muito escuros e pela sua aparência ele parecia ter cerca de 45 anos, tinha uma barba farta e o corpo peludo. Mas o que realmente chamou a atenção dos dois Anjos de Ferro era o fato do homem estar carregando um tridente de ouro quase do seu tamanho, e em sua cabeça uma pesada coroa ostentava um brilho dourado.

A mulher era tão alta quanto ele, usava um vestido no mesmo tom de azul que ia até os pés e era decorado com babados na barra, nas mangas, e na região do colo. Suas maçãs do rosto tinham um brilho rosado cheio de vida, tinha cabelos loiros que desciam por seus ombros em longos caracóis, assim como seu parceiro ela também usava uma coroa de ouro, e enquanto descia as escadas exibia um sorriso cativante com dentes tão brancos quanto pérolas:

- Bem vindos! – disse ela de forma empolgada. – Bem vindos à nossa sede.

- Ficamos felizes em sermos tão bem recebidos. – respondeu o Sr Zoan.

Os quatro se puseram frente a frente para se apresentarem.

- Eu sou Zoan o patriarca dos Anjos de Ferro, e essa é Gina uma das minhas melhores oficiais.

Gina corou diante do elogio do patriarca.

- Eu sou Reynald, o patriarca dos Escamas Marinhas, mas todos aqui me chamam Rei Netuno. Esta é minha esposa, Rainha Sirene.

Na prática, Reynald e Sirene, não eram rei e rainha de nada, mas algumas famílias gostavam de arranjar codinomes entre seus membros e a julgar pelas coroas e pelo tridente os Escamas realmente encarnavam o personagem.

- Muito prazer... majestade? – Gina perguntou com um pouco de dúvida

Sirene riu:

- Não precisa disso querida. São apenas codinomes.

Netuno riu também:

- É verdade! Mas vamos andando, para o escritório principal, tem alguns conhecidos de vocês que já estão lá.

Gina assustou-se com a afirmação do Rei Netuno e olhou para Kerb lembrando-se do que cheiro que ele havia farejado logo ao pisarem na ilha. Então de fato havia algum conhecido ali.

“Kerb. Não consegue realmente se lembrar de quem era o cheiro que você farejou?” Perguntou ela em pensamento para o seu cãozinho.

“Não. Mas vamos logo para o escritório e acabar com esse mistério.”

O grupo subiu as escadas e seguiu por um longo corredor muito bem iluminado e decorado com grandes aquarios em ambas as paredes. Gina tentou captar algum pensamento dos peixes que viviam ali, mas tal como havia constatado anteriormente a água tornava praticamente impossível captar alguma coisa e assim ela continuava surda a eles.

Netuno parou em frente a uma porta dupla de madeira e anunciou de forma pomposa:

- E chegamos ao escritório principal dos Escamas Marinhas! – E empurrou as portas com as duas mãos.

O ambiente por trás daquelas portas era ainda mais surpreendente do que o saguão de entrada. O escritório principal, era uma sala semi-aberta que dava direto em um penhasco da ilha, a divisão entre a sala e o penhasco era feita apenas pelas colunas originais do Templo do Mar, não havia uma parede ao fundo. Nas paredes dos lados, duas fontes com peixes saltitantes faziam a decoração em vez dos tradicionais aquários. Ao centro havia uma mesa grande com várias cadeiras, das quais duas delas eram ocupadas por velhos conhecidos dos Anjos de Ferro:

- Lune Lancelot, e seu pupilo mais novo! – surpreendeu-se o Sr Zoan. – Quem diria que os Bastardos Urbanos nos encontrariam até aqui, tão longe de casa.

Lune encarou os dois e abriu um sorriso carregado de cinismo:

- Anjos de Ferro, mais uma vez nos perseguindo. Vieram para impedir nossa aliança com mais uma família?

Marco ignorou o falatório dos dois patriarcas e correu em direção de Gina:

- Gina. Você está bem? As flores! O Veneno!

A garota então se lembrou. Era de Marco o cheiro que Kerb havia farejado. Da última vez que eles se viram estavam em lados opostos em um campo de batalha, e ela quase perdera a vida graças às flores venenosas de Vínia. Por causa disso estava de volta ao mundo dos humanos:

- Marco eu estou bem, obrigada! Tive que voltar por causa do Veneno. Mas e você? Por que voltou antes de sua família?

