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História A Testemunha - Capítulo Um


Escrita por: cherrybombshell

Notas do Autor


POR FAVOR, LEIAM AS NOTAS FINAIS

Capítulo 1 - Capítulo Um


 

Parte Um - O Divino

 

Uma vez, quando Canissa era ainda mais nova e mais burra, ela ousou dar voz a uma pergunta que a muito tempo a incomodava.

Ela tinha estado calada observando a mãe abrir uma tangerina. As mãos da mulher mais velha eram tão fortes quanto eram calejadas, cruamente machucadas tanto quanto eram cheias de cicatrizes a muito tempo má-curadas, e o rosto dela era cansado, mais velho do que a palavra velho. Mesmo assim, ela separou a fruta em partes perfeitamente iguais sem o menor tremor, uma mordida para cada criança na casa, um pedaço para cada boca faminta e barriga vazia que iria continuar vazia.

Para os olhos escuros e arregalados de Canissa, e o corpo escuro e pequeno dela, a cena pareceu sagrada.

A mãe dela pareceu mais forte do que qualquer homem era capaz de ser, só naquele curto segundo, e nas mãos dela a fruta pareceu virar algo milagroso. A comida deles, e assim as vidas, seguradas por aqueles dedos ásperos e tatuados.

Canissa a observou. Enquanto isso, na cabeça dela, um pensamento se revirava. Uma curiosidade inquieta, era o que era. Uma irritação que borbulhava, fazendo com que ela franzisse o cenho.

O Divino deles, imperador Bashir, tinha se casado com uma princesa estrangeira menos de dois dias atrás e Canissa ainda se lembrava na hora, e se lembraria pelo resto da vida, das dez carruagens de ouro que aceleraram por aquelas favelas durante o nascer do sol, todas cheias de nobres que claramente não queriam quebrar a tradição dos recém-casados desfilarem por toda Quasha, mas que também não tinham muita vontade de ficar vacilando em uma parte tão suja e perigosa da capital. O som dos chicotes deles (que também eram adornados por um dourado perigoso) acertando as costas de seus cavalos para que eles fossem mais rápido tinha se prendido aos pensamentos e pesadelos de Canissa desde então.

Ela tinha apenas cinco anos na época. As mãos dela eram cheias de bolhas que ainda não tinham endurecido e se transformado em calos, ainda pequenas, sem nenhuma da firmeza da mãe – tudo que ela fazia era com uma incerteza infantil, imprecisão e irritação consigo mesma por tudo que não sabia fazer. Ainda não tinha força nenhuma. Não tinha nem a rapidez que iria a salvar tantas vezes no futuro.

Até naquela época Canissa já não conseguia ignorar a irritante, persistente sensação de que aquilo tudo era errado.

Eles tinham carruagens feitas de ouro puro. Enquanto isso, a mãe dela tinha uma única fruta para dividir com todos os filhos e uma exaustão tão antiga e tão visceral que cada um dos irmãos de Canissa tinha nascido com ela crescendo como um fungo envolta às suas costelas antes mesmo de soltarem um primeiro choro, uma fome herdada tão no fundo dos estômagos que eles nunca souberam como era viver sem ela ali, e nunca um dia saberiam.

— Por que o Divino tem dinheiro? — ela perguntou para mãe aquela noite. — Por que nós num têm?

A voz dela tinha estado baixinha. Canissa nunca gostava de falar alto ao redor da mãe, ainda mais nos dias como aquele em que o trabalho tinha sido tão difícil que ela voltou para casa com as palmas sangrando e nenhuma paciência para Canissa e os irmãos. Ela era uma boa mulher, mas assim como todos que ali moravam, ela estava cansada demais para ser uma mulher gentil ou paciente. Cansaço sempre tinha assustado Canissa. Podia ser mil vezes mais perigoso do que maldade, na experiência própria dela.

Inútil. Era isso que ela era, e isso que todos os esforços dela sempre acabavam sendo.

Não tinha importado que ela sussurrou a pergunta, porque a mãe dela virou a cabeça rápido demais e olhou para Canissa como se ela tivesse berrado palavrões diretamente no ouvido da mulher. Ela se encolheu quando a mãe levantou uma mão, mesmo que soubesse que ela não ia a machucar de verdade.

