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História The Dragon Hall Reformatory (Malvie - Mevie) - Believe In You


Escrita por: patriciaquinzel

Notas do Autor


Believe In You - Cimorelli

QUASE UM MÊS DEPOIS, AQUI ESTOU EU!

O capítulo três foi lançado um pouco mais cedo do que o previsto, o capítulo quatro foi lançado um pouco mais tarde do que o previsto. Um equilíbrio perfeito, vocês não acham? Rsrs. Brincadeiras à parte, pessoal. Não vou pedir desculpas pelo meu atraso, pois certamente vocês já sabem que este é tecnicamente o prazo de atualização estabelecido atualmente; na melhor das hipóteses, se um capítulo sai mais cedo do que o outro, isto é certamente por causa da minha criatividade e do meu tempo livre — que estes dias está consideravelmente curto. As aulas voltaram obrigatoriamente, 100% presenciais, então meu tempo para escrever e lançar capítulos foi bastante reduzido. Um exemplo disto é este capítulo, que deveria ter sido lançado na segunda-feira. Por isso, tenham muita paciência, minhas capivarinhas.

Honestamente, de fato gostei de escrever este capítulo. Na verdade, em geral, gostei de escrever todos os capítulos desta nova versão da história. Sério. Com algumas inseguranças paranóicas ou não, gostei muito. Mas este é o capítulo que eu mais me diverti escrevendo até agora. Sentir-me tão satisfeita com isto faz com que minha insegurança ataque? Claro, mas esta não é uma pauta atual. Com a introdução de novos personagens e a possibilidade de explorar novos pontos de vista, mergulhar ainda mais em histórias de fundo, o surto de escrita da própria autora foi realmente grande; principalmente porque finalmente consegui abordar algo que havia planejado há muito tempo e gostei de como o expliquei no capítulo.

O elenco e o menu (se quiserem considerar uma pequena Wikipédia, tudo bem também) dos personagens sofreram algumas óbvias alterações. Novos personagens foram introduzidos lá também. Fiquem de olho nisto se quiserem receber breves spoilers ou apenas se aprofundar um pouco mais na privacidade dos personagens, é uma boa oportunidade e ajudará no entendimento geral da história. Conforme o combinado — lembro-me de ter combinado isto —, o link para o documento estará nas notas finais do capítulo.

Não tenho muito o que dizer aqui, ao menos não tanto quanto nos capítulos anteriores. Sendo assim, não vou me enrolar. Espero que vocês gostem do capítulo. Espero mesmo. Prestem atenção nos detalhes que podem ser muito importantes no futuro e deixem suas dúvidas nos comentários, estarei pronta para respondê-las se necessário. Beijos!

Capítulo 4 - Believe In You


Fanfic / Fanfiction The Dragon Hall Reformatory (Malvie - Mevie) - Believe In You

QUATRO

O DILÚVIO DE CABELOS PLATINADOS deslocou-se na sua direção com cautela — longos e brilhantes, bem hidratados, lindos, movimentando-se devagar, como uma cascata de neve. Seu olhar encontrou-a primeiro, pairando.

Ela estava escorada na porta do armário fechado, olhos atentos, postura falsamente relaxada, e forçou o caminho entre os estudantes quando viu sua atenção presa nela. As esferas fundidas do verde e do azul reluzindo com o reflexo prata-dourado como uma mistura de tintas, cores, fitando-a com veemência. O olhar alternava-se entre a admiração e o irresistível, em uma barreira tênue que deixaria qualquer outra pessoa desconfortável. Mas lhe era reconfortantemente agradável. Em seu âmago, o impulso de que não deveria se preocupar ardia loucamente, borbulhando como água fervente. Escutou-o.

O som das botas, dos saltos prateados grandes demais, soavam a cada passo no piso como um anúncio claro. Eram um clamor por atenção. O sorriso antes meio inseguro tornou-se meio presunçoso, esnobe, familiar, e cortava o rosto da caloura da freshman como o fio de uma navalha; ela não percebeu que de forma involuntária um vago e indefinido sorriso também rastejava por seu rosto, entrecortando-o, seguindo suas trêmulas intuições. Não se deu ao luxo de perceber.

Era uma situação inusitada, inovadora. 

E estranhamente curiosa.

Era impossível.

Não se moveu, não fugiu, não recuou. Apesar de tudo, os pés pareciam presos, colados no piso claro e brilhante que envolvia todo o chão do colégio. Então aguardou, com paciência, que ela a alcançasse, atenta, diligente; a carta ainda queimava como fogo em sua mão, fumegante, a pinicando, mas era uma sensação boa. Nova. Intrigante. Ela havia rodopiado até seus pés quando abriu o armário, caindo em seu campo de visão, fechada, com o papel amarelado e lacrado com cera rubra; cada letra parecia ter sido de fato escrita com pena e tinta, feita de próprio punho.

A forma como seus cabelos se moviam graciosamente, brancosos, era como uma tela de obras artísticas, e extensos; os fios longos o suficiente para alcançar as coxas da moça. O blazer escolar em uma tonalidade entre o vermelho e o vinho, com um fundo opaco levemente inclinado para o marrom sem perder a intensidade da cor, estava amarrado na cintura bem marcada da novata, expondo a blusa social escura do uniforme, com a gola branca perfeitamente dobrada, e contrastando com a pele e os cabelos dela; alguns dos botões deliberada e confortavelmente abertos, permitindo vislumbres de manchas irregulares da pele alva, macia e lisa. Parecia tão gostosa de se tocar

O caminho através da multidão de alunos parecia se abrir como a cortina de um espetáculo para permitir sua passagem e aproximação, como uma deusa grega, como a divina Afrodite. Agradavelmente, o calor pareceu envolvê-la ainda mais, abraçando-a com cuidado.

As palavras foram sussurradas ao pé de seu ouvido, rápidas e leves, cantantes como uma nota musical satisfatória de se ouvir: um local e um horário. Só. Nada mais. Daphne LaRusso se afastou astutamente, rápido, sem lhe dar a chance de tentar recusar o convite ou dizer algo mais; sem que ela mesma pudesse vê-la arrepiando-se com a proximidade e o toque dos lábios quentes no ouvido dela. Seus olhos apenas a acompanharam como faziam todas as manhãs que ela deixava a lanchonete de sua família, medindo seus passos controlados.

Ao fim do corredor que levava às salas de aula, conseguiu vê-la se virar tão lentamente como se temerosa, defensiva, os dentes pressionados contra os lábios carnudos, tirando parte do batom escuro — meio roxo-forte, meio preto — com eles, por pouco não machucando a carne. Tentando visualizar, identificar alguma expressão em seu rosto. Mas Roselen Nethilor baixou-o rápida e propositalmente, escondendo o insistente sorriso abobalhado que o consumia e focando seu olhar na pequena e fofa carta por um momento, para deslizar os olhos pelas letras encantadoras mais uma vez.

Mesmo assim, foi capaz, de alguma forma, de ouvi-la rir como se ainda estivesse ao seu lado. Era um som tão melodioso quanto seu timbre, gostoso de se ouvir.

Relaxadamente delicioso e conhecido.

Tão bom que fez seu coração acelerar, aquecendo.

As memórias eram implacáveis, fortes, intensas, uma passeata inesquecível que lhe insistia que ela ainda estava ali. Sua presença era como um fantasma que não a deixaria sozinha. Um grande engano, uma farsa enorme. Quando levantou o rosto mais uma vez para olhá-la, para ver se continuava ali, uma grande sombra se ergueu com uma lentidão proposital e pairou sobre ela como terríveis asas negras; eram felpudas, cravejadas de penas de corvos por toda extensão, e suas pontas eram afiadas como garras de monstros, capazes de fatiar pele. Seu rosto se desfigurou diante de seus olhos, despedaçado, perdido.

Não, não, não.

Uma palpitação a atingiu com força, intensa, uma dor pior do que ser apunhalada. Um vazio terrivelmente familiar que fez seus joelhos tremerem até cederem ao chão. Mais de mil agulhas em seu coração em menos de um minuto. O mundo girou ao redor dela, então o mundo cedeu. Era tudo escuro demais, despencava. Nem sequer teve tempo de gritar…

Sua cabeça se chocou contra algo macio. Macio o suficiente para amortecer o impacto que certamente causaria grande estrago. Quando seus olhos se abriram num ímpeto, ainda estava recostada no assento acolchoado, os cintos de segurança amarrados em sua cintura, prendendo-a, enlaçando-a. Paredes de metal branco ainda a cercavam, pessoas acomodadas em assentos próximos; foi impossível conter um suspiro de alívio. Ela ainda estava no avião. 

Fora apenas um sonho. Não, uma lembrança, um pesadelo. Um de seus piores pesadelos. Sua irmã mais nova, felizmente, ainda estava sentada ao seu lado. Óbvio, era bobagem pensar que não estaria.

Sua mão procurou a dela, segurando-a com firmeza, apertando os dedos nos dela apenas para ter uma certeza idiota de que ela permaneceria ali, uma certeza idiota de que aquilo era real. Para não se perder na realidade e naquilo que sua mente criava. Tabitha era seu escudo contra as cicatrizes e os pesadelos. Ela tinha os fones de ouvido postos conforme assistia a algo interessante o suficiente para capturar sua atenção na pequena televisão posta na parte de trás do assento da frente. Por um momento, sua atenção se dissolveu.

— Pesadelos, minha irmã? — ela perguntou olhando-a de soslaio, preocupada com o que viu. Moderou o tom de voz o suficiente para deixá-la ainda mais grata, sem atrair a atenção de mais nenhum passageiro.

Em resposta, Roselen deu de ombros com sutileza, alisando os cabelos fartos, escuros e naturalmente cacheados; eles estavam um pouco mais longos do que da última vez em que ela viajara num avião, quando deixou a cidade um ano atrás. E, em sua sinceridade, gostava deles do jeito que estavam. Eram bons no inverno, mas talvez precisasse cortá-los quando o verão voltasse para encobrir mais uma vez a camada do estado; a estação costumava ser absurdamente quente e úmida, principalmente em sua cidade. Mas o verão não começaria oficialmente até a metade de junho, de modo que não precisaria se preocupar com o calor escaldante por ora. O inverno tampouco atualmente era uma de suas maiores preocupações.

Ela, discreta e voluntariamente, achou melhor não entrar no assunto ou em muitos detalhes sobre o pesadelo da vez com a irmã. Não naquele momento, não naquele lugar. Apesar de não ser nenhuma novidade, e sim algo que já começava a se tornar frequente, não era um assunto muito adequado para ser discutido em uma aeronave. E em nenhum outro lugar, hora ou dia, em sua perspectiva. Quando muito, nunca. Nunca, nunca, nunca. Era melhor não tocar em feridas muito recentes quando se estava prestes a reabri-las — especialmente antes que tivessem o tempo necessário para realmente terminarem de cicatrizarem-se.

As suas, afinal, ainda estavam abertas à carne viva e crua, gravadas em sua pele, e voltariam a penetrar em seus ossos. Eram tão recentes, tão frescas quanto o ferimento de uma criança ao cair de bicicleta. Um ano não era tempo o bastante. Em parte, já estava acostumada com a sensação de dor e vazio em seu peito, o sentimento de algo estar faltando em sua vida. Precisou se acostumar com sua presença, por mais dolorosa que fosse, por mais que ainda não fosse capaz de seguir em frente, superar.

Com dificuldade, Roselen conseguiu sorrir para a irmã. Um sorriso frágil, pouco verdadeiro, mas bastante útil.

Ou ela esperava que fosse.

