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História (Re)Descobrir - Olhares


Escrita por: Melted

Notas do Autor


Oi, voltei. É mais uma fanfic de concurso porque eu vivo pra concurso... Agradecer a Nay e todo pessoal do Butantan OHDAHDA Amo vocês <3 Obrigada Karol também pela capa
Mas enfim, essa é uma fic que retrata vidas na Coreia do Norte e tudo que as pessoas passam por lá. É um assunto sério e espero muito que dê pra notar isso, mesmo minha fanfic não sendo tão boa assim.
Eu fiz ela com base num depoimento de uma moça norte-coreana, eu deixo o link nas notas pra vocês lerem.
Ps: Essa fanfic não tem um tempo exatamente linear. Ela é feita de acontecimentos jogados, e acho que no final vocês vão entender o porquê

Capítulo 1 - Olhares


Fanfic / Fanfiction (Re)Descobrir - Olhares

A primeira vez em que encontrei-me com Oh Sehun foi aos quinze anos.

Não foi o melhor encontro. Estávamos numa situação nada boa para nenhum dos dois.

Minha curiosidade, em todas as vezes, era somente minha.  Não espairecia nenhuma de minhas dúvidas, nem mesmo devia fazê-lo. Ensinaram-me que era errado questionar desde pequeno. Então não questionava, apenas guardava tudo para mim. Talvez por isso a minha mente fosse uma enorme confusão de dúvidas e perguntas sem respostas. Um caderno rabiscado com letras tortuosas e cálculos sem resolução.

Não havia nada de especial naquele mundo construído na perfeita monotonia em que vivíamos. Eu caminhava por aquele chão de concreto de forma tão vagarosa quanto todo o resto, logo depois de ter saído da sala de aula. Era mais um dia no qual ouvia sobre como a educação política e ideológica era a parte mais importante do nosso aprendizado.

Sentia que sempre havia algo errado enquanto via as fotos do Grande Líder, Kim II-Sung, a me acompanhar com seus olhos para cada canto em que eu estivesse. Era como se ele pudesse ler qualquer um dos meus pensamentos, pois ele era onipotente, onisciente e onipresente. Por esse motivo, eu evitava ao máximo pensar no quanto estava farto quando andava pelas ruas pouco movimentadas.

Meus pés, calçados com aqueles tênis surrados, tinham a estranha mania de levar-me para onde não deviam. Naquele dia em especial, entendi que minha sina era sempre pender ao errado, a um desconhecido que eu nunca nem mesmo pensava em conhecer.

Algo tocava em ritmos estranhamente marcados logo à frente. Aproximei meu corpo um pouco mais, a fim de ouvir ainda mais aquele som tão novo aos meus ouvidos. Senti como se houvesse descoberto um grande tesouro ao ouvir aquele mínimo barulho. Mais tarde eu descobri que era uma música das bem famosas.

Segundo Oh Sehun, aquela música era de um grande cantor do pop. Fiquei admirado, mesmo eu não sabendo bem o que significava ser um cantor do pop na época.

Havia um sorriso torto em seus lábios finos enquanto ele encarava o público que o rodeava. O toca fitas estava em suas mãos, e ao seu lado havia uma quantidade parcialmente grande de fitas. Uma, duas ou talvez três delas. Para mim era um número enorme, nunca nem sequer tinha visto aquilo antes.

Aquela foi a primeira música estrangeira que eu ouvi, então, assim que pude, tratei de memorizar cada nota que a compunha. Cada acorde, cada mínima nuance na voz. Acho que peguei uma estranha mania de lembrar de tudo feito um gravador.

— É bom, não é? — Abriu ainda mais o sorriso. — Todo mundo lá fora conhece essa música. Se sintam muito honrados por ouvirem também.

Ele recebeu suspiros admirados, confesso que eu mesmo dei um. Queria saber um pouco mais sobre aquilo, queria mais músicas que, muito provavelmente, ele devia ter.

— Quanto você quer? — Um garoto perguntou.

— Vendo por 650 won. — Respondeu, vendo o outro bufar com o preço. — É pegar ou largar.

— Tudo bem, eu quero um. — O menino abriu a carteira, tirando as notas de lá.

As mãos esguias tomaram o dinheiro do rapaz e de alguns dos outros alunos. No final, só havia uma fita em suas mãos. A mesma da música que tocava anteriormente, porque ele simplesmente se recusara a vendê-la.

— O policiamento está vindo! — Um outro aluno gritou enquanto corria. — Corram!

Sehun soltou um praguejamento e pulou o muro no qual estava. Ele me olhou e eu o olhei. Não havia nada demais em um simples olhar, mas ele ainda me olhava como se eu fosse um louco. Hoje acho que o motivo era eu ter ficado estático enquanto todos corriam.

Na verdade, acho que via muitas coisas nos olhos de Sehun. Não naquele momento, mas em muitos outros.

Ele não tardou a correr, e acho que só assim entendi o que acontecia. Eu corri também, mesmo que não tivesse nunca me envolvido em nada que me causasse problemas. Nem mesmo tinha comprado suas fitas, então não tinha motivo algum para tentar me esconder.

A adrenalina queimava em minhas veias quando finalmente consegui parar aquela fuga. Respirava fundo, num compasso marcado assim como a música que tocava a minutos atrás. De uma forma esquisita, sentia vontade de sorrir. E sorri bem devagar, com receio de que alguém me pegasse naquele momento de felicidade espontânea.

Aquele sorriso morreu assim que vi os policiais segurando Sehun pelos braços. Ele foi arrastado pelos homens, que o jogaram no chão e puxaram com força a mochila de suas costas. Viraram-na de cabeça para baixo, deixando com que os livros e cadernos se esparramassem à sua frente.

— Hey, garoto! — O policial tomou as notas nas mãos. — Onde conseguiu esse dinheiro?

— É meu. — Disse sem nem mesmo tremular.

— Perguntei onde conseguiu. — O homem chutou suas costas.

— Com a minha família. — Sussurrou.

