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História A Testemunha - Capítulo Dois


Escrita por: cherrybombshell

Capítulo 2 - Capítulo Dois


Trabalhar para o castelo era uma honra, ou ao menos foi isso que os guardas falaram para Canissa, imóveis enquanto os corpos podres de rebeldes balançavam não muito atrás.

Ninguém mais ousou se aproximar, mas eles ainda disseram que ser escolhida (como podia ser uma escolha quando ela parecia ser a única opção?) para trabalhar para o Divino seria uma benção. Traria um dinheiro que era bom e honesto como nada que as pessoas daquele lugar conheciam, e seria imensurável para a família dela. Era só o nome e endereço dela para eles a encontrarem depois. Só isso que eles precisavam.

Marya disse que ela estava fodida.

Pelo menos na cabeça de Canissa a decisão fazia grande sentido.

Não havia trabalho aberto naquela cidade a não ser pelos vendedores, que precisavam ter o que vender para começo de conversa, e os guardas, que precisavam ser homens e relativamente fortes e grandes. Havia outras posições – a própria mãe dela trabalhava como tecelã por exemplo, e claro que nenhuma cidade, muito menos uma capital gigante como aquela, era movida só por vendedores e guardas, mas não havia ninguém procurando por aprendizes no momento, muito menos alguém que escolheria alguém como Canissa e os irmãos.

Esses últimos tempos Canissa só via demissões em massa, nunca novas pessoas sendo contratadas. Enquanto as ruas se enchiam com mais desempregados e famintos e um contratado fazia o trabalho de cinco pelo salário de meia pessoa, estava claro que o ramo de Canissa e dos irmãos era a única opção para qualquer um que não quisesse morrer de fome.

E, mesmo assim, o castelo não parecia ter muitos voluntários entre os quais escolher, não quando todo mundo preferia ficar por perto sussurrando ao invés de ir se voluntariar. Canissa deveria ter suspeitado do porquê disso. Canissa deveria ter suspeitado de muitas coisas em relação àquela situação.

Ela não pensou em nada a não ser que era uma chance. A oportunidade de um salário constante.

Quando ela voltou para o lado deles, os irmãos tinham parado de conversar e apenas a encaravam.

Marya soltou uma gargalhada estranha, rápida e fina, chocada e um pouco estrangulada. Ela olhou para Canissa como se ela fosse a coisa mais hilariantemente desesperadora que Marya já tinha visto, como um trocadilho que era tão ruim que acabou virando a piada mais engraçada em todo o mundo.

Kassim tinha se esquecido do brinco completamente.

— Nós ainda tem que vê o velho Hassan — Canissa argumentou, surpresa, quando ele imediatamente começou a puxar ela na direção da casa deles. Ela olhou para o menino mais velho.

Ele parecia aterrorizado. Foi isso que a fez o seguir sem ousar fazer qualquer outra pergunta, a boca fechando com tanta força que os dentes de cima bateram nos de baixo e doeram. Os irmãos mais velhos dela nunca expressavam medo. A única vez que ela os viu fazendo isso foi...

Foi por causa do que aconteceu com Babet.

Ela endureceu o maxilar. Correu quando Kassim começou a correr e puxar o braço dela com mais força.

Em casa, depois de Marya explicar o que aconteceu, Babet olhou para Canissa, com um só olho e esse assim arregalado e furioso, ficando de frente para ela como se ela fosse a maior traidora em toda Yafa. Ele não gritou com ela. Não bateu. Não brigou ou sequer falou ou explicou o que havia de errado, só a olhou e virou e foi embora, batendo a porta atrás dele com um retumbar violento. Literalmente saiu da casa como se não conseguisse nem ficar perto dela.

A mãe deles, a vida inteira dela uma longa e emaciada imagem de estoicismo e apatia, perdeu cor no rosto e, depois de a encarar com os olhos arregalados e a boca fechada por alguns segundos, foi atrás de Babet com as mãos trêmulas. Canissa ficou. Ela os observou indo embora, e observou os rostos de Marya e Kassim, e não entendeu nada.

