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História A Testemunha - Capítulo Três


Escrita por: cherrybombshell

Capítulo 3 - Capítulo Três


Apesar da pergunta que fez, o guarda não tinha um cavalo separado para Canissa e muito menos vontade de dividir o dele com ela. Ao invés disso, ela andou do lado dele, de repente grata pela falta de bagagem a pesando e relutantemente grata pelo velho galopar devagar.

Antes de tudo, ele foi até a praça e se encontrou com mais guardas.

Lá, quatro novos homens, todos algumas décadas mais novos do que o que buscou Canissa, e cinco novos cavalos se juntaram a eles. O animal que sobrava vinha sendo guiado pela corda na mão de um dos outros guardas, aparentemente só sendo usado para carregar coisas que eles tinham comprado na cidade: tapeçarias e tecidos da mais alta qualidade encontrada nas cores mais nobres que havia, bolsinhas que ela reconhecia trazerem sal e pimentas e outras especiarias, tantas espadas curvadas com punhais de ouro e longas lanças com as pontas afiadas em bronze que Canissa podia até imaginar o quanto um dos ferreiros da cidade estava comemorando naquele exato momento, e ainda mais bolsas tilintando cheias de moedas, impostos arrancados das mãos de desesperados para irem até os cofres fechados do Divino.

Canissa os seguiu em silêncio.

O povo estava todo acostumado com os guardas que mantinham seus postos em Quasha, mas quando os que trabalhavam no castelo desciam, eles tendiam a dar uma tensionada. As ruas estavam voltando ao normal só agora que os homens do Divino estavam indo embora.

Ela tinha ouvido que uma parte deles, o grupo maior com o qual Canissa tinha falado na praça, já tinha voltado na tarde anterior. Esses que tinham ficado pareciam ser só os novatos ainda não profissionais e um único mais velho para tentar os manter em linha, e o empurra-empurra de começo de tarde tinha voltado a ser o que sempre foi: um completo, agressivo, confuso caos.

A menina se segurou as rédeas do guarda mais velho, preocupada em se perder mesmo que a multidão abrisse um bom espaço entre si e os homens. Ele a lançou um olhar pelo canto do olho, um aviso, e ela soltou um pouco o aperto.

Se ele quisesse, poderia dar uma batidinha com a perna e o cavalo iria acelerar para longe, derrubando Canissa. Só a capacidade e clara hesitação dela pareciam suficiente por agora, porque ele voltou a andar sem se preocupar com ela de novo. Ergueu o queixo, as mãos tensas nas rédeas.

Mantinha os olhos gelados focados em cada pessoa que por eles ousava passar. Enquanto os outros conversavam e riam entre si, o guarda continuou mudo, cada cidadão, desde velhos carregando mercadorias com mãos trêmulas até mães preocupadas puxando suas crianças para longe dos guardas até jovens com vasos balançando cheios d'água nos braços, parecendo para ele ser motivo de alerta.

Canissa tinha ouvido histórias sobre reinos mais para o sul que eram pálidos daquele mesmo jeito de seus moradores; algo sobre o clima, tão frio que chegava a cair "neve" do céu, e deixava para trás cidades cobertas de branco e cinza e tristeza. Gelo, para ela, sempre pareceu um conceito confuso. Quasha era diferente, tão barulhenta quanto era cheia de gente. Cada canto explodia com cor, barulho, cheiros, tudo forte demais e tudo feito para enlouquecer homens que pareciam querer manter tudo sob planos controlados. Ela escondeu um sorriso ao observar os olhos do velho irem de um lado para o outro loucamente.

Até o barulho dos próprios colegas, brincando com a cara um do outro e zombando dos cidadãos que passavam, era o suficiente para fazer as costas dele enrijecerem mais e mais a cada segundo que passava.

