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História Safe And Sound - Lista de afazeres


Escrita por: MxrningStar

Notas do Autor


Olá, minha gente. Tudo certo com vocês?
Bom, sem me alonga, bora direto pro capítulo de hoje e sobre ele: testes atrás de teste.

Boa leitura!

Capítulo 26 - Lista de afazeres


- Bom dia, Benê!

Bem que Benedita havia acordado com aquela sensação de que algo muito estranho estava acontecendo no mundo. A prova foi que se deparou com uma mesa de café farta pronta para recebe-la e Heloísa displicentemente carregando uma vassoura e um balde no meio da casa. E não eram nem oito da manhã ainda.

- Lica, você está bem? – perdoem, mas ela tinha que perguntar.

- Estou. Por que? – estranhando a pergunta, Lica colocou um biquinho fofo na cara e se virou para a amiga – Algum problema?

- Você acordou cedo, preparou o café e está começando uma faxina. Esse é o problema.

Claro, tinha que ser. Lica devia esperar por aquilo, mas em lugar de se chatear com a previsibilidade de seus atos e da reação da amiga diante deles, ela preferiu só ignorar e seguir em seus afazeres. Admitiria: acordar cedo e pegar no pesado em casa realmente não era muito de seu feitio.

Colocou um sorriso no rosto.

- Estou de boa, Benê. Só... acordei disposta – e se pôs a cantarolar enquanto começava a varrer o chão.

E disposição era tudo que ela tinha no corpo. As últimas noites que passara na casa de Samantha, mais precisamente na cama dela, lhe esgotavam fisicamente ao mesmo tempo que lhe revigoravam a alma. Dormir de conchinha com a namorada, senti-la tão próxima de si poder se aquecer no calor que emanava do corpo dela era tudo que Heloísa poderia pedir na vida e, graças aos céus, era tudo que vinha tendo. Não foi à toa que acordou se sentindo de bem com o mundo naquela sexta-feira. Passara a tarde e a noite anterior com Samantha. Só podia acordar se sentindo o melhor ser humano do mundo mesmo.

Estranhando, mas se rendendo ao cheiro do pão quentinho, Benedita se acomodou à mesa no exato momento em que Keyla passou pela porta.

- Bom dia... eu trouxe o café, acabei de passar – anunciou como era de praxe e o cheiro da bebida invadiu o ambiente – Lica...?

- Sério que todo mundo vai fazer essa cara de susto só porque eu estou varrendo a casa? Sim, eu estou varrendo a casa, comprei pão e bolo, preparei uma salada de frutas e ainda esquentei o leite isso antes das oito da manhã. Mais alguma coisa? – e abriu os braços ligeiramente indignada.

- Sim. Você está bem? – Keyla indagou.

- Vai se catar, Keyla Maria.

- Ah, já sei – a amiga cantarolou e rumou para a mesa do café onde Benê já se servia de uma fatia de bolo – O que o sexo não faz na vida de uma pessoa.

- Ah, vai começar – Lica revirou os olhos.

- O que o sexo tem a ver com a Lica estar de pé tão cedo? – Benê realmente não tinha entendido – Ela está fazendo isso porque é do sexo feminino? Não entendi.

Keyla riu pelo nariz.

- Não, Benê. Não é exatamente esse tipo de sexo. Estou falando de ela e a Samantha terem fo....

- Parou! – Lica alteou a voz para calar a amiga – Chega de ficarem dando conta da minha vida. Eu acordei cedo, a mesa de café está toda aí, só comam e me deixem na minha arrumando minha casa.

- Pegou ar – Keyla debochou.

- O ar não se pega, Keyla. Se respira. Não tem como a gente pegar ar, porque ele não é matéria – mais científica que isso, impossível. Benê pontuou sabiamente.

- Eu vou arrumar meu quarto – Lica soltou um muxoxo e seguiu para o quarto, mas no meio do caminho deu seu recado – Você deviam agradecer meu bom humor matinal.

- Vai se catar! – Keyla devolveu sem nem desprender a atenção de sua salada de frutas. Ela merecia mais que as coisas deHeloísa.

E por falar em “coisas de Heloísa”, naquela tarde ela teria uma. Na verdade a coisa mais importante em sua vida naquele momento. Marcara com Bóris às quinze horas na Base Aérea para tratar de seu exame psicotécnico. E como combinado há dias, levaria a namorada junto. Samantha fizera questão de estar com ela, Lica que não se negaria. Era companhia das melhores.

E esse compromisso talvez explicasse um pouco também do acordar cedo daquele dia e da mesa de café impecável às sete e meia da manhã. Inquietação talvez fosse o melhor nome. A despeito da noite agradabilíssima que tivera com Samantha, Lica dormira em casa porque queria manter um pouco os pensamentos em ordem e ter a namorada nua ao seu lado na cama não ajudaria muito nisso. E mesmo com as insistências dela, Heloísa decidira ir.

Só que não conseguiu pregar o olho muito bem, não com a regularidade que o fazia mesmo quando seu sono era interrompido por desastres aéreos em loop acontecendo dentro de sua mente. Esperava que a conversa com Bóris fosse esclarecedora. Esperava poder conseguir tirar todas as suas dúvidas e dizimar todas as incertezas que ainda insistiam em lhe rondar quando o assunto era seu futuro profissional na Aeronáutica. E Lica esperava mesmo que ele fosse dentro da corporação e não fora.

- Lica, vem cá. Me deixa te fazer uma massagem. Você está tensa demais, meu amor – Samantha lhe dissera na noite anterior. A massagem acabou virando uma transa para lá de gostosa com direito a repeteco porque só assim para Lica conseguir atingir o nível de relaxamento de que precisava.

Foi para casa achando que seria melhor para colocar as ideias no lugar. O resultado: conseguiu tudo, menos colocar as ideias no lugar. Acordou cedo, preparou uma mesa farta de café, resolveu arrumar a casa... tudo para se entreter e aliviar aquela inquietação.

A verdade era que estava nervosa e bem ansiosa. E a Base Aérea não era exatamente o único motivo. Os outros dois, eles tinham nome, sobrenome e a filha mais linda do mundo.

Samantha fora clara: Pietro e Maristela Lambertini desembarcariam em São Paulo na semana seguinte, na quarta-feira. Na sexta, dali a uma semana, provavelmente aconteceria o tal jantar de apresentação oficial de Lica para os futuros sogros. Se ela estava nervosa? Imagina... ela estava era querendo correr fugida mesmo. Ou se esconder. Quem sabe se roubasse um dos trajes das tropas do Exército e ficasse paradinha na entrada do prédio de Samantha, pudesse ser confundida com um arbusto e passar sem ser notada.