— Tem certeza que sua família te dá tudo isso, moleque? — Chutaram seu rosto daquela vez, fazendo com que um fio de sangue escorresse por seus lábios.

— Por que não vai procurar? A escola deve ter os documentos. — Sorriu.

— Insolente!

O agrediram mais algumas vezes, no entanto, Sehun nem sequer demonstrava sinal de sentir dor. Ele apanhava com os olhos opacos e entediados, como se fosse uma cena tão cotidiana que se tornara sem importância.

E talvez fosse.

Os policiais foram embora, deixando o corpo machucado de Sehun virado para cima. Parecia admirar o céu, como se caçasse figuras entre as nuvens brancas.

— Quanto tempo você vai ficar escondido? — Ele quis saber. — Covarde.

— Como sabia que eu estava ali?

— Era muito fácil de ver. Os policiais são uns babacas por não conseguirem te achar, mas eu não sou. — Respondeu.

— Desculpa... — Tentei dizer, mas não havia desculpa alguma para os meus atos. — Eu não podia...

— Não podia fazer nada? Ninguém nunca pode. — Ele sentou-se, soltando um gemido dolorido. — Mas pelo menos você não me dedurou. Algum motivo em especial?

Não sabia se havia motivos, mas havia vontade. Aquela súbita sensação de querer se aventurar num desconhecido, de redescobrir um mundo a qual eu nunca tinha descoberto.

Queria saber tanto da vida quanto Oh Sehun, e mesmo que eu tentasse me enganar, queria saber sobre ele. Porque ele era como aquela música que tocava na fita, era feito para ser ouvido e admirado por milhões de espectadores. Não era feito para viver preso naquela caixa monitorada em que vivíamos, era feito para desbravar o mundo e ver cada canto dele.

Sehun era feito de extremos. Era prisão ou liberdade. Se não pudesse ser livre lá fora, seria aqui dentro. Faria com que tudo virasse um perfeito caos, apenas para poder sair do tédio que o abatia todos os dias. Ele gostava de ver a guerra se tornar paz. Bagunçava todo o exterior, mas se sentia livre e calmo por dentro. E aquela mínima felicidade ninguém no mundo poderia tirar dele.

Nem mesmo eu e toda minha covardia.

— Eu quero ouvir aquela coisa de novo. — Disse a ele.

— Eu escondi ali atrás. — Apontou o pequeno arbusto. — Você sabe… Se me pegassem com isso eu já estaria morto.

Busquei aquele objeto, tomando em minhas mãos com cuidado, tratando-o como se fosse de cristal. Agachei-me no chão, dando aquele pequeno pedaço de mundo para Sehun. Ele apertou um botão, e novamente a melodia começou, mais baixa do que antes. Assustei-me com o som repentino, abrindo os olhos e a boca. Sehun riu de mim, mas nunca nem mesmo pensei em ficar chateado. 

Volta e meia ele sorria da minha inocência para com tudo que não conhecia, sorria para meus olhos metediços sob as tantas coisas proibidas que ele trazia só para mim.

— Como se chama? — Perguntei, completamente envolvido.

— Man in the mirror. — Respondeu.

— Eu não sei falar inglês… — Soltei um muxoxo baixo.

— Homem no espelho. — Traduziu. — Fala sobre como devemos começar a mudança por nós, antes mesmo de querer mudar o mundo.

Naquele dia eu não entendi, mas fingi que sim. Hoje, acho que ele queria alguma coisa quando me explicou aquilo.

Talvez só quisesse que eu mudasse.

������

Comíamos uma refeição escassa, a falta de algo para se alimentar era constante. Segundo as regras, trezentas gramas de ração por dia era o suficiente, mas eu não achava que era. Vivia sempre faminto, talvez por isso fosse um garoto magricela. Sehun também era magro, até mesmo mais do que eu. Era muito alto, o que era estranho, já que a maioria de nós eram baixos. Ele parecia uma figura deslocada em meio a tantas pessoas iguais.

Passara a acompanhar Sehun em suas loucuras depois daquele dia em que nos conhecemos. Tinha um constante medo de sermos pegos ouvindo aquela música que ele dizia ser de um tal de Michael Jackson. Eu nem mesmo conseguia pronunciar aquele nome sem me embolar.

Toda nossa publicidade era voltada ao líder. Até mesmo a arquitetura soviética do país era feita com esse fim, onde frases e mais frases se dispunham entres os edifícios para incentivar ainda mais o regime. Nossos três canais de TV eram estatais – isso era um luxo que poucas vezes tínhamos, já que a queda de energia era constante – todos os jornais eram do partido, com longos editoriais enaltecendo o governo. Qualquer notícia era voltada para nosso antigo e novo dirigente. Até mesmos nossos filmes eram apenas uma forte propaganda ideológica moral.

— Eu não aguento mais o rosto dele me perseguindo aonde quer que eu vá. — Sehun sussurrou baixinho em um dia qualquer. — Ele está morto.

— Não diga isso! — O repreendi. — Sabe que não é certo.

O Grande líder havia morrido naquele ano, mas éramos proibidos de dizer que ele se foi. Nosso líder era eterno, dizer que ele estava morto era uma grande heresia.

— E o que é certo para você? — Inquiriu. — Tratam o nosso líder como se fosse Deus.

— Fique calado. — Olhei para os lados, preocupado em saber se alguém tinha ouvido a conversa. — Não diga o nome dele, não podemos.

Era engraçado como eu tinha medo de dizer a palavra Deus. Havia sido ensinado que tudo aquilo não passava de uma bobagem, que devíamos adorar somente ao nosso líder e a pátria. O amor era destinado ao nosso dirigente, mesmo o amor de mãe era considerado como nada se comparado a nossa devoção ao líder.

Tudo era controlado para que louvássemos algo que não deveria ser louvado.

Sehun tinha costume de dizer que humano algum se comparava com a imensidão do universo. Eu não sabia que imensidão era aquela, meu mundo era feito somente de muros e limitações. Então ele me dizia que bastava eu olhar para as estrelas no céu para conseguir ver ao menos uma parte de quão grande o universo era.