As coisas iam ficando mais calmas conforme eles se aproximavam das partes mais ricas de Quasha, mas o silêncio só chegou quando, umas duas horas depois de começarem sua jornada, eles saíram da cidade em direção as estradas que Canissa nunca teve razão para pegar.

Os pés dela doíam, mas com isso ela estava acostumada. O nervosismo que a embrulhava o estômago era diferente.

— E se eu ficá pra trás e te perdê? — perguntou para o homem, porque nas ruas que conhecia tão bem quanto sua família, aí ela confiava em si para o seguir sem problemas.

Por essas bandas nem tanto.

A mão dela tinha voltado a segurar a rédea dele com força sem ela nem saber quando tinha recomeçado com aquilo. Os cinco guardas pararam, os quatro mais novos olhando para o mais velho com atenção e curiosidade. Ele a lançou um olhar vazio, como se a pergunta fosse idiota, e ela sentiu seu aperto aumentando.

— Aí você ou consegue fazer o resto do caminho até o castelo sozinha ou senta na estrada e espera morrer de fome. Só não recomendo tentar voltar pra casa. ─ Ele disse isso tudo com muita simplicidade. Levantou uma sobrancelha grossa e um pouco grisalha na direção de Canissa. — Acha que isso vai ser um problema?

Ela o lançou um sorrisão, soltando a rédea dele.

— Probrema nenhum, senhô. Eu sô bem rápida.

Os outros riram. O mais velho só bufou e continuou a cavalgar, dessa vez mais rápido do que antes, indo mais para frente do grupo. Se separando deles.

Já que o resto continuou na mesma velocidade calma de antes, Canissa se deixou ficar para trás com eles. Um dos homens – um moleque quase, com cara de ser mais novo do que Marya – a lançou um sorriso. O rosto já era todo tatuado, até as pálpebras e os lábios e orelhas.

— Ele não vai te deixar aqui, garota, pode se calmar — a disse. Canissa só o encarou com a expressão vazia, sem confiar no conforto de alguém como ele. O sorriso aumentou. — Tão precisando mesmo de alguém nos estábulos. O Divino adora andar a cavalo e já tava começando a ficar bravo de só ter uma criada servindo ele quando ele vai lá. Quando o Divino tá bravo, todo mundo sofre e corre pra tentar resolver a situação.

Ela engoliu em seco.

— Eu vou ver o Divino? — se viu perguntando, apesar de ter dito para si mesma que não iria dar trela para eles e para o papo que, desde a cidade, ela percebeu ser bem sem noção.

Outro rapaz riu, balançando as rédeas e galopando até parar mais do lado dela.

— Por enquanto não. Cê vai começar na melhor hora possível, nem ele e nem a puta dele tão no castelo. — Canissa não pôde deixar de notar que ele não tinha o dedo mindinho nas duas mãos: os dois arrancados e trocados por cicatrizes retorcidas e antigas. Ele voltou para os amigos. — Foram para Parbat, não?

— Foram fazer parte do Titiyhebati — concordou um terceiro, os dentes amarelados, alguns faltando.

Parbat Canissa sabia que era uma cidade na costa, Titiyhebati algum festival cujo nome ela se lembrava bem vagamente, mas do qual nunca tinha participado. Não tinha a mínima ideia de qual era o Deus ao qual as comemorações se atribuíam, mas os guardas pareciam muito divertidos o mencionando.

— Caçar o dia inteiro — o primeiro tatuado disse —, queimar toda carne que conseguirem pegar, passar uma semana inteira abstendo de comida e bebida e qualquer prazer mundano enquanto são alimentados puramente pelas suas fés. Ou seja, vivendo do jeito que mais de metade desse império vive, incluindo essa rata aqui.

Ele usou o pé dele para dar um chute leve no braço de Canissa.

Mesmo sem doer, ela o odiou por isso, sentiu uma amargura se revirando dentro do peito enquanto o lançava um olhar raivoso.

— Aproxima os nobres dos Deuses — o terceiro zombou.

