História Sobre latidos e garras afiadas - Um maldito cachorro

A batida ecoava pela sala de estar. Seu volume era perfeitamente agradável, nem muito alto e nem muito baixo. Yoongi sempre soube apreciar uma boa música. Sua cauda se movia preguiçosamente no ritmo, enquanto seus olhos estavam levemente fechados, pesados por causa daquele sono gostoso que sentia durante as tardes. Estava encolhido no sofá macio de Seokjin, enquanto o outro fazia uma arrumação em seu quarto. Yoongi sabia disso porque seus ouvidos eram muito sensíveis, sua audição aguçada. Podia ouvir o mais velho andando de um lado para o outro pelo quarto, barulho que só cessaria quando tudo estivesse limpo e em seu devido lugar.

Estava de folga da faculdade, pois tivera a sorte de ter suas férias adiantadas. O curso de música era bem flexível, o propiciando esse tempo de descanso do qual desfrutava naquele momento. Nada poderia estragar seu quase ritual de deitar no sofá, entrar no spotify, e analisar as letras, batidas, arranjos e todo o conjunto genial de elementos que as pessoas chamavam de música.

Fora ir para faculdade, fazer seus trabalhos, produzir suas musicas e executar suas atividades diárias e elementares para sua sobrevivência, Yoongi não fazia muita coisa. Tinha uma vida tranquila. Sobrevivia do salário gordo de Seokjin – por enquanto, jurava ele – e não dava muita despesa. Não ocupava muito espaço, não fazia muito barulho e não incomodava.

Típico felino preguiçoso.

O hibrido de Angorá branco, mais conhecido como Yoongi e Gigi para os mais chegados – lê-se, Taehyung e Seokjin – se mexeu no sofá quando ouviu Seokjin derrubar alguma coisa no quarto. Mudando sua posição, agora estava de barriga para cima. Suas orelhas brancas como neve se abaixaram novamente, após serem incitadas a se levantarem para ouvirem melhor os sons provindos de seu amado hyung, um tanto quanto desastrado.

Yoongi agradecia mentalmente por viver em uma época onde os seres híbridos finalmente eram tratados igualmente aos humanos, puros, caso contrário não teria essa mordomia. Na época de seus avós, criaturas como ele eram feitos de animais de estimação.

Muita coisa mudou, Yoongi acenou com a cabeça.

Morava com Seokjin desde que era um pequeno – menor, porque ainda era consideravelmente pequeno – gatinho. Fora abandonado pela mãe quando conseguiu andar com os próprios pés, mas não guardava nenhum tipo de rancor. Sempre foi da natureza felina deixar a cria andar à sua própria sorte. Um dos traços que permaneceu no sangue dos híbridos. Obviamente, crianças humanas não sobrevivem sozinhas, e como Yoongi era meio humano, logo foi adotado por uma família nobre e gentil. A família dos Kim. Cresceu junto com Seokjin, como irmãos de pais diferentes. Nunca foi tratado como mascote, apesar de ter lembranças vívidas de um pequeno e rechonchudo Seokjin puxando seu rabo uma vez ou outra.

O fato era que, híbridos agora podiam frequentar escolas, universidades e qualquer outro estabelecimento. Apesar de serem poucos e serem obviamente diferentes dos humanos, tais seres ganharam seus direitos por serem parte humanos. Na teoria, eram até mais humanos do que animais, pois apenas carregavam alguns traços de sua espécie mestiça.

Mas, como Seokjin sempre dizia, Yoongi seria preguiçoso da mesma forma se fosse um ser humano. Não adiantava colocar a culpa de sua preguiça em seu sangue felino.

Boa tentativa, ele ouvia Seokjin repetir em sua cabeça.

Mas Yoongi não tinha do que reclamar. Fazia o que gostava, vivia bem, comia do bom e do melhor – graças à posição de chef gourmet que Seokjin alcançara com vigor – e tinha as tardes reservadas para uma boa soneca e seções de alongamento felino essencial.

Seokjin ria sempre que via Yoongi se alongando, alegando que não era obrigado a ter uma visão privilegiada de sua gloriosa cauda, para não dizer outra coisa.

E ingênuo Min Yoongi pensava que aquela tarde seria como as outras, que se resumiam a dormir, comer, escutar musica, dormir mais um pouco e rolar no sofá. Porém, Seokjin tinha outros planos.

– Fique apresentável. – Ouviu o mais velho dizer. Agora ele estava parado no meio da sala, segurando um porta retratos nas mãos. Seu vidro estava quebrado.

– Então foi isso que você derrubou huh? Que falta de consideração com a família. – Yoongi sorriu de canto, sentando no sofá e esticando os braços, se espreguiçando. A foto que estava no porta retrado era dos dois enquanto crianças.

– Foi sem querer tá legal?. Além disso, eu vou trocar esse vidro por um novo, pode deixar. – Seokjin rolou os olhos. – Eu terei visita hoje, então que tal você tomar um banho e parar de vagabundear por aí?