As estrelas eram extremamente longínquas, mas pareciam fáceis de se alcançar naquelas noites de poucas nuvens e sem nenhuma luz artificial para atrapalhar.

— Sehun, você acredita em Deus? — Disse a última palavra quase de forma inaudível.

— Eu acredito. — Confirmou. — Acredito que deve ter um ser muito maior do que tudo.

— Maior do que o nosso líder? — Olhei para ele, curioso em saber.

— Muito maior, Jongin. — Ele sorriu triste. — Alguém que eu rezo todos os dias para nos tirar desse lugar. Alguém que nos dê liberdade para ser como quisermos, que não jogue nossa vida fora por um simples capricho. Então eu acredito, porque acreditar é a única coisa que eu posso fazer.

— Eu quero acreditar também… — Relutei em me pronunciar. — Mas eu tenho tanto medo, Sehun. Eu tenho medo até mesmo de pensar.

— Não tenha. — Ele limpou com o polegar a lágrima que caíra por minha bochecha. — O pensamento é a nossa única arma, não deixe que eles tirem de você seu bem mais precioso.  Tudo que você precisa fazer é ter fé.

Naquele dia eu quis acreditar em muitas coisas. Pensei que se acreditasse em Deus ou em algo maior, até mesmo o destino, tudo ficaria bem. Porque minha crença era só minha, toda a minha vontade também. Não me impuseram a crer naquilo, apenas quis.

Então tive fé que tudo mudaria, acreditei fervorosamente que seria livre.

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Eu sentia fome, mas não podia reclamar. Foi minha escolha ter dado a minha tão pequena parte para a mulher que agora parecia num sono profundo em cima da cama, ela precisava mais.

Todo meu estômago embrulhava, a vontade de vomitar era constante, no entanto, não se tinha nada para pôr para fora. Sentia o gosto da bile em minha boca, os meus lábios rachados tremiam. Ajoelhei-me e pedi ao tão poderoso Senhor que não levasse minha mãe embora. O meu desespero era tanto, que cheguei a implorar até mesmo ao nosso líder.

Eu pedi o máximo que podia. Meus joelhos doloridos naquele chão frio e duro, fazendo uma prece sussurrada para qualquer um que pudesse escutá-la. Minha mãe chamava meu nome com apenas um fio de voz, o som era sem vida e os seus olhos pareciam opacos. Ela tomou suas mãos nas minhas, dizendo algumas palavras que eu não lembro bem.

Devia ter lembrado, gravado casa sussurro que ela dera naquele dia.

Meus olhos estavam borrados por lágrimas que insistiam em escapar. Não queria que ela me visse chorando antes de partir, mas não pude evitar. Doía muito, por dentro e por fora. Ela soltou seu último sopro de vida, sem nem mesmo terminar a pequena declaração de amor que tinha para mim. Mas eu sabia que ela me amava, assim como eu a amava também.

Eu chorei ainda mais enquanto gritava para que ela não me deixasse sozinho. Implorei continuamente para que ficasse comigo, engasgando em meio as minhas palavras e soluços.

Há um ditado entre o povo que dizia que as mulheres são fracas, mas as mães são fortes.

Eu nunca acreditei que mulher alguma fosse fraca.

Eram tão fortes quanto qualquer um daqueles guardas fardados que volta e meia nos ameaçavam com seus armamentos pesados. Mulheres não precisavam de tanta agressividade desmedida se podiam mudar o mundo com a delicadeza de uma flor. Eram corajosas a partir do momento em que nasciam, pois sabiam que teriam que enfrentar muitas coisas durante toda sua vida.

Ser mãe nada mais era do que um adendo a toda essa esplendorosa coragem. Era proteger alguém como parte de si, era ter de aguentar tantas provações e ainda assim sorrir ao mínimo gesto de seu filho.

Ser mulher já significava ser forte.

Porque são fortes ao lutar todos os dias ao se levantar, viver da forma que fosse e ainda conseguir ver beleza em tantas coisas. Fortes ao manter a cabeça erguida mesmo quando as impeliam a abaixar.

Minha mãe era meu porto seguro, aquela que eu me agarrava quando tudo parecia insuportável de lidar.

Sehun disse uma vez que Deus operava milagres. Naquele dia eu pedi por um, mas ele não veio.

������

Era uma noite qualquer quando Sehun disse que queria ver as estrelas. Ele parecia fissurado naqueles pontos de luz logo acima de nossas cabeças. Sabia que não era certo, nosso horário de recolher começaria dali a algumas horas. Depois de tanto tempo o acompanhando, passei a me questionar sobre muitas coisas.

O que é certo e o que é errado?

Certo e errado pareciam apenas duas palavras no qual se adaptavam a conveniência alheia. Na minha realidade, a única conveniência válida era a do governo. O quanto era errado matar seus cidadãos por motivos fúteis como assistir a um filme de Hollywood ou ouvir uma música pop? Para eles era certo, não era?

Se a morte era certa para o povo, então o que era errado?

Questionar tudo isso já era um enorme erro. Nosso país se denominava uma república democrática, mas nunca houve democracia. Havia um controle de poder, um controle até mesmo da nossa humanidade.

Algumas vezes, jornalistas e turistas apareciam para visitar o país. Todos eram proibidos de conversar com um de nós. Antes eu não entendia o motivo, achava que era somente para nos proteger. Mas a verdade é que não querem que nos vejam como realmente somos.

A imagem que mostram é de uma perfeição sem limites, nos criam para ser obedientes, reprimem qualquer opinião própria a ser formada. Na escola, crianças eram obrigadas a ler mais e mais livros sobre a ditadura da Família Kim ao invés de simplesmente poderem brincar umas com as outras.

Eu nunca nem mesmo havia tocado em qualquer outro livro que não fosse fortemente censurado pelo governo e toda sua ambição em nos controlar como ovelhas. As folhas pareciam vazias, mesmo contendo um número grandioso de letras.

Não havia arte alguma em nenhuma daquelas palavras tão repressivas.