Achou por bem começar uma lista das coisas que deveria pensar antes desse jantar. Quando riscasse o item “Base Aérea-Psicotécnico-Samantha/Bóris”, teria que acrescentar “roupa, cabelo, maquiagem e o que dar de presente para os sogros”. Não poderia chegar para jantar com os pais de sua namorada parecendo a Lica de todo dia e muito menos de mãos abanando.

Um vinho seria uma boa opção, se os dois não fossem donos de uma vinícola que exportava para meio mundo de país. Seria lindo presentear os sogros com um vinho produzido por eles mesmos ou, pior, com o vinho errado para a ocasião e passar vexame. Então vinho, fora. Daí Lica pensou em levar um prato: uma boa lasanha by Keyla Maria, aquela que fazia Samantha se derreter toda. Mas então lembrou que além de produtores de vinho, Maristela e Pietro eram italianos nascidos e criados em Viena, o que deveria tornar o paladar dos dois para massas extremamente apurado. Seria como viajar para a Itália e ser recebido com uma bela de uma feijoada preparada pelo carinha da fábrica de panetones. Um-hum. Melhor não arriscar.

A ideia do que dar de presente para os sogros veio do nada enquanto Lica sentava ao balcão do restaurante de Keyla fazendo nada com coisa nenhuma. A amiga recebia um carregamento de cervejas artesanais e fizera uma pequena degustação com ela, Heloísa. O resultado: Pietro Lambertini ganharia uma garrafa de cerveja caramelizada produzida ali mesmo em São Paulo com ingredientes da terra. E se não gostasse... bom, torcia para ele gostar. E para dona Maristela... a ideia veio de Samantha mesmo. A namorada deixara escapar que a mãe era louca por lenços, que tinha uma verdadeira coleção e que costumava fazer a festa com os acessórios em cada país que conhecia. A saída era uma só: fazer Keyla rodar São Paulo inteira atrás de lenços com estampas genuinamente brasileiras para presentear a futura sogra.

Esperava acertar nos mimos e conseguir conquistar os sogros com sua simpatia, boa conversa e sorriso fácil. Por dentro, estava só o nervosismo, mas por fora, fingia plenitude. Ninguém precisava saber que tinha horror de jantar com sogros. Sua primeira (e única) experiência lhe dera esse receio: fora jantar com os pais de Lorena, uma menina com quem se envolveu na época da escola. Deu um perfume para a mãe da menina e a mulher simplesmente desenvolveu alergia à fragrância: o resultado foi que quase deixou sua futura namoradinha órfã e seu futuro sogro, viúvo. Não é bem um cartão de visitas ideal.

Mas ok, tentou não se apegar aos “e se”, conforme sua psicóloga havia lhe orientado. Se ateve aos fatos: os pais de Samantha viriam para visitar a filha, iria ser apresentada a eles como namorada dela e faria o possível para conseguir conquistar os sogros logo de cara. Era um desafio e ela, Heloísa, não era de fugir de desafios. Não muito.

E por falar em desafios, por volta do meio dia, depois de botar para dentro um almoço reforçado preparado especialmente por Keyla, lá estava Lica sentada à beirada da cama perdida em pensamentos a respeito do próximo desafio que teria que enfrentar. Encontrar Bóris naquela tarde era muito mais que simplesmente discutir os trâmites de seu exame psicotécnico. Era discutir sobre seu futuro, o que faria de seus dias a partir dali e como sua vida iria se arranjar. E pensar em como tudo vai ser é assustador. Por mais que você planeje, tem que estar ciente de que imprevistos sempre podem acontecer, que nem sempre seus planos podem sair como você queria. Que o acaso sempre pode vir e que suas certezas podem cair por terra. Talvez fosse esse o medo que Lica em tinha em planejar seu futuro, sobretudo no aspecto profissional. Uma vez que fora convidada a se retirar da Aeronáutica, vira todos os seus planos de uma vida inteira ruírem. Evitou tratar de planejamentos desde então. Vivia como a vida lhe permitia viver. Mas ali, a situação exigia o mínimo de arranjo e ela não sabia dizer até que ponto estava pronta para aquilo. Para fazer planos e testá-los.

Era uma mistura de medo com receio. Medo de falhar, receio de não ser suficiente mais uma vez. E dessa vez, talvez o tombo fosse maior, porque não era só por ela. Havia gente botando fé em suas escolhas e ações e esperava mesmo que não decepcionasse ninguém. Samantha não pressionava, Lica sabia que ela só estava ali do lado porque tivera permissão e fora convidada, não porque impôs a própria presença. Ela não lhe cobrava, quem se cobrava era Heloísa mesmo. Porque partira dela o pedido para que a namorada se mantivesse firme no embate com o pai da própria filha, porque fora dela a ideia de fazer com que Samantha apostasse todas as fichas nela.

Não poderia falhar ou hesitar. E sendo sincera, ao menos dessa vez, Lica não estava disposta a deixar isso acontecer.

(...)

Eram treze e quarenta quando passou pelas portas da Downtown para pegar Samantha. Catorze horas quando deixaram a empresa rumo à Base Aérea. Das catorze às quinze, Samantha não largou sua mão um minuto. Só o fez para pegar a própria identidade e apresenta-la ao soldado da guarita da BASP. E depois daí, envolveu-a pela cintura em um afago aconchegante seguindo colada a ela até o encontro do oficial que as guiaria aonde Bóris se encontrava.

- Isso não parece nada com os filmes – a empresária comentou do nada quando seguiam pela faixa dos pedestres até o que ela julgou ser o prédio da administração daquele lugar.

- Eu acho que você andou vendo muito cinema americano. O erro das pessoas é achar que toda Força Aérea é que nem Top Gun – Lica brincou.

- E não é? – a empresária fingiu uma expressão de perplexidade – Ai, que saco... eu achei que ia encontrar um Tom Cruise aqui.

Lica soltou uma gargalhada gostosa. E Samantha se sentiu gigante por ter conseguido atingir com sucesso seu objetivo de descontrair um pouco o clima e relaxar a namorada. Heloísa ficava tão mais linda sorrindo grande daquele jeito com aquele timbre rouco de sua gargalhada tomando o ambiente. A Gutierrez apertou-a mais contra si, fazendo Samantha se inebriar inteira com aquele perfume francês que lhe tirava de órbita.

- Eu acho que nunca vi tanto avião junto. E eles são engraçados. Aquele ali – Samantha apontou para uma aeronave estacionada do outro lado do pátio – Parece uma baleia com asas.