Marya que explicou.

— Tem uma razão pra eles procurá por criados perto das favelas — ela disse, tão bondosa quanto sabia ser. Canissa piscou. — Uma razão que tem muito a vê com o fato das pessoa que são mandada pra trabalhá no castelo nunca mandá dinheiro pras famílias como prometeram. Nunca mandá nenhum sinal de vida, a não ser os que aparece como rebelde mortos.

Trabalhar lá não era uma honra, ela simplificou. Era uma garantia de morte eminente.

Canissa, que por anos se recusou a participar de todas e quaisquer conversas sobre o Divino por causa do que aconteceu quando tinha cinco anos e do medo de ouvir ou dizer algo que podia ser considerado traição, de repente entendeu a reação de todos ao redor dela bem melhor.

Ela sabia que tinha amigos cujos irmãos ou pais foram trabalhar como criados e nunca mais ela os ouviu sendo mencionados, mas ela sempre achou que era por causa da distância ou da falta de algo interessante para ser mencionado. Alguns deles ela já tinha visto chorando, perdendo o brilho nos olhos, ficando calados e vazios no rosto; mas Canissa sempre culpou saudade e se distanciou, imaginando que eles preferiam espaço e em si preferindo não ter que consolar ninguém.

A grande maioria deles não sabia ler ou escrever. Se algo fosse mandado do castelo até lá, ia ser só dinheiro sem nenhuma carta ou novidade, e por que eles iriam conversar sobre dinheiro?

Se nem isso chegava... se nem um único salário vinha...

Isso era preocupante.

Isso era uma filha da putagem, na verdade.

Canissa queria viver.

Ela já tinha sobrevivido mais do que alguns amigos de infância dela: vindicados por doenças, e fome, e frio ou calor extremos, e na maior parte do tempo por guardas que tinham mais experiência e habilidade batendo em trombadinhas até a morte do que protegendo cidadãos honestos.

Tinha perdido um irmão quando ainda bebê, quando ele teve o azar de nascer em meio a uma onda de calor como nunca antes aconteceu e que até o momento não tinha se repetido, a subsequente seca e perda de plantações e gado, e ao casamento do Divino, que na época estava ocupado demais dando uma limpa geral nas ruas, as deixando mais bonitas para a ocasião, e teve que aumentar os impostos para conseguir compensar pelos seus planos para festa e os problemas econômicos pelos quais o império já passava. Era um destino terrível para um bebê. Lento ainda por cima.

A Morte não lhe era estranha. Sabia que Ela não evitava crianças. Aquelas ruas estavam cheias de cadáveres tão pequenos que os ricos nem conseguiam os ver lá de cima em suas torres.

Eles todos aprendiam aquela lição cedo ou tarde. Canissa tinha aprendido antes de aprender qualquer outra coisa.

Rato de rua morre cedo, os guardas sempre diziam, e esse império é melhor por causa disso, deixando de lado, é claro, que a maioria deles cresceu em barracos mais próximos do de Canissa do que do castelo do divino.

Foi assim que a vida inteira dela girou ao redor da frase "sua morte é questão de tempo". Ouviu, entendeu, repetiu para as crianças mais novas em casa e nas ruas. Nunca conseguiu internalizar o conhecimento, não quando havia aquela vontade, desesperada e avassaladora dentro de Canissa, de sobreviver.

Ela não tinha uma vida fácil ou feliz. Havia momentos que a impotência era tão grande que a sufocava, o coração tão pesado no peito que parecia que tudo que aconteceu o fez virar uma pedra. Apesar de tudo, ela tentava gostar do que tinha. De vez em quando conseguia.

Era, em grande parte, por causa dos irmãos.