— Culpe a cinetose, Tabs. Não é possível dormir em paz quando se está em movimento — Rose respondeu em um tom forçadamente casual, endireitando a coluna; as costas estalaram, um osso de cada vez. Discretamente, a jovem mulher rolou os lindos, invejáveis e vistosos, olhos castanhos-dourados para o lado, antes de esfregá-los com a mão; as olheiras sob eles eram provas de noites mal dormidas que ela não se dera o trabalho de esconder. Daphne ficaria decepcionada em ver os olhos que tanto amava daquela forma, tão vazios, tão tristes, tão mal cuidados. Sem brilho algum. Nada da luz que transmitiam quando estavam juntas. — Odeio viagens longas, sabia? — retrucou, sincera.

Tabitha virou a cabeça para encará-la, o pescoço também estalando, ambas as sobrancelhas levantadas e os lábios desenhados em um sorriso de completo escárnio. Ela zombou baixinho, como alguém rezando para um anjo da guarda, o sorriso cruzando, dividindo seu rosto negro:

— Você acabou de dizer a palavra com ‘o’? — ela perguntou quase sapeca, mordendo a língua. Como uma criança.

Nos últimos meses, sempre havia alguma pitada de diversão serpeteando livremente sobre sua voz para tentar animá-la; uma camada extra no tom naturalmente generoso e brincalhão. Tabitha conseguia ser contagiante. Sua irmã mais velha quase conseguia ver suas palavras contornando o ar como uma serpente rastejante na tentativa de ter a oportunidade de abraçá-la e envolvê-la.

Ela sabia quais eram seus pesadelos, seus traumas, mesmo quando se recusava a contá-los, e estava sempre ali para distraí-la. A compreendia. Era o apoio de que ela precisava, a âncora a que se amarrar e escorar. Um dos muitos apoios que se dedicava a dar numa altura como aquela, o que só fazia o seu amor pela irmã se multiplicar ainda mais.

A mais jovem riu de leve pelo nariz, não esperando por uma resposta e negando antes de acrescentar em um tom rápido e relaxado, o olhar alternando-se de vez em quando entre ela e o programa que estava assistindo; tudo o que Roselen podia observar na tela eram pessoas de ambos os sexos, vestidas apenas de preto numa área de treinamento limitada, cinzenta como uma nuvem de chuva pesada — algo que de longe ajudava-a a desvendar o mistério do que aquilo era.

— Acho que você está mesmo cansada, Rose. Muito cansada — arrematou baixinho, irônica, e seus dentes brilharam quando sorriu mais ainda.

Roselen balançou a cabeça, uma expressão entediada perpassando por seu rosto como um raio. Ela puxou um dos fones de ouvido da irmã sem pedir por permissão; Tabitha grunhiu em uma clara oposição, já aumentando o volume, mas não a impediu de colocar o pequeno objeto no próprio ouvido, inclinando-se sobre o braço do assento para ter uma visão melhor da tela. Apesar da boa diferença de idade, a semelhança entre as duas era bela e nitidamente visível. Os traços que compartilhavam com orgulho. Os cabelos, as expressões, as cores da pele, os olhos: eram incríveis e idênticos. Marcantes e únicos. Lindos.

A jovem aeromoça, que circulava como um mosquito zonzo pelo corredor estreito e único que dividia as duas áreas de assentos azulados com adornos laranjas ao chamado de alguns passageiros VIPs, passou por elas em direção à cabine do piloto quando o avião começou a se inclinar, predispondo-se de maneira discreta, o barulho dos seus saltos altos a seguindo com insistência como um cão a seguir o seu dono no meio da rua. Os dois comissários de bordo, por sua vez, continuaram circulando a aeronave em seus uniformes azuis como um rio lívido e gravatas amarelas reluzentes, oferecendo auxílio no que podiam.

Silenciosamente, alguns segundos depois, a mais velha acenou com a cabeça em direção à pequena tela de forma sutil, agitando algumas mechas de cabelo — sem nenhum propósito sério, claro —, a testa franzida com alguma curiosidade. Não conseguia, nem mesmo com o áudio, saber, distinguir o que a irmã estava assistindo; reconhecia apenas que era algo que envolvia ação e luta corporal. Algo que Daphne e sua cunhada, Mal, assistiriam juntas. Ela nunca havia o assistido, o que era ótimo. Uma fuga, uma distração. Era o que aquilo era e o que ela precisava.

— O que você está assistindo? — ela questionou afinal, um pouco alheia, e a mais jovem deu de ombros, desinteressada. Simples.

Tabitha não se limitou a muitos detalhes.

— A adaptação de um livro que tenho lido ultimamente. Divergente.

Apesar de desconhecer a maior parte dos muitos livros lidos pela irmã, Roselen conhecia aquele título. Era familiar. O nome, as cenas…

— Aquele livro tosco que você não queria largar por nada?

Por um minuto, ela quase se arrependeu.

Tabitha olhou-a de imediato, literalmente, quase sem acreditar. Devagar, lentamente, a expressão se contorcendo de uma descrença lívida, os olhos não pulando das órbitas do crânio por pouco; muito pouco. A moça piscou como se ela fosse uma criatura inacreditavelmente idiota e burra e estúpida; sua boca acabou ligeiramente aberta com o choque inicial do insulto. Insulto.

Ela se recuperou rápido, porém, fechando a expressão de forma emburrada. Sua irmã sabia que se ela visse o beicinho teimosamente fofo que surgia pouco a pouco em seus lábios, naquele momento, morreria de amores instantaneamente. Era óbvio, nítido demais. Rose sorriu inocente, erguendo um ombro, e viu a incredulidade ainda brilhando viva como chamas nos olhos da caçula.

— Não é um livro tosco! O filme, sim, é tosco, mas o livro é bom. Não é minha trilogia favorita, mas é muito bom — rebateu Tabitha categórica, como um dono defendendo um animal de estimação mal-comportado, não um filme lançado há dois anos com base em um livro. Seus olhos rolaram para o lado como uma bola em um campo enquanto ela os revirava.

Roselen sentiu um tipo diferente de calor percorrendo seu peito. Com um sorriso mais verdadeiro, ela a cutucou suavemente, manejando a cabeça. Invertendo os papéis. Então, tomando cuidado para não ser estapeada, a provocou. Incitou-a com uma expressão quase atrevida e divertidamente irônica demais na face, os olhos brilhando, em ​um tom baixo o suficiente para que sua voz pudesse ser capaz de se espreitar apenas entre elas como um ágil rato numa tubulação estreita:

— É um livro onde falam sobre facções futuristas e a maioria dos personagens morrem no final. Incluindo a própria protagonista. Como pode não ser tosco?

— Pfff! — ela desdenhou, bufando alto. Mordendo a isca em cheio. — Está olhando pelo lado errado, Rose. As mortes são o que o tornam mais legal. Por favor, eu tenho senso crítico.

— Acredite em mim, sua definição de “crítico” está quebrada. Pelo que li, é um livro tosco, sim — brincou Rose, rindo, estendendo a mão para dar uma sacudidela na testa dela para se enfatizar. Em seguida, concluiu: — Incrivelmente tosco e bruto, irmã.

Apesar do leve, impaciente empurrão que recebeu no ombro, sobre o casaco grosso e revestido que vestia, e forte o suficiente para fazer seu cotovelo cair do apoio de braço do assento, a mais velha conseguiu ver que Tabitha tentava conter o mais imperceptível indício de um sorriso pressionando os lábios um contra o outro. Parecia satisfeita. Orgulhosa. Ela passou um braço em volta dos ombros da irmã, sutilmente puxando-a contra seu peito num agradecimento discreto, sutil. A mais jovem estava bem ciente do significado do gesto; sua modesta resposta foi tocar-lhe o braço e sacudir a cabeça. Não precisa agradecer, idiota.

Sobretudo, mesmo com seus comentários irrelevantes, inconvenientes, Roselen também não fez nenhum movimento para ameaçar remover o fone do ouvido e deixar de assistir ao filme tosco antes que o pouso fosse enfim anunciado; ambas os tiraram de forma sutil só para ouvir o aviso. Estavam a apenas cinco mil pés da pista de aterrissagem.

De repente, sua mão apertou com um pouco mais de força a de sua irmã, vendo a pequena televisão desligar de maneira áspera, e sentindo a altitude começar a decair, diminuir ainda mais; seus olhos se fecharam lentamente, o peito subindo e descendo enquanto ela inspirava e expirava em intervalos curtos. Contando-os. Quatro mil pés, três mil pés... Tabitha devolveu o aperto, discreta, ajeitando-se, esticando-se habilmente ao lado dela.

Ao menos uma delas aparentava estar de fato ansiosa para encarar a realidade, o peso, as lembranças de seu passado.

As ofuscantes luzes vermelhas e brancas da pista cintilavam ao chão como o brilho produzido por milhares de jóias unidas em uma só, sustentadas por enormes pilares de metal esbranquiçados demarcando o caminho correto a ser percorrido pelo avião. Lentamente, as rodas da aeronave roçaram o concreto como dois lábios timidamente roçando um no outro antes de finalmente atingirem o solo em um contato oficial e completo. Os assentos quicaram para cima e para baixo, voltando-se contra a gravidade por um momento à medida que o ligeiro empuxo fazia os ruídos criados pelos cintos de segurança soarem como choramingos baixos e infantis escondidos sob o grito estrondoso dos motores barulhentos. Era um som certamente desumano.

— E pousamos — avisou a aeromoça, com um suspiro entediante de cansaço que mal teria sido ouvido caso ela não estivesse usando os megafones dispostos pelo avião. Aparentava estar cansada, enfadada. A grande e repentina explosão de palmas, excitadas e aliviadas, cortou o ar enquanto a carcaça metálica deslizava pela pista de aterrissagem como uma faca de manteiga deslizando sobre um pedaço de pão. Sob ambos os barulhos, o resto da frase quase não era audível, mesmo com a tecnologia de ampliação. — Bem-vindos a Nova Jersey. O horário local é 21h49. Em nome de toda a equipe de voo, gostaria de agradecer a todos por voarem com a Montego Air.

Contudo, apesar dela tentar exercer o máximo de entusiasmo possível, a mulher parecia prestes a bocejar. Entediada. Não podiam a culpar por isso.

A noite caia silenciosa sobre todo o aeroporto.

Apenas o cantarolar distante de um único e solitário pássaro e os gemidos agora consideravelmente baixos do avião quebravam a crescente tranquilidade instalada no local. A movimentação era de fato mínima. Os motores giravam cada vez mais devagar, lentos como uma criança cansada de correr pela rua de sua casa, até que finalmente cessaram. Desligaram. A tonalidade chocante do azul da eletricidade localizada sob as grandes asas acabou também desvanecendo-se, até que a luz existisse apenas dentro da aeronave e nas estrelas brilhantes no céu grandioso, espaçoso, a fora, milhões de metros de distância dos dedos de qualquer humano vivo.

O inverno estava por todo o ar, marcado pelo cheiro de árvores secas e folhas mortas e pela umidade dos montes de neve não muito distantes. O vento gélido, cortante, atingiu seus rostos em uma bufada de ar fria ainda na entrada da passarela que conectava a pista de aterrissagem ao corpo do aeroporto. Era vítrea e suas paredes transparentes estavam completamente embasadas pelo sopro. Cuidadosamente, Roselen puxou de uma de suas malas um cachecol feito de um preto intenso como nanquim, felpudo, quente, e habilmente o enrolou em volta do pescoço; ele tinha impregnado em si o aroma fresco de cerejeiras e amêndoas. O cheiro invadiu forte e intensamente suas narinas. Era o cheiro dela: o cheiro de sua noiva. O cachecol era dela, há muito esquecido em seu antigo apartamento. Felizmente, ela não chegara a devolvê-lo. Uma lembrança antiga do amor que perdera injustamente.

