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História Unwell - Quedas, contatos físicos e quando não beber vodka


Escrita por: caulaty

Capítulo 7 - Quedas, contatos físicos e quando não beber vodka


 Kyle nem fez questão de esperar alguns segundos depois de ouvir a saída triunfal de Craig; abriu a porta do quarto e se moveu silenciosamente pelo corredor em passos tão leves quanto os de uma formiga, incerto do que encontraria na sala. Não havia nada quebrado, pelo menos. Ótimo, esse era um começo muito bom. Kyle sugou o ar pela boca quando Kenny chutou a mesinha de centro e fez algumas cartas caíssem e outras simplesmente dançassem sobre a superfície. O copo que já estava no chão – e felizmente, vazio – caiu com o impacto, rolou um pouco no tapete macio sem grandes danos. O cinzeiro sobre a revista estremeceu, mas também não chegou a cair da mesa. Tudo bem. Tudo continuava intacto.

Isto é, tudo menos Kenny. Kyle se sentiu mal de repente por essa não ter sido a primeira coisa a chamar sua atenção. Já o tinha visto em estados emocionais bem delicados desde que o encontrou no Fusca naquela manhã gelada que parecia ter acontecido há cem anos, mas isso era diferente. Mesmo que o loiro ainda estivesse dando as costas para ele, Kyle podia sentir no próprio ar da sala que a presença de Craig trazia à tona coisas que ele ainda não conhecia sobre o passado de Kenny. Coisas feias, muito feias.

-Merda. - Kenny disse em voz alta, deixando o corpo cair sobre o sofá, os dedos entrando pelos fios de cabelo loiro e agarrando duas mechas nas mãos com força de quem quer arrancar. Seus olhos estavam fechados, o rosto franzido, esboçando a força que ele fazia pra manter alguma coisa enterrada dentro de si. Ele já sabia que Kyle o observava, mas não fazia diferença.

Kyle se aproximou arrastando os pés descalços pelo tapete. Tinha os cabelos mais bagunçados do que de costume e também usava uma camisa muito mais macia do que aquelas que usava para trabalhar. Esta era branca, embora o ruivo denominasse essa cor como “creme”, porque Kyle era o tipo de pessoa que gostava de saber o nome de todas as variações do espectro de cores que o olho humano pode captar. A camisa só tinha dois botões perto da gola, os dois abertos e expondo os ossos protuberantes das clavículas. O tecido caía tão leve em seu tronco, projetando uma imagem muito mais relaxada. Kenny prestara atenção nesses detalhes todos a noite inteira; o jeito que aquela camisa abraçava aquele tronco era uma distração terrível do jogo que ele pretendia ganhar, mas nunca terminaram. Agora, Kenny nem sequer fazia contato visual com ele.

Estava inclinado para frente e tinha o rosto afundado nas mãos. Kyle nem tentou dizer uma palavra sequer enquanto ele estava imerso no próprio mundo, tentando se recuperar. Levou quase dez segundos para que Kenny erguesse a cabeça, ainda olhando para baixo, nunca para o lado.

-Você está bem? - Kyle perguntou baixinho. Tinha as duas mãos entre os joelhos, as pernas juntas em uma posição ereta e desconfortável.

Quando Kenny ergueu a cabeça, tão subitamente que Kyle chegou a levar um susto, o ruivo gastou alguns segundos tentando identificar se ele estava ou não chorando. Ele contorcia um pouco o rosto como quem prende alguma emoção muito forte, os olhos pareciam um tanto inchados e vermelhos, mas poderia ser apenas a pressão das palmas poucos segundos atrás. Kenny tinha os lábios trêmulos e, choro ou não, aquele muro cautelosamente construído ao seu redor acabara de desabar e ele estava exposto, vulnerável. Kyle não era muito bom com pessoas vulneráveis. Ele mesmo não tinha o hábito de abaixar a guarda na frente de outro ser humano.

Sentou-se ao lado dele. Kenny apertou apenas um dos olhos e encolheu a bochecha, pressionando a língua por dentro dela, bufando baixo antes de levar as duas mãos ao rosto novamente, esfregando a cara duas ou três vezes.

-Não. - Respondeu finalmente. - Eu fodi tudo com ele.

Kyle soltou um suspiro profundo. Enquanto os pulmões se enchiam de ar, ele teve a impressão de que não respirava há horas, talvez até dias. Fitou todas as cartas espalhadas pelo chão, o copo que havia rolado para longe, depois encarou os pés de Kenny que não paravam de se mover no mesmo lugar. Pensou que ele precisava quebrar alguma coisa, colocar pra fora o que quer que borbulhasse dentro dele antes que a coisa explodisse por conta própria. Na falta de um saco de pancadas, Kyle apenas ergueu a mão para repousá-la nas costas de Kenny, oferecendo um carinho tímido.