— Ele nasceu com dinheiro — a mulher disse, a puxando a orelha. As unhas dela eram afiadas; os dedos longos. — Nós nascemô sem, como os Deuses queria. Não fica fazendo perguntas demais a não sê que cê queira acabá com a cabeça numa estaca, Nissa.

E foi esse o fim da conversa delas.

Ela soltou Canissa e a deu seu pedaço da tangerina, e foi atrás dos outros filhos. Ao passar, ela até passou uma mão rápida no cabelo de Canissa, resmungando sobre menininhas curiosas demais para o próprio bem. Era o tipo de toque casual que fazia o resto da família delas dizer que ela era a favorita, mesmo que Canissa não sentisse nem um pouco como se isso fosse verdade.

Ela manteve a boca fechada depois disso.

Não teve a coragem necessária para expressar qualquer questionamento que tinha sobre o Divino, não para adultos e nem mesmo para os amigos, porque ela tinha sim visto os corpos que eram espetados na praça principal da cidade. Ela não tinha nenhum interesse em acabar como eles.

Ela não conseguia evitar esses pensamentos completamente. Não tentava na segurança da própria mente, porque simplesmente não fazia sentido. Não era justo.

A vida, Canissa teve que aprender rápido, nunca era.

Nascida e criada e destinada a morrer na pior favela do conquistador reino de Yafa, Canissa teve que encontrar um jeito de ajudar a mãe dela desde que era bem pequena, assim como todos os irmãos e irmãs dela faziam.

Com a pobre educação deles e as estaturas pequenas, isso, para quase todos, tinha rapidamente se traduzido em varrer a entrada da loja dos vendedores mais ricos, e em levar cartas de uma casa para a outra, correndo por toda cidade, e, mais do que todo o resto, em cometer furtos no mercado principal.

Afinal, mesmo quando não havia nenhum emprego na cidade, ainda havia aquilo. Havia eles: nove crianças magrelas e esfarrapadas com as bochechas afundadas e os parecidos rostos sujos e avermelhados e escurecidos ainda mais pelo clima imperdoável, deslizando por entre corpos bem apertados e enfiando as mãos nos bolsos por quais passavam, roubando moedas soltas e bolsinhas nunca completamente cheias e de vez em quando comidas. Eles fugiam quando vistos, se enfiavam onde quer que desse, se encontravam no fim do dia para analisar o que conseguiram; faziam piadas e zombavam um do outro pelo que tinham trago enquanto o pôr do sol descia e queimava atrás deles.

Essa era Yafa, seu reino divino.

Isso era Quasha, a capital do mundo.

Não o imperador que não sabia de nada sobre a verdade daquela terra e muito menos a corte ostentosa dele, mas sim isso. Aquelas crianças. Caminhos descobertos e varridos com areia quente, barracas exprimidas nas beiradas das ruas, vozes altas chamando e vendendo de tudo, desde comidas apimentadas que cozinhavam no sol por horas, até ingredientes não muito frescos, até vasos de cerâmica e tapetes pesados e roupas grossas, o tempo todo o vermelho feroz do céu batendo forte neles com a fúria de seus Deuses violentos.

Pobreza e ratos e noivas-crianças escondidas em carruagens de ouro. Era isso que compunha o maior e mais poderoso império em todo o mundo conhecido.

E, mais embaixo, em meio as sombras e por trás de esquemas, havia o irmão mais velho de Canissa, Babet, que era líder de uma das gangues cruéis que ficavam maiores e mais violentas a cada ano e a cada demissão em massa. A dele era a maior, a mais cruel e a mais violenta, tudo em um, e ele dizia que iria deixar ela se juntar a ele um dia, se ela ficasse mais alta. Deixava a mãe deles sufocada de tanta preocupação, mas era um bom dinheiro, mesmo que fosse dinheiro sujo, e nenhum deles nunca dizia não para dinheiro. Para Canissa era assustador, principalmente depois que Babet perdeu o olho, mas ela queria fazer parte deles. Queria ajudar a família dela, mesmo que cometendo crimes, mesmo que fazendo coisas horríveis e injustas.

Você não podia alimentar uma família de onze só com uma panela vazia e um coração cheio de empatia. Você não podia manter ninguém vivo sendo completamente bom, ao menos não em Quasha, e vivendo bem onde vivia, Canissa nunca deu muita bola para honra.