— E ela que faz isso todos os dias continua sendo uma das pessoas menos divinas que eu já vi — comentou o que até agora não tinha falado nada, algo inquestionavelmente cruel no brilho de seus olhos ao secar Canissa do cabelo sujo até os pés machucados.

Ela decidiu, na mesma hora, que ter que correr e machucar ainda mais os pés para conseguir acompanhar o guarda mais velho era melhor do que ter que lidar com o resto deles.

Quando parou do lado dele, ele o lançou um olhar, mas se manteve calado.

Se manteve cavalgando sem nada falar por um bom tempo, ainda atento a estrada vazia como se a qualquer segundo esperasse que bandidos pulassem neles. Parecia que mais umas três horas tinham se passado só com ela caminhando e tentando ignorar a conversa dos outros quatro – que vez ou outra por ela chamavam – quando ele finalmente começou a diminuir a velocidade do cavalo.

— A jornada é longa demais — disse, virando o animal para o lado. Canissa não tinha certeza se o anúncio era para ela ou para os colegas dele, apesar deles parecerem inexperientes o suficiente que precisavam serem rispidamente avisados: — Nós vamos acampar por aqui durante a noite e retomar de manhã. Quero ver vocês montarem campo sozinhos.

E ver foi a única coisa que ele fez, continuando sentado em cima do cavalo e tomando goles de um odre enquanto os rapazes trabalhavam. Hora ou outra ele abria a boca para os criticar.

Canissa sentiu o leve cheiro de conhaque de tal odre e, mesmo burra como era, soube manter devida distância de tudo e todos.

Os homens fizeram uma fogueira. Cozinharam carnes e batatas que tinham trago do mercado da cidade. Assim como não tinha perguntado se podia subir no cavalo sobrando, Canissa não perguntou se podia comer algo, ao invés se sentando no chão e massageando os pés, checando para ver se eles não iam ficar com novas cicatrizes. Tinha algumas novas bolhas, ralados, uma vermelhidão que naquela manhã não tinham, mas desde que eles não caíssem, ela ia aceitar calada.

Só quando os cinco guardas acabaram de comer que o mais velho a ofereceu os restos que tinham sobrado.

Ela comeu com gosto, lambendo os dedos e se recusando a olhar para cima e ver os mais rapazes encarando, ouvir eles rindo. Não se importava se parecia faminta e animalesca, porque ela era e fazia tanto tempo que não tinha comido carne assim, boa e temperada e ainda um pouco quente. Talvez nunca nem tivesse. Iria aproveitar a oportunidade.

Humilhação não ia a matar. Vinda de gente como aqueles quatro, não ia nem a atingir.

Dormir foi sem dúvidas a pior parte.

Os guardas receberam instruções do mais velho para que em momento algum eles estivessem todos desacordados sem um vigia. Canissa não foi incluída na rotação que ele planejou, mas ela tinha quase certeza que foi a que menos dormiu. Quando acordou de manhã, foi com os pés pulsando e ardendo, os dedos duros, unhas sujas se fincando nos joelhos, que em si estavam apertados com força contra o peito, as costas tensas viradas para o grupo apesar de ter ido dormir os encarando com ódio e suspeita.

Tinha sonhado com a Deusa dela.

Sabia disso, apesar de tudo que sobrou do sonho serem fragmentos desconexos: três olhos vermelhos como rubis, a única coisa visível em meio a escuridão. Piscando e deixando o mundo sozinho em completo breu, deixando Canissa com as mãos erguidas e a respiração ofegante e o coração acelerado, pronta para agarrar algo, mas sem saber agora o que queria tanto no sonho. Uma mulher tão alta quanto as estátuas na praça, com a pele ainda mais escura do que a escuridão, com o sorriso afiado. Uma grande pantera negra. A mandíbula de tal pantera se abrindo, dentes pretos se fechando em um lobo. O cheiro distante de sangue e incenso.