Supostamente, tínhamos orgulho de nossa pátria. Enaltecíamos o fato de o governo ser tão cuidadoso conosco, amávamos a Kim II-Sung, porque ele era a origem de todos nós. O nosso verdadeiro pai, fazendo com que todos nós fôssemos uma família. Éramos perfeitos cidadãos de bem para qualquer um do lado de fora daquelas fronteiras tão fortemente bloqueadas militarmente. 

Tudo não passava do mais puro teatro, onde as pessoas nada mais eram do que peões posicionados em lugares estratégicos. Não havia nada além de dor e medo naquele mundo em que vivíamos. E tiravam proveito da nossa fraqueza, da nossa angústia… Da nossa incrível capacidade de sermos humanos.

Queriam tirar a única coisa que sobrara, queriam tirar nossos pensamentos e ideais.

Tinha medo de pensar, o tempo todo acreditava que pudessem ler minha mente. Incentivavam a todos nós para que nos sentíssemos assim, para que vivêssemos com receio das coisas mais simples. E eu sentia receio quando Sehun me arrastava para nos escondermos entre aquela vegetação seca depois de termos ouvido ruídos tão perto. Acreditei ali que seríamos pegos.

— Fique quieto.  — Ele cochichou em meu ouvido.

Curvei meu corpo mais para o lado, querendo ver o que acontecia à minha frente. Sehun também encarava a cena, mas parecia impassível, como se estivesse acostumado com aquele tipo de coisa. 

Um homem e uma mulher passavam pelo rio apenas de roupas íntimas. Haviam sacolas nas mãos, a mulher também carregava uma mochila em suas costas. Atravessaram rapidamente, haviam outras pessoas esperando do outro lado da margem.

— Quanto vai pagar nela? — Indicou a moça que se vestia.

— Qual a idade da porca? — Um dos homens perguntou.

— Vinte. — Respondeu. — É de primeiro grau.  

Eles falavam baixo enquanto negociavam um preço da moça que tremia com o vento frio da noite. Estava escuro, mas conseguia ver as feições de desespero dela ao ser tratada daquele modo. Era assim que tratavam uma mulher, como um porco à venda.

Passei a me perguntar qual era o preço de uma vida. Quanto valia tudo que alguém era? Aquela moça realmente valia alguns dólares trocados na beira de um rio?

Para mim, uma vida nunca deveria nem sequer pensar em ser calculada. Não tinha valor algum e ao mesmo tempo tinha todos. Era algo que nunca seria descoberto, pois era tudo tão incerto. Todo o nosso mundo era composto de uma incerteza tão certa.

Morte ou vida?

Queria saber se bastava escolher um dos lados da moeda e lançá-la a própria sorte, queria entender se era assim que nos consideravam. Como porcos acomodados ao pouco farelo que nos davam.

Soltei um soluço dolorido quando vi a mulher ser arrastada violentamente pelo braço. Meus olhos arregalaram-se ao ver que os homens ouviram aquele mínimo barulho e se encaminhavam para onde estávamos. Sehun me puxou com força, fazendo com que tropeçasse em meus próprios pés enquanto corria junto a ele.

Nós dois fugimos, acovardados pelo medo de perder nossas tão miseráveis vidas. E eu corria tão rápido, com tanto desespero em sair dali, que nem mesmo preocupei-me com outra coisa além disso. 

Eu não era como um porco, eu era como um rato. Aquele que se esconde quando se sente em perigo, que não encara nenhuma das realidades da vida. Usava a desculpa de não poder fazer nada, quando eu simplesmente podia fazer tudo.

Sehun encostou seu corpo na parede da casa pequena em que eu morava, a luz da Lua entrava pela janela e iluminava fracamente o local. Os pés esticaram-se a sua frente, a respiração parecia muito difícil de se controlar. Não poderia dizer nada, me encontrava no mesmo estado. Estático, cansado e com medo.

— O que estava acontecendo? — Perguntei, minha voz tremulando enquanto puxava o ar.

— Estavam vendendo pessoas. — Respondeu. — Vendendo uma mulher para se prostituir em troca de uma liberdade.

— E isso é liberdade? — Neguei com a cabeça.

— É só a ilusão de uma. — Os lábios finos tremiam. — É só uma falsa ideia de que saindo daqui conseguirá ser livre, mas ela ainda vai ter que passar por muitas coisas até finalmente conseguir.

— Como sabe de tudo isso? — O encarei.

— Viu aquele homem que a levou, não viu? — Assenti com a cabeça. — Era meu pai. É assim que sei de tudo isso, é assim que consigo todas essas coisas ilegais… É assim, Jongin.

As lágrimas de Sehun caíram uma a uma, receosas e desacostumadas.  Elas continham tanta dor, tanta mágoa, que me partia o peito ter de vê-las. Ele nunca tinha chorado em minha frente, aquela foi a primeira vez.

Naquele dia eu me perguntei o quanto Sehun já devia ter chorado quando estava sozinho, o quanto aquelas gotas salinas queimaram em seus olhos antes de escorrer pelas bochechas avermelhadas. Me perguntei qual era o tamanho de sua dor, e se ela realmente tinha tamanho. Se ela doía tanto ao ponto de não poder nunca ser medida.

— Eu estou tão cansado, Jongin. — Ele escondeu o rosto nas mãos. — Tão cansado…

— Não chora… — Rastejei até o outro lado, abraçando seu corpo entre meus braços. — Não chora, por favor. Não chora…

Eu não queria que ele chorasse, porque aquilo me fazia chorar também. Não queria vê-lo chorar, ele era meu porto seguro. Se as suas muralhas desmoronassem, as minhas iriam junto às dele. Se ele fraquejasse, eu cairia. Porque me apoiava a ele sem nem mesmo deixar que ele se apoiasse em mim de volta.

Sehun carregava o mundo nas costas, carregava o seu fardo e o meu. E eu soube ali que era egoísta.

O apertei mais forte, meus lábios se entreabrindo para cantarolar a canção que ouvíamos quando não havia ninguém para atrapalhar. O balancei lentamente, criando um ritmo lento para que ele pudesse esquecer seus pesadelos e voltar a dormir.