Algumas pessoas davam. Ela tinha conhecido até alguns loucos no bairro que achavam que exaltar os que se escondiam no céu e os sábios limpos escrevendo sobre leis e cidadania em castelos iria os salvar; se não nessa vida, então na próxima. Canissa não teve fé para gastar com homens que não se importavam com ela e nunca a olhariam diretamente nos olhos.

Ao invés, ela se preocupava procurando por oportunidades, não se importando em como isso refletia nela e nas morais dela.

Foi assim que Canissa acabou no meio de toda aquela confusão. Toda uma década mais velha do que quando ainda ousava fazer perguntas para mãe, mas burra, ainda, e um pouco pequena demais, no florescer de sua adolescência, no revirar do começo de uma rebelião – o começo de uma nova era, foi onde ela se enfiou.

Não que ela tivesse a mínima ideia disso na época, é claro.

— Cê disse que elas dava uns cinco minutinhos atrás — Marya argumentou, a quinta vez que tinha repetido tal frase nos últimos dez minutos.

— Cinco horas atrás — o vendedor corrigiu como tinha corrigido todas as outras vezes, um homem jovem com as bochechas já mais vermelhas do que brancas, descascando por causa do sol. Claramente ele era um estrangeiro recém-chegado, daqueles que fugiram da guerra na fronteira. Não podia ser tão novo assim, ao menos não ao ponto de não ter amigos entre os outros comerciantes, porque ele parecia suspeitar do que Marya era. Tinha aquela desconfiança familiar de quem tinha sido avisado. Fez Canissa se mover com um pouco mais de cuidado enquanto ele apontava: — Cinco horas atrás as moeda que cê tá segurando valia mais. O valor delas caí, o meu preço aumenta. É matemática simples, se cê sequer sabe fazer isso.

Marya deu uma fungada irritada.

Ela passou o polegar pelo canto rachado da boca, lançando um breve, significativo olhar para o outro lado da rua. Tinha peso. O homem olhou também. Manteve o olhar por mais tempo do que ela, atento como se estivesse tentando ver se havia alguém ali para receber um sinal. Havia uma mulher observando outra barraca e alguns vendedores conversando entre si, mas ninguém que parecia estar prestando atenção neles. Nada que justificasse o tamanho da suspeita no rosto dele a não ser pelo modo como a própria Marya vinha agindo desde o começo da interação.

Ele bufou. Incomodado, ele mexeu o braço, produzindo um titilar com os muitos braceletes que lhe cobriam o pulso. Enquanto as comidas que vendia eram de uma qualidade bem duvidosa, eles em si pareciam bem valiosos.

Perigosamente valiosos, sendo usados de tal maneira tão descarada. Dava para ver que ele era um jovem orgulhoso, um dos que fugiu do próprio país com tudo que o tinha sobrado e apesar de saber que não devia, não conseguiu parar de esbanjar aquele resquício do que um dia foi. Com os dedos pinicando, Canissa se inclinou para frente, fingindo estar observando os alimentos a venda.

Ele se revirou de novo, dando mais um passo para frente. Parecia querer colocar as mãos em frente as mercadorias e as esconder dos olhos delas. Se pudesse, ele iria as cobrar só por estar ali olhando, dava para ver.

— Negócio merda esse que cê tem — Marya comentou secamente, aumentando a voz e o chamando a atenção. Um homem passando diminuiu o passo para dar uma espiada no que estava à venda. Ela o disse: — Nem perde seu tempo.

O homem não esperou, indo em direção a outra barraca.

Quando o vendedor se voltou para ela, foi com uma careta bem irritada. Ele bateu com as mãos em cima da mesa que usava como um mostruário para seus produtos bruscamente, a madeira frouxa em baixo de suas palmas.

— Olha, é a economia. Se cê tem um problema fala com o seu rei.

— Nosso Divino Imperador — corrigiu Marya, o lançando um sorriso cheio de dentes. Ela sempre sorria daquele jeito, mais loba do que mulher, mais ameaça do que pessoa. — Cuidado, pryshe. Se eles sabê que cê fala dele como se ele não fosse seu também, eles te joga de volta onde cê veio sem cê nem podê abri a boca. Cê não ia querê sê denunciado por algum mal intencionado.