Não morre.

Quando ela acordou, o sol forte no ombro, o coração ainda batendo rápido demais, foi com as vozes dos guardas conversando entre si não muito longe, sem saber que ela ouvia.

— Vai fazer mesmo a menina andar o caminho todo, Tut? — Esse era o primeiro tatuado. — A partir daqui é só areia e perigo e a coitada tá descalça. Se ela não chegar com os pés tudo sangrando, pode apostar que ela é um daqueles espíritos da Kaur.

Houve uma bufada. A voz grave e fria do mais velho, dizendo:

— O caminho até aqui era só areia e perigo também. Não ouvi ela reclamando e nem vi ela sangrando.

— Senhor, eu não sei se você notou — disse o terceiro, voz cheia de diversão —, mas só você que não quer cavalgar com ela, ein. A gente sairia no lucro.

Dois dias depois dela ter dado seu nome pros guardas na praça e dois dias antes de ter sido buscada, Kassim tinha encontrado Canissa e enfiado um canivete na mão dela, lhe apertando as mãos e sussurrando não pergunte de quem eu roubei. Era uma coisa pequena e afiada. Ela podia sentir a lâmina escondida no bolso. Podia sentir o pinicar em seus dedos a mandando a pegar, assim que ouviu aquelas palavras.

O que aconteceu com Babet a ensinou uma coisa importante: dar uma facada no olho de alguém era surpreendentemente fácil, mesmo que fosse no olho de alguém muito acostumado a vencer brigas.

Era um bom jeito de dar uma lição em alguém. De mandar uma mensagem.

Antes dela sequer poder se mexer, o mais velho disse com uma voz seríssima:

— Não toca nela, entendeu?

— Sem graça.

— Olha praquele rostinho — o quarto, o mais assustador, apontou, rindo. — Do jeitinho que ele gosta.

O jeito que o rapaz falou ele era estranho. Não parecia que ele estava se referindo a um dos colegas dele, mas não havia mais ninguém ali, mais ninguém que tinha sido mencionado em toda aquela terrível conversa. Canissa não conseguia pensar em alguém sobre o qual ele poderia estar se referindo, mas não houve nenhum questionamento entre os guardas, sabendo exata e imediatamente a quem ele se referia sem precisar de especificações.

Fez Canissa se arrepiar toda, estremecendo e abraçando as pernas com mais força. Tentando se encolher até ficar tão pequenininha que eles não poderiam a ver mais.

O mais velho bufou de novo. Tentando imaginar o rosto dele naquele momento, ela não tinha certeza se ele estava com uma expressão demasiadamente cansada ou simplesmente apática e fria.

A voz dele soava como uma mistura dos dois.

— Exatamente. Nem se aproxima.

— Que desperdício. Prysha Zaskoshaka vai fazer ela sumir tão rápido que nem vai dar pra ter uma despedida nossa.

Dessa vez, quando o mais velho foi balançar o ombro dela e a mandar voltar a andar pela estrada com eles, Canissa andou do lado dele sem nenhuma hesitação e nenhuma vontade de subir em um cavalo, não importa o quão exausta e dolorida estivesse ficando.

Ela não ousou se segurar as rédeas dele dessa vez.

 

**

 

Canissa tinha a sensação de que eles esperavam a ver agindo impressionada com o castelo.

Boquiaberta e sem palavras; era como eles imaginavam que ela deveria ficar perante tal gigante estrutura. Estavam a encarando, medindo o rosto dela, doidos para ver como uma menininha simples e miserável reagiria aquela grandiosidade toda.