De repente, Kenny se virou para encará-lo. Não disse nada, mal piscou, apenas o estudou com aqueles olhos azuis gelados.

-O quê? - Kyle perguntou, a mão ainda no mesmo lugar.

-Você vai contar pro Token?

O ruivo franziu as sobrancelhas e parou de tocá-lo, endireitando-se no sofá.

-Contar o quê, que você o Craig estão transando?

Kenny não fez qualquer menção de confirmar ou negar. Continuou parado, as mãos juntas, os cotovelos apoiados nas coxas e os olhos fixos no outro. Talvez ele não estivesse esperando que Kyle percebesse a natureza de sua relação com Craig apenas por ouvir alguns gritos do quarto ao lado, mas o ruivo sabia reconhecer uma crise de casal quando via uma. Kyle respirou fundo, impaciente.

-Não, né? - Respondeu. - Ele é amigo do Craig mas também é amigo do Tweek. Eu não quero colocá-lo nessa posição. Aliás, eu também não gostaria de estar nessa posição. Eu odeio mentir pra ele.

O loiro começou a esfregar uma mão na outra, um sinal muito óbvio de nervosismo. O pé continuava batendo no chão compulsivamente, mas pelo menos agora ele encarava o chão de madeira. Estava pensando com tanto ímpeto que Kyle quase podia sentir o cheiro de alguma coisa queimando dentro daquele crânio. Kenny coçou a nuca e limpou a garganta, falando em uma voz vacilante:

-Olha, isso não é da conta dele. O Craig é casado, isso não é problema de mais ninguém, não tem porque foder com a relação dele.

-Interessante, agora você lembra que ele é casado. - Kyle disse antes de pensar propriamente no que estava prestes a sair de seus lábios. Talvez teria dito de qualquer forma.

-Ei. Ei, ei, nem vem com essa merda. - Finalmente Kenny se levantou, apontando o indicador na direção do outro. - A última coisa de que eu preciso agora é uma bronquinha sua.

-Eu não tô tentando te dar uma bronca, Kenny. - Ele também se levantou no impulso. - Mas… Cara, o Tweek já foi seu amigo. Não é um nome qualquer sem rosto, é alguém que você conheceu. Como é que você foi fazer uma coisa dessas? Não vem me dizer que isso não te incomoda, eu sei que você é empático demais pra isso.

Kenny sacudiu a cabeça algumas vezes enquanto o ouvia, deu as costas a ele e se afastou apenas alguns passos, andando de olhos fechados com as mãos próximas ao rosto. Segurou o próprio pescoço por alguns instantes, tentando manter a respiração sob controle. Quando se virou novamente, Kyle teve certeza de que ele estava chorando. Não era óbvio, escancarado, mas era presente o bastante.

-Você não vai entender. E não é culpa sua… - Murmurou baixinho em uma voz trêmula. - Você não tem como entender.

-Tente.

-Não. Não, sabe por quê? Porque você tem namorado. - Kenny fez uma pausa longa após cuspir essas palavras. Ficou quieto por tempo o suficiente para que Kyle franzisse as sobrancelhas, abrindo a boca para responder, pensando que ele já tivesse terminado. Mas ainda não. Ainda havia palavras ardendo em sua garganta, emboladas, e Kenny não sabia ao certo como elaborá-las. - Você tem família, Kyle. E trabalho. E amigos. Você tem uma mãe judaica gorda que te abraça com amor toda vez que ela te vê, não tem? Que te dá um tapa na cabeça quando você fala palavrão. Você tem um melhor amigo que aperta o seu braço quando você reclama da sua mãe judaica gorda, e você tem uma porra de um namorado que te come toda noite, e come direito, pelo que eu ouço do meu quarto. Talvez você pudesse entender se já tivesse te faltado alguma coisa na vida. Qualquer coisa. Comida, um cobertor, um teto, carinho, qualquer coisa.

Depois de regurgitar todas as palavras sem fazer qualquer pausa, sem tomar fôlego ou tentar limpar as lágrimas que rolavam pelas bochechas rosadas, Kenny parou. O peito subia e descia rapidamente. Kyle não se moveu; também não tentou atravessar com qualquer resposta, pois sabia que ele não havia acabado de vomitar. Havia mais coisa ali dentro precisando sair.