Quando olhei seus olhos marejados, vi a mim mesmo. Vi meu reflexo naquelas lágrimas tão puras e límpidas, vi todos os meus erros. Ele era um espelho que me mostrava quem eu era a cada segundo em que estávamos juntos. E me olhando ali, soube que ignorar tudo o que acontecia não me fazia viver. Muito pelo contrário, aquilo me fazia querer morrer. Ignorar me fazia covarde.

Sehun dormiu em meus braços, acalentado por um carinho que nunca teve. Ele era só uma criança, assim como eu era. Uma criança que já tinha visto muito do mundo e toda podridão que há em um ser humano.

Ele dizia que Deus escrevia certo por linhas tortas. As nossas linhas eram tortuosas em todo o momento, mas era isso que as fazia tão certas.

Não me lembro exatamente como, mas também adormeci.

������

Havíamos saído do colégio há uma hora atrás. No auge dos meus dezessete anos, sentia meu corpo queimar depois da corrida que apostamos quando já estávamos longe dos guardas da cidade. Era bom correr, fazia com que me sentisse livre e voasse como um pássaro.

Sehun parecia cada dia mais alto, adquirindo um rosto maduro e frio demais para sua idade. Ele era como uma muralha impenetrável, mas quando estava comigo, tendia a sorrir. Pouco, mas sorria. Abria suas cortinas para que eu pudesse vê-lo por brechas na escuridão em que se encontrava.

Era estranho a forma com que tudo parecia mágico em nossos próprios mundos particulares. Sehun não tinha medo de nada, eu tinha medo de tudo. Tinha medo de pensar, de falar, de ver e de ouvir. Tinha medo de ser quem eu realmente era, tinha medo de mudar.

 Ele gostava de mudar, gostava de deixar seus cabelos escuros cortados de forma irregular. Gostava de usar sua blusa uniforme para fora da calça e deixar alguns botões abertos. E eu, bem… Eu era comum. Não havia nada em minha aparência que fosse especial, meus cabelos eram cortados retos e jogados em meu rosto. Meu uniforme era vestido impecavelmente, sem nenhuma parte fora de seu devido lugar.

Ele era lindo, o que fazia com que as garotas o olhassem admiradas quando ele passava por aqueles corredores silenciosos demais para adolescentes. Sehun não estava interessado em nada, a sua expressão de tédio parecia igual todos os dias. Mas naquele dia em especial, seus olhos estavam brilhantes. Tão calorosos quanto o Sol lá fora, irradiando toda aquela luz até mim. Fazendo minha pele queimar com a proximidade que existia entre nós.

Estávamos em sua casa, e ela parecia ainda mais simples do que a minha. Tudo que nos tomava era singelo, talvez nós dois mesmos fôssemos. Mas para mim, ele nunca fora algo descomplicado. Sempre fora algo totalmente difícil de se entender.

Sehun pensava demais, enquanto eu pensava de menos. As vezes ele também agia em impulsos, entretanto eu estava para segurá-lo. As vezes ele era razão, mas logo depois era sentimento. Acho que também era assim, ainda sou.

Ele me mostrava orgulhoso todas aquelas fitas de música que conseguira surrupiar de algum estrangeiro. Conseguia enganar facilmente os guardas com aquele rosto impassível de quem não quer nada. Era cômico a forma com que ele sorria ao contar tudo aquilo. Ele não devia sorrir, porque se fosse pego estaria morto em poucas horas. As pessoas ali morriam por muito menos, mas Sehun parecia não se importar com nada daquilo.

Não queria saber se acabaria num campo de trabalho forçado ou com uma bala em sua cabeça antes do anoitecer, ele só queria ser livre em seus padrões tão mínimos de liberdade.

Liberdade para ele era quebrar as regras. Todas, uma por uma. Não posso dizer, nem mesmo hoje, que não lhe dava razão. Era uma sensação de realização que nos abatia a cada momento em que fazíamos algo errado. Errado para eles, não para nós.

— Sehun, isso é o que? — Perguntei pela enésima vez no dia. — Esse negócio azul aqui dentro do plástico.

— Não mexa nisso. — Seu rosto adquiriu um ar sombrio. — Não é algo que você deva se meter.

— Eu só estava perguntando. — Encolhi-me um pouco, ele nunca havia sido rude daquela maneira.

— Desculpe, Jongin. Eu só… — Ele suspirou pesado vendo aquele pequeno pacote dentro do baú sujo. — Não quero que você entre nisso tudo. Não quero te sujar com nada, você só precisa ser como sempre foi.

— Você já parou para pensar que eu não quero ser como sempre fui? — Elevei meu tom de voz pela primeira vez desde que o conheci. — Não quero mais ver as coisas acontecerem sem poder fazer nada.

— E o que nós podemos fazer? Somos tão desgraçados quanto todo o resto. — Bufou irritado.

— E você quer que eu feche meus olhos e finja não ver? — Gritei ainda mais alto, vendo seus olhos abrirem-se espantados. — Eu estou cansado disso tudo, de ser um covarde. Nós só pensamos em salvar nossas miseráveis vidas enquanto todo o resto sofre, até mesmo mais. Somos bem mais egoístas do que achamos.

Ele se silenciou enquanto em meio a raiva eu desejava palavras que comumente não dizia. Me calava perante a muitas coisas, talvez esse sim fosse o meu grande erro. Aceitar e não reclamar, apenas ouvir e nunca dizer. Eu queria que o mundo fosse um lugar melhor, mas nunca fiz nada para mudá-lo. Nunca nem mesmo tentei mover um sequer dedo para ajudar quem tanto clamava por socorro.

Quando me olhava no espelho do pequeno banheiro de casa, via coisas que não queria ver. Via um Jongin que não queria ser daquele modo, deixando que meu coração e mente partissem-se em mil pedaços.

A música que nós ouvíamos sempre que conseguíamos ecoou no cômodo pequeno. As paredes reproduzindo o som como um eco distante e suave. Sehun me olhava como se pedisse desculpas por algo que ele nem mesmo tinha culpa.