Canissa quase se sentiu mal. Seja por causa do clima, da raiva ou de alguma vergonha, aqueles homens do sul sempre ficavam vermelhos fácil, como se os corpos deles estivessem sempre passando calor demais. Não pareciam conseguir esconder nada. Ela, também tendo um humor descontrolado e um rosto expressivo (mesmo que não pela mesma razão), entendia o quão irritante era.

Nesse daqui estava claro que a causa do rubor era ódio. Havia um toque de medo talvez, só um pouco visível no fundo daqueles olhos claros, mas o ódio era o principal. Ele queimava.

Marya nunca iria realmente denunciar alguém. Canissa sabia disso, mesmo que o homem não soubesse. Ela odiava os guardas bem mais do que odiava os pryshes que vinham enchendo aquela cidade – os estrangeiros do leste, forasteiros do norte, refugiados do sul, até os aliados se mudando do oeste; todos e de qualquer nação que não fosse Yafa se encaixavam em tal grupo, mas na maior parte do tempo, quem falava aquela palavra, insultante como ela era, realmente queria dizer invasores. Não se importava de onde eles vinham e só que eles tinham vindo e não mostravam sinais de sair.

Ela não se importava com eles, não do jeito que alguns se importavam, do jeito que alguns os odiavam por serem de fora. Não era do feitio de Marya ficar se preocupando com a vida de quem não tinha nada a ver com ela.

Naquele momento não importava como Marya era e sim quem ela era.

Era a irmã mais velha, no caso. A irmã usando as roupas masculinas de Babet, a que sorria descaradamente e andava com a cabeça levantada e arranjava discussões com qualquer um que passava. Era ela que tinha a responsabilidade de ser a distração, manter todos os olhos em si enquanto Canissa abaixava a cabeça e se enfiava onde não devia. Elas já tinham pego o jeito. Já tinham tentado de tudo e sabiam que não eram conversas amigáveis ou flertes desajeitados que chamavam atenção; brigas e ameaças, isso funcionava como mais nada.

O vendedor não tirou os olhos cerrados dela. Parecia furioso. Parecia ter se esquecido de todo o resto do mundo tamanho que era tal fúria.

— Zasnat'ra — ele cuspiu na direção de Marya. Antes, enquanto ele discutia preços, a voz dele tinha um sotaque forte o suficiente para causar confusão, mas até que a pronúncia dessa palavra foi boa. Já tinha sido ensinado xingamentos, então. Bom. Isso era de muito utilidade por aquelas bandas.

O sorriso de Marya persistiu, mas os cantos da boca dela deram uma apertada quase que imperceptível. Era todo o aviso que Canissa precisava.

Ela puxou a manga de Marya com força.

— Rya — chamou, os olhos arregalados, a expressão chorosa e digna de pena. Era bem fácil fazer aquela cena, em grande parte porque ela não estava nem mentindo ao soltar: — Rya, eu tô com fome.

O homem hesitou, claramente tendo si esquecido que havia outra menina estava ali, uma mais nova, uma criança. Marya passou um braço por cima do ombro de Canissa protetoramente, a puxando para longe.

— Eu sei, amor — disse. Era um falso sussurro contra o ouvido dela, um falso conforto fazendo o coração dela se apertar. O calor do corpo da irmã se aproximou de Canissa, a cabeça se inclinou na direção da dela, e o tom era quase suave, mas a voz alta o suficiente para elas serem ouvidas, porque tudo ainda era, e sempre seria, uma distração. — Vamô, a gente encontra um lugar menos merda.

— Com pão?

— E feijão pra gente pô por cima do pão fresquinho — concordou Marya. — Com cebola e ovos que nem tem um cheiro estranho.

Canissa fechou os olhos brevemente, se deixando imaginar. Era um bom sonho, mas só um sonho mesmo, o que as duas sabiam. Os abrindo, ela lançou um último olhar choroso para o homem e então um olhar para irmã pelo canto do olho, deixando que Marya a guiasse por caminhos que as duas conheciam tão bem quanto os próprios corpos, os passos fluídos e ágeis, mais instinto do que movimentos deliberados. Elas não começaram a correr.

Correr, naquela cidade, era outro erro de iniciante.

— Te pergunto — disse Canissa, baixinho —, o dinheiro pra isso cê vai arranjá onde?