- Baleia com asas é a melhor definição de um cargueiro que eu já ouvi na vida – Lica rebateu rindo fraquinho – A Luna ia adorar ver esse monte de avião juntos. ‘Cê acredita que ela já aprendeu todos os modelos da minha coleção? Sabe até os usos de cada um.

- Com uma professora dessas, não tem como não aprender rapidinho – a empresária roubou um beijinho de Lica antes de se refrear – Opa, pode isso aqui?

- O quê? Beijar?

- Umhum. Não é contra, sei lá, algum regimento interno?

- Olha... demonstrações de afeto dentro dos quartéis entre os membros do efetivo não é muito recomendado e dependendo do nível da coisa pode dar de advertência a expulsão.

- Ai, credo – Samantha bufou – Que regulamentozinho mais careta e antiquado.

- Eu disse entre membros do efetivo – Lica deu uma piscadela e roubou um selinho da namorada. Mas foi surpreendida pelo suboficial que a recebera da vez anterior que estivera ali. Corou. Nobre, ela lembrava do nome dele, abriu um sorriso comedido e, do nada, lhe bateu continência.

- Capitã – falou firme.

Lica abriu e fechou a boca umas três vezes sem proferir som algum. Samantha, ao lado dela, no entanto, inchou o peito de orgulho, pareceu um pavãozinho como se a honra tivesse sido destinada a ela. Abriu um sorriso do tamanho do mundo e buscou o olhar da namorada. Heloísa encontrou ali um brilho de admiração que beirava a reverência. Corou mais ainda. Não esperava por aquilo. Mas no fundo... foi bom. Muito bom.

- Suboficial – Lica cumprimentou firme depois de hesitar. Samantha apertou os lábios para não rir. Estava feito pinto no lixo, uma criança que acabara de ganhar o melhor presente do mundo no Natal. Ver sua namorada sendo tratada daquela forma, a forma que ela julgava ser a que ela merecia, era lindo e bem gostoso também. Lhe fez sentir bem – O Coronel Belink....

- Já está em seu aguardo – o homem foi eficiente – Por aqui, por favor.

Elas se deixaram ser guiadas por ele, mas a Lambertini... claro que a Lambertini não perderia a oportunidade.

- Capitã – proferiu baixinho ao ouvido de Lica fazendo-a arrepiar inteira. Em resposta, a Gutierrez aumentou o aperto na mão dela, ganhando de volta um sorriso baixinho e travesso – Bonitinhos os Soldadinhos de Chumbo.

Samantha disse quando passaram por um grupo de oficiais saindo de uma sala qualquer e enfiados em trajes militares. Lica na mesma hora buscou o olhar da namorada com uma expressão inquisidora. Ganhou em resposta um sorrisinho traquino.

Foram deixadas ao final do corredor diante da sala de Bóris. O Suboficial Nobre as anunciou e se retirou imediatamente, deixando-as a sós com ele e olha... Samantha tinha que admitir que se surpreendeu pela fisionomia do comandante. Podia jurar que ele era mais velho pelo que Lica falava, mas nem perto disso. Os cabelos grisalhos até davam um ar mas senhoril a ele, mas os óculos de armação fina emoldurando os olhos e o sorriso grande que se abriu quando as viu denunciava que se ele tivesse uns quarenta e cinco anos, teria muito.

- Olha se não é minha futura Capitã do Ar, rapaz! – o homem abriu os braços para receber Lica em abraço caloroso – Que bom que você veio, Lica. Por um momento, eu pensei que você tivesse desistido.

- Hesitei, mas desistir... – Lica devolveu o gracejo e se separou do homem ajeitando a própria roupa – Bóris, essa aqui é a Samantha.

- A moça da revista! – ele soltou do nada e se Samantha estendeu a mão para cumprimenta-lo, ele foi logo abrindo os braços para envolve-la em um abraço. Nunca que aquele homem ali tinha pose de militar – Samantha! Olha, eu ouvi falar muito de você, viu? Rapaz, a Lica só falava em seu nome. E você é muito mais bonita pessoalmente! Minha menina tem muito bom gosto.

Um tanto sem jeito, mas envolvida pela aura receptiva e calorosa do homem, Samantha meio que se deixou levar.

- Obrigada, Bóris. Você também é um arraso!

Ah, claro. Bóris riu com gosto e Lica negou com a cabeça.

- Olha, eu vou colocar isso no meu currículo – o coronel brincou e se afastou dois passos para contemplar as duas lado a lado. De princípio, Samantha não entendeu o que estava acontecendo, mas teve sua resposta quando Lica a envolveu pela cintura – Vocês duas são muito bonitas juntas, viu? Muito mesmo!

- Ah, isso nós somos mesmo – Lica brincou e deixou um beijinho na bochecha de Samantha – Minha namorada não é o máximo, Bóris?

- É sim, Lica, é sim. Eu diria que ela é um arraso!

Aí Samantha não conseguiu segurar o riso preso. Foi como relaxou mais.

- Eu divido esse posto com você.

- Rapaz, olha... faço muito gosto, viu? Muito gosto mesmo! Principalmente quando eu vi o bem que ela te faz – e se virou para Samantha – Eu não sei que milagre que você operou, Samantha, mas quando eu soube que a Lica tinha entrado num avião, rapaz.... Eu fui ao céu e voltei. Você não faz ideia do tamanho do passo que você fez ela dar. Foi assim um salto olímpico.

Lica corou e Samantha percebeu, porque em um leve aperto na cintura dela, colou-a mais junto de si como quem dizia que ok, estava tudo bem e em segurança. Pelo visto a Gutierrez havia comentado com Bóris o dilema e a resolução dele durante a viagem para o Rio. E, não mentiria: ficou extremamente lisonjeada por Lica ter atribuído a ela o pequeno passinho de bravura que dera.

- Foi sobre isso que eu vim tratar com você, além de apresentar a Sammy, Bóris – Lica explicou e Samantha achou fofa a forma como ela lhe chamou pelo apelido de forma tão natural que nem se deu conta – Eu preciso de umas orientações sobre... burocracia.

E aí sim entraram no mérito da questão. Bóris pôs Lica e Samantha sentadinhas diante de sua mesa onde distribuiu uma série de papéis. Guias, encaminhamentos e ordens de execução, pelo visto. Bóris começou a discorrer sobre o que seria feito com aquilo e a partir dali.

- Lica, é o seguinte: como você já sabe bem, esse Exame de Aptidão Psicológica vai identificar em você as características psicológicas necessárias pro perfil daquilo que você pleiteia de volta, que é sua patente e seu brevê. Junto com ele, vai ser feito um Exame Psicológico pra atestar seu equilíbrio emocional e a inexistência de transtornos que possam comprometer seu desempenho futuro. Fui claro?