Ou talvez a culpa fosse de todos nós. Seres humanos foram feitos para falhar.

— O que é isso? — Apontei para um objeto depois de um longo tempo.

— Isso é uma bússola. — Respondeu baixo, com receio de que eu brigasse consigo de novo.

— Para que serve? — Observei curioso enquanto ele tomava aquilo nas mãos.

— Consegue ver essa seta apontando? — Perguntou, me vendo acenar com a cabeça. — Ela aponta para o norte, como um guia. Se você se perder, olhe para ela até que encontre seu caminho novamente.

Ele passou o objeto para minhas mãos. O ponteiro parecia tremular sobre onde seguir, mas finalmente parara. Segui com os olhos para onde ele apontava, sorrindo abertamente ao notar.

— Aponta para você. — Disse. — Então você é meu Norte, meu guia.

— Não diga essas coisas. — Rebateu com um constrangimento que não lhe era comum.

— Por que não? — Quis saber.

— Porque as pessoas podem ver isso como algo ruim. — Concluiu por fim.

— Não tem ninguém aqui, então por que eu realmente não posso dizer? — Insisti. — Foi você quem disse que ela apontava para o meu caminho, não eu.

Ele virou-se abruptamente, assustando-me um pouco de começo. Seus olhos pareciam mais escuros e penetrantes do qualquer outro dia, não estava acostumado com aquele olhar. Ah, Sehun tinha muitos olhares…Aquele, bem, era um olhar estranhamente desejoso.

— Porque eu me sinto constrangido. — Ele aproximou-se em passos curtos. — Porque eu não sei o que fazer quando você diz essas coisas, porque eu não sei o que eu estou sentindo nesse momento… Porque eu nem mesmo sei o porquê.

O ar quente escapou por entre meus lábios, atingindo seu rosto. Ele respirava tão pesadamente quanto eu, e aquilo parecia tão errado. Mas eu era errado e ele também, nós nunca fomos certos nos padrões de medidas sociais.

Eu gostava de ser errado. Talvez a adolescência fizesse aquele tipo de coisa comigo, mas hoje acho que nunca fora só isso. Eu o amava mesmo sem saber exatamente o que era amor. O amava ao desejar que ele me beijasse mesmo nunca tendo feito aquilo.

E ele me beijou. Meus olhos abriram-se em surpresa, deixei passivamente que ele tomasse minha boca na sua. Nunca havia entendido bem como tudo aquilo funcionava, nós não éramos feitos para amar ninguém além do nosso líder.

Minha concepção de erro parecia completamente certa naquele momento. Quando ele me tocava tão gentilmente, acariciando meus braços com suas mãos finas. Se Sehun era errado, cometeria erros durante toda a minha vida apenas para poder estar com ele.

— Eu tenho juntado dinheiro durante algum tempo. Sabe, com as coisas que vendo… — Falou quando nos separamos daquele contato tão repentino. — Nós devíamos fugir juntos.

— Para onde? — Questionei incerto.

— Qualquer lugar que você queira ir. — Ele tirou alguns fios da minha testa. — Só precisa dizer.

— Não me importo com o lugar desde que você esteja comigo. — Respondi.

Ele me sorriu, mas não entendi o seu sorriso. Havia uma mistura enganosa de sentimentos enquanto aqueles lábios se levantavam levemente. Talvez fosse uma tristeza tão docemente contida, que nem ao menos meu deu a chance de perceber.

Se aquilo era errado, nós mudaríamos tudo até que se tornasse certo.

������

O céu era um breu, como se houvessem tirado todas as estrelas das quais sempre admirávamos durante horas a fio. As nuvens pesadas rodopiavam logo acima, os barulhos estrondosos de trovões ecoavam em meus ouvidos.

Nós iríamos finalmente embora daquele lugar.

Depois de tanto tempo tentando juntar algum dinheiro, Sehun disse ser o suficiente para conseguirmos sair de lá. Ele me dizia que estava tudo bem e que poderíamos ser livres. 

Naquela noite tão tempestuosa, atravessávamos aquele rio pequeno, mas que parecia imensamente grande quando tínhamos medo de ser pegos a qualquer momento. Meus lábios arroxeados pelo frio tremiam enquanto a água chapinhava em nossas pernas. Dera-me uma mochila de tamanho um pouco pequeno considerando éramos dois, e que nunca mais iríamos voltar. Quando o questionei sobre aquilo, ele simplesmente disse que era para podermos correr com mais facilidade.

Sehun mentia as vezes, talvez mentisse o tempo todo. Ele mentia para mim tão lindamente, que me prendia a acreditar que era uma verdade.

Havia um carro do outro lado da margem. Era velho e sujo, mas chegara ali de forma tão silenciosa, que parecia ser suficientemente bom para levar-nos sem chamar nenhuma atenção.  Sehun dava toda aquelas notas para o homem que nos tiraria de lá. Aquele dinheiro fora ganho com tanto custo por ele, e eu simplesmente aceitava o que ele tinha a me dar. Deveria ter o ajudado, mas tinha a péssima mania de me acomodar.

E disso eu me arrependia. Todos os dias da minha vida eu me arrependia de não ter lutado para ganhar o mundo junto a ele. Me arrependia amargamente por ser daquele modo.

Eu sabia que algo estava errado desde o momento em que saímos tão silenciosamente quanto chegamos. Sabia, mas preferi fingir que não, eu sempre preferia fechar meus olhos para o que acontecia.

Se eu tivesse notado o que Sehun faria, teria sido diferente?

Não deveria me prender a nenhuma incerteza, no entanto, o que me acometia era totalmente minha culpa. Queria dizer desculpas tão carregadas de culpa, mas ele não poderia me ouvir.

Quando ele se aproximou, tomando minhas mãos entre as suas, soube que todas as minhas tão grandes dúvidas tinham confirmação.

Os olhos de Sehun nunca mentiram, mesmo quando suas palavras diziam o contrário.

— Pode se virar para trás ao menos um minuto? — Ele pediu ao homem que esperava impaciente.