Não que alguém precisasse saber disso.

Logo ao seu lado, Tabitha pressionava o casaco contra o próprio corpo, o cenho franzido fazendo uma pequena ruga de expressão surgir entre suas sobrancelhas à medida que ela observava a tela do celular como uma estudante que via o resultado de um teste de matemática. Confusa.

— O que foi? — Rose perguntou anárquica, erguendo as sobrancelhas.

— Não há sinal aqui — ela balbuciou frustrada, balançando a cabeça. Então, enfiou o celular no bolso de trás da calça enquanto endireitava os ombros mais uma vez; o vento bagunçou seus cabelos, jogando-os para trás com uma força assustadora. — Você acha que ela vem?

Um sorriso se desenhou lentamente no rosto de Roselen.

— Por que ela seria louca em não vir? — rebateu.

O aeroporto era uma construção circular com paredes lisas de mármore branco, colunas espiraladas e paredes de vidro com vista para as pistas de aterrissagem e decolagem. O teto era alto e os portões de embarque (e desembarque) eram demarcados com números; estavam saindo do Portão Dezessete, que ficava sobre um pequeno lance de escadas onde se formavam as filas para as inspeções de segurança. Mesmo dentro, a movimentação era mínima, uma vez que não havia quaisquer voos programados para decolar naquele momento. Algumas poucas pessoas iam e vinham, num vaivém ritmado e cronometrado, com malas pesadas nas mãos ou nos ombros; outras, somente sentadas nas poltronas dispostas perto dos Grandes Portões. A área de espera. As lojas de alimentos, acessórios e souvenirs permaneciam abertas com os funcionários trocando de turno para voos que aconteceriam mais adentro do entardecer noturno.

Ao centro do círculo de poltronas enroladas e dispostas como a concha de um caracol, três figuras familiares — duas moças e um jovem rapaz — esperavam. Não para um embarque, muito menos para descarregar malas. Simplesmente esperavam, silenciosos e atentos. Ansiosos. O único rapaz estava sentado numa poltrona para dois, uma perna cruzada sobre um joelho em posição horizontal, o corpo adolescente ainda em transição para o de um homem adulto; uma das moças repousava a cabeça em seu peito enquanto ele brincava com os dedos de suas mãos unidas. Ele tinha uma estrutura forte, ombros largos e pernas bem torneadas como o físico de um jovem lenhador. Seu cabelo castanho sedoso perfeitamente penteado para cima, olhos azuis claros brilhantes como estrelas e uma barba por fazer; os dentes de sua boca eram inacreditavelmente brancos. As roupas que usava, contudo, eram consideravelmente simples. Uma calça preta, firme e justa, uma jaqueta azul escura com botões prateados e tênis cinza-claro. Nuallán Harteron foi o primeiro a vê-las, os olhos refletindo de entusiasmo ao atrair a atenção da namorada beijando-a cortesmente na testa.

Sua namorada, Minthe Anyadike, girou o corpo devagar para olhar na mesma direção do namorado, então se levantou rapidamente quando o olhar encontrou seu foco. Ele não pensou duas vezes e a imitou com prontidão. Se as roupas de Nuallán eram escuras e seus olhos claros, o moletom e a calça que Minthe usava eram claros com pontinhos cinzas como manchas na neve, e seus olhos castanho-escuros eram vívidos; seus cabelos eram da cor de chocolate. Num claro contraste, na poltrona ao lado deles, os cabelos louro-acinzentados e os olhos verdes de Abigàil Larasati brilhavam em silêncio absoluto. O casaco verde e a calça escura só lhe conferiam ainda mais brilho próprio. Ao contrário dos dois, ela se distraía com uma indecifrável revista à área de espera e levantou-se tão graciosa e preguiçosa quanto um felino, mas seu sorriso era igualmente grandioso.

Por mais acolhedora que fosse a cena, Roselen não pôde deixar de se surpreender com a recepção; seus olhos lançavam uma pergunta silenciosa que nunca deixou realmente seus lábios. Não precisava de uma resposta verbal. O único que sabia sobre seu retorno era seu avô, Terrence Tate, mas aparentemente ele não fora capaz de manter nenhum segredo sobre. Não o culpava por isso. Os olhos de Tabitha, ao contrário dos dela, não estavam focados nos amigos da irmã. Eles vagaram por um momento ao longo do horizonte do aeroporto ao redor de ambas, procurando implacavelmente por um emaranhado de cabelos castanhos-avermelhados reluzindo em meio ao branco. Nada. Apesar de suas pernas mantiverem o mesmo ritmo da irmã, permitindo-a guiar o passo conforme desciam os degraus, seus olhos faziam o oposto, embora ela tentasse ao máximo disfarçar.

Abby foi a primeira a puxá-las para um forte abraço, envolvendo as duas moças firmemente com seus longos e claros braços; a revista que outrora estava em suas mãos ficou jogada na poltrona.

— Pensei que teríamos que entrar em um avião e buscar vocês pelos cabelos — ela murmurou descontraída. Completamente extrovertida. O sotaque francês ainda era orgulhoso e firmemente notável em seu timbre. Em seguida, ela se afastou, sorrindo tanto que era possível ver a fileira de trás de seus dentes, e observou Rose da cabeça aos pés, estudando-a. Abigàil fez uma pequena concha com os dedos da mão e estourou-a com uma bitoca. — Vadia, você está linda. Com algumas olheiras, mas linda.

Minthe praticamente a empurrou, gentil e suavemente, mais para o lado para que ela também pudesse abraçar as duas, suas risadas se fundindo em apenas uma como uma música. Embora ela fosse alguns bons meses mais velha — meses o suficiente para dar a ela o poder de lhes puxar a orelha às vezes por decisões estúpidas —, era consideravelmente mais baixa do que Roselen; a jovem mulher teve que dobrar um pouco os joelhos, flexionando levemente as pernas para poder abraçar a velha amiga. E sua irmã imitou seu gesto com prontidão, um sorriso divertido e silencioso tremeluzindo em seu rosto.

Suas sobrancelhas pareciam um pouco contraídas para dentro de sua expressão como se ela estivesse confusa, quase conectadas aos olhos castanhos; a cabeça tombou para o lado feito um cachorrinho curioso analisando um novo brinquedo. Apesar de sua baixa estatura, ela parecia muito mais avultada quando as questionou, interrogou em um tom de voz real, naturalmente curiosa e quase áspera, direta, capaz de fazer uma montanha inteira se arquear a seus pés. Era fácil, simples fazer-se ouvir, mesmo com seu tom de voz dócil como morangos vermelhos e fresquinhos.

— Como é que vocês planejaram voltar sem nos dizer nada? — Minthe deu-lhe um sorriso vago, quase magoado ao questionar; Tabitha deliberadamente deixou que a mais velha respondesse à pergunta. Rose fora capaz de sentir o leve respingo de uma pequena e antiga acusação convertida numa provocação em seu tom, como um incômodo não tão notável, uma discreta gota d'água respingando, mas a ignorou com o mais imperceptível aceno de cabeça possível.

Como de costume, sorrindo, exibindo seus dentes brancos.

— Tabs e eu não queríamos tirá-los de casa nesse horário — ela explicou-se, e gesticulou com o queixo em direção às paredes de vidro, para o céu escuro banhado por estrelas cintilantes que iluminavam as ruas junto com o luar. — Não viram que horas são?

Nuallán sorriu dançante, ignorando a pergunta retórica e abraçando-as ao mesmo tempo sem nenhuma dificuldade. Seus braços eram tão grandes e largos que em meio ao abraço caberia confortavelmente até mesmo uma terceira pessoa. Quando por fim se afastou, saltando habilidosamente de volta para o lado de sua namorada, ele colocou um braço musculoso em volta dos ombros dela. Ele parecia mais animado, agitado do que o normal. A barba escura e bem cuidada que o rapaz ostentava se contorcia junto com seu sorriso; ela combinava perfeitamente com ele. Deixava-o mais bonito. Maduro.

Na última vez que ela o vira pessoalmente, ele ainda tinha o rosto liso como o de um adolescente. Coisa que ele de fato era naquela época, já que atualmente tinha pouco mais de dezenove anos. A decisão de passar a usá-la deveria tê-lo atingido, forte e avassaladora como um meteorito, ainda naquele último ano. Uma boa decisão.

— Talvez suas táticas não sejam tão boas assim — ele rebateu, agitando os ombros para cima e para baixo. Nuallán sorriu ainda mais. — Querem comer alguma coisa antes de nós as levarmos ao seu destino? Acho que nós precisamos mesmo nos atualizar.

De repente, o anel de brilhantes que se encaixava perfeita e delicadamente ao dedo anelar longo e fino da mão esquerda de sua namorada brilhou. Reluziu-se solitário quando um feixe de luz branca o atingiu, chamando a atenção de Roselen e confirmando as palavras do rapaz. Ele sorriu, assentindo silenciosamente para uma pergunta que ela não tinha chegado a fazer. O objeto era ainda mais bonito quando visto de perto, não por uma foto. Era um anel de noivado; prata moldado em heras com três pedras, duas esmeraldas brancas e um diamante solitário no topo. Diferente da aliança que Daphne um dia lhe dera quando a pediu em casamento, que moldava-se em ouro e prata entrelaçados, lisos, com um arabesco superior que elevava uma jóia amarela. A aliança que ela ainda usava no mesmo dedo que Minthe agora usava a dela.

Nuallán e Minthe estavam noivos.

Ambos pareciam radiantes em poder relatar a notícia mais uma vez, pessoalmente, e não apenas em uma chamada de vídeo depois de lhe enviarem uma foto. Muita coisa havia acontecido em um único ano.

Cruzaram a área, ziguezagueando entre as poltronas e sofás, para chegar a um café simples do aeroporto. Não era longe, apenas alguns metros à frente, em uma travessa minúscula e confortável entre duas lojas de presentes e no corredor oposto aos banheiros. Seu horário de funcionamento, como o de quase todas as lojas do aeroporto, era de vinte e quatro horas. As paredes internas do estabelecimento se erguiam em um tom profundo de marrom que podia ser visto mesmo de longe, com o balcão e as mesas em tons de preto semelhantes ao piso escuro do chão em um belo contraste com todo o branco ofuscante do lado de fora. Cores escolhidas com o intuito cuidadoso de se destacar propositalmente. Uma tática inteligente.

Entrementes, antes da metade do percurso, um assobio cortou o ar por um instante. Rápido demais, curto demais.

Ainda assim, fora pelo tempo exato, suficiente.

Era um som baixo e suave que ressoou pelas paredes incolores, mas inconfundível. A melodia de somente duas notas, única e inofensiva. Tabitha pensou ser a única do grupo a ouvi-la logo em seu primeiro cantarolar; Abby contava relatos detalhados de seu primeiro e único dia como cirurgiã de emergência no hospital onde era médica, quando fizera a cirurgia para remover o rim de um paciente acamado. A primeira vez que segurou um órgão humano em suas próprias mãos. Ela virou a cabeça rapidamente, bem a tempo de ver um vulto conhecido cruzando o corredor. Em direção aos banheiros. Os tão procurados, ansiados e ofuscantes cabelos vermelhos como chamas de fogo ardente serpenteando pelo ar clamando para ganhar sua atenção.

Um peso inexplicável parecia ser lentamente retirado de si, drenado de seu peito com todas as suas maiores preocupações depois de uma incisão médica certeira. Ela estava ali. Ela tinha ido vê-la. Não percebeu quando diminuiu a velocidade de seus passos quase que por completo. Só percebeu o que estava fazendo, recobrou a consciência, quando tocou o braço da irmã mais velha, empurrando discretamente a mala para mais perto dela. Talvez sua expressão estivesse feliz, animada demais, denunciando-a. Não se importava.