- Cristalino – Lica assentiu firme – E como que vai ser feito isso? Sim, porque o conceito é fichinha, mas o modus operandi da coisa....

- Calma, meu amor. Lembra o que a gente falou, hum? Uma coisa por vez – Samantha achou por bem mencionar – Deixa o Bóris explicar e aí depois você se preocupa, se precisar se preocupar.

- Ouve a Samantha, Lica – o comandante pediu e mexeu em alguns papéis – E você já fez isso duas vezes antes, não tem nada de muito novo. Esses exames que eu mencionei vão testar seu perfil profissiográfico, dizer se você tem ou não os requisitos necessários pra voltar a pilotar e pra assumir funções de comando e liderança como as que você tinha. Além do Exame de Aptidão e do Exame Psicológico, também tem o Teste de Aptidão à Pilotagem Militar....

- Desculpa, Bóris, mas... – Samantha relanceou a namorada – Não é exame demais não?

O coronel riu e ajeitou os óculos na ponte do nariz.

- Samantha, é profissão de risco. Ok, que toda profissão tem seu risco, mas no caso de um piloto, qualquer errinho pode ser fatal. A Lica sabe do que estou falando: é perícia, técnica e controle. Esse teste de pilotagem é pra avaliar a aprendizagem na instrução de voo que ela recebeu na AFA. Na verdade, ele é a segunda fase do Exame de Aptidão Psicológica. Esse talvez seja o mais importante de todos.

- Ah, então de boa. A Lica pilota pra caramba, vai ser moleza – Samantha soltou tão, mas tão naturalmente que sequer percebeu o efeito que as palavras tiveram sobre a pessoa ali do lado. Heloísa se sentiu, sem nem querer, como o maior ser humano do mundo, a pessoa mais capaz de fazer o que fosse. Se a mulher que amava confiava nela, por que diabos ela desconfiaria de si mesma?

- Olha, eu tenho que concordar com isso, Samantha – Bóris riu e buscou o olhar de Heloísa – Essa aqui faz um Hammerhead como ninguém.

Foi involuntário o riso que rasgou o rosto de Lica.

- O que é isso? – Samantha se interessou.

- É uma manobra acrobática da esquadrilha – e então Bóris pegou um aviãozinho em miniatura que tinha sobre a mesa e fez o movimento – O avião sobe na vertical e quando está quase parado no ar, o piloto guina no eixo até atingir a vertical de novo, desce duma vez e então recuperar.

Poderia parecer lindo a olhos alheios. Para Samantha aquilo foi um completo horror. Onde que subir com um avião até não poder mais, quase perder velocidade e depois virar o bicho do nada e descer com tudo pode terminar bem?

- Ah, isso não – ela soltou do nada, mas firme e decidida – Se eu te pegar fazendo esse troço aí, Heloísa, eu juro que te mato se você não morrer.

- Calma, amor – a Gutierrez pediu com a voz mansa – Ó, nem é tão assustador quanto parece. Na verdade é lindo.

- Lindo uma pinoia! – Samantha se emburrou – Isso é suicídio, isso sim. E a causa do meu infarto.

- Relaxa, que pra eu poder fazer qualquer manobra, antes preciso passar nesses benditos exames – Lica arrulhou – Como que eles vão ser feitos, Borão?

- Olha, Lica, eu adoraria, mas não posso te dar orientações mais detalhadas, porque é aquela coisa: posso incorrer em favorecimento mesmo que você não tenha concorrência. Mas se ajuda, eu posso te esclarecer mais sobre as etapas dele. – e então o coronel pegou um papel sobre a mesa para ler - Exame de Aptidão, ele vai ter um teste de personalidade projetivo e expressivo, uma prova situacional, entrevistas, testes psicométricos, questionário e os testes informatizados.

- Gente, pra quê tudo isso? – Samantha tomou foi um susto – É tanto teste que a pessoa enlouquece é no meio deles. Quando terminar, a última coisa que a Lica vai querer ver é um avião. Não tem como diminuir isso não?

Bóris riu ameno e puxou outro papel do meio dos demais espalhados em sua mesa.

- Não, Samantha, não tem. Infelizmente não tem, porque são procedimentos padrões determinados pelo Comando Geral. E não é nada que a Lica já não tenha feito quando ingressou. Não é nenhuma novidade. Ah, e antes que eu esqueça... o Teste de Pilotagem é feito na AFA, Lica. Você vai ter que viajar até Pirassununga.

- Sim, sim.

- Quando? – Samantha quis saber – Eu posso ir?

Bóris abriu um sorrisão.

- Poder pode, Samantha, só que o teste é só a Lica e o pessoal do SISPA, que é o Sistema de Psicologia da Aeronáutica.

- Certo – a empresária se virou para a namorada – Quando tiver uma data, me avisa.

- Claro – e sem pensar, Lica roubou um beijinho dos lábios dela – Mais alguma coisa, comandante?

- Seu encaminhamentos – e Bóris estendeu os papéis para Lica – Eu já assinei os que precisava. Agora é com você – o homem suspirou e buscou o olhar da Gutierrez com uma expressão paternal – Boa sorte, Lica, vai na fé e confie em você, porque capacidade e know-how você tem muito. E conte comigo pro que precisar.

Lica assentiu brevemente com a cabeça, se pondo de pé recebendo Bóris em um abraço caloroso.

- Pode deixar. Eu vou tentar não me dar mal dessa vez.

Se separaram, Samantha se despediu do coronel com mais um abraço e a deixa de que a Base Aérea estaria sempre de portas abertas para ela, embora ela não soubesse bem o que faria ali além de acompanhar futuramente sua namorada e babar por ela em trajes militares. Ah, e morrer a cada decolagem que ela fizesse.

Na saída, ainda encontraram com MB ralhando com algum subalterno. E olha... Samantha tinha que admitir que se não tivesse Lica, se não estivesse muito bem obrigada com sua namorada e Michel não tivesse K1, ela bem que daria uns pegas nele. O rapaz estava simplesmente espetacular naquele macacão de voo verde militar, um boné na cabeça e um óculos aviador no rosto. E por falar em óculos aviador, Lica tinha um? Porque ela também ficaria espetacular num daqueles.

Samantha anotou mentalmente o recado para perguntar se a namorada ainda possuía um traje daquele. Poderia ser útil uma hora ou outra.

MB bem que tentou fazer Samantha entrar em um caça estacionado num hangar ali por perto, mas desistiu quando alguém ligou o motor daquela geringonça e ele roncou tão alto e assustador que fez a empresária dar um pulinho e ir se esconder atrás da namorada.