— Bem, por que a gente não começa com 'ocê me mostrando o que cê tem no bolso, minha ratinha?

Canissa checou os lados. Havia uma razão para elas terem saído com o passo apertado: pelo que o vendedor tinha a chamado, Marya deveria ter tido uma reação bem mais agressiva à confrontação. Era, socialmente, o pior xingamento que eles tinham. Qualquer um teria parado para uma troca de socos e em outra situação Canissa teria que ter a puxado para longe, provavelmente, não só a chamar tão fácil.

Felizmente, Marya não precisava ficar brava quando já tinha ganhado, e não precisava ser agressiva quando elas já estavam sendo babacas.

Assim que elas tinham certeza que estavam fora do campo de visão do homem, Canissa se apoiou contra o ombro de Marya, que ainda estava a segurando, e a passou os finos braceletes que tinha pego dele.

Marya assobiou, surpresa. Canissa abriu um sorriso em parte tímido, em parte orgulhoso. O plano era pegar uma mercadoria, mas isso parecia mais caro, e com a grande quantidade que ele tinha estado usando, Canissa suspeitava que iria demorar algum tempo até ele perceber que três estavam faltando. Tinha sido uma mudança de planos impulsiva e ela ficava feliz que a irmã não parecia achar uma decisão idiota.

Por um segundo, Marya só os observou embaixo do sol. Ela os enfiou nos bolsos da calça junto com as moedas que Canissa tinha tirado de um outro vendedor e já a passado um tempo atrás. Olhou por cima do ombro discretamente, checando se ninguém as seguiu, antes de se voltar para Canissa e a puxar ainda mais para perto.

— Burro — comentou contra o ouvido da irmã, mas não foi com insulto na voz. Foi com pena. — Esses nunca dura muito.

Elas não tinham parado de andar. Canissa encolheu os ombros.

— Ele vai aprendê.

Não tinha escolha a não ser aprender.

— Por isso cê é a otimista e não eu — comentou Marya, o cenho se franzindo. Ela deu uma puxada leve na trança de Canissa, porque a família delas tinha um jeito bem estranho de demonstrar afeição, sempre a escondendo atrás de uma dose saudável de falsa violência e pseudo-irritação. Com humor iluminando o rosto, ela repetiu o homem: — Zasnat'ra.

Filha da puta. Era até engraçado. Quem tinha ensinado o forasteiro a falar isso?

Canissa empurrou o ombro dela, fazendo uma careta quando Marya só sorriu aquele sorriso de sempre.

— Zaskoshaka — rebateu com a mesma falta de crueldade da irmã, a puxando o braço com força porque chamar uma a outra de prostituta era uma daquelas coisas que não tinha nenhum peso quando se era família. Ela fez carinho na própria trança mesmo que não tivesse doído. Admitiu: — Jurei que eu ia tê que te segurar quando ele te chamô daquilo.

— Ele nem deve entendê o que disse direito — bufou Marya. Os olhos dela dançavam com diversão, dourados e reluzentes como toda a riqueza que elas nunca iriam ter, e era lindo. A irmã de Canissa era linda, mesmo que toda afiada e machucada pela vida, lhe puxando o cabelo de novo (puxando a cabeça mais para perto como resultado) enquanto zombava com um sussurro: — Tava igualzinho a ocê quando eu e o Babet tentamô te ensinar a xingá alguns anos atrás. Bem patético, lembra?

— Seu fedor que é patético — disse Canissa, o que não era uma boa resposta, mas eh. Ela era a mais nova e de longe a menos inteligente, era perdoado que ela não fosse a mais respondona.

Elas passaram por alguns dos irmãos enquanto andavam, mas além de um aceno da parte de Samut, uma piscada de Nerissa e um puxão que Marya deu no ouvido de Bene, nenhum deles parou o que estavam fazendo. Aquele não era um dos bons dias em que eles podiam se dignar a desacelerar e conversar.

O problema começava com o fato de que mercado estava relativamente vazio. O centro todo estava.

A parte do "relativamente" era importante. Normalmente Canissa não conseguia andar nem um passo sem trombar com alguém ou receber uma cotovelada nas costelas ou uma mão tentando a apalpar. Enquanto ainda havia várias pessoas andando por aí no momento – pessoas que tinham pisado nos pés descalços dela mais vezes do que ela podia contar, como ela estava acostumada –, não havia a sufocante multidão vespertina normal, o que era notável e de certa maneira desconcertante. Com certeza digno de suspeita e, para eles e para os vendedores, irritação.