— Vocês podem ir indo, volto num minuto. — As palavras forçaram caminho, saída por entre seus lábios apenas para ela não sumir de repente, mas não esperou por uma resposta.

Um minuto certamente seria muito pouco tempo.

Roselen não se manifestou em voz alta, captando com remanso o significado de suas palavras nas entrelinhas; um sorriso ameaçou cruzar seu rosto mais uma vez enquanto observava Tabitha se afastar com passos comedidos ao longo do mesmo caminho para o qual a figura a atraiu. Uma onda semelhante à nostalgia a atingiu. Ela deu de ombros para os outros três, desinteressada como se não soubesse de nada, seguindo andando. Aquele não era um segredo seu, mas era grata pela irmã confiar nela para compartilhá-lo e mantê-lo.

O único rapaz do grupo parou a milímetros dela delicadamente, em frente à entrada do café; o formato da porta da frente remetia-se a uma xícara gigante forrada com batentes e metais escuros, as janelas ao redor consideravelmente amplas e um “chapéu” sobre o letreiro simulando a fumaça de uma bebida recém-preparada. “Jimmy's Coffee & Snacks”: era o que anunciava o letreiro. Seu olhar caiu com cuidado para o cachecol que ela usava, aproveitando a ausência da mais jovem para tocá-lo respeitosamente. Um sorriso triste alcançou seus lábios pela primeira vez desde o reencontro; Minthe se agarrou ao braço dele e inclinou-se em sua direção, apoiando tanto o noivo quanto a amiga como uma grande muralha. Ele reconhecia a peça.

— Era dela, certo? — questionou com a voz descendo uma oitava, até que suas palavras se tornaram apenas um sussurro mínimo.

Nuallán Harteron fora o primeiro amigo de Daphne após o seu retorno ao país natal junto com sua irmã mais nova. Ambas estiveram ausentes do país por três anos e meio, num internato feminino na França realizando um intercâmbio focado em suas áreas de trabalho escolhidas desde tenra idade, enquanto seus outros dois irmãos foram enviados a outros países com o mesmo propósito. Um mimo de seu bondoso pai, Maxon LaRusso, que queria dar a eles a educação que ele e o irmão gêmeo não puderam receber. A amizade dos dois evoluiu para algo semelhante à irmandade. E sob a influência da platinada, no início de seu namoro, ele também se aproximou do trio de moças ligeiramente mais velhas. Estavam todos conectados, entrelaçados de alguma forma graças a mesma pessoa que os havia transformado em uma família. Unidos em um nó impossível de desatar.

Seu olhar se tornou mais cauteloso, não precisando de qualquer resposta verbal para obter uma confirmação.

— Era o cachecol da Daphne.

Não havia como negar.

— Ela o deixou no meu apartamento, Nuall — Roselen quase gaguejou sob o peso dos olhares. Ao menos eles estavam cheios de compaixão. Compreensão. Sem resquícios de pena. Nenhum julgamento. — Não tive tempo de devolvê-lo. E era o único que eu tinha em minhas malas também. Não me lembrava com clareza de como era frio aqui — desconversou.

Somente enquanto selecionavam uma mesa no café a que ocupar foi que a jovem mulher sentiu uma presença ao seu lado mais uma vez, o calor alheio aquecendo-a minimamente. Era uma boa sensação. E familiar. A maioria das mesas e assentos escuros do café estavam vazios, mas os jovens optaram por uma mesa mais ao fundo: a vista através de sua janela era ótima, excepcional, permitindo-lhes um vislumbre privado do céu estrelado a fora. As estrelas pareciam brincar umas com as outras, saltitar, e o vidro fechado evitava que o ar gélido as alcançasse e enlaçasse novamente.

Enquanto o rapaz permanecia no balcão, ocupado, encarregado de fazer os pedidos, a mão de Minthe enfim tocou o ombro de Roselen, traçando-o com seus dedos em um conforto delicado e suave à medida que Abigàil se sentava em frente a elas para segurar sua mão apenas como velhas amigas podiam ser capazes de fazer. Atenciosas e compreensíveis.

Ela sorriu, os cantos de seus olhos castanhos-dourados se repuxando com o ato, já agradecida.

— Nós acreditamos em você, Rose — cochichou a mais baixa em seu ouvido. Ela sabia que a frase ia muito além das linhas imaginárias com as quais poderia fantasiar em sua mente. Confirmou distraidamente, imensamente grata.

Nuallán retornou em poucos instantes, mais uma vez sorridente demais, os dentes à mostra de uma maneira contagiante. Carregava cinco garrafas de refrigerante em seus braços, todas seladas e feitas de vidro, pressionadas contra seu peitoral largo. Não carregava, no entanto, qualquer abridor.

Ele deslocou-se para o lado de Abby, de frente para a noiva, e mais uma vez colocou uma perna sobre um joelho, o braço estendido e relaxado para o lado; a mão pendendo para fora, os dedos tamborilando. Discretamente, ele bateu a tampa da garrafa na quina da mesa, abrindo-a com destreza. A tampa metálica voou velozmente pelo ar com um assobio curto antes de atingir o chão, tilintando e girando no piso até que parou de costas para baixo; o barulho atraiu a atenção de um atendente que não falou nada. Depois de repetir o gesto com as outras garrafas, todas com o mesmo resultado, e deixando a de Tabitha no lugar onde ela supostamente ocuparia quando voltasse, ele pegou a própria garrafa e ergueu-a com uma sobrancelha movendo-se ritmicamente.

Então levantou o dedo mindinho, e propôs um pouco emocionado:

— Às pessoas que olham para as estrelas e desejam, moças.

Os vidros das garrafas tilintaram juntos, nítida e alegremente, intensos, acima do barulho do que seria outra aterrissagem quando todos as ergueram em uma sincronia mais do que perfeita.

Roselen afastou uma mecha de cabelo farta e rebelde do rosto com um movimento do pescoço, brindando sua própria garrafa contra a deles.

— Às estrelas que ouvem e aos sonhos que se realizam.

Impressão ou não, ela poderia jurar que, ao olhar pela janela mais uma vez, uma das estrelas em seu foco de visão brilhava mais intensamente do que todas as outras.
 

Os espelhos do banheiro refletiam seu reflexo em diversos ângulos diferentes. Estavam em todas as paredes, sobre os lavatórios, alternando-se em algumas portas de cabines: espalhados como a área de espelhos de um parque de diversões infantil. Mas com usos inclinados à vaidade e beleza feminina.

Apesar das óbvias, visíveis poucas horas de sono, os cremes tônicos e hidratantes em sua pele negra ajudavam a disfarçar suas olheiras, deixando-a ainda mais viva e radiante. Brilhosa. Tabitha trancou a porta lisa de madeira branca ao adentrar o banheiro feminino com extrema facilidade, simplicidade, sem atrair nenhum foco de atenção desnecessária; ela encontrara a chave e um pequeno pedaço de papel, breve e certamente inesperado, em um vaso de plantas perto da porta de entrada, junto com uma placa de interditado. Ocultos, escondidos dos curiosos olhos de todos, mas de alguma forma visíveis apenas aos seus próprios olhos astutos. Outra tática esperta, inteligente. Típica.

Coloque a placa e tranque a porta ao entrar, o papel lhe instruiu sem quaisquer rodeios. Sem enrolações pegajosas ou grotescas, deixando-a mais ansiosa, nervosa. A letra cursiva era elegante e ostentosa, linda e bem trabalhada. A caligrafia era reconhecível o suficiente. E para ela bastava. Tabitha obedeceu, sem pensar duas vezes, com o coração batendo forte como um martelo dentro de seu próprio peito em uma expectativa descomunal.

Mas não a localizou de imediato. Não. O banheiro parecia tão vazio, tão desprovido de vida quanto um deserto ensolarado. Mesmo tendo seguido os tão amados e conhecidos fios avermelhados, rubros, até ali, não podia vê-la. Não conseguia vê-la. Como se fosse apenas um fantasma de seus pensamentos. Cruzou as mãos em frente ao corpo, distraidamente mordendo os lábios. Parecia uma adolescente estúpida, idiota. Uma menininha apaixonada. Tão ridícula quanto costumava censurar a irmã por ser durante seu próprio namoro. Era irônico, mas não se envergonhava tanto quanto deveria.

Ela ensaiou, por um momento, um passo à frente, mas por fim recuou, virando o corpo na direção oposta. Touché. Então, duas mãos calma e firmemente agarraram sua cintura, impedindo-a de sair. Uma risada irrompeu do fundo de sua garganta, verdadeira, contagiosa, sentindo seu corpo ser virado e colocado cuidadosamente contra uma parede livre de espelhos.

Um instante depois, os lábios dela estavam sobre os seus. Cobrindo-os suavemente, ternamente com um efeito assolador. Tabitha correspondeu instantaneamente sorrindo entre o beijo, seus braços indo parar ao redor de seu pescoço para tentar cessar, reduzir a lacuna de espaço que ainda existia entre seus corpos. Wanda Maximoff movimentou os próprios lábios, macios e ternos, na tentativa de adquirir um pouco mais daquele beijo; os dentes se enrolaram discretamente em torno do lábio inferior da mais jovem, numa mordidela mais do que sutil para permitir que as línguas se encontrassem após um breve e entrecortado suspiro. O início de uma batalha pela dominação a qual ela não se importava em perder.

Ela enterrou o rosto no pescoço da ruiva, sua respiração atingindo-a ali de forma desconcertante, gostosa. Deixando-a abraçá-la por completo enquanto seus lábios se separavam com um estalo baixo, suave que arrancou risadinhas de ambas.

Wanda era tão clara quanto Tabitha era escura, com a pele branca como o floco de neve mais nítido do inverno, turva e perfeita, e os cabelos fundindo-se entre os tons de rubro e o marrom, enquanto sua amante era castanha como pólvora desde o cabelo e os olhos com vislumbres tênues de ouro às mãos macias e hidratadas. A base de fundo de que precisavam. O contraste perfeito uma da outra. Tudo o que as tornavam mais perfeitas ainda uma para a outra: as diferenças que carregavam em suas classes sociais, em suas veias e em suas vidas. Imperfeitamente perfeitas.

— Iria mesmo me deixar sozinha aqui? — Wanda perguntou depois de alguns momentos, baixa e curiosa. Todavia, sorrindo.

Seus dedos se enredaram com cuidado nos cabelos escuros da outra, dedilhando-o devagar. Ela apenas riu em seu pescoço, um esfregar de lábios e aço frio antes de se afastar um pouco para olhar direta e intensamente em suas belíssimas nuances esverdeadas.

Tabitha sorriu, impotentemente apaixonada pela mulher à sua frente.

— Realmente acha que eu faria isso? — retorquiu, levantando o rosto para beijá-la mais uma vez. Wanda sorriu, seus lábios se curvando contra os dela. — Achei que você não viria.

A ruiva ergueu uma sobrancelha com ironia.

— Realmente acha que eu faria isso, preciosa? — ela repetiu suas palavras. De repente, elas pareciam tão melhores, tão mais intensas saindo dos lábios dela. — Quanto tempo nós temos? — quis saber, ansiosa. Cuidadosa.

— Eu disse a Rose que voltaria em um minuto. — Ela sorriu discretamente ao responder, aproximando-se ainda mais. Balançando a cabeça, acrescentou: — Ela sabe que vou demorar mais que isso.

O sorriso de Wanda se alargou. Conhecia a cunhada. Era verdade.

Ela se moveu com graça, puxando Tabitha pela mão. Não como uma gata, mas como uma loba, sempre à caça. O brilho do luar invadia o banheiro através de uma pequena janela retangular de vidro quadriculado quase imperceptível, repousando sobre o banco de mármore branco com irregulares manchas escuras recostado contra a parede como um véu. Foi onde se sentaram.