Terminaram as duas aquela tarde em um passeio pelo Ibirapuera entre sorrisos, beijinhos e carícias não tão despretensiosas assim trocadas em intimidade, tudo regado a um bom suco de laranja e companhia das mais agradáveis para se refrescar. Pegaram Luna no balé e o dia, ele encerrou da melhor forma e da única maneira possível.

- Você tem traje de piloto? – Samantha quis saber, jogada nos braços de Lica e completamente exausta (e satisfeitíssima) na própria na cama – Igual aquele do MB?

- Traje de pilotagem não. Eu meio que tive que devolver os meus com meu brevê. Por quê? – ela já devia imaginar o motivo. Dado ao histórico de Samantha....

- Então pode tratar de passar nesses testes aí, porque eu quero te ter de traje de piloto com direito a óculos aviador e tudo.

Lica riu travessa e trouxe a namorada para si.

- Esse foi o maior incentivo que eu já recebi, mas até lá... – e girou na cama, ficando por cima de Samantha – A gente faz sem roupa mesmo.

(...)

Mas havia certas coisas que não tinham como serem feitas sem uma vestimenta. E há aquela em que é necessário uma vestimenta adequada. E outras em que, além de adequadas, as vestes devem estar perfeitas. Impecáveis.

O macacão que Keyla ajudara Lica a escolher numa loja de departamento qualquer era adequadíssimo para a ocasião. Corte reto, preto contrastando com a camisa de botões sem manga dentro, perfeitamente ajustado ao corpo e coroado com um sapato de salto nos pés e uma maquiagem sóbria, mas bem marcada.

O problema era que nem toda montada daquele jeito, Lica se sentia bem o suficiente para impressionar os pais de sua namorada e fazer com que eles lhe aceitassem como nora e fossem com a sua cara.

- Você tem que apostar na sua simpatia – Benê alertou, observando Lica checar a roupa no espelho do armário pela centésima vez – Eu tenho certeza que os pais da Samantha vão estar mais preocupados com o que você tem a dizer, do que se o seu sapato está harmonizando com o detalhe do seu macacão.

- Benê, mas a roupa nesse caso também é importante. É legal a Lica chegar lá bem apresentável, asseada e arrumadinha. Aparência nessas horas conta muito. Os pais da Samantha não vão nem querer ouvir o que ela tem a dizer se ela chegar lá parecendo um molambo.

- É, você está certa – Benê admitiu – Mas eu acho que você está bem nos dois aspectos, Lica. Na roupa e no seu conteúdo. Você está bem vestida e é bastante simpática.

- Valeu, Benê – Lica riu fraquinha, mas sem abandonar nem um pouco o nervosismo que tomava de conta – Mas são os pais da Samantha, sabe? Eles são empresários podres de ricos, criaram a filha com tudo do bom e do melhor... está lá a Sammy sendo dona de gravadora e bem sucedida....

- E o que tem de errado nisso, Lica? – Keyla só queria ouvir da boca dela a inquietação que já havia percebido.

- Eu estou desempregada, Key – Heloísa suspirou, ajeitando o bolso do macacão – Estou vivendo das economias que fiz com o salário que a Samantha me pagava e em total indefinição sobre o meu futuro. Eles vão perguntar o que eu faço da vida e eu vou dizer o quê? Que não estudo, não trabalho e nem tenho projetos?

- Lica....

- Você está estudando, que eu sei – Benê interferiu – Eu te vi brincando com um simulador de voo no seu computador e também achei algumas apostilas de física e de aviação espalhadas pela sala. Você tem projetos também, Lica. Está se preparando para fazer seu exame da Aeronáutica. Quanto a trabalhar, isso é temporário, não é?

Lica queria mesmo que fosse ou do contrário, não saberia o que fazer.

- Tem que ser, Benê – Heloísa foi checar a carteira para ver se tinha pego tudo que precisava – Ou eu duvido muito que os pais da Samantha aprovem um relacionamento com alguém que não tem um meio certo de sustentar. Mãe e pai nenhum deseja pros filhos menos do que eles possam dar.

- Você fala como se os pais da Samantha fosse te mandar abrir a carteira antes de perguntar seu nome, Lica. Eu hein! – Keyla girou ela pelos ombros, fazendo-a se olhar novamente no espelho – Você é inteligente, divertida, meio doidinha sim, mas uma pessoa bacana, justa e honesta. E é bem gata, diga-se de passagem. Só que, acima tudo, você faz bem pra Samantha, ama aquela mulher e ela te ama de volta. Encerrou o assunto. Aproveita esse jantar, curte a companhia da tua mina e conquista os sogros com esse sorrisão que derrete geleiras e molha calcinhas.

- Molha calcinhas? – Benê franziu o cenho – Como a Lica molha calcinhas?

- Nem queira saber, Benê – Keyla riu e começou a recolher suas coisas – Pegou os presentes?

- Na sala.

- Beleza, agora chispa daqui e vai lá conhecer seus sogros, vai.

Lica. Ah, ela foi sim. E se pensou qualquer coisa a respeito dos pais de Samantha, fosse o que fosse... essa coisa não chegava nem aos pés do que de fato encontrou quando pôs o olhar sobre eles.

(...)

Peguem Samantha Lambertini: no auge dos vinte e nove anos, rica, bem sucedida, bem resolvida, gozando de uma saúde perfeita e, de bônus, dona de uma beleza absurda, estonteante, capaz de fazer qualquer um perder o fio da meada se contemplasse demais. Agora peguem dona Maristela Lambertini: no auge dos sessenta anos: rica, bem sucedida, nem resolvida, gozando de uma saúde perfeita e, de bônus, dona de uma beleza absurda, estonteante, capaz de fazer qualquer um perder o fio da meada se contemplasse demais.

Não, você não leu errado. Samantha era uma cópia perfeita de Maristela. E Maristela era tudo o que a filha era, só que em dobro. Lica chegou a ficar constrangida com a beleza e a finesse da mulher. Ela não andava, parecia flutuar levemente por onde passada. Os gestos eram graciosos, como uma bailarina no centro do palco. A pose inspirava altivez e respeito aos demais do ambiente e a língua....

É. Samantha tinha mesmo para quem puxar.

O que a mulher tinha de elegante, tinha de sem filtros e desbocada.

- Filha, uma pena você ter encontrado com esse pitelzinho aqui antes, porque se ela tivesse cruzado meu caminho... quem estaria feliz e saltitante assim seria eu. Iria me esbaldar! - dizer que Lica corou foi eufemismo quando a mulher soltou aquilo do nada e lhe apertou as bochechas – Entre, querida, não fique aí na porta. Ninguém aqui morde. Não muito forte – e deixou uma piscadela travessa para a Gutierrez, que entre rir e ficar nervosa com aquela recepção, fez um som estranho com a garganta.