– Hm, e quem disse que eu ligo para suas visitas. – Yoongi fechou os olhos, suas orelhas se contrairam e se moveram rapidamente. – Eu só vou ficar no meu quarto então, finja que eu nem existo. 

– Yoongi. – Seokjin o cutucou, coisa que ele sabia que o mais novo odiava. Yoongi rosnou e abriu os olhos. – A visita é para você também, você também é anfitrião!

– Por que um de seus boys iria querer me ver também? – O felino piscou os olhos. – Acha que não sei que você chamou um de seus peguetes para vir aqui comer algum prato chique?

– Ele não é meu “peguete”, seja lá o que isso significa. – Seokjin respirou fundo, apoiando o peso em uma das pernas e colocando a mão na cintura. – Ele é meu namorado, Yoongi.

– E dai?

– Ele tem um irmão híbrido, como você.

Yoongi tentou parecer desinteressado, mas suas orelhas e cauda o traíram como sempre, demonstrando sua curiosidade. Ele não conhecia muitos híbridos, parte porque não saia muito e parte porque não tinha interesse em conhecer pessoas novas, além do fato de eles não serem muitos. Ele conhecia apenas Taehyung, o gato mestiço que morava com Jimin. Se esse híbrido de quem Seokjin estava falando era como o felino alaranjado, hiper ativo e grudento feito chiclete, Yoongi não fazia a mínima questão de conhecê-lo. Mas ainda sim tinha uma certa curiosidade.

– Ele é muito simpático, o conheci quando fui à casa de Namjoon um dia desses. – Seokjin sorriu e se aproximou de Yoongi, estendendo a mão para deixar um carinho rápido em sua cabeça.

Yoongi chiou, mas não podia deixar de fechar os olhos e inclinar-se à carícia, afinal, ele ainda era um gato.  

– Tá, eu vou me arrumar.

– E vai me ajudar a pôr a mesa.

– Sim senhor. – Yoongi se lavantou do sofá e começou a arrastar os pés até o banheiro.

Yoongi odiava tomar banho.

Malditos instintos.

X

Quando Seokjin disse “ele é um hibrido como você”, Yoongi havia imaginado que ele ao menos seria um felino. Nunca passou pela cabeça que o garoto seria um cachorro.

– Golden Retriever. – Namjoon disse, enquanto estavam todos à mesa. – Minha mãe era amiga da mãe de Hoseok, acabamos crescendo juntos e nos tornando inseparáveis.

Yoongi rolou os olhos, aquele velho papo sobre “o melhor amigo do homem”.

Ainda bem ele que nascera meio gato e não um cachorro.

Hoseok, como ele havia se apresentado, tinha os cabelos dourados combinando com suas orelhas fofinhas, que caiam suavemente de cada lado de sua cabeça. Seus olhos amigáveis sempre bem atentos a tudo, e seu sorriso – enorme – sempre a mostra.

Yoongi quis sair de fininho depois de cinco minutos sentindo o olhar brincalhão de Hoseok pesar sobre ele.

Estavam falando sobre música, pois Yoongi aprendera que Namjoon também produzia. Nunca saberia que o mais novo fazia música na mesma faculdade que ele, um ano anterior ao seu. É, talvez precisasse conhecer mais pessoas.

A conversa fluía agradável, Hoseok também se interessava por música. Yoongi tinha que admitir que Seokjin estava certo, o canino era mesmo muito simpático. Parecia que apenas sua presença já deixava todos mais felizes.

Cachorros, tsc.

Quando terminaram de comer, Seokjin os enxotou da cozinha, uma desculpa para ficar sozinho com Namjoon enquanto lavavam os pratos. Yoongi apenas deu de ombros e seguiu para seu quarto, com um Hoseok curioso atrás de sua cauda.

– Wow, que quarto legal! – O golden retriever disse com uma notável animação em sua voz. Yoongi já estava cansado de ver seu rabo balançando . Será que Hoseok não cansava de estar animado o tempo todo? – Todos esses equipamentos são seus? Olha essa caixa de som! Aquilo ali é um teclado? Nossa olha quantos CD's!

Yoongi apenas acenou com a cabeça e sentou em sua cadeira giratória.

– Quer ouvir alguma coisa? – Foi a primeira coisa que veio à sua mente. Yoongi não sabia o que falar, não era lá muito comunicativo. Música resolveria a situação.

Hoseok – como esperado – concordou, acenando com a cabeça. Seu sorriso nunca deixando o rosto comprido.

Yoongi apenas girou na cadeira e moveu o mouse do computador, abrindo uma playlist aleatória.

Depois de ligar a música, Yoongi ficou exatamente cinco segundos olhando para Hoseok, ambos sem dizer nada. Esse foi o tempo que o canino levou para começar a dançar de acordo com a música.

Yoongi arregalou os olhos.