Por causa de Babet, tão violento e temido por todo o mundo a fora e tão protetor e amado dentro daquela casa. Marya, com cada ato de agressão que na verdade significava algo completamente diferente. Kassim, o único que entendia como Canissa podia ser tão cabeça dura e tão quieta ao mesmo tempo, e que sempre ia sorrir tão confiante e a dar o silêncio que ela precisava. Samut sussurrando piadas no ouvido dela, Nerissa sorrindo torto e dividindo pedaços de pão roubado, Bene sendo tão inocente e pequeno que doía no peito. Semir e Nahar e Yrsa e Hartan. Nenhum deles eram boas pessoas a não ser talvez por Bene, mas todos eram bons irmãos e havia algo incrível em acordar todos os dias e saber que estava do lado deles. Que eles eram família. Eram dela e ela era deles. Se havia algo no coração de Canissa, era lealdade – e ela os amava com tanta força que ela podia sentir aquele sentimento a enchendo a barriga que comida nunca enchia.

O resto, o outro motivo para ela querer tanto continuar viva, para se sentir pronta todo dia quando acordava, era pura, amarga teimosia.

Eles queriam que ela morresse? Eles queriam que ela fosse miserável e faminta? Canissa iria lutar e roubar para sobreviver e iria ter orgulho de quem e o que era. Eles tinham a feito assim. Tinham a ensinado a ser suja e violenta.

Podiam lidar com o que tinham feito assim como ela lidava com o que fazia.

A filosofia de vida de Canissa era que cada dia em que ela abria os olhos ela tinha roubado de um outro alguém. Não lhe era dado, não era algo que ela nasceu merecendo e, sinceramente, não era algo que ela podia fazer por merecer sendo a mais forte ou mais inteligente ou mais bondosa, porque mérito não tinha nada a ver com sobrevivência. Era só sorte, um pouco de experiência e principalmente muita cisma. A capacidade de prender os pés no chão, erguer o queixo e dizer o que quer que seja necessário hoje, eu vou fazer.

Desde que trouxesse os irmãos e Canissa juntos para ver o dia de amanhã, ela nunca tinha hesitado.

E talvez fosse por isso que ela tinha se aproximado dos guardas mais cedo sem nem pensar nos riscos. Canissa tinha na cabeça que não seria um salário tão bom quanto os guardas tinham dado a entender. Sabia que não seria bem tratada uma vez que estivesse dentro do castelo e que sair de lá seria difícil. Mas ela faria, por eles. Para que eles pudessem comer um pouco mais. Para que a mãe pudesse trabalhar um pouco menos.

Talvez fosse só fome que a fez fazer coisas sem pensar. Fome também tinha esse efeito, maior e mais abundante do que amor.

Quando Canissa saiu, ninguém a parou. Marya ainda parecia divertida daquele jeito completamente histérico, como se em choque, Kassim assustado e sem acreditar. Nenhum deles tinha mais nada que falar para ela.

A menina não procurou pelo irmão mais velho ou pela mãe. Ela só foi para o lado de trás da casa, sentar e pensar e marinar naquela raiva e confusão que balançava dentro dela.

Pessoas entravam no castelo e não saíam mais. A família deles nunca recebia dinheiro nenhum.

Sua suposta morte iminente era uma irritação e uma decepção e um cuspe na cara. Que aparentemente ela fosse morrer sem nunca mandar nem uma única moeda para família dela era o suficiente para a fazer tremer de tanto ódio. Era ridículo, era horrível, era injusto...

Mas quem em Yafa algum dia se importou com justiça?

Quando ele a encontrou, Canissa estava abraçando as próprias pernas, o queixo apoiado nos joelhos ossudos e ralados, os olhos voltados para cima com uma careta, indignada com o universo e os Deuses – com a Deusa dela acima de Todos – e o Divino, e incapaz de demonstrar aquela indignação de qualquer maneira que realmente importasse. Os dedos dela se fincavam na própria carne como se quisesse marcar a si mesma, si marcar para que outros não pudessem.

Babet puxou o cabelo dela.

— Arrasta pro lado, ratinha.

Ela foi.