Era gigante mesmo, isso até ela tinha que admitir. Não era do tamanho de Quasha, mas ela apostava que era maior do que muitas cidades pelo império a fora, com mais vigia e proteção do que todo o resto de Yafa junto. Tinha sido construído cercado por um de seus mais famosos rios, território de seu Deus Imhotep, e qualquer um que tentasse invadir por lá, se já não fosse pego pelos guardas, ia acabar virando amigo bem próximo dos crocodilos e grandes cobras que nadavam por aquelas doces e ferventes águas. Não era a toa que Canissa nunca tinha ouvido de alguém conseguir entrar ou sair do castelo sem permissão do Divino – e não era a toa que até Babet admitia que tentar fazer isso por ela ia ser um processo difícil e demorado.

As torres pareciam fazer cosquinhas nas nuvens, altas como eram. Tocavam o céu. Tocavam os Deuses, porque, como seu escolhido, o Divino era mesmo o único digno de Os tocar. Canissa não conseguia nem levantar a cabeça o suficiente para ver onde elas acabavam direito, desaparecendo em meio ao sol alto.

O chão era de pedra, refrescante, mas áspero embaixo dos pés descalços e acabados dela. A estrutura apresentava curvas graciosas e grandes arcos, a entrada um espaço aberto por onde a brisa passava, com colunas para todos os lados, pedras cravadas e pintadas com ouro, decoradas com textos religiosos, imagens de rituais, de Deuses e espíritos protetores.

Ela lançou um olhar para o velho, mas ele não a parou quando ela se inclinou para frente e tocou uma das colunas, deixando as pontas dos dedos roçarem por um dos desenhos – Imhotep segurando Tau, ela achava, o outro Deus caído nos braços do amante, traído, gritando de angústia, o refletir de uma época perdida, época antes de Yafa, quando homens tentaram burlar a Ordem e o primeiro imperador da linhagem do Divino foi mandado para Terra para mostrar a eles a verdadeira força e desejos dos Deuses. Canissa tinha ouvido aquela história centenas de vezes já, da boca da própria mãe e de mais sacerdotes do que podia se recordar.

Ela tirou a mão rápido, se retraindo.

Deveria estar impressionada. Encantada com o tipo de monumento que deveria ter demorado gerações para ser construído e continuaria em pé por gerações depois da morte de Canissa e de toda família dela.

Tudo que ela sentia era desgosto.

A história de Tau e Imhotep e do primeiro imperador, a mais contada no império, sempre foi a que ela mais odiou.

Canissa se virou para o velho.

— E os estábulo, senhô?

Se todos os rumores que tinha ouvido – e a conversa que aquela manhã tinha entreouvido – a deixaram esperando pelo pior, ela não sabia nem descrever o que sentiu quando um dos guardas rapazes comentou, do lado dela, que costumavam haver três "pirralhos" trabalhando nos estábulos, mas agora só havia uma a não ser Canissa.

É questão de tempo. Cê sempre soube disso, ratinha.

Outra coisa que eles mencionaram: Veena era o nome da menina que tinha sobrado, dezesseis anos para os quinze de Canissa, mas parecendo anos mais velha e mais autoritária quando, ao vê-la entrando nos estábulos e tendo hesitado por alguns segundos de analisar Canissa de cima para baixo, se apoiou em um dos cavalos e disse para os guardas, calma e confiante:

— Brigada por entregar a ajuda. Podem chispar já.

E, para surpresa de Canissa, eles foram embora mesmo, até o mais velho.

A menina tinha a mesma dúvida que o homem a fez no primeiro momento. Perguntou se ela sabia andar e cuidar de cavalos e, depois de receber uma confirmação, se aprofundou em dezenas de perguntas e testes e desafios cujos pelo menos metade Canissa tinha certeza de que não tinha respondido certo. Sentia o mundo girando, todo o medo e confusão dos últimos dias batendo como um punho em sua cabeça enquanto a menina questionava e questionava e questionava Canissa sem a dar tempo para pensar, muito menos sentar.

Quando acabou, ela tocou nas rédeas do garanhão que estava penteando quando eles chegaram e a mandou um sorriso.

— Sabe mais do que os outros quando eles chegaram, pelo menos.