Afinal, era aquela multidão que tornava os furtos deles fáceis, só puxar e de vez em quando empurrar e sair sem serem nem vistos. Da mesma maneira, tinha sido por causa daquela diminuição de compradores e trabalhadores nas ruas que Canissa tinha acabado se juntando com a irmã para aterrorizar os pobres vendedores. Normalmente não valia a pena, mas era o que tinha para hoje.

Marya foi a perfeita distração. Canissa, pequena e rápida, foi furtando moedas e bijuterias e, na última barraca, um pequeno pote de lentilhas cozidas.

— Talvez os imposto aumentô de novo —Marya teorizou enquanto elas se sentavam nas escadas em frente a um templo e usavam os dedos para comer as lentilhas, passando o pote de madeira de uma para a outra.

Quando os impostos eram aumentados os guardas do Divino iam até a maior praça no centro dar o aviso. Deixava o resto do centro mais vazio enquanto a maior parte do povo se juntava, recebia a notícia e então passava o resto do dia ou reclamando ou se lamentando ou brigando.

Canissa lambeu o dedo.

— Talvez o Divino pegô outro traidor — ela sugeriu. Isso também causava grande comoção sempre que acontecia.

— Bá, novos corpos na praça. Que gostoso. Os último já estava bem decompostos, precisava de uma troca mesmo.

Canissa deixou a cabeça pender para o lado, pensadora.

— Talvez ele começô outra batalha na fronteira. Eles sempre para tudo quando faz o anúncio.

— Como se a última tivesse acabado.

Canissa chutou a canela dela. E ela teve coragem de falar do vendedor por falar coisas que podiam ser consideradas traição!

— É o desejo dos Deuses, Ria.

A irmã dela revirou os olhos.

— Porque a glória das batalhas ganhas alimenta as nossas plantações — começou.

— E o sangue dos inimigos mantém os nossos rios cheios — elas terminaram juntas, trocando um sorriso porque aquilo era uma grande baboseira, mas era o que o Divino dizia e os sacerdotes passavam para o povo e a mãe delas, cheia de uma confiança que nunca era retribuída, repetia ao menos três vezes no dia.

Marya passou o pote quase vazio para Canissa, que o virou para pegar tudo que ainda tinha.

— Vai vê é por isso que todo mundo fica doente quando bebe nossa água — Marya comentou secamente. Ela se levantou e limpou as mãos nas calças. O pote, acabado e limpo com muito cuidado para não deixar qualquer finalzinho de comida para trás, foi em si esquecido nos degraus enquanto Canissa se levantava também. — Vamô. O que quê que 'teja acontecendo, a gente ainda vai tê que passá lá de qualqué jeito.

Canissa passou uma mão pela boca, a limpando e depois limpando a palma na roupa, e concordou com a cabeça.

Marya andou sem olhar para trás, mas a mais nova das irmãs parou no último degrau, olhando por cima do ombro na direção do templo. Não tinha tanta fé quanto a mãe – acreditava nos Deuses deles porque não conhecia uma existência sem Eles, mas nunca deu bola para os homens que diziam se comunicar com Eles ou passar Sua palavra adiante. Que prova que ela tinha que aquelas palavras vinham de qualquer lugar sagrado e não só da boca de um sacerdote qualquer com as mãos do Divino lhe apertando os ombros?

Mas a crença continuava, mesmo que encolhida. Vinha do berço.

Tinha sido criada e crescido junto com a própria Canissa e tantas vezes ela tinha se sentado naqueles degraus com os irmãos, se enfiado nos cantos e becos escuros ao redor do templo para os mostrar coisas que não deveria ter em sua posse, escapulido lá para dentro para se esconder enquanto guardas corriam pelas ruas a sua procura.

Havia um ponto fraco no coração dela quando se tratava daquele lugar específico e da Deusa que supostamente cuidava de todos embaixo daquelas quatro paredes; uma Deusa que não era uma das principais e que não tinha muitos devotos ao longo do império, mas que tinha Canissa.