O irmão ainda estava bravo, ainda a olhava como se ela fosse do mesmo nível que o guarda que tinha o enfiado uma faca no olho e cuspido em sua cara ensanguentada enquanto o deixava para morrer em uma vala. Canissa se encolheu, se abraçando com mais força. O rosto dele endureceu ainda mais.

— Que menina burra.

— É — ela disse com tanta simplicidade quanto amargura. — Eu sei.

O deserto e a cidade cheiravam a merda e sangue e areia quente, ou seja, cheiravam como a infância de Canissa. Como a própria Canissa cheirava na maior parte do tempo. Ela abaixou os olhos, mordendo o lado de dentro da bochecha. Babet beliscou o braço dela até doer de verdade e ela levantar a cabeça, o lançando um olhar irritado.

— Ninguém volta de lá.

— Já sei agora.

— Ninguém manda dinheiro nenhum.

— Sei também! O que cê quê que eu faça? Já fiz a coisa errada, agora não tem solução.

— Nunca tinha que tê tentado. Por que cê achô que falá com guardas ia dá algo de bom? Como cê se esqueceu de tudo que eu te ensinei? E pra quê? Pra achá um trabalho e saí daqui? Nunca ia dá certo. Bicho que corre sempre acaba em matadouro. Cê devia sabê disso.

— Corrê é tudo que eu sei fazê! Desculpa se só dessa vez eu fui pro lado errado!

Ela passou uma mão pelos olhos, lágrimas de frustração e ódio a fazendo tremer. Babet a observou, a expressão sombria e impenetrável. Quando ele falou, soava como se ele estivesse dando ordens para um dos meninos que trabalhavam com ele e que ele não achava muito bom no que faziam. Um daqueles que ele dizia para Canissa, sem culpa ou preocupação, que iria ser morto rápido seguindo ou não aquele caminho deles.

— Não morre.

— Não posso escolhê.

— Nunca pôde, mas cê tá aqui ainda, né não? Então faz o que precisá fazê, mas não morre. Os guarda vão ví atrás de você e num vai dá pra escondê sem eles ir vê as outras crianças. Beleza. Vai com eles sem brigá. Eu não tenho ninguém dentro do castelo ainda. Beleza também. Cê ganha tempo. Isso é o único papel importante seu. O resto tá comigo.

Canissa soltou algo que era meio bufada, meio risada.

— Sérião mesmo? — ela perguntou. — Cê vai se pagá de durão e misterioso agora? Como se eu fosse um dos tonto que cê consegue enganá e impressioná. Não vai me falá o seu plano?

— Não tenho um.

— Se manca — exclamou, irritada e cansada e só querendo que alguém mais velho e mais inteligente a explicasse, em detalhes, o que deveria fazer agora.

Sabia que ele estava mentindo. Sabia que ele já tinha pensado em algo, mesmo que fosse só o comecinho de um plano impossível e ainda mal desenvolvido, daquele jeitinho unicamente terrível que todas as loucas ideias dele nasciam.

Quando ele não falou nada, ela tentou o empurrar como faria com Marya. Babet a pegou antes. Os dedos dele se fecharam no pulso dela, cobertos por cicatrizes retorcidas e pele manchada e machucados ainda abertos. Eram tão maiores e mais brutas, tão mais acostumados com uma violência extrema que ela não tinha força nenhuma para causar, mas ao mesmo tempo aquelas eram tão parecidas com as mãos da própria Canissa. Pais diferentes, mas em toda a família, Babet e ela eram os que mais se pareciam.

A primeira vez que ela percebeu isso, em que viu refletindo no sol quanto dos mesmos traços eles tinham herdado, também tinha sido a primeira vez que Babet tentou a ensinar autodefesa que também tinha sido a primeira vez que ela levou um soco no nariz, que com certeza não foi a primeira vez que um dos irmãos dela a fez sangrar. Ela lembrava de levar os dedos até as narinas e os abaixar, encarar com curiosidade enquanto eles pingavam em vermelho. Lembrava de olhar para o punho de Babet e o ver pingando junto.