— Os outros? — perguntou Canissa, piscando devagar. — Tá falando dos que foi morto?

Veena soltou uma risada sem humor, balançando a cabeça.

Ela tinha dentes tão tortos quanto o nariz, que bem claramente já tinha sido quebrado mais de uma só vez antes. Provavelmente já tinha sido quebrado mais de umas cinco vezes, do jeito que parecia pior até do que o de Kassim. Tinha uma cicatriz feia e de aparência dolorosa no queixo, mas o rosto parecia tão cheio de confiança e tão amigável que Canissa teria relaxado se não fosse pelo assunto e lugar onde estava.

— Gente aparece e desaparece o tempo todo nesse castelo, cê se acostuma — foi o que ela disse para Canissa, o tom reconfortante, soltando o cavalo e passando um braço por cima dos ombros da outra menina. — Cê tá com os pés machucados, né não? Eu vi pelo jeito como cê tá andando. Vem cá. Eu tenho uns remédios e uma sandália que eu posso te dar.

Ela tinha um quartinho ligado aos estábulos, um que ela disse para Canissa que tinha lutado com unhas e dentes para pegar dos meninos que costumavam trabalhar com ela, mas que elas podiam dividir, se ela aceitasse o cheiro de esterco e o barulho alto todas as manhãs e noites. Canissa, é claro, estava acostumada com cheiros e barulhos piores e não hesitou em dizer sim.

Enquanto passava água nos pés de Canissa e a mostrava várias ervas medicinais que tinha conseguido com uma menina na cozinha, Veena a disse:

— Meu pai trabalhava nos estábulos e minha mãe na cozinha antes deles morrer. Eu cresci aqui e já ouvi de tudo que cês na cidade falam da gente, mas não é tão ruim quanto cês fazem parecer. O menino antes de você caiu de um dos cavalos e quebrou o pescoço, não foi morto não. Ninguém é morto a não ser que acabe desfigurado demais para trabalhar ao redor de nobres enojadinhos e o Divino não tenha o que fazer com a pessoa. Bem difícil disso acontecer.

Desfigurados, Canissa pensou com horror, e então decidiu que pensar não era um bom plano se ela quisesse manter a calma e a cabeça em relação ao seu destino iminente.

Ela pensou em perguntar sobre o dinheiro que eles recebiam e nunca chegava na cidade, mas Veena foi mais rápida.

— O único medo mesmo é chamar atenção da puta do Divino — ela continuou. — Ela adora fazer crianças desaparecer. Mas cê é pequena. Baixinha, então é mais fácil do cê se esconder e não ser notada. Não se esquenta demais, eu acho que cê vai se dar bem, se você ficar do meu lado e ouvir tudo que eu te ensinar.

— Deixa eu adivinhá — comentou Canissa, a lançando um sorriso hesitante. — Cê tem muito pra mim ensiná.

— Tenho. Começando com o seu sotaque. — Veena olhou para cima, ajoelhada aos pés de Canissa enquanto Canissa sentava na cama dela. Cama que elas iriam dividir. Cama delas, então. Dessa vez, o sorriso de Veena foi triste. — O trabalho devia ser a parte mais importante, né? Mas longe disso. É fofo, como cê fala, mas os nobres vão odiar. A gente não precisa falar tão bem quanto eles, eu tenho um sotaque também, mas se eles te pegarem deixando de falar seus erres ou soando como se cê fosse da favela ao redor deles, eles vão considerar desrespeito.

— Eu sô da favela — disse Canissa, indignada. — E é o jeito como eu falo. Como pode sê desrespeito?

Veena riu.

— Ah, docinho. — Ela se levantou. — Olha a minha primeira e mais importante lição: tudo sobre a gente é desrespeito para eles.

Até se ela não tivesse falado nada, essa seria uma lição que Canissa ia aprender bem rápido, nas mãos daqueles nobres.



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