-E você… - Kenny prosseguiu, respirando afobadamente dessa vez, balançando a cabeça como quem não sabe ao certo o que dizer. Falou entredentes as próximas frases, como se agora construísse uma raiva dentro do peito. - Você não faz ideia do que é passar semanas sem o toque de outro ser humano. Sem… Sem ter quem pegue no seu braço, quem pergunte da porra do seu dia. Sem ter uma mãe amorosa pra te dar um tapa. Alguém pra coçar a sua cabeça. Até isso você aceitaria, como uma merda de um cachorro de rua. - Não tinha mais tanta pressa para falar porque agora tocava em coisas que doíam. Lentamente, Kenny voltou a se sentar no sofá, deixando que mais um momento de silêncio se instaurasse naquela sala. Sentou com as pernas separadas e as mãos ainda coladas uma à outra. Parecia tão mergulhado nos próximos pensamentos que falava sozinho. - As pessoas… Elas precisam ser tocadas. Elas precisam de gentileza.

Kenny fechou os olhos que ardiam pelo choro; era como se as lágrimas escorressem sem permissão e o resto do corpo não soubesse que ele estava chorando. Era um vazamento. Kenny cobriu a boca com a palma da mão, esfregou um pouco o nariz e, em seguida, secou os olhos. Não olhou para Kyle em momento algum.

-Eu preciso de gentileza. - Kenny sussurrou por fim, liberando o ar dos pulmões. - Eu sei que é uma merda, eu sei que não é o que o Tweek merece. Eu não perdi todo o meu senso de ética. Mas o Tweek tem as necessidades dele, eu tenho as minhas, como todo mundo. Eu não tô tentando separar um casal feliz, Kyle, eu realmente espero que o Tweek nunca saiba das coisas que eu já fiz com o marido dele. Foi só uma porra de uma infelicidade. O Craig era tudo que eu tinha. Por favor, acredita em mim quando eu digo: isso não é uma ameaça pra eles. O que eu tenho com o Craig não muda nada do que ele tem com o Tweek.

Kyle umedeceu os lábios. Não tirou os olhos de Kenny em momento algum, a ponto de entrar em uma espécie de transe. Cruzou os braços quando finalmente sentiu que ele havia esgotado tudo o que tinha para dizer. Aproximou-se cautelosamente, um passo por vez, o rosto em branco.

-Você tem razão. Eu não entendo. - Disse em sua voz mais gentil, voltando a se sentar, agora a uma certa distância do outro. - Mas eu respeito isso. No que depender de mim, ninguém mais vai saber.

-Eu amo o Craig sim. Não é falta de amor. Mas ele… Eu não sei se você lembra como ele sempre gostava de montar e desmontar coisas no ensino médio, ele pegava qualquer eletrônico pra abrir porque ele gostava de entender como as coisas funcionavam. Ele queria consertar tudo. E eu acho que às vezes ele esquece que eu e o Tweek não somos coisas a serem consertadas. Nós dois somos fodidos da cabeça, é, ele gosta disso. Sabe por que eu me esqueci de avisar a ele onde eu tava? Porque pela primeira vez em muito tempo, eu me senti uma pessoa normal. Foi só ele botar o pé aqui dentro que eu me senti doente de novo. Eu não… Eu não tô dizendo que ele queira que eu continue doente. Mas talvez, só um pouquinho, bem no fundo, ele queira que eu precise dele.

-E você pode culpá-lo? Todo mundo precisa disso, Kenny. Todo mundo precisa sentir que tem um lugar. Que é necessário pra alguma coisa.

Eles apenas ficaram ali sentados ao lado um do outro em silêncio por quase um minuto. Kenny apertava as têmporas como se tentasse aliviar uma dor de cabeça. Seu rosto estava um pouco úmidos, mas novas lágrimas já não escorriam mais. Ele parecia mais calmo. Secou as bochechas com o pulso e fungou baixo; os olhos encaravam os próprios pés, mas era visível que sua mente estava muito distante daquela sala. Após ponderar sobre a pergunta, Kyle finalmente quebrou o silêncio:

-O que o Craig quis dizer com “você não aceitaria esmola de mais ninguém”?

Um sorriso malicioso (e ligeiramente agridoce) apareceu nos lábios do loiro. Agora ele que estava de braços cruzados, afundado no estofado com a coluna torta, como um boneco de pano velho. Virou o rosto para Kenny e passou a língua pelo lábio superior.

-Então você ficou ouvindo.

-Ele ficou gritando, não era como se eu tivesse escolha.