Ela respirou fundo e o calor do ar lhe tocou em cima dos lábios, onde já estava suando mais uma vez.

Ela os limpou de novo. Fechou os olhos, trazendo a ponta dos dedos indicador e médio para descansar com leveza em cima da pálpebra esquerda, e então a direita, e por fim no meio da testa. Levou os mesmos dedos até os lábios, pausando neles antes de lançar um beijo para o céu.

A primeira parte lhe tinha sido ensinada pela sacerdotisa que daquele templo cuidava, a segunda ela própria tinha inventado. Ela gostava de imaginar que a Deusa gostava. Ela gostava de imaginar que as poucas preces que ela de vez em quando lembrava de fazer significavam algo. Canissa lançou um pequeno sorriso para cima antes de acelerar em direção a irmã, que tinha que ter percebido a falta da outra, mas em momento algum tinha parado para a esperar.

O velho Hassan, dono de uma loja de joalherias e outras bugigangas perto da praça, sempre comprava as bijuterias que elas roubavam e não tinham porque querer manter. Ele acabava com mais produtos por um preço baixo, elas com dinheiro que realmente poderiam usar, sem serem deduradas nem para os guardas e nem para os outros vendedores.

Isso era, em parte, pelo medo que o velho Hassan tinha de Babet. Era um acordo mutualmente positivo de qualquer maneira. Elas sempre passavam por ele no fim do dia.

Canissa correu na frente da irmã, curiosa. Como esperado, havia guardas no local, um círculo de homens sérios e vestidos notavelmente melhor do que o resto, separados no palco onde corpos eram mutilados para espetáculo público.

Aquela praça era a principal da capital e a escolhida para tais atrações por causa das estátuas que ali havia. Três delas, feitas não muito antes de Canissa nascer e tão gigantes que doía o pescoço dela quando ela tentava olhar para cima e ver os rostos esculpidos em pedra. Para a esquerda Kaur, sua Deusa da Justiça com uma centena de olhos sempre abertos, e na direita Tau, Deus da Ordem com uma centena de braços sempre erguidos, com o Divino ficando no centro entre os dois, é claro, cravado em uma imagem mais divina do que humana, já que o rei era mais Deus na terra do que Homem. Quando traidores eram mortos, eles sempre eram erguidos perto das estátuas, onde a Justiça e a Ordem e o Divino podiam acompanhar Suas ordens sendo seguidas.

Canissa ficou na ponta dos pés para ver apesar da multidão que estava sim concentrada toda lá, sussurrando entre si ao invés de andando pelo mercado como faziam todos os dias.

Os cadáveres eram os mesmos de antes, a carne apodrecida e fedorenta e caindo aos pedaços que iria continuar em exibição até um novo traidor ser pego, o que descartava a teoria dela de que um já tinha sido. Ninguém chorava ou gritava ou era arrastado, o que queria dizer que os impostos provavelmente continuavam os mesmos de antes. Ninguém gritava a favor de uma guerra ou ameaçava estrangeiros, assim excluindo a última das suspeitas dela e a fazendo bufar e voltar a ficar de pé normal.

Se havia uma grande aglomeração, ao menos um irmão de Canissa tinha que estar por perto se envolvendo em algo que não devia. Não demorou muito tempo para ela encontrar Kassim apoiado contra a faixada de uma loja. Ela puxou Marya na direção dele, se enfiando em meio a bagunça e esquivando dos corpos. Um homem trombou nela com força. Canissa não deu muita bola.

Kassim não se moveu quando elas pararam na frente dele, formando uma muralha que o escondia do campo de visão dos guardas e do sol. Estava segurando uma laranja, o que Marya se estendeu para pegar na hora, mas ele estava mais distraído com o que tinha na outra mão: um brinco.

— É uma esmeralda de verdade, cê acha? — perguntou, o enfiando na cara de Canissa. Ela segurou a jóia, inclinando a cabeça para trás para ver melhor.

Os lábios dela se cerraram.

— Deve sê não.

— Não é — concordou Marya, jogando a laranja de uma mão para a outra. Costumava fazer malabarismo; quando era pequenininha e fofinha, conseguia alguns belos trocados se mantendo nas partes melhores da capital. — Não vai enganar o Hassan, então nem tenta, moleque. — Ela deu um chutinho na canela dele. — Quê que tá acontecendo?