A luz se modificou ao tocá-las, envolvendo a pele pálida de Wanda e suas roupas vermelhas como uma névoa linda. Incrível. Em geral, a mulher gostava de usar vermelho. Combinava com seus cabelos. A fazia sentir-se viva. Tabitha, por outro lado, no momento usava apenas cores escuras. Preto e lã cinza com leves toques de âmbar azul. As cores não eram foscas, opacas como eram e seriam em vestes de luto, mas deslumbrantes e cintilantes. Vermelho e preto, um ao lado do outro, duas cores absurdamente quentes nelas.

Wanda estendeu a mão, sorrindo risonha, deixando seu polegar traçar suavemente o contorno da boca de sua amante para remover a vermelhidão em torno dela. O batom saíra um pouco durante o beijo, manchando-a. Claro. A mais jovem não se moveu, permitindo que ela a ajudasse a removê-lo e, em seguida, entrelaçando seus dedos quando percebeu que ela tinha terminado. Era melhor não cometer nenhum deslize se ainda quisessem manter seu relacionamento em sigilo.

Não tinha ou via problemas em expor publicamente seu relacionamento. Em seu íntimo, era tudo o que a ruiva mais queria, ansiava em segredo: poder gritar aos quatro ventos que ela era sua e que também era dela. Dela e de mais ninguém. Era o sonho de qualquer romântica. Mas Tabitha ainda se mantinha receosa, relutante, embora estivessem num relacionamento secreto há um tempo considerável. Não a culpava por toda sua relutância, mesmo que isso, de certa forma, a magoasse um pouco internamente. Nunca o admitiria em voz alta. Seria superficial, egoísta demais. A amante estava experimentando e vivenciando de perto a tristeza da irmã mais velha pela perda de sua noiva, a perda de seu único amor, e temia que isso acontecesse com ela mesma também. Um absurdo. Wanda não iria a lugar nenhum, não a deixaria. Nunca. Contudo, respeitava seus desejos acima de tudo. Ela a respeitava.

E ainda havia também todo o preconceito da sociedade e do mundo. Outro ponto.

Mas esperaria por seu tempo, independente do quanto ele demorasse. Estava disposta a esperá-lo. Um dia ele chegaria. Sabia bem o que sentia e era intenso demais para desistir, deixar ir, por algo tão pequeno e insignificante como exposição. A amava muito mais do que o valor de qualquer rótulo de relacionamento. Estar ao seu lado — escondida ou não — era o bastante.

— Com quem você deixou Billy e Tommy? — Tabitha então perguntou. Ela a encarou com uma mistura de emoções e pensamentos, os olhos escuros brilhando tão intensos quanto estrelas cadentes num céu de safira.

Seus filhos.

O coração da ruiva se aqueceu em uma onda incomensurável de calor com o cuidado ligeiro e gentil de sua amante dirigido a seus meninos. Ela era mesmo perfeita.

— Com alguns amigos meus. Sei que estão cuidando bem deles, preciosa, não se preocupe — respondeu Wanda sem muitos detalhes, mas sorrindo. Ainda assim, ela parecia subitamente feliz com a ideia de que a jaqueta cobria perfeitamente a meticulosa tatuagem de serpente em sua clavícula. Não importava como ela já fosse bem conhecida pela mais jovem; seus olhos queimaram involuntariamente sobre o local, sem dizer nada. — Eles sentiram sua falta.

Tabitha apertou a mão dela, sorrindo delicada com a revelação.

— Só eles?

Ela simplesmente encolheu os ombros em um desinteresse mal fingido. Proposital.

— Não é como se não tivéssemos nos visto na semana passada, Tabitha.

— Então você quer me dizer… — ela balbuciou, lhe tocando o queixo — … que você não sentiu saudades?

A ruiva não respondeu.

Por outro lado, apenas ergueu suas mãos unidas num encaixe perfeito. Lenta e suavemente, ela lhe beijou as costas da mão levemente morna pela troca de calor do aperto, então fez o mesmo com as dobras de seus cinco dedos; o frio sumiu, desaparecendo, de repente. Em seguida, ela se inclinou para juntar seus lábios mais uma vez. Dessa vez, em um selinho curto e calmo. Saboroso. Tabitha não era a única a considerar suas ações semelhantes às de adolescentes loucamente apaixonados.

— Eu não disse isso — ela murmurou, seus lábios ainda extremamente perto dos dela. Agora, seus olhos que pareciam tão luminosos e penetrantes como nunca antes.

Tabitha sorriu docemente, sorriu de verdade, com ela e por ela. 

Sua mão livre deslizou cautelosa e deliberadamente pela perna de Wanda, do quadril à coxa, parando para sentir a maciez de seu joelho sobre a calça, feliz pela privacidade, leve pela liberdade, antes que ela se esgueirasse para mais perto; os lábios se curvaram casualmente na fração de segundos que antecedia seu beijo. A conversa poderia esperar, ficar para mais tarde. Se muito tempo passava-se ou não, elas não se importavam. Não mesmo.

 

O refeitório ficava localizado no centro do internato-fortaleza como o coração pulsante de Dragon Hall, com ligações internas aos corredores que conduziam ao resto do reformatório como conexões de tumbas subterrâneas. Novas curvas labirínticas eram desenhadas, formadas o tempo todo; era fácil um forasteiro — ou invasor — se perder ali dentro. Um grande quebra-cabeças vivo. Em todos os lugares, paredes em tons ásperos de cinza se erguiam e câmeras de segurança escuras os seguiam com olhos vorazes e espreitadores. Ainda assim, silenciosos, ocupados. Estandartes vermelhos-sangue com um solitário triângulo negro de pico branco e a letra R num matiz carmesim no centro surgiam pela maioria das curvas junto com a bandeira original do país. O símbolo simulava uma montanha. A montanha na qual o reformatório foi construído. Era o mesmo símbolo estampado em seus novos uniformes, no sutil mini-bolso no peito. Uma vaga referência.

A neve parecia ainda mais perfeita à luz do amanhecer, uma crosta branca decorando delicadamente as árvores nuas. Como antes, sem ameaça de derretimento breve, tão cedo. Os fracos raios dourados do sol se espalhavam pelo chão como água corrente, atravessando as janelas e as arcadas que ocasionalmente surgiam ao longo do caminho. O burburinho insistente de vozes e o tilintar agudo dos talheres eram como um GPS eletrônico, um mapa, guiando-os pelo caminho correto e memorável; recusaram-se a receber quaisquer tipos de auxílio ou ajuda por despeito. Saíram dos dormitórios antes que alguém pudesse aparecer para guiá-los.

Diversos canos de energia e dutos de ar corriam pelo teto, elevando-se ponderosamente acima de suas cabeças, o preto contra o cinza opaco e tedioso que envolvia tudo em um contraste grandioso. Não era possível descobrir, adivinhar onde eles acabavam ou se tinham fim, mas pareciam estreitos o suficiente para uma pessoa entrar e se espremer neles, fugindo ou se escondendo. Era, no mínimo, algo intrigante. A cada passo, o barulho das vozes ficava mais alto, como a contagem regressiva de uma bomba armada prestes a explodir. E a explosão seria breve.

A par de toda a grandiosidade do exterior, o espaço reservado à alimentação parecia minimamente insosso. O refeitório era sim amplo, espaçoso, grande o suficiente para acomodar e abraçar em braços fortes todos os delinquentes da instituição ao mesmo tempo, com seu pé direito alto, sustentado por duas escadas engenhosas que subiam uma de cada lado do refeitório e se encontravam, unindo-se ao centro como o corpo gelatinoso de uma minhoca, cercadas por uma cobertura de vidro em colunas sem nenhuma cor reconhecível. No topo, computadores de uso limitado e assentos bem organizados; abaixo, mesas circulares metálicas e brancas, cada uma com oito cadeiras. A cantina surgia em um tom monótono e desbotado, morto, de vermelho, quase impotente, o telão negro acima expondo o menu organizado e elementar do dia. Cafés, sucos, panquecas e frutas (em saladas ou não) no café da manhã. Um cardápio simples, comum, trivial. Bancadas e bancos simples selecionados entre madeira e concreto também uniam-se aos pilares de sustentação que despontavam, mantendo a estabilidade do teto. Artificialmente planejado, elaborado, como tudo o mais naquele lugar.

Os olhares voaram, dispararam como falcões em direção às portas quando as dobradiças ressoaram, manifestando-se involuntariamente, velozes e curiosos. Enxeridos demais, analisadores demais. Ninguém vira os recém-chegados no jantar da noite anterior, ninguém indesejado tivera a oportunidade de vê-los: propositalmente, eles foram se servir apenas depois que o refeitório ficou vazio, deserto como um cemitério. Com claras e óbvias intenções. A diretora deu-lhes essa permissão quando fora visitá-los perto do último sinal. Surpreendentemente, os quatro rapazes e as duas moças caminhavam juntos, quase com indiferença. Uma emoção falsa e armada. Ensaiada. Eram um grupo estranhamente unido em meio ao fluxo igualitário de uniformes cinzentos, meias-calças pretas, calças vermelhas e cachecóis.

Malvina LaRusso mantinha-se discreta e sutilmente próxima ao árabe, ouvindo com cuidado, atenção sua respiração irregular; Evie caminhava ao lado dela, silenciosa e deslumbrante após uma “boa” noite de sono, seu ombro roçando casualmente no ombro da amiga, ela que sorria mais relaxada com o contato. Rapidamente mais calma, bem menos tensa. Ignorando habilmente toda a atenção desnecessária que recebiam.

Da mesma forma, havia muitos obstáculos ao longo do caminho, e Jay teimosamente havia descartado a muleta cedo demais, realmente muito mais cedo que o recomendado; ele tampouco estava usando a tipoia adequada em seu braço ferido, imóvel ao lado de seu corpo musculoso. Aparentemente, queria tentar demonstrar o pouco de força, orgulho, moral que ainda tinham, com o peitoral largo e inflado, estufado como o peito de um pombo vistoso. Ridículo. O estranho ar rarefeito em nada estava lhe contribuindo. A altitude daquele lugar era algo igualmente estranho e curioso, difícil de se acostumar nos primeiros dias.

Jayden lutava interna e fisicamente para não tropeçar ou vir a desabar. O rosto vermelho e tensionado sob o gorro cor de vinho usual, a peça fora do uniforme, era o único sinal disso; Carlos permanecia ao lado esquerdo do melhor amigo, provavelmente com o mesmo pensamento da líder perpassando por sua mente afiada, aguçada, os dedos já abertos e as mãos já entrelaçadas para ampará-lo, para segurá-lo se necessário. Já preparado.

Mas o rapaz seguia em frente como conseguia, disfarçando-se com o passo manco, tocando de vez em quando nos braços de seus dois amigos. Um sinal discreto, quase invisível, imperceptível. Ele estava grato por sua presença, mas também por sua discrição mínima.

Os gêmeos Weasley, como de costume, pareciam presos em seu mundinho particular. Perdidos, divagando num conjunto de milhares, milhões de pensamentos próprios. Com seus cabelos ruivos penteados para trás e uniformes escolares obrigatórios, eles quase poderiam ter a aparência de antigos e elegantes príncipes. Ou de reis. Reis Travessos. Quase. Ninguém fez, sobretudo, questão de tentar, ousar, tirá-los de seu pequeno torpor. Nem mesmo seu primo Morningstar. Não era algo que seria feito tão cedo. Os irmãos ainda eram estranhamente curiosos, inquisitivos e sinônimos de uma conversa adiada. Uma pauta importante a ser retomada e discutida e decidida. Quanto mais distraídos e menos apegados estivessem, melhor era. Para todos eles.