Dizia algo sobre Canissa que ela nunca sentiu nenhuma conexão tão forte com alguém quanto sentiu com Babet depois daquele momento. Na cabeça dela, irmandade e violência tinham a mesma propensão para pingar que sangue; formavam uma mesma poça pulsante impossível de ser separada, algo que infiltrava no solo e se impregnava nas fundações daquela nação.

Os dois irmãos eram tão parecidos, crenças e temperamentos e corpos, se não fosse pelos tamanhos (Babet sempre foi mais alto até do que a mãe), e pelo fato dela ter tatuagens e ele não.

Era tradicional demais para um homem como ele, que achava que todas e quaisquer tradições deveriam ser afogadas no sangue do Divino, que em si ele achava que deveria ser enforcado usando as tripas dos nobres da corte do homem.

Canissa balançou o braço, o aperto dele doloroso. Babet aumentou o aperto, por um segundo, e só então a soltou.

— Eu sô o mais velho — ele a disse enquanto ela abraçava o próprio pulso e se retraía contra si, o olhando através de olhos cerrados. — Meu trabalho é cuidá de você mesmo cê sendo uma idiota. Ainda mais quando cê é tão idiota assim e sempre tem que sê cuidada. Não se mete, entendeu?

Se Marya sorria como um lobo, Babet sorria como um predador já com as presas todas pintadas com o sangue de centenas de vítimas. Marya era selvagem; ele era mais monstruoso do que qualquer outra coisa e o olhando, algo relaxou dentro de Canissa. Ela conhecia aquele monstro. Sabia o que ele realmente era.

Ela se aproximou um pouco mais, se apoiando contra Babet.

— Cê vai cuidá de mim?

Odiando a si mesma por fazer isso, ela se pegou fungando. Passou a bochecha pelo ombro dele e secou uma lágrima na blusa áspera do irmão. Babet deu uma empurrada na testa dela.

— Tenho escolha? — Ele balançou a cabeça como se a pergunta fosse a coisa mais estúpida do mundo. Como se nunca tivesse existido uma vida onde a resposta dele não fosse a coisa mais óbvia e instintiva possível, um — Claro que não — bufado o deixando os lábios. — Vô mexê uns pauzinhos. Só preciso que cê sobreviva o começo sozinha. — Ele levou a mão fechada em um punho até a testa dela, a dando uma batidinha como se estivesse batendo em uma porta. — Consegue fazê isso, cabecinha oca?

Grande parte da vida de Canissa foi passada segurando alguma fruta que a muito tempo tinha estragado, usando as pontas dos dedos para puxar e separar todas as partes podres. Ela não fazia isso porque queria. A resposta, quando saiu dela, foi com firmeza, facilidade e um leve toque de zombaria.

— Tenho escolha? — Ela deu uma batidinha no ombro de Babet, o imitando. — Vô fazê o que sempre fiz. Quanto tempo eu te espero?

Babet a lançou um olhar.

— O castelo é bem guardado — admitiu. Ele levou uma mão até o cabelo dela e dessa vez, ao invés de puxar, só tirou um cacho embaraçado que grudava na bochecha suja dela. — Vai demorá um pouco até eu resolvê tudo.

Canissa sorriu.

— Ai, melhô coisa de se ouví nessa situação.

Porque o que ela realmente queria ouvir era eu sei exatamente o que fazer para resolver tudo, o que nunca lhe iria ser dito.

 

**

 

Babet tinha guardado uma certa quantidade de irritação, um como você pode falar com guardas que era berrado no ouvido de Canissa em seu silêncio frio e julgador, impossível de não notar pela maneira como ele continuava a olhando sempre que eles cruzavam o caminho um do outro pelos próximos dias. Impossível também era esconder completamente a preocupação e estresse que ele sentia junto ao resto. Que ele tentava bravamente esconder.

Marya também não tinha conseguido se livrar de sua histeria perante a idiotice do que Canissa tinha feito.