- Oi, mozão! – Samantha apareceu na sala trajando um vestido soltinho e salto nos pés. Pernas bem torneadas à mostra, alças fininhas.... Não deu tempo nem de Lica se recuperar da recepção da matriarca ali.

- O-oi, Sammy – e foi surpreendida com um beijinho casto nos lábios.

- Muito trânsito?

- Até que não. Daqui a pouco é que a cidade acorda.

- E nós vamos junto com ela. Quer dizer, eu queria que nós fôssemos – Maristela riu graciosa – Eu quis convencer a Samantha e nos levar na Augusta, mas ela disse que hoje não, me mandou aquietar o facho, que ainda temos muito tempo pra isso. Eu mereço!

Na Augusta. A senhora de sessenta anos, altiva, pose de ricaça europeia, nas baladas do Baixo Augusta. Lica bem que tentou imaginar a cena, mas nem isso conseguiu. Parecia estranho e bizarro demais.

- Da última vez que eu te levei numa balada, mãe, a senhora chamou o barman de gostoso e disse que queria ser um daquele drinques pra ele lhe sacudir inteira.

Lica engasgou. Maristela, por outro lado, pareceu sequer se importar com aquilo.

- Claro. Um homem lindo daqueles? Eu não sou cega meu amor.

E Lica se perguntou onde diabos estava o marido daquela senhora. Ela não era casada?

- Ela me matriculou num curso de barman depois – e a resposta de Lica veio lá do corredor enfiada em uma camisa social impecável e sapatos italianos polidíssimos. O Lambertini pai lembrava um pouco a filha em alguns traços. No nariz e no sorriso, principalmente – Eu bem que cogitei, fazer o tal curso mas não tive como. Bebia todos os drinques antes do professor dar “bom dia” – Pietro Lambertini espalmou as mãos em contentamento e ficou na ponta dos pés – Então esta é a famosa Lica?

- Famosíssima – Samantha roubou um beijinho dela – Mãe, pai... essa é a Lica, minha namorada. Amor, esses são Pietro e Maristela, meus pais.

Lica riu simpática e estendeu a mão para o homem, que a apertou firme.

- Heloísa – se apresentou – É um prazer conhece-lo, seu Pietro.

- É um prazer, Heloísa. E se você me chamar mais uma vez de “senhor”, eu vou ser obrigado a te chutar daqui pra fora – e riu ameno. Lica engoliu em seco e se livrou do toque dele para cumprimentar a mãe.

- Dona Maristela.

Esperava um aperto de mão. Quase foi sufocada em um abraço. O perfume de Maristela lembrava um pouco o de Samantha, exceto que era um pouco mais marcante.

- Querida! É um prazer finalmente te conhecer! Minha bambina fala tanto de você! Tudo dela é “Heloísa pra lá e Heloísa pra cá” -  segurou o rosto de Lica entre as mãos, analisando cada centímetro dela. E a Gutierrez bendisse o trabalho tão bem feito de Keyla em seu rosto – Você é linda, meu amor! Minha bambina não exagerou em nada! – e afogou Lica em outro abraço de repente.

Achou que teria que fazer mais esforço.

- A senhora...

- Um-hum! Senhora não, pelo amor de Deus!

- V-você também é mais linda ainda pessoalmente, Maristela. A Samantha realmente teve pra quem puxar a beleza.

- E o pai é um zero à esquerda, mais uma vez – Pietro comentou e abriu um sorrisão – Você é muito bonita mesmo, Heloísa e eu espero que seu rostinho continue tão perfeitinho quanto é. Não me dê motivos pra mudar essa realidade.

- Pai, pelo amor de Deus! – Samantha exclamou.

- Meu papel de pai, Samantha. Meu papel de pai – o homem se justificou, enquanto Lica abria seu melhor riso de nervosismo.

- Hã... eu... eu trouxe uma coisinha pra vocês – e mostrou os embrulhos em mãos – Espero que gostem.

- Olha só, ela quer nos comprar com presentes – Pietro tinha um humor ácido. Lica buscou o olhar de Samantha em desespero, recebendo o sorriso mais lindo do mundo em resposta dizendo um “relaxa, vai se acostumando que esses dois são assim”. Mas então Pietro se desfez do primeiro embrulho para se deparar com uma garrafa de cerveja artesanal – Olha só produto da terra! Boa, menina! Eu tenho certeza que vou adorar.

E então do nada, o homem riu grande para Lica e deu dois tapinhas nas costas dizendo um “obrigado, norinha!” e virando para olhar a composição no rótulo da bebida. Talvez mal de vinicultor. Enquanto isso, Maristela quase enlouquecia com os lenços que Keyla ajudara a escolher. Tecidos finos em cores vivas, cores típicas da flora e da fauna brasileira.... E afogou Lica em outro abraço em agradecimento.

- Deu certo? – Lica perguntou depois de um tempo para a namorada. Perguntou baixinho só para ela ouvir.

- Você é incrível – Samantha a envolveu pelo pescoço e roubou um beijinho casto que acabou evoluindo para um gesto mais aprofundado. Nada novo sob o sol, era sempre assim quando eram elas. De tão na bolha em que haviam entrado, nem perceberam os olhares de Pietro e Maristela queimando sobre elas. O casal trocou um olhar cúmplice para sorrirem de volta.

Só foram interrompidas daquele momento por Luna, que apareceu pelo corredor feito um foguete, enfiada em vestidinho azul e lacinho na cabeça.

- Lica! – a menina correu a abraçar Lica na cintura – Você veio!

- É claro que eu vim, meu amor – a Gutierrez se agachou para ficar da altura dela – Você acha mesmo que eu ia perder a oportunidade de te ver?

- A gente vai jantar com os maus avós. Você já conhece o vô Pietro e a vó Maristela?

- Acabei de conhecer e... bom eu espero que eles tenham gostado de mim – Lica brincou, acrescentando baixinho.

- É essa preocupação? A gente não gostar de você? – Pietro entoou lá do outro lado da sala. Lica morreu no sorriso e engoliu em seco, se virando para eles. Samantha riu fraquinho lá de onde estava. Seus pais sendo seus pais. Novidade nenhuma. Eles eram experts naquilo – Bom, nem adianta a gente dizer se não gostarmos, porque, né? Minha filha pelo filho não vai dar ouvidos pra nossa opinião.

Lica prendeu a respiração.

- Mas só pra constar, Heloísa... – Pietro se aproximou equilibrando a garrafa de cerveja sob o braço – A gente gostou. Muito – riu cúmplice e seguiu para a mesa de jantar, mas se virou a meio caminho – E só pra constar. A resposta é sim – deu uma piscadela e retornou a seu percurso.