Isso certamente seria, no entanto, por pouco tempo.

Ao canto oposto do refeitório, quase totalmente ocultos pelo insistente movimentar dos corpos e suas sombras, os veteranos mantinham-se vigilantes. Completamente atentos, observadores, como nunca antes. Águias. Uma das três garotas sentadas curvou-se, discreta, parando a alguns centímetros da outra; as tatuagens eram evidentes na pele bronzeada sob o uniforme escolar claramente adaptado, assim como a barriga grande e arredondada, indicando que a jovem estaria bem próxima, no mínimo, do penúltimo mês de gestação. O oitavo mês de gestação.

Espinhos em tatuagens subiam por sua pele contornando-a de um lado, do punho aos cabelos descoloridos e ondulados, e rosas serpenteavam-a pelo outro braço. Ela gostava das plantas, das flores, como uma jardineira natural. Audrey Blossom deu um beijo rápido e casto nos lábios da oriental para disfarçar suas verdadeiras intenções, os lábios avermelhados então se abrindo levemente até que sua voz açucarada cortasse o ar como uma cantiga de ninar bem baixa.

Talvez não completamente.

— As coisas vão esquentar por aqui, querida — garantiu ela de repente com uma firmeza questionadora, os olhos fixos em lugar nenhum. Uma mão prendeu cuidadosamente os escuros cabelos alheios, brincando com eles nas cavidades de seus dedos; a outra descansou com suavidade em seu ventre, acariciando-o com um instinto quase maternal.

Os olhos azuis de Janette Eos queimaram sobre ela do outro lado da mesa como um fogo frio por um momento, quietos e mudos, julgadores, antes que ela enfim desviasse o olhar, enfadada. Quase enojada.

Com seus próprios olhos, no entanto, disparando como uma bala rápida e mortal contra os seis jovens, Lonnie Lìliàng balançou a cabeça em algo semelhante à resistência. Um ato de negatividade. Seu braço então envolveu os ombros da garota com imensa facilidade, trazendo-a para mais perto enquanto observava o pai da criança em sua barriga se aproximar, a bandeja equilibrada em suas mãos cálidas e cheias de cicatrizes; um sorriso vago e fantasmagórico de alguma forma brilhando em seus lábios. Era um mero aprendiz de pescador. As cicatrizes não eram vãs, inúteis. Cada uma contava uma história própria.

A vida no rio, a vida da pesca como principal meio de sustento para sua família desde a infância, desde sempre, não deveria ser fácil para Benjamin Fiendish. Não deveria ser fácil para ninguém. Ser forçado a acordar cedo, aguentar as queimaduras de sol, lidar com os mergulhos — noturnos e diurnos — salgados e gelados, as cordas machucando, os anzóis fincados em seus dedos, as tripas de peixe nas roupas… ​Era por isso que ele estava ali. Como todos eles. Por um erro, mas que tinha uma razão, um motivo oculto que ninguém se importava em descobrir.

Ele colocou a bandeja na frente de ambas com cautela, endireitando-a com paciência e rapidamente pressionando seus lábios nos da oriental antes de repetir o ato com Audrey, parando para acariciar com carinho a filha ainda em seu útero antes de se sentar entre elas.

— Não se preocupem com isso, meninas — Ben murmurou indiferente, os cabelos louro-escuros e molhados caindo sobre os olhos verdes-avelã em um tom semelhante ao castanho-mel. Ele certamente ouvira o comentário. As portas de metal do refeitório se abriram mais uma vez com um baque discreto para permitir a entrada de Chad, Samantha e o nerd Doug. Ele os convidou a se aproximarem com um aceno de cabeça e em seguida reafirmou, os olhos também fixos nos novatos; o rapaz, por outro lado, quase parecia querer sorrir com a visão: — Não se preocupem com nada.

Entretanto, apesar de seu senso natural de proteção, seus olhos brilhavam de nostalgia enquanto ele media o ritmo controlado de um rosto há muito conhecido que ainda não o tinha visto. Surpreendentemente. Ela sempre era a primeira a notar as coisas ao seu redor. Sempre atenta, sempre na defensiva. Como havia aprendido a ser.

Carlos Morningstar parou de repente, o braço estendido, a palma voltada e levantada para trás. Sua mão direita espalmou-se contra o peito do árabe, obrigando-o também a parar com um estalo audível ao passo que a outra enrolava e desenrolava a gravata na ponta do dedo indicador; mais uma vez, ela estava acima do colete, exposta. Ele parecia gostar do resultado do visual. Seu senso de moda era bastante curioso.

Sussurros os seguiam, os acompanhavam, mais de uma dúzia de adolescentes solitários assistiam-os, comedindo seus passos pelo refeitório. Alguns apenas acenavam com a cabeça, discretos, com interesse, em uma tentativa falha de parecer educados, mas a outra maioria permanecia cética, desconfiada. As meninas em si pareciam ainda mais tensas; afinal, não era todo dia que se tinha uma novidade como aquela num reformatório juvenil. Uma novidade carnal como aquela.

— Vou preparar o seu prato — disse ele a Jay já decidido, depois gesticulou para as mesas vazias. Pela primeira vez, seu tom não deixava brechas, espaços para uma discussão iminente. Ele só queria poupá-lo de esforços desnecessários. Precisamos guardar forças, ele lembrou-se. — Encontre-nos uma boa mesa e isso será o suficiente, cara.

— Eu irei com você — prontamente, Mal assegurou ao amigo, tocando seu ombro com algum esforço. O olhar da azulada caiu sobre ela instantaneamente, e Evie ergueu uma sobrancelha em uma pergunta silenciosa. Um tanto duvidosa. — Não estou com fome, princesa — ela sorriu amarelo, explicando-se.

Em silêncio, Fred e George se entreolharam, os lábios repuxados para trás em pequenos sorrisos maliciosos, conhecedores, enigmáticos. O instinto primordial muito maior do que o de quaisquer irmãos inflamando radicalmente. Agora, em vez de expor algo que não deveriam, eles pareciam dedicados a analisar as coisas ao seu redor e estudar mais sobre a curiosa e nova gangue. Eram bons nisso. Apenas ouvir e arquivar. Estudar e observar. Era fácil.

Por sua vez, um pouco pensativo, o árabe olhou para Carlos antes de assentir com alguma relutância, muito lentamente alguns instantes depois. Então seu braço — o ainda saudável — subitamente envolveu os ombros da líder, puxando-a para si com uma risadinha escandalosa, escancarando os dentes; ela apenas arregalou os olhos verde-esmeraldas em silêncio, quase tensa, os punhos cerrados em um instinto defensivo comum. Jay sabia que ela havia se incomodado com o ato audacioso, sentia, por isso propositalmente não a soltou.

— ‘Vambora, gata. — Ele exibiu os dentes mais uma vez, sorrindo descaradamente quando a viu se desvencilhar de imediato, com o ímpeto de cuidado para não agredi-lo por momento. 

Por momento

Os dois eram como irmãos. Um irmão mais velho e uma irmã mais nova, mas com os papéis quase sempre invertidos. E, de fato, sempre era impressionante aos olhos de todos, aos olhos de qualquer pessoa, aos olhos de seus amigos, a facilidade com que podiam voltar em poucos instantes ao velho ritmo de troca de farpas mesmo depois de um evento ruim. Ou mesmo depois de qualquer evento.

Eram o ponto de partida um do outro.

Mas o rapaz estava ferido no momento. Ferido de uma forma ridícula por suas decisões impensadas, estúpidas e precipitadas que ela quase acompanhara. Mal sabia que não podia simplesmente derrubar Jayden, jogá-lo na lama como de costume e ir embora, rindo, sem olhar para trás. Para seu infortúnio.

Precisava ser sua líder.

Malvina apenas revirou os olhos, emproando o corpo.

— Cale a boca, seu imbecil — murmurou baixinho. — Só mantenha a postura, certo? Queixo erguido. Olhos para a frente.

Poucas mesas estavam disponíveis àquele ponto. 

A mesa mais distante — e completamente vazia — em sua visão periférica ficava logo abaixo do pé direito do refeitório, escondendo-se perfeitamente da maioria dos olhares curiosos. Sutilmente acomodada entre a conjunção de escadas e as portas opostas que davam para a outra ala “externa” da instituição, repleta de arcadas; certamente a ala que conduzia às salas mais importantes. Janelas de metal branco se erguiam das paredes, estendendo-se, escapando para cada vez mais longe, largas e entreabertas o suficiente para permitir que a luz do sol entrasse no recinto, banhando-o em seu esplendor.

O brilho solar se espalhava pela área como lágrimas em um rosto, escorrendo discreto, mas visível, suave. Era, aparentemente, uma mesa aceitável o suficiente. A mais aceitável de todas ali. Excelente.

Deslocaram-se para ela devagar, com “elegância”, os rostos treinados em máscaras frias como na delegacia. As máscaras há muito usuais.

Mesmo na posição, no local em que se encontrava, a mesa ficava particularmente obscurecida pela luz que adentrava pelas janelas. Com cuidado e cautela, era possível analisar tudo dali — dos rostos aos movimentos dos outros adolescentes — sem ser notado. Distinguir os mais ferozes e os mais pacíficos. Era uma dádiva que justamente aquela mesa estivesse desocupada. Aparentemente, eram os únicos que não gostavam de se socializar.

Sem pensar duas vezes, Jay desabou todo dramático no assento mais próximo. A cabeça foi imediatamente apoiada em uma estrutura de suporte às suas costas e o barulho do que seria sua bunda batendo no metal ressoou; pela careta que tomou conta de seu rosto, a ação teria sido um pouco mais dolorida do que o cogitado. A líder desferiu um pequeno, amigável, tapa em sua nuca ao passar, negando, lançando seu gorro em um tom de vinho forte para o centro da mesa num gesto reconfortante. E, em seguida, ela deu a volta na mesa, simples, sentando-se na extremidade oposta e cruzando uma perna sobre a outra ao passo que o rapaz se inclinava de forma sutil para buscar o gorro; o canto de seus lábios se contorcendo, denunciando o impulso indevido de sorrir.

Quando seus olhos se desviaram por um único instante, Carlos já estava voltando, equilibrando duas bandejas nas mãos como um palhaço desengonçado perdido em meio ao circo, mas prestativo. Um grande amigo, aparentemente, ele sentia cada olhar que recebia como agulhas cravando em sua bela e clara pele sardenta. Talvez a atenção doesse de verdade. O olhar de Mal se juntou ao deles.

Não era preciso ser um murmurador para saber o que seus olhos inflamavam com o desejo de questionamento. Mas ele os ignorou. Ignorou a todos eles, concentrando-se no que estava fazendo por momento até chegar à mesa escolhida; os ruivos e a azulada ainda estavam na fila que ele havia cortado em meio à pressa. Pareciam estar conversando. Não que fosse uma surpresa.

— Fred e George são meus primos — Carlos soltou rápido e sem fôlego, repentino, um pouco constrangido ao ver a líder começar a abrir a boca. Imediatamente, ela se calou, a frase morrendo ainda em seus lábios, quase estupefata pela explosão inesperada na forma de notícia. O mais jovem, por outro lado, sentou-se após colocar as duas bandejas na mesa, as mãos se encontrando até que os dedos se entrelaçassem, apertando-se. Nervoso com a atenção, ele brincou com eles sem se permitir encontrar seus olhos. — Eles são meus primos de primeiro grau. A mãe deles, Molly Weasley, é irmã da minha mãe. Conheço-os desde sempre. Rowan, eles e eu quase fomos criados juntos. — Discretamente, o esbranquiçado levou a mão à sobrancelha, coçando-a sem necessidade. Só precisava de algo para se ocupar. — Quando eu pedia para abrir uma exceção para membros novatos na gangue, foi porque queria colocá-los dentro do esquema. Eles queriam estar dentro do esquema.