— O castelo tá contratando. — Marya lançou um olhar para Canissa que dizia aí tá a sua explicação. Kassim fez uma careta, não prestando nem um pouco de atenção no chute, muito menos nelas. — Tem certeza que não é de verdade? Porque é bem verde. Parece sê de verdade.

— De quem cê pegô?

— Um guardinha aí.

— Então claro que não é. Eles só finge que são melhó que a gente, o salário deles não são tão bom assim.

Esmeraldas eram as favoritas do Divino, supostamente por causa dos raros olhos da consorte dele. O preço delas refletia tal favoritismo.

Kassim, porque ele era parte daquela família e, portanto, muito cabeça dura, não admitiu derrota. Ele cerrou as sobrancelhas.

— Talvez um deles roubô uma esmeralda do castelo — argumentou. — Quer dizer que eu posso tê roubado do castelo. Legal, não?

Marya bateu na cabeça dele com força. Dessa vez havia uma agressividade real retorcendo o rosto dela.

— Não fala isso alto, idiota. Se alguém te ouve...

Mas até a própria Canissa não estava os ouvindo mais. Ao invés disso, ela estava olhando para os guardas tão bem quanto dava quando ela era tão baixinha e a multidão tão fechada ao redor deles. As sobrancelhas dela estavam franzidas. Era uma inquietação. Um borbulhar, uma ideia, tudo de perigoso que a mãe dela nunca conseguiu tirar de Canissa completamente, não importa quantas vezes a puxasse pela orelha.

Ela não se importava com morais ou com honra.

Ela só se importava com oportunidades.

E era bem ruim que os irmãos mais velhos dela estivessem ocupados discutindo sobre esmeraldas falsas um com o outro. Ruim que ela fosse tão rápida, e que não ser notada fosse basicamente o único trabalho que ela já teve, e que ela tinha recém feito quinze anos, mas ainda era tão burra quanto na época que tinha cinco.

Com tudo isso se juntando, foi bem fácil para Canissa se separar deles sem eles perceberem e ir em direção aos guardas em meio a praça.


Notas Finais


GATILHOS:

Essa é uma história que tem como tema um estudo sobre diferenças de classe, inter-relações entre mulheres de diferentes gerações, famílias de escolha, a violência contra a mulher e o papel que a própria tem em uma monarquia. Existem momentos que vão ser pesados, mas nada explícito vai ser usado puramente por choque gratuito e é uma história, lá no fundo, sobre coisas horríveis acontecendo e como bondade e empatia inesperadas podem criar laços que em outras situações nunca teriam conseguido ser criados e que mudam a vida das pessoas completamente.

Descobrir como dar os gatilhos sem a estragar foi algo que me importunou por um longo tempo. Originalmente isso era para ser um conto pessoal, sem planos de ser publicado, e eu comecei o escrevendo só pelo amor de escrever e a vontade de me desafiar. Se você leu os temas que eu mencionei e sabe com certeza que não iria ter problema os vendo ser abordados, talvez você possa pular essa parte e, caso você se sentir confortável, ler mais as cegas. Caso não seja esse o caso:

As coisas que são temas importantes, os personagens discutem entre si e a narradora até chega a ver, mas que em momento algum são mostradas em cenas explícitas: discussões sobre um casamento arranjado entre um adulto e uma criança sendo que no começo da história a criança já é adulta, discussões sobre abuso doméstico, discussões sobre estupro marital, discussões gerais sobre pedofilia.

As coisas que realmente acontecem explicitamente: pobreza é um tema bem grande. Violência e abusos de poder também. Ocorrem AMEAÇAS de violência sexual e um assédio com toques indesejados e tentativas de beijo que é parado.

Eu achei difícil descrever esses gatilhos não só porque eu não queria os detalhar demais e tirar a graça da história, mas porque eu nem sabia como descrever ou nomear a maioria das coisas que acontecem. Se você estiver lendo a história no futuro e achar que eu poderia ter usado uma descrição/nomenclatura melhor, ou que eu esqueci algo, me avisa. Se você quer ler e não tem certeza se iria aguentar ou acha que você iria aguentar se soubesse o que vai acontecer melhor e tivesse mais detalhes pra se preparar, me manda uma mensagem e eu te dou avisos com spoilers.


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