Os outros irmãos dela se contentavam em mandar olhares genuinamente assustados para Canissa o tempo todo, agindo como se ela fosse um espírito andando pela casa, como se ela fosse aquele espírito que o pequeno Bene, o mais novo deles, jurou ter visto a beira do rio na semana anterior. A mãe dela não olhava para ela em ocasião alguma, trabalhando tanto que se eles a viram por mais de dois minutos a cada dia já tinha sido bom demais.

Canissa entendia o instinto de só fugir da situação. Ela própria passou a maior parte do dia dela fugindo da casa e dos irmãos mais velhos.

O problema era que os amigos de rua dela não eram de grande ajuda, cada um com uma nova terrível história sobre o Divino que eles não tinham hesitação nenhuma em contar para ela.

— Dizem que o Divino amava a primeira esposa tanto que pelos três ano depois da morte dela, sempre que alguém tentava arranjá uma nova mulhé pra ele, ele dizia sê um insulto à Imperatriz e mandava matá as mulhé tudo. Dizem que quando ele finalmente casô de novo, foi porque aquela puta consorte dele era tão bonita que ele se apaixonô só de olhá pra ela, e que de presente de casamento ele arrancô os dedos dos cadáver de toda as mulhé que tinha matado e deu pra ela. Dizem que ela ainda tem eles guardado no quarto, no mesmo lugar que as esmeralda toda dela.

Canissa lançou um olhar chocado para Kyia. O grupo ao redor delas ou parecia um pouco enjoado imaginando, ou parecia achar tão nojento que era um pouco legal, ou só ria da expressão dos outros. Fez a barriga dela se apertar toda.

— Quem diz isso? — Canissa soltou.

Kyia encolheu os ombros.

— Todo mundo, ué.

— Eu ouvi que a princesa consorte gosta de guardá é o olho dos cadáver, não os dedo — um outro menino comentou. — E que não foi ele que deu, mas ela que pediu. Ouvi que ela gostô tanto que ela até hoje pede pra ele dá os olhos dos rebelde pra ela, e que é por isso que eles chega na praça tudo com os olho vazio.

— Minha mãe disse que quando eles passa muito tempo sem nenhum traidor — Kyia adicionou —, o Divino escolhe um criado qualquer pra acusar e matar só pra podê dá um pedaço deles de presente pra ela.

— A minha falou que eles tira as língua dos criado pra dá pra ela — outro corrigiu. ─ Mas eles não mata eles não.

— Porque a mãe docês é mais traidora do que qualqué um que o Divino já matou — exclamou Canissa na direção de Kyia e do outro menino. — Por isso eu nunca falo dessas coisa com ocês. Que horror ein.

— E isso acabô sendo muito bom pra você, né não, futura criada do Divino?

Canissa revirou os olhos, se apoiando contra a parede e bufando. Os guardas não gostavam de ver crianças como eles se juntando em grupos grandes demais – começavam a achar que eles estavam planejando algum maligno plano que aparentemente fazia homens adultos ficarem tremendo de ansiedade –, e além disso, Canissa estava os evitando por pura pirraça e para tornar o trabalho deles um pouquinho mais difícil.

Assim, eles estavam sentados e conversando no beco do lado do templo favorito de Canissa: onde era escuro e sujo e ratos de rua e ratos de verdade todos se escondiam juntos. Nisso a Deusa dela era confiável e nunca tinha os revelado ou deixado serem encontrados.

— Meu tio foi trabalhá no castelo — um dos meninos disse, indo se apoiar do lado de Canissa. — Ele acabô com o corpo na praça e a minha família toda levô umas dez chibatada cada como castigo por ele tê sido um rebelde, o que nem faz sentido, porque ele era mais leal pro Divino do que a sua mãe. Ele nunca ia sê desrespeitoso, muito menos falá contra os Deuses.

Canissa engoliu em seco.