Silêncio.

Por um momento, apenas silêncio.

— Los — ela disse afinal em um tom monótono, cantante, tentando esconder a raiva. Nunca tinha sido boa nisso.

Malvina não sabia se era a revelação ou ela que simplesmente nunca havia prestado muita atenção aos seus traços parecidos, óbvios bem na sua frente, por precisar se concentrar em coisas mais relevantes, mais importantes, mas as ligeiras semelhanças entre os gêmeos e o amigo pareciam surgir lenta e subitamente como tinta invisível num pedaço de papel em branco. Uma câmera entrando em foco, como o estalo que tivera anos atrás.

As sardas, o humor, os sorrisos infantis, os dentes lupinos e afiados. A insistência em si. Eram tudo sinais. E tudo passou despercebido diante de seus olhos idiotas e egoístas, focada apenas nos resultados. Havia falhado com ele. Em seu coração, algo traiu-a.

Negando, ela por fim suspirou, não obtendo o apoio de que precisava enquanto olhava para Jayden. Como sempre, inútil, dispensável. Infelizmente, ela sabia, porém, que não poderia ficar irritada.

Seria mais injusto ainda. E já estava sendo injusta demais. Essa não era a líder que ela queria ser; Mal se recusava a ser igual a ele, falhando com todos pelos resultados que poderia alcançar. Essa tinha sido a ruína dele, não poderia ser a dela também.

— Por que você não me disse que queria colocar seus primos no esquema? — a líder tentou dialogar, molhando os lábios, com cuidado. Falho. Reformular a pergunta parecia quase sem sentido quando já sabia qual seria a resposta.

Carlos apenas riu, um pouco forçado demais. Seu desconforto era óbvio, nítido; ela incomodou-se por colocá-lo naquela situação. Ele era o mais novo entre eles, o caçula do grupo, afinal. Deveriam protegê-lo.

— Você nunca me deu essa chance, Mal. É uma grande líder, grande de verdade, mas sempre foi feroz. Se isolava. Não queria falar ou estar com ninguém fora do nosso círculo. E não, ninguém poderia te dobrar, você é sempre a primeira a bater o pé quando não gosta de alguma coisa. — Ele fez uma pausa, pensando no que dizer. — Não havia nada a fazer. Então, simplesmente decidi por conta própria que eles fariam parte do esquema em segredo. Me de…

— Se você se desculpar pelo que fez… — uma voz o interrompeu com sutileza. Feminina. Graciosa e doce. Reconhecível. Evelyn. — Eu juro, Los, vou amordaçá-lo eu mesma.

Os olhos do jovem esbranquiçado e da moça azulada eram quase iguais, as nuances quase semelhantes. Os dele castanhos cintilantes como um mar banhado de chocolate, e os dela uma bela combinação em tons de castanho âmbar. Compartilhavam o mesmo ar amigável, compreensivo e, muitas vezes, brincalhão.

Evie deixou a própria bandeja de café da manhã sobre a mesa, em frente ao assento vazio ao lado da líder, que não pôde deixar de notar discretamente que ela parecia cheia demais para alguém tão pequeno e delicado suportar.

Suas pernas trabalharam rápido, levando-a a contornar a mesa até sentar-se. A azulada era bem acostumada, habituada a protocolos. Toda modelo (ou ex-modelo) era. Ela cruzou as pernas uma sobre a outra como a amiga, os ombros perfeitamente alinhados; os olhos de Mal notaram involuntariamente a forma como a saia de sua melhor amiga havia se levantado de forma sutil, subindo até a metade da coxa com o ato. Por um instante, um rompante de alívio atingiu seu peito, forte e avassalador, fazendo-a agradecê-la mentalmente por estar usando as meias-calça como todas as outras garotas antes de desviar o olhar.

Era apenas seu instinto protetor falando mais alto mais uma vez.

Mesmo assim, como normalmente, não pode evitar que seu coração acelerasse e aquecesse com ela sentada tão perto.

Seus olhos procuraram os do mais jovem do grupo, estendendo o braço para tocar sua mão sutilmente. Por um momento, contudo, vendo os gêmeos ruivos também se sentarem, um de cada lado do amigo, a azulada pareceu hesitar antes de continuar, sorrindo pequeno:

— Você não fez nada de errado, Los. Nós que não demos ouvidos à sua sugestão. — Nós. Evie não iria jogar a culpa por não escutá-lo apenas na melhor amiga; Jay arqueou uma sobrancelha indignado, mas não se opôs. — Ninguém aqui está com raiva de você, querido. Queria seus primos no esquema, e conseguiu. Agora sabemos que expandir o número de membros pode não ser tão ruim, certo, M?

Eles estavam no esquema.

Silenciosamente, Mal mordeu os lábios. Uma conversa entre elas, única e particularmente entre elas, era diferente de uma confissão diante de três — tecnicamente cinco — olhares esperançosos e um duvidoso.

— Exatamente — confirmou ela, forçando a garganta. — Os ruivos idiotas não serão os únicos a passar pela Prova de Fogo.

As últimas três palavras carregavam tanto significado para os quatro que era quase impossível não estremecer, sentir seus pelos se eriçarem como se estivessem expostos ao vento frio cortante do inverno a fora. Mas a sensação era se possível ainda pior. Perturbadora. Num geral, não costumavam o citar em voz alta. E Mal se odiava um pouco mais sempre que precisava o citar.

As lembranças que aquilo trazia à tona poderiam não ser boas, o nome poderia não ser algo original dela, mas infelizmente não havia uma nomenclatura melhor. De longe. Era a melhor definição que eles poderiam ter: era de fato uma pequena, quase estimada, “Prova de Fogo”. Uma série de testes para provar sua lealdade à gangue e mostrar o que fariam pelo bem dela; até onde chegariam por ela.

O árabe felizmente se expressou rápido, evitando que qualquer emoção inadequada transparecesse demais.

— Deena Johnson? — ele supôs, seu tom ligeiramente baixo. Nada além de um sussurro pesado e rouco, grosso. Curioso sobre quem as amigas poderiam ter em mente. Deena era a opção mais óbvia e a única conhecida por todos.

Haviam ocasiões em que Malvina não costumava responder a absolutamente nada. Mantinha os detalhes mais importantes para ninguém além de si mesma; com algumas poucas exceções óbvias. Tudo acabava escondido, secreto até o momento certo. Até a hora de agir. Seus lábios naturalmente rosados se contraíram um pouco, retraídos para trás, a mais leve sugestão de um sorriso contido. Era confirmação suficiente. Mesmo estando olhando para os quatro rapazes em sua mesa, seus olhos claros e seu foco de visão se concentraram por um momento em outra, atravessando-os como se fossem uma parede.

Um jovem os observava, também vestido com o uniforme do reformatório e com os cabelos mergulhados em gel, em silêncio e quase sem piscar algumas mesas à sua direita. Com a pele pálida, cabelos negros, rosto anguloso e um sorriso tão frio que seria capaz de congelar o fogo, ele transmitia a impressão de desprezar todos ali, como ela. Seus olhos escuros eram vivos, porém, cintilantes, a expressão nobre e séria, mas denunciando sua juventude ainda assim; ele certamente não tinha mais de dezessete anos. Ela bem o conhecia: era Nyxly Tanatos. Filho único, órfão dos pais e provavelmente o atual herdeiro da corporação Tanatos Enterprises. Testemunhou a morte de seus pais diante dos próprios olhos ainda quando era uma criança, aos oito anos, incapaz de fazer qualquer coisa para impedir.

Para a surpresa da moça, ele foi a segunda pessoa naquela instituição que se recusou a quebrar o contato visual primeiro. Os olhos do rapaz pareciam facas tentadoras, girando e rodopiando, ameaçando escapar enquanto ele a encarava descaradamente, quase com um sorriso nos lábios.

Normalmente, aceitar o desafio silencioso seria uma obrigação interna e imediata. Algo instantâneo. Mas não era naquele momento. Por outro lado, sutilmente, ela quebrou o contato visual e colocou a mão no ombro da moça azulada ao seu lado, atraindo-a para si com um afago discreto, assim como ela mesma fizera na noite retrasada. Não se importou em perder. Evie singelamente sorriu com o ato, quase encantada com a curiosa e quase incomum liberdade de contato da amiga, os olhos âmbar brilhando de imediato contra os verdes, carinhosos.

— Você está planejando comer tudo isso, princesa? — questionou a líder em tom de brincadeira, baixinho, apontando para a bandeja com o queixo. Mudando de assunto. A bandeja, todavia, de fato quase parecia composta por uma enorme montanha de comida, com um pouco de tudo da cantina – de panquecas a frutas e sucos; até mesmo um único café, tão quente que o vapor ainda saia da xícara –, algo que Jay comeria sozinho.

O sorriso de Evelyn se alargou, contagiante como um vírus, os olhos reluzindo tanto que ela sozinha poderia iluminar uma rua inteira em um céu crepuscular desprovido de quaisquer estrelas. Era encantador. Ela estava feliz com a mudança de assunto e com a pergunta, afinal. Era o que ela queria.

— Na verdade, esperava que você dividisse comigo — ela retorquiu devagar, para grande surpresa de Mal; seu semblante alterou-se um pouco. A moça pareceu notar a mudança, pois deliberadamente tocou sua mão, acariciando os nós de seus dedos com cuidado para não assustá-la, por sua vez, ignorando a presença dos rapazes. Para impedi-la de retrucar, ela acrescentou suavemente irônica: — Você mal comeu ontem, meu bem, realmente acha que eu correria o risco de deixá-la ficar desnutrida em um lugar como esse?

Um sorriso se espalhou pelo rosto de Mal como um cordão mágico, repuxando-o e cortando-o, tremeluzindo em seus lábios como uma bandeira contra um vendaval. O sorriso largo, meio bobo e sincero; as covinhas em suas bochechas se contraíram com o ato, tornando-se mais evidentes. Não, Evie não faria isso. Nunca.

— Você prefere café a suco de manhã, não é? — perguntou a amiga por instinto, desviando o olhar por um momento para a única xícara de café que havia pego, confirmando o que ela já sabia. Não havia necessidade de perguntar.

Seus dedos tamborilaram ansiosos nos segundos talheres soltos na bandeja, mas Mal não respondeu.

Apressada, por impulso, ela se inclinou, uma das mãos apoiada na mesa e a outra ainda no braço da amiga, para que seus lábios roçassem levemente sua bochecha. Eles deslizaram, rápidos e quentes, com um toque suave. Meio macio e um pouco apressado.

Ela se afastou um momento depois, apenas para ver o rosto de sua melhor amiga ligeiramente avermelhado, ardendo com o rubor; se não fosse pelo sorriso e pela alegria, a líder sabia que também ficaria corada, envergonhada por demonstrar tanto carinho em público depois de tudo.

— Sim, eu prefiro — Malvina apenas balbuciou, olhando para ela com ternura enquanto seus dedos dançavam para pegar os talheres que restavam na bandeja.

Do outro lado da mesa, Jay enfiou uma garfada de panquecas goela abaixo e agitou o garfo para elas.

— Sério? Na frente do meu café, suas infelizes? — resmungou, migalhas escapando de sua boca cheia com um pouco de baba. Com o cotovelo, ele cutucou o ruivo ao lado dele, negando. — Se vocês vão entrar para a gangue, precisam se acostumar com essas duas corpos-mole, Fred, amigão. Sem essa, não há masculinidade nenhuma nessa parada, cara. Confia. Precisamos de mais homens. — E fez uma conchinha com a mão para estourá-la em um muxoxo, gargalhando.