O corpo esguio de Hoseok se movia com maestria, e seu rosto denunciava sua paixão pelo que ele estava fazendo. Yoongi sentiu suas orelhas brancas se levantarem e seus olhos se arregalarem.

Aquilo sem dúvida era muito legal.

– Você é muito bom. – Resmungou.

– Vem dançar também! – Hoseok se aproximou dele e o pegou pela mão.

Yoongi chiou, suas orelhas se abaixaram e seus olhos semicerrados encaravam Hoseok. Porém, o outro não o soltou. Yoongi pensou em morde-lo ou arranhá-lo, mas tais pensamentos logo se esvaíram.

Ele é só um cachorro bobo, não vai te fazer mal.

Seja educado.

Arranhar convidados não é legal.

Yoongi enfim saiu de seu estado de alerta e se levantou, parando perto de Hoseok, que ainda dançava animadamente.

– Eu não sei dançar.

– Todo mundo sabe dançar.

– Eu não sou todo mundo.

Hoseok parou instantaneamente de dançar e colocou uma expressão triste no rosto. E de repente...

Ah não, isso não.

– Não ouse...

Já era tarde.

Então aqueles eram os famosos olhos de cachorrinho que caiu da mudança, é?

Parecia que tinham chutado Hoseok de casa, estava parado com o rabo entre as pernas, os olhos brilhantes praticamente o dobro do tamanho e um bico nos lábios.

E Yoongi achava que era bom de fazer esse tipo de expressão para ganhar uma hora extra de sono aos sábados.

Perto de Hoseok ele era amador.

– Tá, eu danço.

O angorá tentou balançar o corpo de acordo com a música, sem pensar em quanto estava se sentindo ridículo. Pouco importava, só não queria ser atacado por aquele olhar de Hoseok novamente.

– Ah foda-se. – Yoongi levantou os braços e começou a fazer uma dança estranha. Hoseok logo voltou a dançar, rindo alto e incentivando Yoongi a continuar.

Depois de um tempo, Yoongi se pegou  tentando copiar os movimentos do canino, tentando ignorar o cansaço precoce causado por sua falta de exercício. Nunca iria admitir, mas estava se divertindo.

E sorrindo.

– Devia sorrir mais ao invés de chiar e rosnar o tempo todo, você tem umas presinhas muito bonitas. – Hoseok disse, quando ambos já haviam parado de dançar e sentado no chão do quarto de Yoongi. Hoseok ainda sorria quando chegou perto do felino, fungando perto de sua orelha.

– Elas ficariam ainda mais bonitas cravadas no seu nariz, quer parar de me cheirar?

Hoseok forçou uma expressão desapontada, porém seu rabo ainda balançava, batendo no carpete e fazendo um som abafado.

– Mas você é cheiroso, é quase impossível não cheirar você! – Hoseok se aproximou mais ainda e encostou o nariz no pescoço de Yoongi.

O gato deu um pulo e, depois de chiar alto, enfiou as unhas em uma das coxas de Hoseok.

Se perguntarem, foi totalmente involuntário.

É claro que antes de se despedirem, Yoongi foi obrigado a fazer um curativo na coxa tonificada de Hoseok e ele também foi obrigado a pedir desculpas.

O dançarino porém, o perdoou prontamente e ainda ficou exatamente dez segundos abraçando o Yoongi como se ele fosse um urso de pelúcia.

Ou melhor, gato de pelúcia.

X

Yoongi negaria até o fim de sua vida, mas aprendeu a gostar de Hoseok. Infelizmente – ou felizmente – o namoro de Seokjin com Namjoon ia muito bem obrigado e isso implicava na visita constante dos dois. Além de, é claro, eventuais passeios no parque ou saídas para a praia. Yoongi era arrastado por Seokjin, porque ele insistia em levar o gato para “brincar” com Hoseok, e todo esse tempo felizmente – ou infelizmente – o fez construir um certo gosto pelo golden retriever.

E aquela carinha de cachorrinho ainda funcionava, todas as vezes.

– Será que posso te cheirar sem acabar machucado como da ultima vez? – Hoseok perguntou perto de sua orelha, que se contorceu quando a voz do outro soou grave contra ela.

Yoongi nunca, nunca admitiria, mas gostava de ter Hoseok perto de si.

Sim, gostava de ter um maldito cachorro fungando no seu cangote.

Gostava de ter Hoseok dormindo ao seu lado, encolhido e roncando baixinho.

Gostava de brincar de jogar frisbee o mais longe possível, apenas para ver o corpo magnífico de Hoseok correr majestoso.

Gostava de ter as orelhas casualmente mordiscadas e a cabeça afagada pelos dedos compridos do outro.

Gostava de Hoseok.

Um maldito cachorro.

– Faça o que você quiser.

E ele fez, se aconchegando perto de Yoongi e colocando o nariz contra seus cabelos clarinhos.

Hoseok jurou que ouviu Yoongi ronronando quando ele acariciou suas orelhas macias e depois entrelaçou seus dedos.

O felino, porém, negaria até a morte.