A resposta foi uma expressão desconfiada que fez Kyle sorrir de modo envergonhado e desviar o olhar. O sorriso de Kenny se diluiu aos poucos; ele não tava pressa para responder. Pensou um pouco no assunto antes.

-Eu posso ou não ter tido uma queda por você quando nós éramos moleques. - Respondeu de repente, encolhendo os ombros como se dissesse algo descartável, voltando o olhar para os pés descalços. Kyle imediatamente correspondeu com uma careta que dizia “ah, tá bom”, mas o silêncio e a sobriedade de Kenny pouco a pouco o fizeram considerar que ele estivesse falando sério. - Craig não deve ser seu maior fã. Ele acha que você me magoou ou alguma porra do gênero.

Kyle deixou os lábios entreabertos como se estivesse prestes a dizer algo muito antes de saber o que dizer. Havia um brilho estranho em seus olhos, mas Kenny não sabia disso. Não estava olhando para ele.

-E magoei? - Kyle perguntou.

-Ah. Eu não te dei essa oportunidade. Houve uma época em que eu gostava de poupar o drama, viu só?

Kyle endireitou as costas no sofá, sentado na beiradinha agora, alongando o pescoço que estava levemente dolorido de tensão. Ele precisaria de muitas aulas de ioga pra se livrar disso.

-O que isso quer dizer, você “não me deu essa oportunidade”?

-Kyle. Eu era um magricelinha de merda que não tinha onde cair morto e fugia da escola pra fumar maconha. - Ele umedeceu os lábios enquanto refletia por um instante. - Bom, essa descrição não mudou quase nada, mas agora eu não me apaixono mais pelos filhos de advogado que vão estudar em Harvard.

-Eu estudei em Stanford.

-Tanto faz. A questão é: garotos como você se apaixonam pelo médico negro gato, não pelo caipira que mora num Fusca.

-Só que você não era isso na época. Token não era médico. Nós nem estávamos juntos.

-É, mas… A gente sempre soube que seria isso, não? Eu sempre soube que eu continuaria sendo a escória branca dessa grande nação, e se não tivesse sido o Token, teria sido outro estudante de medicina ou direito ou… Qualquer porra dessas. Você, Kyle Broflovski, - Kenny esticou o dedo indicador para tocar a bochecha de Kyle. O ruivo sorriu. - você teria partido o meu coração em mil pedacinhos se eu tivesse sido trouxa o suficiente pra me declarar.

-É possível. É mais do que possível, na verdade, é bem provável. Mas você não era o único idiota naquela época. Eu teria recusado porque eu era um arrogantezinho imbecil com pavor de qualquer coisa que fugisse à regra. Você era exatamente o que o meu eu de dezessete anos precisava. Aquele merdinha não sabe o que perdeu.

-É, mas você era bem bonitinho.

-Foi quando eu comecei a crescer em volta do meu nariz, é por isso que você tem essa impressão.

Kenny fez algo que teve certeza de que não faria mais naquela noite: soltou uma gargalhada escandalosa, de jogar a cabeça para trás e tudo. Não sentia-se bem, muito menos alegre, mas Kyle era um alívio. Os dois riram juntos, trocando um olhar de companheirismo velado que relaxou os ombros de Kenny de repente. Ele esfregou os olhos úmidos e fungou mais uma vez, agora se esforçando para colocar ar nos pulmões. Bateu nas coxas como quem finaliza um argumento. A dor de cabeça pulsava tanto que gerava a sensação de que uma das veias das têmporas podia explodir a qualquer segundo.

-Bom, eu me sinto um lixo. Vou dormir.

-Você não quer comer nada antes? Ou um copo de vodka? Parece que você precisa.

-Não, eu… - Os olhos azuis tão claros hesitaram encará-lo diretamente enquanto Kenny se levantava do sofá. - Eu não faço mais isso. Encher a cara quando dá merda, digo.

-Isso é sábio da sua parte, eu acho.

Kenny deu alguns passos sobre o tapete da sala e olhou em volta como se estivesse com vergonha de deixar a pequena bagunça para trás, mas Kyle fez um sinal com a mão que indicava “vá de uma vez, deixa comigo”. O que foi um alívio, porque tudo o que ele queria naquele momento era deitar a cabeça latejante no travesseiro macio e fechar os olhos.

-Obrigado, Kyle. Por… Você sabe.

Kyle engoliu o acúmulo de saliva acumulado na boca e sorriu. Era um sorriso modesto, fraco, mas significativo o bastante para que seus olhos se fechassem um pouco.

-Eu sou seu amigo, Kenny. Com dez anos de atraso, mas eu sou.



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