O homem concordou com a cabeça, afastando-se alguns passos e entrando no carro velho parado em meio aquele nada em que vivíamos.

— O que você está fazendo? — As lágrimas rolavam pelas minhas bochechas sem controle algum.

— Me despedindo de você. — Limpou duas delas com seus dedos finos e machucados.

Quando ele me beijou, aquele tão grandioso universo que ele insistia em dizer fez sentido. O universo era Sehun, eram seus lábios pressionando os meus enquanto suas lágrimas e as minhas se fundiam naquele beijo com gosto de adeus.

Era como se fosse primeira e também a última vez em que ele me tocaria daquele modo. Eu me derretia em seus braços como a chuva fina que caía naquele céu tão carregado, a luz da Lua iluminando pouco daquele breu em que estávamos.

E me sentia como aquele céu noturno e sem estrelas, com nuvens escondendo qualquer nuance de brilho que pudesse haver em meu ser. E ele só brilhava com Sehun, meus olhos só refletiam tudo o que ele me dava, porque eu não tinha nenhuma luz própria.

Sehun era Sol, eu era Lua. Sem ele eu nada mais seria do que algo opaco e sem vida. Mas ele estava desistindo de radiar para deixar que eu pudesse brilhar.

— Não me deixe ir sozinho. — Chorei ainda mais, com meus lábios tremendo sob os seus. — Prometeu que seríamos livres juntos.

— E fomos. — Sorriu doce. — Seu beijo tem gosto de liberdade.

— Você é um mentiroso! — Aumentei o tom de voz, não me importando em ser pego a qualquer momento. — Mentiroso!

Eu me debatia cada vez mais enquanto ele me apertava um abraço desajeitado, querendo silenciar os meus soluços. Doía demais ser livre sozinho, era apenas uma sensação, era ilusão. Liberdade só faria sentido se houvesse alguém ao seu lado, mas ele não iria comigo alcançar as estrelas.

— Me desculpe, Jongin. — Sussurrou. — Me desculpe…

Ele empurrou-me no banco traseiro do carro, as mãos gentis tentando parar meus surtos tão agressivos. Era suave mesmo que eu não fosse, tocava-me com delicadeza enquanto eu apenas o machucava. A porta bateu com um barulho seco, o vidro sujo mostrava o rosto borrado de Sehun do outro lado. Tentei a todo custo abrir a porta, quebrar a distância tão pequena que existia entre nós, mas nada parecia funcionar.

O destino insistia em nos separar, deixando com que nossa vida e morte fossem apenas mais uma de suas brincadeiras. Éramos reencontros e desencontros nessa linha tortuosa em que nos empunham.

Sehun dizia que o mundo era grande demais, mas ele estava enganado, porque meu mundo estava do lado de fora daquele carro que fazia a poeira escura levantar. Meu mundo chorava lá fora, tremendo com a chuva e talvez com o frio que sentisse interiormente.

Meu mundo era ele e eu, por mais que todo o exterior nos ferisse.

Viver naquele lugar era um sofrimento, a única saída era constantemente desejar a morte. Mas, estranhamente, Sehun parecia a vida que florescia em meio ao caos. A minha vida após a morte que sentia todos dias enquanto via aquela falsa ideologia de mundo me abater.

Era uma revolução que acontecia em sentimentos tão contrários. Era um apocalipse em meio a uma paz tão calma.

Eu amava meu mundo, amava todo o exterior e o interior dele. Amava porque era o único mundo em que conhecia e poderia ter, mas ele sabia, desde o início, que esse mundo era grande demais para se prender. Grande demais para ser esquecido e desconhecido.

Talvez Deus nem mesmo existisse, no entanto, crer em algo nos fazia humanos. E eu e ele éramos humanos ao ponto de nos quebrar em cacos por conta de tudo em que vivíamos.

Talvez em uma outra vida e em um outro lugar, Deus finalmente seria justo conosco. Ele faria o milagre cujo qual eu tanto pedira com fé.

Eu acreditava num paraíso.

Aquela foi a última vez em que encontrei-me com Oh Sehun.

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Pisquei meus olhos em meio aqueles flashes tão absurdamente luminosos. Doía, mas era necessário encará-los até que pudesse acabar de contar tudo o que sempre guardei junto a mim. Minha visão estava um pouco borrada e a voz falha, no entanto, ainda era o suficiente.

Naquele momento tinha a voz que nunca tive.

— Eu finalmente consigo falar, não só por mim, mas por todos os outros que ainda não tem nenhuma voz. Não somos livres, mesmo quando estou aqui agora, ainda me sinto preso a aquele lugar.  — Respirei fundo mais uma vez. — Nascer na Coreia do Norte é algo que lhe marca a vida toda, porque desde cedo somos ensinados a sentir medo. Eles não querem que respeitemos nosso líder, querem que nós temamos a ele. Não há nenhuma história de amor que eu possa lhes contar, nada além de algo propagando ainda mais a ditadura da família Kim.

Me calei, limpando as lágrimas que insistiam em escorrer enquanto todos esperavam pacientemente. Pareciam interessados em tudo que eu disse e no que ainda tinha a dizer, mas só agora, nunca antes. Quando precisávamos, ninguém nunca ouvia. Éramos ignorados apenas porque a mídia não dava atenção suficiente a histórias tão miseráveis de norte-coreanos.

Mas aquela era a minha única chance de fazê-los mudar.

— Buscamos por liberdade, morremos sem nem mesmo atingir nossos objetivos. Não podemos nem mesmo duvidar do que acontece à nossa volta, porque isso pode fazer com que famílias sejam mortas antes mesmo do fim do dia. — Era doloroso ter de relembrar tantos momentos ruins. — E mesmo quando consegui fugir, não foi fácil para chegar até aqui. Quando chegamos a China, vi tantas coisas acontecerem e me acovardei perante a elas. Há muitos refugiados norte-coreanos na China. Mulheres, muitas vezes jovens demais, sendo vendidas e estupradas por homens que ameaçavam a todo tempo mandá-las de volta. E elas sabiam que se voltassem, iriam morrer. Eu tinha medo de voltar, era só um garoto tentando desesperadamente sobreviver.