— Cês só parecem querê me convencer de que os traidor morto não são traidor de verdade — comentou nervosa. — O que não vai acontecê. Essa fofoca aí é mais velha que todo mundo aqui, até eu já ouvi e até eu sei que é só um monte de merda.

— É difícil assim acreditá que o Divino faria uma injustiça dessa? — perguntou Kyia, levantou uma sobrancelha.

Parecia divertida, mas todos os amigos e irmãos dela sempre ficavam divertidos perante a fervente negação de Canissa quando se tratava de dar voz a uma única palavra ou pergunta negativa em relação ao povo do castelo. Na visão deles ela devia parecer bem otimista e ignorante mesmo.

No caso da própria pergunta de Kyia: Canissa não queria dizer não porque ela não queria insultar a moralidade do Divino em voz alta, mesmo que ela achasse que ele tinha morais tão fracas quanto as dela e adorasse o questionar na própria cabeça.

Ao invés, ela admitiu:

— Fácil mesmo é acreditá que todo esse povo foi pego falando mal dele. É só o que todo mundo sabe fazê por essas banda e isso é com a gente sendo ameaçado sempre. Tem traidô por todo lado pra ele pegá e usá de exemplo. — Ela lançou um olhar para cada um deles. — Que pena que o exemplo nunca funciona.

Que pena que aquilo não fez eles pararem de a contar cada uma das terríveis histórias sobre o Divino e a consorte que tinham conseguido chegar em Quasha: histórias sobre uma mulher vaidosamente masoquista e um homem que era um Deus e masoquistamente apaixonado, e muito mais sangue derramado do que parecia possível.

Canissa tentou se convencer que não era possível mesmo. Dizer para si mesma que eram só histórias e exageros e fofocas passadas por tantas bocas e ouvidos que perderam toda a verdade que no início tinham.

Ela voltou para casa tremendo e não muito convencida.

Depois disso, Canissa se concentrou em passar tanto tempo quanto possível com o pequeno Bene, porque ele era tão pequeno que não entendia muito bem o que estava acontecendo e, de tal forma, a tratava com normalidade e uma dose ignorável de confusão. Até a deixava culpada ver o quão feliz ele tinha ficado com uma das irmãs mais velhas o seguindo e passando o dia todo só com ele.

Ela estava ensinando Bene como roubar no truco – um talento inútil, porque nenhum dos homens que sempre ficavam na frente dos bares e tavernas aceitava jogar com Canissa depois da primeira vez, mas ainda assim, um talento dela –, quando Marya se sentou do lado deles.

Era o fim da terceira tarde que Canissa passava esperando por guardas e o dia mais quente fazia um bom tempo. O sol batia com força no lado de trás do pescoço dela e areia e cabelo grudavam em cada parte de pele possível, a deixando suada, cansada e mais fedida do que o normal.

Não havia sorriso nenhum no rosto da irmã, mas ela deu uma batidinha na bochecha de Canissa e proclamou:

— Te consegui seu pão com feijão, cebola e ovo que cê tanto queria.

Ela encarou a irmã, piscando devagar. Pensou em perguntar como antes de perceber que, se Marya não falou, Canissa não iria querer saber.

— Sem cheiro estranho? — perguntou com um pequeno sorriso, deixando as cartas de lado.

Os olhos de Marya brilharam.

— Sem cheiro suspeito.

Canissa riu.

Enquanto ela aceitava a oferta, ela viu Bene a encarando com a boca meio aberta, praticamente salivando. Trocou um olhar com Marya.

— Se cê quê dividí cê pode — a irmã disse. — Mas essa é a sua oportunidade de sê egoísta sem ninguém te julgá.

Passar o pedaço maior de pão para Bene foi a decisão mais fácil o possível, assim como partir o resto com Marya veio sem hesitação alguma.

Tinha que pensar em momentos assim. Pão e calor e irmãos sorridentes. Não tinha tempo para perder ficando triste ou com medo. A lealdade e a raiva ela podia manter, porque isso a ajudaria a continuar sendo tão teimosa, o que em troca a ajudaria a sobreviver. O resto só atrapalhava

Logo na manhã seguinte, um guarda finalmente apareceu.