— Eu sou o George — o garoto ao seu lado corrigiu lentamente, suave e debochado em meio a crise de risos dele, olhando para sua própria bandeja e dando de ombros com um sorriso complexo e inquisitivo.

De repente, um corpo desabou trêmulo em um dos últimos assentos livres da mesa. Deena Johnson não pediu permissão para se sentar junto deles como qualquer outra pessoa faria. Se acomodou em seu lugar e, por reflexo, endireitou as coisas na bandeja, batendo os talheres uns nos outros como se fossem baquetas, um pouco nervosa.

Ela parecia diferente em seu uniforme. Menos rebelde. Bonita na medida aplicada. Até mesmo seus cabelos rebeldes e encaracolados pareciam mais bem comportados do que na noite anterior, como se soubessem do perigo que corriam. E talvez fosse exatamente para isso que os uniformes servissem, na verdade. Um aviso silencioso para lembrá-los de que precisavam seguir a linha se quisessem um dia sair daquele lugar.

Assim como ela não se importou em pedir permissão para se juntar à mesa, ninguém tampouco se importou em questioná-la por sua escolha curiosa ou expulsá-la. Estava óbvio, pelo par de olhos azuis assustados na mesa dos veteranos, que ela estava tentando fugir de alguma coisa. Fugir de alguma pessoa. Os novatos eram sua melhor opção para isso. Como um abrigo, um refúgio de questionamento vago.

— Alguém neste lugar parou por um momento para ver como esses uniformes são cafonas? — a azulada perguntou a Deena com o cenho franzido, indiferente à sua chegada abrupta, um morango vermelho pairando entre seus dedos; ela o trouxe à boca de sua amiga. Malvina não reclamava, na verdade mordia discretamente a fruta que lhe era oferecida. Ela lambeu os lábios, vendo-a levá-la à própria boca e mordê-la também.

Deena queria lhe dizer que não se importava com as roupas que vestia ou com sua qualidade. Não tanto quanto qualquer mulher ou sua ex-namorada se importavam. Qualquer pensamento, qualquer menção a Samantha Fraser, entretanto, traziam de volta à sua mente as memórias da noite anterior. As lembranças repugnantes que queria arrancar de sua cabeça e a raiva que sentia ruminando dentro de seu peito.

A moça lembrava-se vagamente de se esconder no vestiário feminino depois de fugir e driblar os guardas da instituição, trancando-se lá e adormecendo por algumas horas. Não se importando com o frio ou as lágrimas que banhavam suas bochechas escuras.

Havia retornado ao dormitório apenas ao amanhecer, quando o sol começou a nascer no céu para substituir a lua, quando ela sabia que não havia risco de Sam tentar procurá-la. Tudo o que queria era esquecê-la, esquecer tudo. Fingir que nada aconteceu.

A morena a encarou por um momento que se alastrou devagar, estendendo-se silenciosamente, por fim erguendo os ombros de forma casual, desinteressada com a conversa; a moça azulada fez questão de esperar pacientemente que ela recuperasse os sentidos e voltasse a si.

— A maioria das garotas diz isso — comentou Deena revirando os olhos. — Nunca reclamei, mas é verdade. Você vai se acostumar depois de um tempo.

— Ou pode personalizá-los. É sempre uma opção — Mal murmurou com um sorriso maroto, brincando com o garfo nas mãos. Ela olhou para a melhor amiga para propor: — Eu posso te ajudar com isso durante algum intervalo entre as aulas. Montar alguns desenhos para inspirá-la, E. — Com lentidão, ela encolheu os ombros também; a amiga sorriu. — Apenas uma sugestão.

O mau-humor matinal de Deena pareceu desvanecer-se lentamente, trazendo-a de volta à realidade. Com cuidado, ela observou as duas colegas de quarto, abrindo a caixinha de suco que tinha pego da cantina e perfurando-a com o canudo feito de plástico; os rapazes apenas ouviam e comiam, prestando atenção na conversa silenciosa entre as amigas e no desenrolar do diálogo tênue. Observando os sinais.

— Podem mesmo fazer isso? Personalizar, desenhar, por conta própria, quero dizer — ela quis saber, um pouco interessada. Como se quisesse conhecê-las.

Evie ergueu o garfo até a boca com elegância, levando a mão à face, cobrindo-a para mastigar um pouco mais rápido; uma menção clara de sua boa criação.

— Me formei com menção honrosa em Moda, Design e Modelo Fotográfico — explicou Evelyn com simplicidade. Não se gabando, apenas se reportando a ela. Era uma reminiscência esparsa, e ela teve a gentileza de deixar de fora os detalhes mais complicados ou pessoais. Incluindo qualquer menção à companhia de Daphne LaRusso, para o bem emocional da líder. — E Mal é graduada em Artes Visuais e Artes Plásticas. Aos oito anos, passamos três anos e meio em um internato feminino na França. Nós nos conhecemos lá.

A memória da infância era vaga e esparsa em ambas as mentes. Fraca por todo o tempo que havia se passado. Pequenos borrões de uma memória que elas faziam o possível — e o impossível — para não perder.

A primeira vez que se viram fora ainda no aeroporto, numa pequena e temática lanchonete, antes dos quatro irmãos LaRusso se separarem. A azulada lembrava-se de ter visto um chamativo punhado de cabelos roxos ao lado dos cabelos platinados de sua irmã mais velha enquanto seguia a mãe, uma Haizea Bellini irritadiça, até o caixa para pagar a conta; embora não conseguisse se lembrar por que ela estava com tanta raiva. Lembrava-se do desejo interno e secreto de poder se aproximar e puxar algum assunto, mesmo que ainda não se conhecessem formalmente. E então Mal a encontrou por conta própria no banheiro, a mando de seu falecido avô, Kesuke Miyagi, e lhe ofereceu um punhado de bombons de maracujá com uma promessa silenciosa de não contar nada à bruxa de sua mãe.

Ela se lembrava de como havia sorrido naquele dia, do jeito como ainda sorria com a lembrança, e se lembrava de como ficara feliz por saber que o destino as havia entrelaçado mais uma vez no internato.

Anos então se passaram e o universo não fez nada grandioso o suficiente para tentar separá-las. 

Felizmente, até ele sabia que isso era algo impossível.

Mas as coisas, quer admitissem ou não, também não eram mais as mesmas de anos atrás.

— Aliás, você gosta de tocar, certo? — acrescentou, apoiando a mão no queixo, puxando-se para fora do redemoinho reconfortante de suas memórias com a lembrança do tambor que ficava na parte de Deena no quarto que compartilhavam. Mesmo assim, Evie estaria mentindo se dissesse que não sentiu a mão da líder tocar rapidamente seu joelho, apertando-o como um aviso silencioso que ela era a única a entender. Ela também havia se lembrado.

A morena pareceu um pouco acuada pelo fato de ela ter prestado atenção nisso, sentindo o rosto esquentar; para sua sorte, graças à pele escura herdada de sua mãe, o rubor não ficava totalmente evidente. Discretamente, Deena assentiu, furando suas próprias panquecas com o garfo, sem vontade de comê-las.

— Nunca toquei para ninguém além de mim, mas sim — ela mentiu com facilidade.

Sua mente por um momento tentou se livrar do impulso que a abraçou com o comentário, mas seus olhos a traíram miseravelmente. Imediatamente, os olhos castanhos percorreram todo o refeitório, contornando corpos que não lhe importavam até que descansaram sobre os diamantes azuis que uma vez fizeram seu peito se encher de tanto amor e agora fazia-o se encher de tristeza, dor e raiva.

O braço de Chad estava em volta dos ombros pequenos de Samantha naturalmente, envolvendo a namorada em seus próprios braços, mas a loira não parecia interessada em nenhuma palavra que saía de sua boca e se fundia com a conversa recorrente em sua mesa como a calda em um sorvete, misturando-se. Ela estava dispersa, parecendo um pouco perdida.

Por orgulho, Deena desviou o próprio olhar primeiro, enfim concentrando-se apenas nos novatos ao seu redor. Era mais fácil do que continuar com aquela troca torturante de olhares. Se ela tivesse esperado um único momento a mais, no entanto, ela teria conseguido ver Samantha se levantar e sair silenciosamente do refeitório.
 

Em frente a uma conhecida lanchonete, duas figuras femininas assistiam de dentro do carro escuro estacionado banalmente do outro lado da rua, a comoção de um reencontro antes do início do expediente, a intensa — e dramática — troca de abraços e beijos saudosos entre um avô e suas duas netas; os cabelos avermelhados e quentes de uma sendo jogados abruptamente para trás pela brisa cortante e intensa do inverno em um gradiente resplandecente como sangue.

A outra usava sua câmera para fotografar o máximo possível, com cuidado, os cabelos claros como a neve cortados curtos, a lateral um pouco raspada e a cicatriz no rosto descendo pelo nariz até desaparecer sob a gola do casaco. Inevitavelmente, a cada foto batida, uma pedra era implantada em seu coração, esmagando-o cruelmente por um motivo desconhecido.


Notas Finais


Sinto que simplesmente joguei informações demais sobre este capítulo e sai correndo. Talvez não estivessem realmente preparados para todos estes tiros. Eles foram bem inesperados. Todo mundo está bem, certo?😹 Apenas perguntando por preocupação, já que eu mesma surtei com este capítulo. Surtei tanto que enchi os status do meu whatsapp apenas com coisas da história e tive que lutar contra os impulsos inadequados de revelar uma coisa ou outra antes da hora; não que isso tenha me impedido de lançar pequenas frases do capítulo posteriormente, sem contexto, mas isso não vem ao caso.

Acreditariam em mim se eu dissesse que eu mesma, a própria ESCRITORA, me iludi em minha própria história pensando que enfim iria rolar um beijo Malvie neste capítulo? Scrrrr, socorro. Conhecem o fundo do poço? Sim, acabei de ultrapassá-lo… 🤡🥲 Pelo menos Wanditha veio aqui para detonar tudo, abalar corações. Vocês queriam um beijo, meus queridos? Aí está, peguem, é para vocês! Vocês que lutem com tamanha a grandeza e a intensidade deste casal, meu povo, porque meus surtos com elas foram grandiosos e estou no meu limite de boiolice🗣️🗣️🗣️

Todos se lembram de que citei em alguns capítulos atrás, no capítulo dois eu acho, meu desejo de criar uma nova One-shot Malvie/Mevie derivada de The Dragon Hall Reformatory, certo? Não, ainda não a escrevi, se é o que estão pensando. Mas minha intenção é escrevê-la com base nas informações sobre como Mal e Evie se conheceram; uma história delas crianças para me aprofundar neste assunto e aproveitar o fato de que não terei a oportunidade de colocar um flashback disto na história. Ainda não tenho nada confirmado, contudo. Vou deixar a decisão nas suas mãos, se quiserem esta one, vou escrevê-la.

Sem mais enrolações, logo abaixo estará o link do menu do elenco. Informações sobre os novos personagens já foram adicionadas.
https://docs.google.com/document/d/1c3Ytrv7OiuRxAdvH9jG-BCCy__rZVGytPfbhCejoGj8/edit?usp=sharing

Deixem suas sinceras opiniões sobre o capítulo nos comentários, digam-me o que pensam, críticas construtivas são muito bem-vindas e contatem-me se houver alguma inadequação ortográfica no capítulo. Qualquer dúvida vocês também podem comentar ou entrar em contato comigo, farei o melhor possível para respondê-las sem expor nada com muita antecedência. Não guardem as perguntas apenas para vocês, queridos. Vejo-os em breve — em um mês!


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