- S-sim?

- Sim – Maristela chegou perto e pegou as mãos de Lica – Eu sei que vocês não precisam de opinião nem permissão, mas é bom que saiba, Heloísa, que pra felicidade da nossa filha a gente nunca vai dar um não – e com um aperto carinhoso no ombro, a mulher se afastou – E esse jantar sai ou não sai, bambina!

- Eles nem me deixaram fazer meu pedido – Lica fingiu descontentamento – Eu fiz todo um discurso e foi assim, na lata?

Samantha gargalhou e para se acalmar, enfiou o rosto na curva do pescoço dela, fazendo-a arrepiar da cabeça aos pés.

- Bem vinda ao meu mundo. A vida com esses dois é uma eterna quebra de protocolos – respondeu e deixou um beijinho ali – Bora jantar? O menu hoje é todo by Maristela Lambertini, então trate de repetir e elogiar.

Em família, tomaram seus lugares com Pietro à cabeceira e Lica ao lado de Samantha, diante de Luna. E foi interessante perceber em como com a avó ali, a menina tinha zero resistências e barreiras. Aquela cena talvez não ocorresse se quem estivesse ocupando aquele lugar fosse uma certa Stella Gimenez. Luna ria, puxava assunto e comia com gosto. Era algo agradável de se ver. Bem agradável.

- Pra essa noite, Lica, as entradas são por conta da Samantha e o prato principal conosco – a mulher iniciou a apresentação do menu – Arancino para abrirmos o apetite e depois, um carpaccio. Espero que você goste, minha querida.

Lica assentiu sem saber muito do que a mulher estava falando. Ok que sempre fora criada com tudo do bom e do melhor, mas também não tinha nenhuma especialidade ou conhecimento aprofundado sobre culinária italiana. Seu entendimento de massas não ia além de macarronada, pizza e a lasanha de Keyla. E o que Samantha e Maristela serviram de início não era nada daquilo. Na verdade o tal arancino era um bolinho de arroz frito e o tal carpacio, ela descobriu depois, era um peixe cru bem temperado com ervas e molhos finos. Agradou seu paladar, graças a Deus. Não se sentiria bem em ter que forçar gosto de algo que não lhe descesse à garganta, ainda mais para sua sogra. Já podia chama-la assim?

- Vinho, Heloísa? – Pietro ofereceu.

- Ah... sim, por favor.

- Você não está dirigindo? – Maristela quis saber – Franciacorta é forte, hum? Perfeito para o nosso menu, mas não é para iniciantes.

Lica discutiria? A mulher era perita no assunto como boa somelier que era.

- Uma taça, mãe. E a Lica também não é pra iniciantes, só pra constar.

Pietro lhe serviu a bebida e, claro, iniciou o interrogatório. Ela já devia esperar por aquilo, afinal.... Bom, talvez fosse aquele mesmo o sentido daquele jantar.

- Então, Heloísa. Você é daqui mesmo de São Paulo? – o homem perguntou, mas os olhos atentíssimos em seu prato.

- Sim. Paulistana nascida e criada – Lica foi breve. Achou por bem não enrolar e limitar suas respostas ao que ele perguntasse. Se o homem queria conduzir o assunto, ela que não iria se opor – Vocês são de Viena, certo? A Samantha comentou uma vez comigo.

- Somos sim – Maristela foi que respondeu – Estávamos passando uma temporada no Brasil e esta mocinha aqui se apressou e quis nascer antes da hora. Foi um Deus nos acuda ter a Samantha longe de casa. Acabou que decidimos ficar por aqui mesmo depois do nascimento e só retornamos em definitivo para Viena quando ela terminou a escola – a mulher olhou carinhosa para a filha – Minha bambina virou uma mulher e tanto.

- Mãe... – Samantha riu fraquinho e corou. Lica, por outro lado, achou fofo.

- Samantha, ela não está mentindo. Você é uma mulher linda e sabe disso – a Gutierrez falou e em um gesto automático, levou a mão da namorada aos lábios. Maristela abriu um sorrisão e Pietro analisou o movimento com a atenção de olhos de águia.

E Samantha corou, o que era uma raridade. Samantha Lambertini geralmente era tão segura de si, tão firme e certa em tudo que vê-la ficar vermelha por um simples elogio foi esquisito na mesma proporção em que foi fofo. Lica quis agarrá-la e mordê-la.

- Que bom que você reconhece a preciosidade que tem em mãos – Pietro comentou sem desviar o olhar de seu carpacio, mas parou o que fazia em um átimo e falou em seguida, apontando a faca para Lica – Valorize minha filha. Ela é para poucos. Sinta-se privilegiada e honrada em poder amá-la.

- Pai, pelo amor de Deus....

- Ah, mas eu me sinto, Pietro. Pode deixar que eu agradeço aos céus todas as noites pela Sammy ter entrado na minha vida. As coisas só começaram a andar depois dela – Lica respondeu firme, mas sorrindo o sorriso dos bobos, e se virou para Samanha com a maior cara de bocó que alguém pode ter.

- Certa está você – o homem anuiu, suspirou, bebeu um gole de vinho e descanou a taça sobre a mesa, voltando pra o carpacio – E o que você faz da vida? A Samantha nos contou que vocês trabalharam juntas e que foi assim que se conheceram. Você trabalha com música?

Interrogatório mesmo. E Lica anotou mentalmente o lembrete de perguntar a Samantha depois até que ponto ela mencionara como a relação entre elas começara em primeiro lugar. Se viu pisando em terreno incerto, mas sabia bem que mentir não levaria a nada e só poderia complicar as coisas. Heloísa buscou o olhar de Samantha e recebeu em resposta um breve acenar de cabeça.

- Não, eu... eu era segurança da... da Samantha – Lica respondeu um tanto envergonhada, pigarreou e tomou um gole do vinho. Seria de bom tom pedir mais? Talvez precisasse.

- Segurança? – Pietro repetiu e buscou o olhar da filha. Lica, por outro lado, se concentrou em seu prato. De repente o carpaccio já não parecia tão apetitoso assim. Pelo visto Samantha não mencionara aquele detalhe com os pais.

- Pai, eu já havia comentado – Samantha devolveu – Eu disse que a Lica tinha sido minha segurança e que foi assim que nos conhecemos, hum?

- Nossa, que romântico... tem um filme muito parecido com essa história de vocês. Chama O Guarda Costas. É um dos meus preferidos – Maristela comentou amena. Mas Lica sentiu o olhar de Pietro queimar sobre ela. Se sentiu deslocada.

- Você disse que ela havia trabalhado com ela, não que era a patroa dela.