Ele disse que ela tinha sido contratada e convocada. Considerando que era uma das únicas idiotas a se voluntariar, isso não era um anuncio necessário. Também não surpreendeu muito quando ele continuou dizendo que era esperado ela ir com ele para o castelo naquele mesmo instante.

Esperado. Era obrigatório, isso sim.

A única benção que ela recebeu, uma que ela preferiria colocar na conta de sua Deusa e não na do homem, foi poder, antes de ir, se despedir e abraçar os irmãos por quanto tempo precisasse. Eles não botaram muita bola naquela promessa de tempo ilimitado porque você nunca devia confiar no que saía da boca guardas, então tentaram ser rápidos.

A mãe dela a abraçou por mais tempo do que todo o resto da família. A segurou por mais tempo e com mais carinho do que jamais tinha segurado Canissa, com nenhuma das duas tendo tido a oportunidade enquanto ela crescia.

— AhNissa ─ ela sussurrou contra o ouvido de Canissa, colocando uma mão atrás de sua cabeça e a apoiando como teria apoiado a cabecinha frágil de um bebê, beijando o topo da testa com firmeza. Era bem possível que não tivesse segurado nenhum deles de tal maneira a não ser quando eles eram recém nascidos, e não sabia muito bem como lidar com uma criança crescida nos braços.

O apelido, um que ela não tinha ouvido da boca da mãe desde os cinco anos, era prova maior do que todas as outras de que a mãe não achava que iria a ver de novo.

Canissa a mandou um sorriso torto.

— Calma, mâinha. Vô te mandá todo dinheiro que eu recebê, prometo pro cê — a disse, porque essa era a única promessa que sabia que poderia cumprir, e ela deu uma beliscada na ponta do ouvido de Canissa, os dedos afiados e o rosto suave, balançando a cabeça.

E então ela tinha que ir.

O guarda não tentou a puxar pelo braço como se ela fosse uma criancinha pega roubando. Outra pequena benção. Ele não parecia achar que Canissa ia tentar fugir, a guiando em direção ao seu cavalo sem pressa alguma. Uma vez que chegou nele, ele não o montou, só segurou as rédeas e olhou para Canissa. A analisou.

Era bem velho, talvez mais de uma década mais velho do que a mãe dela. Os olhos dele eram frios. Olhavam para ela e viam mais de uma dezena de garotinhas que para ele não se diferenciavam uma das outras; uma dezena de garotinhas que tinha guiado até o Divino sabendo o que esperava por elas.

— Já andou de cavalo, garota?

Canissa concordou com a cabeça.

A família dela não teria conseguido comprar um por meios honestos, mas aos dezessete anos, Babet tinha ido até a cidade do lado por causa do "trabalho" dele e, para aproveitar, roubou um cavalo e o deu de presente para mãe, na época grávida com Yrsa. Tinha sido bem útil para ela não precisar ir e voltar do trabalho toda sozinha no escuro.

Ela tinha ensinado Canissa como andar e limpar o cavalo porque ela era a única entre os irmãos do qual o cavalo não corria. Gostava de passar tempo com ele. Era um daqueles momentos de paz e silêncio, um trabalho sincero e braçal onde ela podia se perder completamente.

Nada disso ela podia falar para o guarda, mesmo que fossem grandes as chances dele ter reconhecido Babet no momento em que viu o olho do menino e a encarada que ele estava o lançando, e só não falou nada por medo e vontade de sair rápido.

— Perfeito — o guarda falou para Canissa. Abriu um sorriso. — Um dos meninos que trabalhava no estábulo morreu uns dois dias atrás. Cê pode ficar no lugar dele.

Por alguma razão, a menção tão casual de um menino morrendo não ajudou Canissa a esquecer todas as histórias que tinha sido obrigada a ouvir.

A cicatriz que o guarda tinha no lugar da orelha esquerda também não passou despercebida.



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