Nesse momento Lune chegou passando o braço em torno dos ombros de Marco e interrompendo a conversa:

- Quando foi que você se tornou tão íntimo dela, Marco?

Marco encolheu-se um pouco, parecia com vergonha de algo:

- Foi na missão no tabuleiro, tivemos um conflito com os Anjos de Ferro na floresta.

- Mas Marco salvou minha vida. – disse a garota olhando para Lune bem nos olhos, sua intenção era desafiá-lo. – Seus outros oficiais estavam nos atacando em uma briga idiota, mas Marco foi o único que teve a sensibilidade de me ajudar quando eu corri perigo.

- Infelizmente isso não serviu de muita coisa. – continuou o jovem ainda de cabeça abaixada. – Vínia a envenenou com carminhas. Por isso ela teve que deixar a missão antes de sua família.

Lune franziu o rosto:

- Uma baixa para cada um dos lados. Me parece justo. Não se esqueça de que você também teve que voltar por causa da sua... do seu problema. – e soltou do ombro dele depois de dizer isso para se agrupar aos demais patriarcas.

Gina ficou incomodada:

- Que problema é esse Marco? – Sussurrou para ele.

- Esqueça.- foi sua resposta.

Netuno e Sirene pareciam muito empolgados:

- Então vamos começar logo a reunião, sentem-se por favor. – dizia ele agitando o seu tridente para cima e para baixo enquanto todos tomavam os seus lugares.

Gina sentou-se frente a frente com Marco e ficou admirando os seus olhos. Eles pareciam outros, estavam tristes e preocupados, não pareciam os mesmos olhos do garoto que lhe salvara de uma terrível queda há algumas semanas, e ela tinha a impressão de que sua preocupação tinha algo relacionado com o motivo de sua saída da missão.

“Algo te perturba Gina?” – perguntou Kerb.

“Sim. É Marco, estou preocupada com ele.”

“Preocupada apenas? Ou será que está sentindo mais alguma coisa” A voz de Kerb soou um pouco mais brincalhona.

“O quê?!” Perguntou ela com um pouco de irritação.

Mas o diálogo deles foi interrompido novamente por Rainha Sirene:

- O ano novo está chegando, e nós sabemos muito bem o motivo de duas das quatro famílias protetoras estarem nos procurando. Estão em busca de alianças, estou certa?

Sr Zoan, não fez rodeios em sua resposta:

- É isso mesmo. Existem duas chaves de portal que não estão sob a proteção de nenhuma família, a Ametista do setor Sudeste, e o Diamante do Setor Norte. Três famílias de potencial foram convidadas a participar do pequeno conselho junto às quatro protetoras. Creio que a essa altura todos já devem saber que o Conselho regente pretende distribuir essas chaves para duas dessas famílias.

Lune tomou a palavra:

- A busca pelo poder é incessante. E todas as cento e cinqüenta famílias estão especulando sobre quem serão os novos protetores. Alianças são importantes, principalmente quando vemos que essas famílias têm realmente um grande potencial. Esta sede de vocês é realmente um palácio.

Sr Zoan se remexeu na cadeira incomodado com o último comentário do Bastardo. Rei Netuno por outro lado gargalhou sonoramente:

- Fico feliz pelo elogio. E entendo a posição de vocês, principalmente por saber da rivalidade de gerações entre os Anjos de Ferro e os Bastardos Urbanos. Como patriarca dessa orgulhosa família, a última coisa que quero é que nos enxerguem como uma ameaça.

Neste momento Gina começou a captar alguns pensamentos.

“Está um belo dia”

“Hoje a Rainha Sirene está mais radiante do que nunca”

“Temos alguns convidados estranhos hoje”

“Tomara que alguém venha nos alimentar logo.”

Eram pensamentos fúteis dos peixes que estavam nas fontes e subiam à superfície para bisbilhotar, dessa forma ela conseguia captar os pensamentos deles. Mas isso rapidamente se tornou algo terrivelmente inconveniente pois os peixes daquelas fontes eram tão fofoqueiros quanto lavadeiras de histórias infantis.