Ok, o apetite, ele foi embora na mesma hora. Lica engoliu em seco, o sorriso de Maristela se desfez e Samantha suspirou parecendo cansada.

- A Lica pilota avião, vovô – Luna comentou – Não é, Lica?

Ao menos alguém para tentar salvar o clima que havia se instalado ali. Petro franziu o cenho.

- Você é piloto de aeronaves? – o homem se interessou – Interessante. Que tipo de aviões você pilota?

- É... – Lica buscou mais uma vez o olhar de Samantha – Eu sou... na verdade eu era piloto da Aeronáutica. Mas eu pilotava caças, cargueiros... minha especialidade, no entanto, eram os aviões da esquadrilha. Eu... eu era líder de esquadrilha.

- Aquele aviõezinhos que soltam fumaça e fazem firulas no ar? – Maristela parecia encantada – Nossa, eu sempre fui apaixonada por aquilo. Quando era criança e tinha apresentações na minha cidade, todo mundo se reunia na praça pra poder assistir. Mas não é meio perigoso? Aquele aviõezinhos parecem tão frágeis.

Lica riu pelo nariz e relaxou mais.

- Não é perigoso não – garantiu, limpando a boca com o guardanapo – Se o piloto tiver técnica e bom controle da aeronave, é facinho. Ah, e noção de espaço também é muito importante.

- Por que você não pilota mais? – Pietro se interessou foi por isso – Você disse que “era” piloto.

- Hã... – Samantha buscou a mão dela embaixo da mesa, segurando-a firme. Foi o incentivo que Lica precisou – Eu me envolvi em um acidente tem um tempinho e acabei... desenvolvendo alguns... alguns bloqueios pro meu ofício, então me retirei da FAB – Pietro arqueou as sobrancelhas – Mas estou em vias de reingressar – acrescentou rapidamente – Um pouco de burocracia e eu volto a... a pilotar.

- A Lica é capitã, vô – Luna de novo com comentários ingênuos, mas certeiros. Heloísa bebeu seu último gole de vinho e riu para a menina.

- Olha só, uma oficial... – Maristela abriu um sorrisão. Ao menos ela parecia feliz com o que acabara de saber, porque a cara de Pietro – Nossa bambina namora uma oficial da Aeronáutica, amore mio.

Pietro levou um pedaço do carpaccio à boca e mirou Lica. Capturou o olhar dela.

- Você disse que não trabalha mais pra Samantha e que está em vias de reingressar da Aeronáutica... não reingressou ainda, pelo visto.

- Não, ainda não. Mas eu... – Lica nem teve tempo de terminar.

- E o que você faz da vida?

Ok, Lica era acostumada a responder aquela pergunta. Sempre tivera as respostas na ponta da língua. Dizer para alguns que não trabalhava, nem estudava e nem tinha projetos era fácil. Geralmente eram pessoas que não estavam interessadas de fato em sua resposta. Para outros, falar que fazia bicos de investigadora particular sem registro era tranquilo também. Por vezes até lhe garantia um bom caso e uma boa comissão. Contar que era segurança particular nunca fora um problema. Exceto quando quem pergunta são os pais de sua namorada que, coincidentemente, era sua patroa e pagava seu salário. Mencionar que fora convidada a se retirar da Aeronáutica foi até simples para os pais de Samantha. Só não tinha tanta certeza assim quanto à parte do reingresso.

Lica sempre tinha respostas. Ali, ela também tinha uma, mas hesitou. Não era exatamente o tipo de informação do qual se orgulhava, mas ei... foi ela mesma que se demitiu, certo? Se estava na fila do desemprego no momento foi resultado de uma escolha que tomara consciente. Estava até lidando bem com aquilo, só não sabia até que ponto os pais de Samantha, os pais da mulher que amava, lidariam.

Em jantares de compromisso, geralmente as pessoas esperam certezas, respostas firmes. Lica tinha a sua. E receou em dá-la. Mas ou era aquilo ou mentir, e mentir não era muito sua praia, ainda mais diante de Samantha.

- No momento, eu estou desempregada.

Pietro suspirou e massageou as têmporas. Maristela sorriu complacente, Lica encontrou com o olhar dela e o que viu ali... não era perto do calor e receptividade que recebera quando chegara. Era algo no espectro de.... pena? Engoliu em seco e bebeu água, que era o que tinha em sua taça.

- O importante é que vocês duas se gostam – a mulher riu e juntou as mãos – E que você vai voltar para seus aviões, não é? Nós gostaríamos de ser informados quando isso acontecer, Heloísa.

- Claro – Lica assentiu e abaixou o olhar para seu carpaccio. Não lhe desceria mais – Eu aviso vocês – e riu fraquinho, parecendo ligeiramente acuada.

Mentalmente, Lica começou outra lista de “coisas para fazer”: avisar os pais de Samantha quando retornasse para a Aeronáutica e tivesse um emprego. Quem sabe o próximo jantar com eles não terminasse tão... enfim. Daquele jeito.

- Sobremesa? – Samantha foi que cortou o silêncio que havia se instalado. Puxando Lica pelo braço, ela a arrastou para a cozinha. Nem esperou entrarem direito.... – Não entra na deles. A gente sabe que essa situação é passageira. Eu te amo e foda-se o que seu Pietro e dona Maristela pensam. Eles não têm que se importar com nada, é comigo que você namora.

- Eles são seus pais, Samantha. E pai nenhuma quer....

- Lica – Samantha a cortou – Não tem essa de “pai nenhum quer”. Interessa o que eu quero e eu quero você. E se consola, meus pais te adoraram. Não pilha.

- Eu não estou pilhada – Lica externou.

Outra item na lista de coisas para fazer: parar de mentir para Samantha. 


Notas Finais


Tá legal, quando a gente pensa que tudo pode se ajeitar, vem um baldezinho de água fria, mas é bem isto rsrs. Não é que os pais da Samantha não vão com a cara da Lica, isso ficou meio óbvio: eles curtiram a menina Gutierrez. O negócio é aquela coisa: pai e mãe é pai e mãe. Está meio que no manual serem exigentes demais com os "pretendentes" dos filhos. Só não sei até que ponto essa "exigência" toda vai ser boa pra Lica. A pobre precisa estar bem da cabeça, mas parece que as sessões de terapia vão ter que dar uma intensificada kkkk.
Enfim, veremos o que vai sair disso e aproveito o ensejo pra deixar logo claro que no próximo capítulo, teremos a volta dos que não foram. Stella e Rafael está sumidos demais, bora matar as saudades rsrsrs.

No mais, eu agradeço pela leitura e nos vemos o próximo capítulo!


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