Respirar parecia tão difícil naquele momento. Eu não queria relembrar tudo que passei ao longo daqueles anos, era uma dor que tentava esconder a todo custo dentro do meu ser, mas era impossível deixar que ela se fosse.

Eu era quem era apenas por ter vivido tudo aquilo. Quando sofremos, sobrevivemos. E sofri, sofri durante tanto tempo que talvez nem mesmo saiba mais o que não é sofrer.

— Foi um longo caminho para conseguir sair da China. Eu estava com um grupo de refugiados onde um missionário de uma organização nos ajudava a conseguir chegar até a Coreia do Sul por outra rota. A viagem é longa, temos que atravessar toda a China até chegar em Bangkok, na Tailândia. Se chegarmos até lá vivos, poderíamos ir para a Coreia do Sul. Nesse caminho, enfrentamos tantas coisas… Tanto medo de ser pego e levado de volta para algum campo de trabalho forçado ou ir direto para a execução. Preferíamos morrer do que voltar, porque queríamos viver como humanos e não como um lixo a ser descartado. — Tinha de dizer a pior parte, aquela que até hoje me fazia chorar a noite entre os lençóis. — Consegui fugir por um sacrifício de alguém que sempre julguei como egoísta, eu mesmo me julgava como um. Alguém que desistiu da própria liberdade para dá-la a mim, que queria que eu redescobrisse todo o mundo que esse alguém nunca poderia conhecer. E nem pode mais… Nunca mais. Esse alguém foi descoberto no dia em que me ajudou a escapar e foi levado para um campo forçado enquanto esperava por uma execução. Durante tantos anos eu procurei saber sobre essa pessoa, tanto tempo que eu tentei procurá-la inutilmente, porque ela já não estava mais lá. Eu disse desde o começo que isso nunca seria uma história de amor, porque é algo tão real e trágico, que nem mesmo tudo o que eu fizesse poderia torná-la doce.

Oh Sehun era só uma imagem perdida em minha mente conturbada enquanto tinha pesadelos durante as noites. Não havia consolo algum para o meu estado, ele não iria mais voltar. Ele não iria mais aparecer com seus olhos enigmáticos ou seus meios sorrisos. Não me chamaria para ver as estrelas em momentos inesperados, não me convidaria nunca mais para errar junto a ele. Não me tocaria nunca mais com seus lábios doces e suas palavras gentis.

Sehun não me mostraria mais a arte de suas poesias que nunca rimavam, por mais que eles as reescrevesse. Não haveria mais nenhum “sinto muito”, que nunca realmente sentia, escapando em sua voz tão baixa.

Mas agora nada daquilo faria sentido...Porque Sehun se fora. Se fora e me deixara sozinho naquela tão grande imensidão do universo, tão solitário quanto aquelas estrelas a centenas de anos-luz umas das outras.

— As pessoas tendem a achar que nunca podem ajudar as outras, mas todos podemos. Não ignorem quando lhe pedem ajuda, não debochem do apelo tão desesperado de alguém. Mesmo que você o considere mínimo, para a outra pessoa pode ser algo grandioso e que a destrói por dentro. Vocês podem nos ajudar também, de muitas e muitas formas. Eu gostaria de citar ao menos algumas. — Encarei todos os olhos e câmeras que me monitoravam tão atentamente. — Criem consciência da crise de Direitos Humanos na Coreia do Norte e em vários outros lugares. Ajudem e apoiem refugiados quando eles tentam escapar, não temos como nos adaptar a tudo tão abruptamente, então peço que nunca nos discriminem por isso. Façam uma petição à China para impedir que levem os refugiados de volta a Coreia do Norte.

As vozes pareciam sussurrar coisas entre si. Meus olhos percorriam as cadeiras cheias de pessoas tão bem vestidas e importantes. Aquilo não era sobre influência ou quem tinha mais poder, era uma questão de humanidade em que qualquer um, na sua simplicidade, poderia ajudar.

— Há muitas pessoas sendo esquecidas, nenhum ser humano merece ser tão subjugado dessa forma. O que lhes peço não é muito, é pouco se comparado a tudo que acontece. Eu tenho um desejo simples de liberdade, de mudança. Olhem-se no espelho e pensem em tudo que vocês podem fazer para mudar a vida de uma pessoa, pensem que podem começar mudando por si mesmos. Vejam suas atitudes e corrijam todas elas. Pensem que são as pessoas mais influentes de seus mundos, que podem sim fazer um simples gesto e ter empatia por alguém. O mal da humanidade nunca foi errar, e sim persistir em seu erro. — Orgulhei-me de minha voz sair tão alta e clara naquele momento. As lágrimas já pareciam secas em meu rosto. — Quando você está em uma situação como a em que eu estive, você pede desesperadamente para que alguém lhe ajude. Eu achava que ninguém no mundo se importava, mas vocês ouviram tudo o que eu tinha a dizer. Muito obrigado.

Sehun queria que eu redescobrisse aquele mundo que nunca nem mesmo chegara a descobrir, queria eu fizesse aquilo por ele e por mim. E eu faria, faria bem mais do que pensava que conseguiria. Expandiria todo nosso mundo para que as pessoas o conhecessem.

O princípio de tudo éramos nós mesmos. Sabia que o mundo estava constantemente em mudanças e que aquilo era algo que eu não poderia evitar e nem mesmo queria.

Mas, hoje, quando olho-me no espelho, vejo ninguém menos do que Kim Jongin.  

 


Notas Finais


Então, foi isso. Eu sei que não ficou muito bom, mas espero que pelo menos a mensagem tenha sido passada. Nós podemos sim mudar o mundo, mas comecem a mudança por si mesmos. Olhem pra vocês e pensem em tudo que podem mudar.
O depoimento: https://www.youtube.com/watch?v=ZKLjo2sgEfg
Também vi alguns documentários para escrever,se alguém quiser é só me dizer.
Xoxo


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