- Nós esperamos resolver esses desentendimento entre nossas famílias logo. – disse O Sr Zoan tentando apaziguar. – Esperamos abrir novas perspectivas com a chegada da nova geração.

Dessa Vez foi Lune quem gargalhou:

- Do que você entende da nova geração, velhote?! Não quer largar o osso na liderança dos Anjos de Ferro e me vem falando de novas perspectivas?

Gina achou de um desrespeito sem tamanho Lune falar daquela forma com o Sr Zoan. Apesar de se parecer fisicamente com Sony, sua personalidade se assemelhava mais com o rebelde Edgar, que já estava dando uma dor de cabeça a Cielo que pusera uma pequena equipe de busca atrás dele desde o seu sumiço há dois dias.

Sirene se levantou:

- Por favor, vamos manter o respeito aqui!

“A Rainha Sirene é muito linda e elegante”

“Sobre o que essas pessoas estão conversando?”

“Eu não aguento mais essa fome”

“Essa reunião não está tão interessante quanto a última”

Os peixes não paravam de fofocar. Estava ficando difícil manter a concentração, e Gina desejou que houvesse aquários em vez de fontes naquela sala, pelo menos os peixes poderiam bisbilhotar pelo vidro, sem precisar sair da água.

Netuno também se levantou e ergueu o seu tridente:

- Reconheço que alianças entre famílias são importantíssimas, principalmente em um momento tão delicado quanto esse, mas antes, precisamos nos conhecer melhor como famílias. E para isso alguns testes se fazem necessários.

De repente as portas de madeiras se abrem e duas pessoas entram no escritório principal.

- Vocês? Q-Quem são vocês? O que fazem aqui?

Era um casal. A mulher usava um vestido longo com um elegante corte lateral exibindo uma perna cheia de curvas, seus cabelos castanhos caiam pelo ombro e repousava nos seios fartos que estavam bem visíveis no decote ousado, seus olhos eram grandes e sua boca carnuda com um batom vermelho. Já o homem era alto e magro, vestia um terno elegante, mas chamava mais a atenção por causa da sua expressão facial, usava um bigode pontudo, suas sobrancelhas eram tão grossas que se uniam em uma só, sua boca fina se retorcia em uma expressão irritadiça, suas narinas eram tão arreganhadas que parecia que iria sair fumaça por elas a qualquer momento.

- Nos somos os Imperadores do Século Antigo. – Disse a mulher enquanto parecia desfilar pela sala. – Eu sou Janelle, e este é Quaza o patriarca da família, mas vocês podem chamá-lo de IRA. Creio que estamos aqui pelo mesmo motivo das outras duas famílias.

Sirene adotou uma expressão impassível:

- Imperadores do Século Antigo? Então, mais uma das famílias protetoras veio para buscar a nossa aliança.

Tudo começou a ficar quieto... Algo estava errado. Gina olhou para as duas fontes e viu que muitos peixes voltaram a mergulhar. Ela procurou ouvir os pensamentos dos que ainda ficaram.

“Esses dois de novo?”

“Pelo jeito a comida vai demorar”

“Toda semana esses dois enchendo o saco nessa sala”

“Toda vezes que esses dois vêm eles passam horas conversando com o Rei Netuno”

“Desisto, nada de novo acontece nessa sala”

A garota ficou perturbada com os comentários dos peixes:

“Kerb, você ouviu o que o Netuno disse quando esses dois entraram na sala?” perguntou ela para o seu cão

“Ele se assustou, assim como nós. E dá para entender o motivo.”

“Não Kerb! Eu estou ouvindo os pensamentos dos peixes das fontes desde o começo da reunião, eles estão atentos ao que acontece nessa sala. Netuno não tem motivo para se espantar tanto com a presença desses dois, pois pelo que eu ouvi, eles têm frequentado bastante esse lugar."

Kerb empinou as orelhas e rabo indicando estar atento.

“Já entendi tudo Gina”

“Sim. Sorrisos e empolgação demais pro meu gosto. Os Escamas Marinhas estão fazendo um teatro com a gente.”